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Aliny Lamoglia Mara Monteiro da Cruz Psicopedagogia 2Volume 2 Volum e Psico p ed ag o g ia 9 7 8 8 5 7 6 4 8 7 8 2 1 ISBN 978-85-7648-782-1 Aliny Lamoglia Mara Monteiro da Cruz Volume 2 Psicopedagogia Apoio: Material Didático M233 Lamoglia, Aliny Psicopedagogia. v. 2. / Aliny Lamoglia, Mara Monteiro da Cruz. - Rio de Janeiro : Fundação CECIERJ, 2012. 166 p. ; 19 x 26,5 cm. ISBN 978-85-7648-782-1 1. Psicopedagogia. 2. Aprendizagem. 3. Afetividade. I. Cruz, Mara Monteiro. II. Título. CDD 372.21 Referências Bibliográfi cas e catalogação na fonte, de acordo com as normas da ABNT. Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfi co da Língua Portuguesa. Copyright © 2011, Fundação Cecierj / Consórcio Cederj Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada, por qualquer meio eletrônico, mecânico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, da Fundação. ELABORAÇÃO DE CONTEÚDO Aliny Lamoglia Mara Monteiro da Cruz COORDENAÇÃO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL Cristine Costa Barreto SUPERVISÃO DE DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL Miguel Siano da Cunha DESENVOLVIMENTO INSTRUCIONAL E REVISÃO Anna Maria Osborne AVALIAÇÃO DO MATERIAL DIDÁTICO Thaïs de Siervi Departamento de Produção EDITOR Fábio Rapello Alencar COORDENAÇÃO DE REVISÃO Cristina Freixinho REVISÃO TIPOGRÁFICA Cristina Freixinho Elaine Bayma Renata Lauria Thelenayce Ribeiro COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO Ronaldo d'Aguiar Silva DIRETOR DE ARTE Alexandre d'Oliveira PROGRAMAÇÃO VISUAL Alexandre d'Oliveira ILUSTRAÇÃO Alessandra Nogueira CAPA Alessandra Nogueira PRODUÇÃO GRÁFICA Verônica Paranhos 2012.2/2013.1 Fundação Cecierj / Consórcio Cederj Rua da Ajuda, 5 – Centro – Rio de Janeiro, RJ – CEP 20040-000 Tel.: (21) 2333-1112 Fax: (21) 2333-1116 Presidente Carlos Eduardo Bielschowsky Vice-presidente Masako Oya Masuda Coordenação do Curso de Pedagogia para as Séries Iniciais do Ensino Fundamental UNIRIO - Leila Medeiros UERJ - Rosana de Oliveira Universidades Consorciadas Governo do Estado do Rio de Janeiro Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia Governador Alexandre Cardoso Sérgio Cabral Filho Governo do Estado do Rio de Janeiro Secretário de Estado de Ciência e Tecnologia Governador Alexandre Cardoso Sérgio Cabral Filho UENF - UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO Reitor: Silvério de Paiva Freitas UERJ - UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor: Ricardo Vieiralves de Castro UNIRIO - UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor: Luiz Pedro San Gil Jutuca UFRRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Ricardo Motta Miranda UFRJ - UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Reitor: Carlos Levi UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Roberto de Souza Salles Psicopedagogia SUMÁRIO Volume 2 Aula 9 – A aprendizagem da leitura e da escrita ________________________ 7 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Aula 10 – Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico _____________ 29 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Aula 11 – A queixa sobre a aprendizagem na escola e na clínica – a visão interacionista ________________________ 45 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Aula 12 – Distúrbios que afetam a aprendizagem _____________________ 63 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Aula 13 – Defi ciência intelectual – como esses alunos aprendem __________ 81 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Aula 14 – Educação especializada para surdos ______________________ 103 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Aula 15 – Defi ciência motora e acessibilidade ao currículo ______________ 123 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Aula 16 – Atualidades sobre altas habilidades _____________________ 139 Aliny Lamoglia / Mara Monteiro da Cruz Referências _______________________________________________ 155 ob jet ivo s Metas da aula Explicitar o conceito de alfabetização e apresen- tar duas abordagens que se contrapõem. Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de: 1. defi nir alfabetização; 2. reconhecer que a alfabetização possui caráter processual; 3. reconhecer as abordagens global e fônica em alfabetização; 4. identifi car difi culdades no processo de alfabetização. A aprendizagem da leitura e da escrita Aliny Lamoglia Mara Monteiro da Cruz9AULA 8 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita INTRODUÇÃO Você faz ideia de há quanto tempo o homem tem registrado, por meio de símbolos, suas ideias e os acontecimentos do cotidiano? Há cerca de vinte e cinco mil anos, o homem primitivo já fazia desenhos nas cavernas e gravações nas rochas das margens dos rios. No Brasil, há registros de pinturas deste tipo, chamadas “rupestres”, locali- zados no Rio Grande do Norte e em outros estados. Figura 9.1: Pinturas rupestres encontradas no Brasil. Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fi chaTecnicaAula.html?aula=11176 As primeiras escritas, bem diferentes do que conhecemos hoje por este termo, foram desenvolvidas pelo povo sumério, que viveu na Mesopotâmia entre 3500 e 2000 a.C., coincidindo com o surgimento das primeiras civilizações urbanas, organizadas à volta de cidades como Ur, Uruk, Lagash e Nippur. Como a economia desta região não era mais exclusivamente agrícola, os registros escritos serviam ao sistema de tributação, para registrar a quantidade de sacos de cereais que se produzia ou as cabeças de gado que se possuía. Esses registros eram feitos com um pequeno estilete de metal, osso ou mar- fi m, em placas de argila úmida que eram, depois, secas ao sol. Esse sistema é designado pictográfi co, pois os seus símbolos eram desenhos (pictus) que representavam o que se queria escrever. Com o tempo, esses desenhos foram simplifi cados, dando origem à escrita cuneiforme (os símbolos eram feitos em forma de cunha, em diferentes tamanhos e orientações). Tratava-se de uma escrita ideográfi ca, ou seja, que representava ideias, não os sons da linguagem oral. Na mesma época, os egípcios inventaram os hieróglifos (“escrita dos deuses”, em grego), um sistema complexo, ao mesmo tempo ideográfi co, pictográfi co e fonográfi co, ou seja, esse sistema escrito possuía signos para representar ideias, objetos e sons. Além de fazer registros nas paredes dos túmulos e C E D E R J 9 A U LA 9 templos, os egípcios foram os primeiros a usar uma espécie de papel (o papiro), caneta e tinta. Os rolos de papiro são considerados os primeiros livros de que se tem notícia. Alguns continham ilustrações, além de texto. Figura 9.2: Alguns signos da escrita egípcia. Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fi chaTecnicaAula.html?aula=21392 A passagem dos ideogramas para os sistemas silábicos aconteceu devido à necessidade de se representarem elementos da língua falada, como o esta- belecimento de relações gramaticais, que não podiam ser representados por ideogramas. Desta forma, os sinais passaram a representar os sons, e não mais os objetos em si (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2000). O alfabeto fonético foi inventado pelos fenícios. O registro mais antigo corresponde a inscrições em um sarcófago, onde foram utilizados apenas vinte e dois sinais diferentes. Esses sinais representavam os sons da fala e constituíam um sistema muito mais simples para a aprendizagem, se o compararmos com as escritas anteriores, ou até mesmo com os cinquenta mil signos da escrita chinesa. 1 0 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita Assista a um vídeo sobre a evolução da escrita: http://www.youtube.com/watch?v=AVKOCSU8zqI&feature=r elated%20historia%20da%20escrita%20parte%201 Os fenícios, que eram navegadores e comerciantes, percorreram o Mediter- râneo levando seu sistema de escrita. Os gregos fi zeram adaptações, acres- centando as vogais. Quando os romanos conquistaram a Grécia, no século I a.C., adotaram o alfabeto grego, fazendomodifi cações na forma de muitas letras, introduzindo novas e eliminando as que não serviam para sua língua (ROTH; ROCHA, 1992). Nosso alfabeto atual vem do romano, com alterações como a introdução de algumas letras, como o J, o V e o W, mas o sistema continua o mesmo desde a invenção pelos fenícios. A PSICOGÊNESE DA LÍNGUA ESCRITA – A VISÃO CONSTRUTIVISTA Piaget (citado por MIRANDA, 1999) defende, a partir de suas pesquisas, que ao longo do seu desenvolvimento cognitivo (do nascimento à idade adulta), o homem recapitula as etapas pelas quais, historicamen- te, passou o pensamento humano até chegar ao que é hoje. Em suma, a ontogênese recapitularia a fi logênese. Ferreiro e Teberosky (1985) chegaram à mesma conclusão com relação ao desenvolvimento da linguagem escrita, em pesquisas realiza- das com crianças de 4 a 6 anos de idade, que frequentavam o ambiente escolar: É extremamente surpreendente ver como a progressão de hipó- teses sobre a escrita reproduz algumas das etapas-chaves da evolução da história da escrita na humanidade, apesar de que nossas crianças estejam expostas a um único sistema de escrita. A linha de desenvolvimento histórico vai do pictograma estilizado à escrita de palavras (logografi a), à introdução posterior de um princípio de “fonetização”, que evolui paulatinamente até as C E D E R J 1 1 A U LA 9 escritas silábicas e, depois de uma complexa etapa de transição, culmina no sistema puramente alfabético dos gregos (FERREIRO; TEBEROSKY, 1991, p. 279). A Psicogênese da Língua Escrita, teoria desenvolvida por estas autoras, considera a língua escrita como um sistema de representação, e não como código. Elas entendem que o aluno que aprende é um sujeito cognoscente que, em contato com o mundo letrado, desenvolve suas próprias hipóteses sobre a escrita, mesmo antes do ensino formal. A alfabetização é, então, concebida como uma aprendizagem conceitual, e não como técnica. Pesquisando a aprendizagem da língua escrita, Ferreiro identifi cou três períodos principais: • O primeiro período caracteriza-se pela busca de parâmetros de diferenciação entre as marcas fi gurativas e as marcas gráfi cas, não fi gurativas, assim como pela formação de séries de letras como objetos substitutos, e pela busca das condições de interpretação desses objetos substitutos. A criança começa a diferenciar a escrita de outros sistemas de representação, como o desenho. Suas produções demonstram esta tentativa de estabelecer a diferença entre as marcas icônicas (que possuem relação com o objeto que representam) e as não icônicas (arbitrárias). • O segundo período é caracterizado pela construção de modos de diferenciação entre os encadeamentos de letras, baseando-se alterna- damente em eixos de diferenciação qualitativos e quantitativos. Neste período, denominado pré-silábico, a criança formula hipó- teses sobre o sistema de representação da escrita. Para que algo seja legível, ou para ler coisas diferentes, é preciso encontrar diferenças nos dois textos. Essas diferenças correspondem a dois eixos: o quantitativo (a criança pensa que para produzir escrita é necessária uma quantidade mínima de caracteres) e o qualitativo (deve haver uma variedade destes caracteres). • O terceiro período é o que corresponde à fonetização da escrita, que começa por um período silábico e culmina no período alfabético. A fonetização da escrita se inicia quando a criança começa a iden- tifi car os grupos de sons que compõem as palavras e tenta, de alguma forma, representá-los na escrita, estabelecendo, a princípio, relações de 1 2 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita quantidade, com a correspondência termo a termo (nível silábico). Neste nível, a escrita apresenta diferenças no eixo quantitativo (representa cada sílaba da palavra falada com um caracter na escrita) e no qualitativo (começa a empregar letras similares para emissões sonoras parecidas). Sempre em contato com a língua escrita, produzindo seus próprios textos, tentando ler, quando vê os adultos escreverem ou ainda quando leem para ela, “a criança abandona a hipótese silábica [...] devido ao confl ito entre a hipótese silábica e a exigência de quantidade mínima de grafi as e o confl ito entre as formas gráfi cas que o meio lhe propõe e a leitura dessas formas em termos de hipótese silábica” (FERREIRO; TEBEROSKY, 1991, p. 196). Assim, a criança entra em confl ito cogni- tivo toda vez que compara a escrita que vê no meio em que vive (livros, jornais) e a escrita tal como pensa (hipótese silábica). De modo geral, há mais letras na escrita social que na sua individual. A passagem para o nível alfabético se dá gradativamente, carac- terizando um período híbrido, o silábico-alfabético, em que a criança representa parte das palavras silabicamente, e parte alfabeticamente, até que, fi nalmente, produza a escrita alfabética, escrevendo, sistematica- mente, uma letra para cada som da fala. A aprendizagem da escrita, assim como da leitura, envolve com- plexos processos cognitivos. Ao alfabetizar-se, a criança recria a escrita, tornando-a um sistema seu; desenvolve um outro tipo de linguagem com características muito diferentes da linguagem oral, cuja aprendizagem prescinde de ensino formal. No entanto, deve ser considerado que exis- tem diferenças signifi cativas entre os processos de leitura e escrita, que se desenvolvem de forma relacionada, porém não condicionada. Goodman (1987) refere-se à leitura como “um processo em que pensamento e linguagem estão involucrados em contínuas transações, quando o leitor busca obter sentido a partir do texto impresso” (p. 11). Como o leitor tem por objetivo obter o sentido do texto, o foco de sua atenção só se voltaria para aspectos como as letras, palavras ou a pró- pria gramática quando este tivesse difi culdade em obter o signifi cado de maneira global. Assim, “aquilo que acreditamos ver é, em sua maior parte, o que esperamos ver” (op. cit., p. 18), uma vez que o cérebro guia os olhos em busca do sentido que espera encontrar. C E D E R J 1 3 A U LA 9 Em suma, ao privilegiar a busca pelo sentido, Goodman descreve a leitura como um sistema de antecipação semântica – em suas palavras, um jogo de adivinhação psicolinguístico (citado por HOUT, 2001). As diversas teorias sobre a construção de sentido a partir da leitu- ra, tais como as de Partz (2001), Morton e Petterson (1980, citados por HOUT, 2001), e o amplo debate acerca do processo de leitura confi r- mam a complexidade do mesmo. Sternberg (2000) ressalta que a leitura envolve, no mínimo, linguagem, memória, pensamento e inteligência. As pessoas que têm difi culdades em dominar estes processos “podem sofrer intensamente em uma sociedade que coloca um prêmio alto na leitura fl uente” (p. 136). Atende ao Objetivo 1 1. Pensando no processo de alfabetização, responda: ensinar a escrever apenas propondo cópias do quadro seria um método válido? Justifi que a sua resposta. RESPOSTA COMENTADA Não seria válido em hipótese alguma. A aprendizagem da escrita, assim como da leitura, envolve complexos processos cognitivos. Alfabetizar-se signifi ca desenvolver a capacidade de “desmantelar” a língua, analisá-la em suas unidades mínimas e ser capaz de mani- pular estas unidades em dois âmbitos: a decodifi cação, no caso da leitura, e a codifi cação, no caso da escrita. Para ser capaz de executar todas essas operações, a criança deve possuir o que chamamos “consciência fonológica”, ou seja, a capacidade de pensar nos sons que formam a língua. Esta capacidade depende, na grande maioria das vezes, do ensino formal para ser desenvolvida. ATIVIDADE 1 4 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita A ALFABETIZAÇÃO INFORMADA PELA NEUROPSICOLOGIA – A VISÃO FÔNICA Apresentaremos um breve histórico do Núcleo de EducaçãoInclu- siva da Unirio (www.nucleoeducacaoinclusiva.com.br) para contextuali- zar a discussão sobre alfabetização na abordagem fônica ou cognitivista que se seguirá. Iniciamos as atividades do Núcleo de Educação Inclusiva (NEI) da Unirio em março de 2009, com o apoio do Programa Incluir da Secretaria de Educação Superior do MEC. Dentre as ações do Núcleo estão a capacitação de alunos do curso de Pedagogia, a realização de pesquisa e o trabalho de extensão (neste caso, a oferta de atendimento psicopedagógico a crianças da rede pública de ensino do município do Rio de Janeiro). Para divulgarmos o Serviço de Psicopedagogia, entra- mos em contato com escolas da rede pública e oferecemos vagas para atendimento de alunos da Educação Infantil (EI), uma vez que o objetivo era (e continua sendo) acompanhar crianças que ainda não fracassaram no processo de alfabetização, caracterizando, desta forma, um trabalho preventivo. Isto se deve ao fato de acreditarmos que vários indícios de difi culdades no processo de aprendizagem podem ser identifi cados antes do início do período formal (e obrigatório) de ensino. Invariavelmente, ouvíamos das coordenadoras e orientadoras das escolas de EI que não havia queixas de aprendizagem neste nível de escolaridade, mas que se o Núcleo acompanhasse também crianças matriculadas a partir do primeiro ano do Ensino Fundamental (EFI) haveria uma infi ndável lista de crianças a serem encaminhadas. Começamos, então, a acompanhar dezesseis crianças, com média de idade de oito anos. Distanciamo-nos, portanto, do trabalho preventivo que pretendíamos fazer e atualmente caracterizamos o trabalho, para a maioria das crianças acompanhadas, como um resgate do processo de alfabetização que, pelos motivos que veremos adiante, não foi possível que a escola, responsável ofi cial por realizar este processo, assim o fi zesse. C E D E R J 1 5 A U LA 9 Atende ao Objetivo 2 2. A que você poderia atribuir o fato de os profi ssionais que trabalham com Educação Infantil não identifi carem as difi culdades no processo de alfabetização antes de as crianças fracassarem na tentativa formal de alfa- betização, ou seja, antes do primeiro ou do segundo ano de escolaridade? RESPOSTA COMENTADA Muitos professores desconhecem os precursores da alfabetização. O principal deles é o domínio da língua falada. Por isto as atividades linguísticas realizadas na Educação Infantil (EI) são tão importantes. A criança precisa, ainda no período da EI, dominar funções como narrar, descrever, recontar, descontextualizar a língua. Todas estas habilidades a levarão a compreender que se pode desenhar não só o que se vê, mas também aquilo que se ouve (VYGOTSKY, 1994). ATIVIDADE Os métodos de alfabetização Ainda de forma tímida, o Brasil inicia a discussão sobre os métodos de alfabetização. Curiosamente, os resultados apresentados pelo Brasil nas avaliações internacionais de profi ciência de leitura e escrita ainda não orientam de forma relevante os estudos, pesquisas e práticas de alfabetizadores e professores que atuam na formação de professores do ciclo básico de ensino. Vivemos, no Brasil, desde os anos de 1980, um fenômeno que chamamos aqui “adesão ao construtivismo”. Em nome desta forma de compreender o desenvolvimento infantil, traçaram-se parâmetros que nunca foram anunciados por Piaget. Muito antes, pelo contrário, Piaget enfatizou sempre que foi possível que sua alçada era a epistemologia e que cabia aos pedagogos e aos psicólogos pensarem em metodologias e estratégias de ensino e de aprendizagem. Em suas palavras: 1 6 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita É um problema de pedagogia experimental decidir se a maneira de aprender a ler consiste em começar pelas letras, passando em seguida às palavras e fi nalmente às frases segundo preceitua o método clássico chamado “analítico” ou se é melhor proceder na ordem inversa, como recomenda o método “global” de Decroly (...). [Para a pedagogia experimental] completar suas averiguações por meio de interpretações causais ou "explicações", é evidente que precisa recorrer a uma psicologia precisa, e não simplesmente àquela do senso comum (PIAGET, 1969, p. 29-32). A psicologia precisa a que Piaget se referia pode, nos dias de hoje, ser identifi cada com uma vertente da psicologia denominada neuropsi- cologia cognitiva, que estuda os processos do conhecimento humano à luz das descobertas da neurociência cognitiva. Para saber mais sobre a neuropsicologia cognitiva e sobre alfabetização, visite o site: http://www.nucleoeducacaoinclusiva.com.br/metodo_foni- co_capovilla_parte1.pdf Em outros países como Inglaterra, França e Estados Unidos, a queda no nível de profi ciência em leitura e escrita das crianças à época do “construtivismo” levou os governos a discutirem em que medida os parâ- metros que orientavam os currículos se relacionavam aos quadros que se confi guravam no âmbito da educação básica. A partir das descobertas que fi zeram, os governos destes países redirecionaram os parâmetros e as práticas em alfabetização, como veremos adiante. Métodos sintéticos e métodos analíticos A diferença essencial entre eles é simples. O método global – ou sintético – acredita que a alfabetização deve ser realizada a partir de textos, que devem ser introduzidos logo no início da alfabetização, antes que a criança aprenda a decodifi car (ler) e a codifi car (escrever), sendo que não há um ensino deliberado e sistemático das correspondências letra-som (ou grafema-fonema), pois se espera que a criança perceba sozinha tais relações (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2007). Já o método fônico – ou analítico – afi rma que o texto deve ser introduzido de modo C E D E R J 1 7 A U LA 9 gradual, com complexidade crescente, e à medida que a criança for adquirindo uma boa habilidade de fazer decodifi cação grafofonêmica fl uente, ou seja, Depois que ela tiver recebido instruções explícitas e sistemáticas de consciência fonológica e de correspondências entre grafemas e fonemas. Até os anos 1990, o método global era adotado em gran- de parte dos países. Porém, a queda sistemática no desempenho da população escolar desses países produziu enorme e crescente insatisfação entre os educadores sensíveis à involução e fracasso progressivo das crianças, o que produziu a grande controvérsia conhecida como A Guerra da Leitura (The Reading Wars, Lemann, 6, 1997) e forçou as autoridades a buscar evidências sólidas de pesquisa experimental para poder fazer uma opção ofi cial por um ou outro método (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2007). No método fônico, a alfabetização se dá através da associação entre símbolo e som. Para que a criança se torne capaz de decifrar milhares de palavras, ela aprende a reconhecer o som de cada letra. De outra forma, ela teria que memorizar visualmente todo o léxico, algo inefi ciente do ponto de vista dos defensores do método fônico. O método parte da regra para a exceção. Fonte: http://espacoeducar-liza.blogspot.com/2009/01/o-mtodo-fnico-de-alfabe- tizao.html No Brasil, vemos muitos alfabetizadores que optam pelo ensino assistemático da leitura e da escrita em nome de uma metodologia atri- buída a Piaget, mas sobre a qual, conforme demonstrado aqui, o autor nunca enunciou. Além disto, muitos professores atribuem o fracasso em massa das crianças brasileiras na alfabetização à situação socioeconômica de suas famílias, quase nunca a uma questão metodológica. O que temos visto na prática do Núcleo de Educação Inclusiva, em relação a boa parte das crianças que chegam com queixa na apren- dizagem da leitura e da escrita, após dois ou três anos de tentativas sis- temáticas de alfabetização, é que a elas faltam conhecimentos explícitos de consciência fonológica. Iniciamos, então, este processo e orientamos as famílias a sistematizarem também em casa – a partirde instruções objetivas – as atividades que ajudarão estas crianças a associarem grafe- mas a fonemas. Uma das atividades consiste em escolher com a criança 1 8 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita uma lista de palavras de alta frequência, isto é, palavras com as quais ela tem contato na modalidade escrita desde muito cedo, e solicitar que alguém em casa leia as palavras para a criança e solicite que ela as soletre. Gradativamente a lista é acrescida de novas palavras, até que a soletração se torne fl uente e sem esforço. Por que os pressupostos teóricos são fundamentais? O exemplo dos países que transformaram suas abordagens em alfabetização Os documentos dos Estados Unidos, da Inglaterra e da França descrevem as lições que a guerra contra o analfabetismo funcional deixou nestes países. Nas palavras de Capovilla e Capovilla (2007): “O que distingue autoridades governamentais respeitáveis de nações desenvolvi- das na área de educação é a seriedade com que tomam decisões a partir de evidência científi ca sólida quando se trata de decidir o futuro de suas crianças.” Por exemplo, o Congresso dos Estados Unidos realizou uma pesquisa para avaliar os resultados de mais de 100 mil estudos científi cos conduzidos sobre a efi cácia de diferentes métodos de alfabetização. Esta pesquisa demonstrou a superioridade do método fônico e levou o Con- gresso dos Estados Unidos a estabelecer ofi cialmente o método fônico como o método mais efi caz para a alfabetização. Outros países, como a Inglaterra e a França, também empreenderam suas pesquisas e chegaram à mesma conclusão. E, depois de assistirem aos índices de profi ciência em leitura e escrita de suas crianças decaindo, obtiveram excelentes posições entre os primeiros do mundo em competência de leitura. Os resultados do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) deixam claro que os países que adotam ensino fônico produzem jovens com maior competência de leitura (como a Grã-Bretanha, a França e os Estados Unidos), seguidos pelos países que adotam métodos não puramente fônicos, mas mistos (como Itália e Alemanha), e fi nalmente, nas últimas posições, os países que teimam em seguir o construtivismo (como Portugal, México e Brasil) ainda que em detrimento da educação de seus jovens (Op. cit.). C E D E R J 1 9 A U LA 9 Sobre o Pisa, visite a página do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira): http://www.inep.gov.br/internacional/pisa/ Vamos avaliar o que aconteceu particularmente com a Inglaterra. Em meados dos anos 1990, o governo britânico, preocupado com os índices em declínio de alfabetização de suas crianças, ensinadas a partir do método global ideovisual, sem um período preparatório de instruções fônicas e metafonológicas, criou a “força-tarefa” denominada “The Literacy Task Force”. Esta iniciativa determinava que um levantamento deveria ser realizado para averiguar as causas do declínio da profi ciência da leitura e da escrita das crianças que concluíam os primeiros anos do ensino básico, quando, então, deveriam saber ler e escrever um comu- nicado simples. Esta defi nição de alfabetização – saber escrever uma mensagem simples – é a adotada pela OMS. Os estudos realizados por Capovilla e Capovilla (2000) com crian- ças disléxicas demonstraram que é necessário levá-las à conscientização da existência dos segmentos da fala e à possibilidade de manipulá-los para que possam ser alfabetizadas. Se esta hipótese é verdadeira para aquelas crianças que apresentam um funcionamento cerebral específi co para grafemas e fonemas – apesar de ouvirem perfeitamente –, como é o caso da dislexia, o mesmo deverá valer para aqueles que não possuem transtorno fonológico. Outros países, como a França e os Estados Unidos, também vivenciaram situações semelhantes. Na França, foi criado o Observatório Nacional de Leitura, e os Estados Unidos empreenderam cerca de 115 mil estudos sobre alfabetização. Invariavelmente, estes países investiram em capacitação profi ssional para os professores alfabetizadores, que foram orientados a transformar as suas práticas em alfabetização, antes “construtivistas”, para “fônicas”. Os autores consideram que os Parâmetros Curriculares Nacionais brasileiros encontram-se na contramão da História, já que o Brasil registra de 89% a 96% de fracasso no Ensino Fundamental, segundo o Sistema de Avaliação da Educação Básica, e um dos recordes mundiais de incom- petência em leitura. Segundo dados da Organização para Cooperação e 2 0 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita Desenvolvimento Econômicos – OCDE –, divulgados em dezembro de 2010, o Brasil está na 53ª colocação entre os 65 países pesquisados, à frente apenas de países como Colômbia, Argentina, Cazaquistão, Tunísia, Indonésia, Albânia, Catar, Azerbaijão, Panamá, Peru e Quirguistão. O Brasil não possui testes padronizados de avaliação da alfabetização que atinjam toda a população de crianças matriculadas no primeiro segui- mento do Ensino Fundamental. Recentemente, foram selecionados 6 mil alunos de 262 turmas de escolas municipais, estaduais e particulares de todas as capitais do país para participar da prova ABC. Para mais informa- ções visite: http://maisbrasilia.com/mb2011/noticias/conteudo/2889/Prova_ detectar%C3%A1_n%C3%ADvel_de_alfabetiza%C3%A7%C3%A3o_no_ in%C3%ADcio_do_fundamental.html Algumas secretarias municipais de educação ou instituições de ensino superior utilizam testes não padronizados para avaliar localmente e acabam por caracterizar iniciativas isoladas de investigação, sem con- seguirem mapear a real situação da alfabetização no Brasil. Um dos problemas decorrentes desta ausência de sistematização é a falta de uma defi nição clara de alfabetização. Capovilla & Capovilla (2007) afi rmam que os PCN brasileiros confundem leitura com compreensão e escrita com produção de texto e tomam como base de referência para tal afi rmação publicações como, por exemplo, o National Reading Panel Report (NATIONAL READING PANEL, 2000), o National Literacy Strategy (OFFICE FOR STANDARDS IN EDUCATION, 2000) ou o Apprendre à Lire (FRANCE, 1998), que são formalmente equivalentes aos PCN brasileiros. Depois de realizar a atividade, você vai encontrar as defi nições de leitura e compreensão de texto, já que, reunidas, estas habilidades constituem o que chamamos alfabetização. C E D E R J 2 1 A U LA 9 Atende ao Objetivo 3 3. Quais são as principais diferenças entre o método global e o método fônico de alfabetização? RESPOSTA COMENTADA No método global não há instruções explícitas de consciência fono- lógica, isto é, a criança não é incentivada a pensar nos sons das letras e das palavras de forma sistemática. O texto (ou a frase) é apresentado como uma unidade mínima sobre a qual a criança deve aprender a pensar desde muito cedo, antes ainda de ter o conheci- mento sobre as partes que o compõem. Em contrapartida, o método fônico propõe que, inicialmente, as letras sejam apresentadas para as crianças uma a uma, pontuando as possíveis irregularidades entre os diferentes sons que as letras podem adquirir umas ao lado das outras, como é o caso do “c”, por exemplo, que pode ser o de “casa” e o de “cinto”. ATIVIDADE DO QUE UMA CRIANÇA PRECISA PARA APRENDER A LER E ESCREVER Ler não signifi ca, apenas, a capacidade de identifi car automati- camente as palavras. Escrever não consiste, apenas, em transcrever os sons da fala. Ambos envolvem a capacidade de decodifi car fonemas em grafemas e vice-versa, mas o objetivo de ler é compreender, e o objetivo de escrever é comunicar. Aprender a ler e escrever envolve três níveis de competência: memória, consciência fonológica e vocabulário. Ensinar essas competências em níveis progressivamente mais elaborados constitui o cerne do programade ensino e do “processo” de alfabetização de praticamente todos os países do mundo que possuem um sistema alfabético de escrita, como o nosso. 2 2 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita O processo de alfabetização tem princípio, meio e fi m, e seu fi m ocorre quando o aluno adquire o nível de fl uência necessário para ter um mínimo de autonomia na leitura e escrita. O ensino dessas competências antecede, acompanha e sucede o processo de alfabetização, mas é independente delas. As pessoas com- preendem antes de saber ler e são capazes de contar histórias, fazer descrições ou relatar notícias antes de saber escrever. No caso da leitura, é necessária uma fl uência mínima para que haja compreensão. No caso da escrita, a fl uência mínima para o aluno enfrentar os desafi os do 2º ano de escolaridade é próxima ao ritmo da fala pausada do professor que dita, por exemplo, uma tarefa de casa. Testes adequados de alfabetização devem levar em conta a mensu- ração da fl uência de leitura e escrita de textos, e não apenas de palavras. Saber escrever palavras, ainda que uma grande lista delas, não torna alguém capaz de produzir um texto. Professores da série seguinte à alfabetização são os melhores juízes para avaliar se o aluno está ou não alfabetizado: o aluno que não lê o texto do livro não copia o que precisa copiar no tempo adequado e, se não toma notas de forma defi nida, não tem funcionalidade. Portanto, é um “analfabeto funcional escolarizado” (CAPOVILLA; CAPOVILLA, 2007). Para avaliar a fl uência de leitura, instrumentos mais robustos e sofi sticados devem incluir: • um texto que o aluno não tenha lido, de estrutura morfossintática compatível com a idade e com o nível de desenvolvimento dele; • uma leitura cronometrada (pois se for rápida demais ou lenta demais pode comprometer a compreensão do texto); • contagem de erros (gaguejar, parar, silabar, “adivinhar” a palavra). Para avaliar a capacidade de escrita, o ditado é um instrumento que apresenta um elevado grau de validade, e normalmente é avaliado levando em conta: • a fl uência, ou seja, o tempo necessário para escrever; • a legibilidade; • o nível de correção ortográfi ca; • o atendimento a regras básicas de pontuação e uso de maiúsculas; • a disposição da escrita no papel, de acordo com a natureza da mensagem. C E D E R J 2 3 A U LA 9 Um aluno pode ser considerado alfabetizado quando domina essas competências. Os termos transparente e opaco são usados na literatura especia- lizada para indicar o grau de maior ou menor proximidade entre os sons da fala e sua representação gráfi ca. Essa propriedade da língua faz com que a alfabetização se realize em um ano em países como a Finlândia ou a Itália, mas leve cerca de dois anos em países francófonos e cerca de três anos nos países de língua inglesa. De acordo com o Instituto Paulo Montenegro (ligado ao Ibope), 54% dos alunos que estudaram até a 4a série chegaram apenas ao nível rudimentar de alfabetismo (10% continuaram analfabetos absolutos). Vinte e quatro por cento dos alunos que cursaram entre o 6º e o 9º anos do Ensino Fundamental ainda permaneceram no nível rudimentar. Dos que cursaram alguma série ou completaram o Ensino Médio, quando se esperava que todos os alunos estivessem plenamente alfabetizados, ainda assim, apenas 38% atingiram o nível pleno de alfabetismo (http:// www.ipm.org.br/). Resultados de estudos realizados no Brasil (CAPOVILLA; GÜTS- CHOW; CAPOVILLA, 1997) e em outros países que possuem sistemas linguísticos grafofonêmicos como o nosso corroboram a hipótese do défi - cit fonológico, segundo a qual os distúrbios de processamento fonológico são a principal causa dos problemas de leitura e escrita das crianças que fracassam na escola após os primeiros anos de tentativas de alfabetiza- ção. Tais problemas parecem estar bem menos relacionados à posterior alfabetização do que às questões fonológicas. Tais dados replicam, para a aquisição de leitura e escrita no português brasileiro, os achados de Demont (1997) quanto à aquisição de leitura e escrita em francês. CONCLUSÃO A despeito de toda a complexa discussão que existe quando tra- tamos do tema “inteligência”, há um parâmetro relativamente simples a ser considerado, que é o tempo. Vejamos: quando dizemos que uma criança de quatro anos aprendeu a ler e escrever, consideramos que ela é precoce. Quando, por outro lado, dizemos que uma criança de dez anos aprendeu a ler e escrever consideramos que ela está atrasada em seu processo de aprendizagem. Por que isto acontece? Isto se dá devido 2 4 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita ao parâmetro de normalidade, que nos informa que uma criança deve aprender a ler e escrever por volta dos seis ou sete anos de idade. É assim na nossa cultura e em muitas outras. Como já foi dito anteriormente, para considerarmos uma criança alfabetizada temos que avaliar se ela é capaz de ter em mente um texto e conseguir colocá-lo no papel para, assim, transmitir uma mensagem e se ela é capaz de compreender uma mensagem que outra pessoa escreveu. Se ambas as habilidades estão presentes, difi cilmente estaremos diante de uma pessoa com um rebai- xamento cognitivo signifi cativo. Considere o exemplo de um jovem de quinze anos que é capaz de escrever corretamente palavras como estrela, ventilador e conspiração em um ditado, mas quando solicitado a escrever livremente sua produ- ção mostra um texto incoerente que não permite ao leitor identifi car a mensagem que pretendia enunciar. Se apenas 14,5% dos habitantes do planeta são acometidos de alguma defi ciência (dado da OMS), não podemos atribuir os índices de fracasso na alfabetização que temos a questões orgânicas das crianças. Há que se ter outra forma de explicar o fracasso. Há que se pensar na questão metodológica. Para aqueles que não apresentam difi culdade alguma de aprendiza- gem, o método utilizado pode não ser muito relevante, pois a criança terá subsídios para lançar mão das mediações assistemáticas que o contexto de interação do qual participa lhe oferece. Por isto temos a impressão de que algumas crianças, muitas vezes, “aprendem sozinhas”. Na verdade, elas não aprendem sozinhas, o que acontece é que o próprio contexto letrado do qual ela faz parte se encarrega de fornecer as “pistas” de que ela precisa para deduzir o funcionamento do código alfabético. Mas, ao contrário, para crianças que, por qualquer motivo, apresentam alguma difi culdade de se benefi ciar do contexto de interação é necessária uma “intervenção deliberada”, lembrando aqui, mais uma vez, Vygotsky. É certo que as pessoas não aprendem exatamente da mesma forma, cada uma se utiliza de estratégias e recursos diferenciados para se apropriar de determinados conhecimentos. C E D E R J 2 5 A U LA 9 O que a neurociência contemporaneamente tem procurado fazer é encontrar alguns caminhos para explicar a “uniformidade que marca uma grande parte do repertório de comportamentos humanos” (DAMÁSIO, 2010, p. 343) e, assim, se soubermos como alguns processos humanos acontecem, poderemos pensar em estratégias que melhor nos ajudem a alcançá-los. ATIVIDADE FINAL Atende aos Objetivos 1, 2, 3 e 4 Figura 9.3: Charge "Paulo Freire: alfabetização de adultos". Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A9todo_Paulo_ Freire Comente a seguinte citação de Paulo Freire, relacionando-a ao conteúdo da aula: alfabetização – difi culdades – diferentes abordagens: 2 6 C E D E R J Psicopedagogia | A aprendizagem da leitura e da escrita Eu colocaria mais um condimento no pedagógico – a capacidade amorosa da educadora. [...] É preciso, porém, saber amar. O fato de só amar não basta. Para amar como educadora você precisa cientifi camente saber como amar, saber como você pode fazer-se mais efi caz e tornarseu amor mais efi caz para que ele seja meio de libertação e não prática de opressão (FREIRE apud ZACCUR, 1999, p. 19). RESPOSTA COMENTADA Paulo Freire alerta para a necessidade de estudos científi cos acerca da alfabetização, sobre como se aprende, para que se possa ensinar melhor, ou, diríamos, ensinar adequadamente, utilizando uma abordagem que identifi que a alfabetização como um instrumento de autonomia. Provavelmente, como vimos na aula, grande parte das difi culdades na alfabetiza- ção deve-se à utilização de metodologias inadequadas, desenvolvidas a partir de abordagens que consideram a linguagem escrita meramente como um código a ser decifrado pelo aluno. Freire referia-se à opressão em um contexto político bastante amplo, da ditadura militar. No entanto, podemos afi rmar que nos dias atuais, na sociedade democráti- ca, o analfabetismo é, certamente, motivo de opressão, pois impede ou difi culta a realização de inúmeras atividades do cotidiano do mundo letrado. C E D E R J 2 7 A U LA 9 R E S U M O O caráter processual da escrita e da leitura é um processo que se inicia muito precocemente na vida da criança, quando ela ainda é um bebê e vai, aos poucos, se apropriando da língua dos seus cuidadores, de forma a se tornar também uma usuária da língua. A língua oral é, portanto, a precursora da língua escrita. Se a criança faz uso da língua em sua modalidade oral de forma funcional, tudo nos leva a crer que será capaz de se apropriar do código escrito. Outro importante precursor da língua escrita é o desenho. Repetindo as palavras de Vygotsky, deve- mos explorar a expressão da criança através do desenho, de forma a esgotá-lo, para que ela perceba que é possível desenhar não só o que ela vê, mas também o que ouve. Encontramos diferentes abordagens em alfabetização a fi m de que todos vocês possam, diante de uma prática, identifi car qual a metodologia aplicada. Existem,ainda, alguns entraves no processo de aprendizagem da leitura e da escrita, com destaque para a difi culdade dos profi ssionais que atuam nos anos iniciais da infância em identifi car precocemente os indicadores de problemas na alfabetização. ob jet ivo s Meta da aula Valorizar a atividade lúdica no contexto educacio- nal, relacionando-a à ampliação de possibilidades de interação do ser humano com o meio, favore- cendo seu desenvolvimento nas dimensões da lin- guagem moral, cognitiva, afetiva e físico-motora. Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de: 1. classifi car os jogos, segundo a teoria de Piaget; 2. reconhecer a importância do lúdico para o desenvolvimento do ser humano; 3. identifi car recursos lúdicos que podem ser utilizados na escola. Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico Aliny Lamoglia Mara Monteiro da Cruz10AULA Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 3 0 C E D E R J INTRODUÇÃO Na Aula 9, vimos como é importante o desenvolvimento da linguagem, que possibilita a comunicação entre as pessoas e organiza o pensamento, favorecendo a aprendizagem. Você deve estar se perguntando como esti- mular a comunicação e a interação, ampliando, assim, as possibilidades de aprendizagem na escola. Nesta aula, perceberemos que as atividades lúdicas proporcionam momentos de interação fundamentais para o processo edu- cacional. A psicopedagogia se utiliza destes recursos em diversas situações, como, por exemplo, na avaliação de alunos com difi culdades no processo de aprendizagem. A escola também deve se apropriar destas atividades para tornar o processo de ensino-aprendizagem mais prazeroso e produtivo, res- peitando o estágio de desenvolvimento das crianças. BRINCAR... POR QUÊ? O adjetivo lúdico é derivado do substantivo ludus, em latim, que signifi ca “jogo” e está relacionado a entretenimento, passatempo e diver- são. Entretanto, segundo Brougère, na Antiguidade, gregos e romanos utilizavam a palavra ludus tanto para designar a atividade livre e espon- tânea, quanto a atividade imposta que caracterizava a escola e os treinos dos gladiadores, por exemplo. Isso signifi ca que escola era sinônimo de treino e exercícios. Esta defi nição não parece atual se considerarmos algumas escolas da atualidade? Segundo Winnicott (1975), a brincadeira é universal e própria da saúde, facilita o crescimento e conduz aos relacionamentos grupais. Vygotsky afi rma que a atividade imaginativa e o jogo de faz de conta ou jogo dramático são muito importantes para o desenvolvimento da criança. Através do brinquedo ou da brincadeira, a criança experi- menta as regras, ao vivenciar os papéis que representa. Por exemplo, na escola, na Educação Infantil, você já deve ter visto crianças brincando de casinha, quando representam cenas do cotidiano familiar. Por outro lado, em casa, algumas crianças costumam brincar de escolinha, imitando a professora e reproduzindo cenas que vivenciaram na escola. C E D E R J 3 1 A U LA 1 0 Figura 10.1: Crianças brincando de casinha. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/1148550 No contexto da atividade lúdica, a criança também busca a rea- lização de seus desejos e necessidades no seu universo do faz de conta. Assim, a imaginação teria origem na ação da criança bem pequena, evo- luindo ao longo de sua vida. Segundo Vygotsky (1989): “O velho adágio de que o brincar da criança é a imaginação em ação deve ser invertido; podemos dizer que a imaginação nos adolescentes e nos adultos é o brinquedo sem ação” (p. 122). Vygotsky observou que a brincadeira infantil proporciona intensa atividade simbólica. Assim, transformando caixas em carrinhos e cabos de vassoura em cavalos, a criança experimenta a ação regida por regras e deter- minada pelas ideias, não pelos objetos em si. Conceição (2010) ressalta que: A intensa elaboração imaginativa, a motivação para a realização e/ ou supressão do desejo/necessidades, a habilidade em ressignifi car objetos, bem como o desenvolvimento de regras, permite, por meio das atividades lúdicas, o desenvolvimento da criança (p. 37). Este exercício da imaginação que reelabora a realidade percebida cria, segundo Vygotsky (1994), uma zona de desenvolvimento proximal, ou seja, um espaço do desenvolvimento onde é possível interferir e provo- car transformações/aprendizagens, favorecendo, assim, a internalização de conceitos e o desenvolvimento das funções psíquicas, porque: D an ie l A n d re s Fo re ro Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 3 2 C E D E R J No brinquedo, a criança sempre se comporta além do comporta- mento habitual de sua idade, além de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é na realidade. Como foco de uma lente de aumento, o brinquedo contém todas as tendências do desenvolvimento sob forma condensada, sendo, ele mesmo, uma grande fonte de desenvolvimento (p. 134). Na Aula 5, vimos que zona de desenvolvimento proximal corresponde à distância entre aquilo que a criança faz sozinha e o que ela é capaz de fazer com a intervenção de um adulto; é uma potencialidade para aprender, que não é a mesma para todas as pessoas, ou seja, consiste na distância entre o nível de desenvolvimento real (onde se localizam as aprendizagens consolidadas) e o potencial (as aprendizagens futuras). Piaget afi rma que, no brincar, a aprendizagem ocorre através dos processos de assimilação e acomodação dos conteúdos vivenciados (reveja estes conceitos na Aula 4) e relaciona os tipos de jogos ao estágio de desenvolvimento da criança, classifi cando-os desta forma: – Jogos de exercício Atividade presente no desenvolvimento infantil até 18 meses, estes jogos reaparecem, depois, em outras situações. Consistem em uma longa repetição motora que dá prazer. É provável que você já tenha visto um bebê lançar um objeto ao chão repetidas vezes, parecendo divertir-se ao ver que o adultosempre o pega de volta. Da mesma forma, a criança de 3 ou 4 anos que pergunta “por quê” inúmeras vezes está mais interessada no jogo de repetição do que propriamente nas respostas. – Jogo simbólico Possível a partir da formação do símbolo na criança, do desen- volvimento da linguagem, começa aproximadamente aos 2 anos de idade e corresponde à brincadeira de “faz de conta”. A criança brinca com bonecos, miniaturas que representam objetos de seu cotidiano, como panelinhas, móveis, eletrodomésticos etc. ou transforma objetos, imagi- nando serem outros instrumentos, como, por exemplo, cantar utilizando uma escova como microfone. Quando utilizam a linguagem do faz-de-conta, as crianças enri- quecem sua identidade, porque podem experimentar outras for- mas de ser e pensar, ampliando suas concepções sobre as coisas e C E D E R J 3 3 A U LA 1 0 pessoas ao desempenhar vários papéis sociais ou personagens. Na brincadeira, vivenciam concretamente a elaboração e negociação de regras de convivência, assim como a elaboração de um sistema de representação dos diversos sentimentos, das emoções e das construções humanas (BRASIL, 1998). – Jogos sociais (ou de regras) O interesse por estes jogos surge aos 7 anos, aproximadamente. Podem ser desportivos, cooperativos, de tabuleiro, jogos de rua etc. Nos dias atuais, principalmente nos grandes centros urbanos, a escola é a grande responsável pela realização dos jogos de regras. Nestas regiões, as crianças não podem mais brincar nas ruas e o apelo dos videogames é muito forte. Figura 10.2: Crianças brincando na rua – jogo de regras. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/909359 H o rt o n G ro u p Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 3 4 C E D E R J Veja crianças brincando na rua em Belo Horizonte nos anos 1950, acessando: http://www.youtube.com/watch?v=a2Fd6Gn88-c&feature=fvsr – Jogos de construção É o meio termo entre trabalho e jogo. Busca-se manipular objetos ou elementos do espaço na construção de um novo ambiente. Consiste na utilização de brinquedos, como blocos, quebra-cabeças e jogos de encaixe, por exemplo. A n is sa T h o m p so n Figura 10.3: Criança brincando com jogo de encaixe. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/472031 C E D E R J 3 5 A U LA 1 0 Kishimoto (2009) acrescenta, como tipos de brincadeiras infantis, o jogo educativo e as brincadeiras tradicionais. O jogo educativo tem por objetivo ensinar conceitos escolares. O uso do jogo potencializa as situações de aprendizagem, desde que sejam respeitadas as condições para a expressão do jogo, ou seja, a ação intencional da criança para brincar. A autora ressalta, portanto, que, se uma criança empilha as peças de um quebra-cabeça para construir um castelo, em vez de uni-las para aprender a nomear cores, como havia sido planejado pelo professor, jamais deve ser corrigida ou reprimida. Neste caso, ela não atingirá o objetivo proposto, mas vivenciará o lúdico, o faz de conta, a criatividade e a habilidade para empilhar as peças, o que também deve ser valorizado. As brincadeiras tradicionais infantis são folclóricas, transmitidas de pai para fi lho e têm a função de desenvolver formas de convivência social e permitir o prazer de brincar. Como exemplos destas brincadeiras, podemos citar as brincadeiras de roda e outras, como passa-anel. Figura 10.4: Criança soltando pipa. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/1040395 M ic h ae l L o re n zo Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 3 6 C E D E R J Atende ao Objetivo 1 1. Observando o quadro Jogos e brinquedos infantis, pintado por Pieter Brueghel, identifi que três brincadeiras, classifi cando-as de acordo com a teoria de Piaget. Figura 10.5: Jogos e brinquedos infantis, 1560. Obra de Pieter Brueghel que retrata crianças brincando em uma aldeia medieval. Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fi chaTecnicaAula.html?aula=5331 RESPOSTA COMENTADA Jogo simbólico: crianças brincando de cavalinho na cerca. Jogos sociais: três-marias, rodar pião, corrida de aro, bolinhas de gude, carniça. ATIVIDADE C E D E R J 3 7 A U LA 1 0 Christie (1991, citada por KISHIMOTO, 2009, p. 25) relaciona as seguintes características dos jogos: 1. Não literalidade: as situações de brincadeira caracterizam-se por um quadro no qual a realidade interna predomina sobre a externa. Novos sentidos são criados (não literais) para substituir os sentidos habituais. O ursinho de pelúcia servir como fi lhinho é exemplo de uma situação em que o sentido não é literal. 2. Efeito positivo: brincar gera prazer e alegria. Quando brinca livremente e se satisfaz, isso confere efeitos positivos aos aspectos corporal, moral e social da criança. 3. Flexibilidade: as crianças estão mais dispostas a ensaiar novas combi- nações de ideias e de comportamentos em situações de brincadeira que em outras atividades não recreativas. Brincar leva a criança a tornar-se mais fl exível e buscar alternativas de ação para as situações-problema. 4. Prioridade do processo de brincar: enquanto a criança brinca, sua atenção está concentrada na atividade em si e não em seus resultados ou efeitos. O objetivo do jogo deve ser somente este: brincar. 5. Livre escolha: o jogo infantil só pode ser chamado jogo se for escolhido espontânea e livremente pela criança. 6. Controle interno: são os próprios jogadores que determinam o desen- volvimento dos acontecimentos. Atende ao Objetivo 2 2. Leia a citação a seguir e comente-a, abordando a importância da atividade lúdica para o desenvolvimento humano: “Brincar não é perder tempo, é ganhá-lo. É triste ter meninos sem escola, mas mais triste é vê-los enfi lei- rados em salas sem ar, com exercícios estéreis, sem valor para a formação humana” (Carlos Drummond de Andrade). ATIVIDADE Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 3 8 C E D E R J RESPOSTA COMENTADA Carlos Drummond de Andrade faz uma crítica à escola que não considera os interesses e características das crianças, oferecendo exercícios descontextualizados, sem valor para sua formação. Ao afi rmar que “brincar não é perder tempo”, aponta para o valor da brincadeira para a aprendizagem. De acordo com Vygotsky, no contexto da atividade lúdica, a criança busca a realização de seus desejos e necessidades no seu universo do faz de conta. Brincar favorece a aprendizagem e o desenvolvimento, criando zonas de desenvolvimento proximal. Por este motivo, o brincar deve ser valo- rizado principalmente na educação de crianças. O BRINCAR E O PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM Para trabalhar com crianças, é preciso apren- der a jogar com elas antes de interpretar E. Pavlovsky No contexto psicopedagógico, o brincar é um importante recurso de avaliação e de intervenção nos casos de difi culdades no processo de aprendizagem. Paín (1992) descreve a Hora do Jogo como primeira ferramenta utilizada para este fi m. Utilizada com crianças de até 9 anos, aproximadamente, tem por objetivo descobrir como a criança brinca e em que condições é capaz de brincar. Fernandez (1991) também utiliza a Hora do Jogo Pedagógico como estratégia de avaliação. Em suas palavras: O saber se constrói fazendo próprio o conhecimento do outro, e a operação de fazer próprio o conhecimento do outro só se pode fazer jogando. Aí encontramos uma das interseções entre o aprender e o jogar (PAÍN, 1992, p. 165). A terapeuta apresenta à criança, dentro de uma caixa fechada, elementos com as seguintes características: para desenhar, para recortar, C E D E R J 3 9 A U LA 1 0 para pegar, para costurar, para olhar, para ler, para escrever, para guardar (caixinhas de diferentes tamanhos que possam ser colocadas umas dentro das outras), para modelar, para juntar... Também elementos diferentes com a mesma ação (como cola e fi ta adesiva, por exemplo). Enquantoa criança brinca com os materiais da caixa, a terapeuta observa e faz registros. A análise destes dados pode revelar analogias com a forma de aprender daquela criança, observando-se como ela se comporta em relação à terapeuta e à utilização do material. A criança tenta classifi car o material disponível antes de utilizá-lo (faz um inventário experimentando ou simplesmente olhando)? A criança utiliza o material em função de uma organização simbólica e se “apropria dele” – relaciona seus elementos, levanta hipóteses, propõe um jogo? A criança que tem um problema de aprendizagem devido a uma inibição cognitiva não consegue se organizar nesta atividade, apresen- tando difi culdades no inventário, na organização e/ou na apropriação dos materiais. Na sala de aula, o professor também pode organizar espaços com diferentes materiais para que o aluno escolha e utilize como quiser, em algum momento livre, como, por exemplo, ao concluir uma tarefa antes do restante da turma. Os jogos devem ser utilizados como privilegiados recursos de estimulação da aprendizagem, tanto na clínica psicopedagógica quanto no ambiente educacional escolar. Educadores como Fröebel e Montessori abordaram, em seus trabalhos, a importância do aprender brincando. Atualmente, com tantos recursos que seduzem a criança fora da escola, como os brinquedos tecnológicos, é cada vez mais necessário valorizar o lúdico e resgatar o prazer de aprender. Friedmann (1996), baseando-se nos estudos de Piaget, afi rma que a atividade lúdica favorece o desenvolvimento humano nas seguintes dimensões: • linguagem: o jogo funciona como um canal de comunicação de pen- samentos e sentimentos; • moral: nas atividades lúdicas, se evidencia o processo de construção de regras, o que deve acontecer numa relação de confi ança e respeito. A criança pequena tem difi culdade em aceitar perder o jogo, devido ao egocentrismo intelectual. No entanto, vivenciando os momentos de ganhos e perdas, e evoluindo cognitivamente, torna-se naturalmente Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 4 0 C E D E R J capaz de lidar com estas situações, o que não acontecerá se sempre for protegida das frustrações, o que ocorre em muitas famílias em que os pais nunca deixam as crianças perderem nos jogos. Estas crianças tendem a ter difi culdades em lidar com regras, mesmo quando já se encontram em estágios de desenvolvimento cognitivo que não justifi - cam mais tais difi culdades; • cognitiva: o jogo favorece o acesso a novas informações, que podem originar novos conhecimentos; • afetiva: a atividade lúdica pode facilitar a expressão dos sentimentos e emoções; • físico-motora: esta dimensão será contemplada nas atividades em que a criança explora o corpo e o espaço, interagindo com o meio, como nos jogos desportivos ou nas brincadeiras de rua. Figura 10.6: Menino jogando bola. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/1159097 Ju lie n /T ro m eu r C E D E R J 4 1 A U LA 1 0 As atividades lúdicas podem ser livres ou dirigidas. No ambiente educacional, o professor deve utilizar estes momentos para observar e conhecer melhor seus alunos. Nas atividades dirigidas, deve colocar-se como mediador, propondo desafi os e enriquecendo o ambiente para favorecer a construção de conhecimentos. O professor não educa sozinho. Pais, profi ssionais, outras crian- ças e a comunidade, todos fazem parte deste conjunto de atores responsáveis pela educação. O primeiro passo da educação é a descoberta do que a criança gosta, seus interesses, o que já sabe e o que gostaria de saber. O brincar é excelente recurso para obser- vação dos interesses e ações da criança. Pelo brincar, a criança evidencia saberes e interesses, além de propiciar condições para aprendizagens incidentais (KISHIMOTO, 2011). Kishimoto (2011) dá algumas sugestões para a utilização de jogos e brinquedos na sala de aula: 1. Necessidade de escolher os brinquedos. Não se pode utilizar brinquedos destinados ao consumo familiar, de uso individualizado de uma criança, para uso institucional. Os brinquedos destinados ao uso coletivo devem ser seguros, ter durabilidade e resistência. Pratos e xícaras não podem ser de miniatura e de plástico pouco resistente. Melhor os de tamanho normal, feitos de material resis- tente. As panelas devem ser de alumínio e as conchas de madeira. 2. Ao selecionar e organizar os brinquedos nas salas é necessário pensar nas temáticas simbólicas signifi cativas no contexto em que a criança vive, sem fazer distinções de gênero, classe social ou etnia. Verifi car a faixa etária das crianças para selecionar tais brinquedos. [...] 3. Verifi car a utilidade do brinquedo ou objeto colocado na área da brincadeira, questionando qual o uso que a criança fará, que tipo de experiência poderá adquirir com o objeto. Pensar nas experiências signifi cativas das crianças para a seleção dos brinquedos. 4. Separar os brinquedos em áreas ou setores de modo que a criança possa utilizá-los sem se desorganizar. Se o brinquedo serve para construir é preciso que estejam disponíveis em áreas em que a construção seja possível. Se os brinquedos se destinam ao faz de conta é preciso que estejam juntos para faci- litar o aparecimento de temáticas simbólicas. Se o brincar requer uso de água ou terra é preciso providenciar espaço e materiais. Brinquedos misturados, quebrados e mal conservados dentro de caixas não auxiliam o desenvolvimento do imaginário das crianças 5. É importante dar opções de brincadeiras coletivas e individuais que representem a diversidade da cultura lúdica do país. 6. Toda Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 4 2 C E D E R J criança deve ter o direito ao brinquedo e brincadeira independente de questões de gênero, etnia e classe social, o que equivale dizer que não se pode separar os brinquedos para meninos e meninas ou pobres e ricos. A diversidade cultural brasileira deve ser con- templada na inserção de brincadeiras dos segmentos culturais aos quais pertencem as crianças. 7. Os brinquedos devem ser organi- zados em ambientes que favoreçam o uso autônomo da criança, junto a mobiliário na altura da criança para que favoreça o uso e a guarda do material. CONCLUSÃO Além de ser um momento propício à aprendizagem e ao desenvolvi- mento, a atividade lúdica precisa ser respeitada, porque é inerente à natu- reza da criança, e preservada. Em tempos de computador e videogame, que estimulam o desenvolvimento de algumas habilidades, mas muitas vezes favorecem o isolamento social, e da violência que impede a brincadeira de rua, se os profi ssionais da educação não se responsabilizarem por oferecer este tipo de atividade à criança, correm o risco de se extinguir tanto a riqueza cultural dos brinquedos e brincadeiras infantis quanto a condição saudável do desenvolvimento da criança que se descobre descobrindo o mundo de forma livre, espontânea e natural. C E D E R J 4 3 A U LA 1 0 Figura 10.7: Criança brincando com bolinha de sabão. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/781028 ATIVIDADE FINAL Atende ao Objetivo 3 A partir das teorias estudadas nesta aula, imagine que você precisa providenciar recursos lúdicos para uma turma de crianças de três anos de idade. Que recursos você adquiriria? Justifi que sua resposta. Th o m as A ce yt u n o Psicopedagogia | Ludicidade e interação – o olhar psicopedagógico 4 4 C E D E R J RESPOSTA COMENTADA A criança de três anos de idade precisa ter garantido o espaço do jogo simbólico, que pode ser estimulado com um espaço, na sala de aula, com roupas e acessórios (para brincar de faz de conta), ou com bonecos e miniaturas de móveis e utensílios (para brincar de casinha). Uma caixa com sucata (limpa e que não ofereça riscos à criança) também pode servir para este fi m. Também são importantes jogos deconstrução, com peças grandes (blocos, jogos de encaixe), para que experimen- tem diferentes combinações e formas de encaixe. Brinquedos e jogos educativos adequados a esta faixa etária também são interessantes e podem ser encontrados no mercado. R E S U M O As atividades lúdicas proporcionam momentos de interação fundamentais para o processo educacional. Autores como Winnicott, Vygotsky e Piaget descrevem a importância de jogos e brincadeiras para o desenvolvimento da criança, nas dimensões da linguagem, moral, cognitiva, afetiva e físico-motora. Piaget afi rma que, no brincar, a aprendizagem ocorre através dos processos de assimilação e acomodação dos conteúdos vivenciados e relaciona os tipos de jogos ao estágio de desenvolvimento da criança, classifi cando-os como jogos de exercício, jogo simbólico, jogos sociais (ou de regras) e jogos de construção. Kishimoto acrescenta, como tipos de brincadeiras infantis, o jogo educativo e as brincadeiras tradicionais. No contexto psicopedagógico, o brincar é importante recurso de avaliação e de intervenção nos casos de difi culdades no processo de aprendizagem. As atividades lúdicas podem ser livres ou dirigidas. No ambiente educacional, o professor deve utilizar estes momentos para observar e conhecer melhor seus alunos. Nas atividades dirigidas, deve se colocar como mediador, propondo desa- fi os e enriquecendo o ambiente para favorecer a construção de conhecimentos. ob jet ivo s Meta da aula Apresentar os grandes grupos de transtornos na aprendizagem e algumas intervenções psicope- dagógicas possíveis para cada um deles, a saber: defi ciência intelectual, difi culdade de aprendizagem e doença mental. Esperamos que, ao fi nal desta aula, você seja capaz de: 1. identifi car as diferenças entre defi ciência intelectual, difi culdade de aprendizagem e doença mental; 2. reconhecer algumas propostas psicopedagógicas para atender as necessidades deste aluno em sala de aula. A queixa sobre a aprendizagem na escola e na clínica – a visão interacionista Aliny Lamoglia Mara Monteiro da Cruz 11AULA Psicopedagogia | A queixa sobre a aprendizagem na escola e na clínica – a visão interacionista 4 6 C E D E R J INTRODUÇÃO Como já vimos em aulas anteriores, “aprender envolve a simultaneidade da integridade neurobiológica e a presença de um contexto social facilitador” (FONSECA, 2009, p. 66). Veremos, nesta aula, em que consiste “integridade neurobiológica” e um ambiente facilitador. Para este fi m, abordaremos os tipos de problemas (as etiologias) que impedem ou difi cultam que o organismo mantenha a sua funcionalidade, bem como algumas formas de avaliar e intervir junto às difi culdades ou mesmo os impedimentos a alguns tipos de aprendi- zagem trazidos pelo contexto de interação no qual a criança se desenvolve. Cabe lembrar que, para a concepção interacionista de desenvolvimento que adotamos neste curso, desenvolvimento intelectual e desenvolvimento linguístico se confundem e podem mesmo ser considerados um só, tal como postulado por Vygotsky (1993-1994). O ORGANISMO QUE APRENDE Antes de tudo, é importante discriminar os três grandes grupos de problemas que podem afetar a aprendizagem: – a defi ciência intelectual; – a difi culdade de aprendizagem; – a doença mental. Abordaremos cada um separadamente para que as aproximações e as diferenças entre eles possam fi car claras. A defi ciência intelectual Muitos termos são utilizados para nos referirmos a pessoas que possuem funcionamento intelectual abaixo do que é considerado a média de inteligência normal. Entre eles estão: rebaixamento cognitivo; défi cit cognitivo; defi ciência mental; défi cit intelectual; inteligência limítrofe; retardo mental. Ressaltamos, no entanto, que, desde 2001, na Conferência Interna- cional sobre Defi ciência Intelectual, no Canadá, vem sendo recomendado o uso da expressão “defi ciência intelectual”, ofi cialmente adotada em 2010 pela American Association on Mental Retardation (AAMR) ou, em Língua Portuguesa, Associação Americana de Retardo Mental, que passou, por este motivo, a chamar-se Associação Americana de Defi ciência Intelectual e Desenvolvimento (AADID). Todas as diretrizes políticas atuais, no Brasil, têm adotado esta nomenclatura. C E D E R J 4 7 A U LA 1 1 São características da defi ciência intelectual: • Organicidade. • Permanência. • Comprometimento da inteligência. • Prejuízo global do desenvolvimento. Por organicidade, entendemos que existe uma disfunção ou transtorno do organismo, algo que, mesmo que não possa ser mapeado ou visível, existe e impede o organismo de funcionar em sua plenitude. Logo, todas as causas de defi ciência intelectual possuem algum corres- pondente no organismo. Esta condição é permanente, ou seja, uma criança que é diag- nosticada com defi ciência intelectual aos quatro ou cinco anos de idade tenderá a ter a mesma condição aos doze ou aos vinte anos. Isto signifi ca que a interferência do ambiente – como estímulos, escola especializada, acompanhamentos clínicos especializados – não é capaz de reverter o diagnóstico. Em outras palavras, interação com o grupo social, escolarida- de, apoios terapêuticos favorecem sobremaneira o desenvolvimento, mas este será sempre limitado, em função da organicidade (grau de comprometimento). A defi ciência intelectual na perspectiva da AADID refere-se a limitações substanciais no funcionamento atual. Caracteriza-se por um funcionamento intelectual signifi cativamente abaixo da média, que geralmente coexiste com limitações em duas ou mais das seguintes áreas de competências adaptativas (LUCKASSON, 1992): – comunicação; – cuidado pessoal; – atividades domésticas; – competências sociais; – utilização dos serviços da comunidade; – autodeterminação; – saúde e segurança; – competências acadêmicas funcionais; – lazer; – trabalho. Psicopedagogia | A queixa sobre a aprendizagem na escola e na clínica – a visão interacionista 4 8 C E D E R J Note-se que todas as capacidades citadas, quando preservadas, dizem respeito a uma pessoa que, na idade adulta, é capaz de gerenciar sua vida com autonomia. Isto é o que se espera de qualquer indivíduo que se desenvolve em condições adequadas. Esta defi nição de Luckasson et al. (1992) implica ainda que sejam respeitados os seguintes princípios: 1. A avaliação tem de ter em conta a diversidade cultural e linguística e as diferenças entre diferentes grupos nos aspectos da comunicação e do comportamento. 2. A determinação de limitações em competência adaptativas tem de respeitar as características do contexto comunitário de que a criança faz parte e os apoios ou oportunidades de aprendizagem que lhe foram proporcionados. 3. Muito frequentemente, pode acontecer que, a par de limitações adap- tativas específi cas, existam potencialidades em outras áreas adaptativas ou capacidades pessoais. 4. Geralmente, o funcionamento da pessoa com defi ciência intelectual melhora se lhe forem proporcionados apoios adequados durante um período de tempo continuado. É importante apontarmos, no entanto, que a defi ciência intelectual diz respeito a um tipo de funcionamento intelectual. Não se trata apenas de uma necessidade maior de tempo para que a criança “cumpra” deter- minados conteúdos acadêmicos ou não. Se fosse apenas uma questão de tempo de aprendizagem, seria possível para todas as pessoas com defi ci- ência intelectual chegar à faculdade levando apenas mais anos para isso. Acontece que, em casos de defi ciência intelectual, estão comprometidas, em maior ou menor grau, dependendo do caso, as estruturas cognitivas que dão sustentação para as aprendizagens. Para citar um exemplo, aprender a falar, apesar de ser visto como algo “natural”, para o que basta estar em contato com sujeitos falantes, requer habilidades como generalização (compreensão de queinicial- mente todos os bichos são “auau”, mas com o tempo os nomes vão se diferenciar), simbolização (ideia de que uma palavra pode substituir a presença do objeto), classifi cação, compreensão do contexto de interação (signifi cado), articulação dos fonemas corretos na sequência correta, reação adequada ao uso que outras pessoas fazem das palavras, uso correto das palavras e, por fi m, defi nição de palavras. Como se pode ver, C E D E R J 4 9 A U LA 1 1 muitas habilidades estão em jogo quando nos referimos ao “simples” ato de aprender a falar. O mesmo acontece com outras capacidades emi- nentemente humanas, como aprender a ler e escrever, realizar cálculos, articular fatos históricos, compreender leis da Física etc. Todas estas aquisições requerem um organismo intacto, como foi dito antes, e determinados obstáculos para o desenvolvimento típi- co podem difi cultar ou mesmo impedir alguns tipos de aprendizagem considerados complexos em relação ao comprometimento apresentado pelo sujeito. Na visão interacionista, deve-se considerar o grau de comprome- timento intelectual, os tipos de suportes e escolarização disponibilizados para cada caso. É importante lembrar que não há um sujeito igual ao outro, ainda que acometidos pela mesma síndrome ou defi ciência. Na Aula 14, aprofundaremos nossos estudos sobre esta defi ciência. Se você quer saber mais sobre o assunto, visite o site http://www.eduinclusivapesq-uerj.pro.br/ O diagnóstico de defi ciência intelectual é feito por equipe multi- disciplinar. O psicólogo aplica testes padronizados e avalia se o prejuízo se dá em todas as esferas da vida da criança, quais sejam: socialização (se tem amigos da mesma idade); escolaridade (se acompanha os conteúdos da série escolar para a sua idade); cognição (se brinca adequadamente, com brinquedos e brincadeiras adequadas à sua idade); língua (se o desenvolvimento da fala está adequado ao esperado para a sua idade cronológica) e outras. Psicopedagogia | A queixa sobre a aprendizagem na escola e na clínica – a visão interacionista 5 0 C E D E R J No fi lme Uma lição de amor (I am Sam, 2001), Sam Dawson (Sean Penn) é um homem com defi ciência intelectual que cria sua fi lha Lucy (Dakota Fanning) com uma grande ajuda de seus amigos. Porém, assim que faz sete anos, Lucy começa a ultrapassar intelectualmente seu pai, e esta situação chama a atenção de uma assistente social que quer Lucy internada em um orfanato. A partir de então, Sam enfrenta um caso virtual- mente impossível de ser vencido por ele, contando para isso com a ajuda da advogada Rita Harrison (Michelle Pfeiffer), que aceita o caso como um desafi o com seus colegas de profi ssão. A difi culdade de aprendizagem Atualmente, em nossas escolas, temos observado um aumento de casos nos quais o aluno não apresenta defi ciência e, apesar disso, não alcança os objetivos escolares. Nestes casos, podemos estar diante de uma difi culdade de aprendizagem, que apresenta as seguintes características: • pressupõe inteligência normal ou acima da média; • pode ou não apresentar organicidade; • tem caráter transitório; • afeta apenas uma das áreas do desenvolvimento. Ao contrário do que acontece nos casos de defi ciência intelectual, os casos de difi culdades na aprendizagem pressupõem inteligência nor- mal ou acima da média. Há casos de difi culdades de aprendizagem que apresentam algum tipo de organicidade, como é o caso, por exemplo, da dislexia, considerada atualmente como uma disfunção específi ca do cérebro para o processamento de grafemas e fonemas (estudaremos sobre dislexia na Aula 12). E há casos em que não é possível encontrar C E D E R J 5 1 A U LA 1 1 nenhuma correspondência orgânica para a difi culdade. Isto não signifi ca que não exista uma questão orgânica; signifi ca, simplesmente, que nossos recursos diagnósticos ainda não nos permitem visualizá-la. No caso de uma criança disléxica, por exemplo, o transtorno pode difi cultar ou mesmo impedir a apropriação do código fonológico na modalidade escrita, mas todas as suas capacidades de aprender estão intactas. Então, esta criança poderá conversar sobre assuntos adequados à sua faixa etária, ter amigos da mesma idade, interessar-se pelas mesmas coisas que outras crianças que não apresentam dislexia. Há também situações em que a difi culdade é causada por questões emocionais ou conjunturais, como morte de um ente querido, separação de um dos pais ou de ambos, timidez extrema etc. A transitoriedade refere-se ao fato de a difi culdade de aprendiza- gem ser receptiva à intervenção, isto é, uma vez que haja uma interferência adequada no processo de aprendizagem da criança, o problema tenderá a ser sanado. Comparativamente falando, o mesmo não acontece com os casos de rebaixamento intelectual, nos quais a intervenção não é capaz de promover a mudança da condição da pessoa afetada. A difi culdade de aprendizagem é pontual, ou seja, afeta apenas uma das áreas da vida da criança. Todas as demais seguem o curso típico de desenvolvimento, fazendo com que esta criança se pareça “global- mente” com uma criança sem difi culdade de aprendizagem. Para avaliarmos – de forma assistemática – a capacidade cognitiva de uma criança que, por exemplo, apresenta resultados insatisfatórios no ensino formal, é necessário nos aproximarmos e verifi carmos como se comporta nas capacidades (ou competências) adaptativas listadas antes. Em outras palavras, é necessário sabermos do que esta criança gosta, com o que brinca, se possui amigos da mesma idade, se suas atividades de lazer são semelhantes às da maioria das crianças da sua idade, se o uso da língua está adequado etc. Se todos estes itens forem considerados positivamente, é muito provável que estejamos diante de uma criança com uma difi culdade de aprendizagem. Psicopedagogia | A queixa sobre a aprendizagem na escola e na clínica – a visão interacionista 5 2 C E D E R J Figura 11.1: Crianças brincando. Fonte: http://www.sxc.hu/photo/1103342 A doença mental As doenças mentais são também chamadas “doenças do pensa- mento”. Não se trata, nesse caso, de uma questão de quantidade de inte- ligência, mas sim da qualidade do pensamento, que está comprometida. Para compreender melhor do que estamos tratando, imagine que você está assistindo a uma aula e o professor se dirige à porta da sala por imaginar que há alguém a observá-lo. Ao verifi car que não há ninguém atrás da porta, ele volta à sua explanação e continua a aula. Cinco minutos depois, ele volta a repetir o mesmo comportamento por- que aquele pensamento de que há alguém atrás da porta a observá-lo recorre na sua cabeça. Ele volta a olhar atrás da porta e, de novo, não há ninguém. Se este comportamento se repete outras tantas vezes, isto irá, certamente, atrapalhar o seu desempenho como professor, além, é claro, de afetar a sua imagem perante os alunos. A partir deste exem- plo, percebe-se que um transtorno psíquico (ou doença mental) é algo que afeta o comportamento social da pessoa. Se há qualquer alteração signifi cativa do pensamento sem que esta interfi ra no comportamento humano, não se pode falar de um transtorno psiquiátrico. M ic h ae l P o h l C E D E R J 5 3 A U LA 1 1 As principais características da doença mental são: • doença do pensamento; • comprometimento do curso, conteúdo ou forma; • concorre com inteligência normal na maior parte dos casos; • pode apresentar comorbidades. O comprometimento no curso do pensamento pode ser exempli- fi cado por: 1. Lentidão: muitas vezes é acompanhado de lentidão no uso da língua (fala), é característico de estados depressivos. 2. Aceleração: o uso da língua (fala) também fi ca acelerado, é caracte- rístico de estados maníacos. 3. Interrupção: bloqueio do pensamento e, portanto, da fala. A pessoa deixa a frase pela metade e/ou roubo do pensamento
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