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• Sermão de Santo Antônio aos peixes • Últimos Cantos • Os dois ou O inglês maquinista • Várias Histórias • Clara dos Anjos • Claro Enigma Sermão de Santo Antônio aos peixes Sermão de Santo Antônio aos peixes Sermão de Santo Antônio aos peixes Sermão de Santo Antônio aos peixes Sermão de Santo Antônio aos peixes Sermão de Santo Antônio aos peixes Obras Literárias Volume 1 1 Obra Literária – Sermão de Santo Antônio aos peixes Padre Antônio Vieira I O AUTOR Antônio Vieira (Lisboa, 6 de fevereiro de 1608 — Sal- vador, 18 de julho de 1697), religioso, filósofo, escri- tor e orador português da Companhia de Jesus. Uma das mais influentes personagens do sécu- lo XVII no campo da política e da oratória, destacou-se como missionário em terras brasileiras. Antônio Vieira e toda a família chegaram à Bahia, onde em 1609 seu pai passou a trabalhar como escrivão. Em 1614, iniciou os estudos no Colégio dos Jesuítas de Sal- vador. Ingressou na Companhia de Jesus como noviço em maio de 1623. Em 1624, quando da invasão holandesa de Salvador, refugiou-se no interior da capitania e iniciou a sua vida mis- sionária. Um ano depois, tomou os votos de castidade, po- breza e obediência. Prosseguiu os estudos de Teologia, Lógi- ca, Metafísica e Matemática, obtendo o mestrado em Artes. Foi professor de Retórica em Olinda e ordenou-se sacerdote em 1634. Nesta época já era conhecido pelos seus primeiros sermões, adquirindo fama de notável pregador. Na segunda invasão holandesa ao Nordeste do Brasil (1630 – 1654), defendeu que Portugal entregasse a região aos Países Baixos, pois gastaria demais com sua manuten- ção e defesa, além do fato de que os Países Baixos eram um inimigo militarmente muito superior. Por isso caiu em desgraça. Após a Restauração da Independência de Portugal (1640), regressou a Lisboa (1641), integrando a missão que ia ao Reino prestar obediência ao novo monarca. Destacando-se pela vivacidade de espírito e pela oratória, conquistou a amizade e a confiança de João IV de Portu- gal. Foi nomeado embaixador e posteriormente pregador régio. Como diplomata, foi enviado aos Países Baixos para negociar a devolução do Nordeste do Brasil, e, no ano se- guinte, à França. Em Portugal, havia quem não gostasse de suas pre- gações em favor dos judeus. Após tempos conturbados voltou ao Brasil e, de 1652 a 1661, trabalhou como missio- nário no Maranhão e no Grão-Pará, sempre defendendo a liberdade dos índios. Vieira tem, para o norte do Brasil, papel idêntico ao dos primeiros jesuítas no centro e no sul, na defesa dos índios e na crítica aos costumes. “Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira são, efetivamente, os mais altos represen- tantes, no Brasil, do criticismo colonial. Viam justo – e cla- mavam! Em 1654, pouco depois de proferir o célebre “Sermão de Santo Antônio aos Peixes”, padre Antônio Vieira partiu para Lisboa, junto com dois companheiros, a bordo de um navio da Companhia de Comércio, carregado de açúcar. Tinha como missão defender junto ao monarca os direi- tos dos indígenas escravizados, contra a cobiça dos colo- nos portugueses. Após dois meses de viagem, já a Oeste dos Açores, a embarcação enfrentou uma violenta tem- pestade. Uma rajada mais forte arrancou a vela, fazendo a embarcação adernar a estibordo assim permanecendo até que os mastros se partiram e o navio voltou à posição normal, permanecendo à deriva. Um corsário holandês recolheu os náufragos a bordo e pilhou a embarcação, que acabou por ser afundada. Os papéis e livros do pregador foram devolvidos mais tarde. Em Portugal, Antônio Vieira tornou-se confessor da “regente”, D. Luísa de Gusmão, mas não teve apoio do su- cessor D. Afonso VI. Aderiu ao Sebastianismo e entrou em novo conflito com a Inquisição, que o acusou de heresia. Foi para Roma, onde ficou 6 anos, encontrou o Papa à beira da morte, mas deslumbrou a Cúria com seus dis- cursos e sermões. Com apoios poderosos, renovou a luta contra a Inquisição, cuja atuação considerava nefasta para o equilíbrio da sociedade portuguesa. Entre 1675 e 1681, a atividade da Inquisição esteve suspensa por determina- ção papal em Portugal e no império. Decidiu voltar outra vez para o Brasil, em 1681. De- dicou-se à tarefa de continuar a coligir seus escritos que começaram a ser publicados na Europa, onde foram elo- giados até pela Inquisição. Já velho e doente, teve que espalhar circulares sobre a sua saúde mantendo em dia a sua vasta correspondência. Morreu na Bahia a 18 de julho de 1697, com 89 anos. 2 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes ESTILO Vieira defendeu incansavelmente os direitos dos po- vos indígenas, combatendo sua exploração e escravização e fazendo a sua evangelização. Era por eles chamado de “Paiaçu” (Grande Padre/Pai, em tupi). Também defendeu os judeus e o fim da distinção entre cristãos-novos (judeus convertidos, perseguidos pela Inquisição) e cristãos-velhos (católicos tradicionais), e a abolição da escravatura. Criticou severamente os sa- cerdotes da época e a Inquisição. Na literatura, seus sermões possuem considerável importância dentro do barroco brasileiro e português. Vieira tem o que dizer tanto aos brasileiros como aos portugueses. Mas não só isso. Sua obra pode ser destina- da aos habitantes de todo o mundo. Não se dirige apenas ao homem barroco, mas também ao homem dos nossos dias, pois os temas de seus sermões continuam atuais. Referindo-se ao Pe. Antônio Vieira, Hernâni Cidade afirma: “… notemos a vivacidade permanente de uma in- teligência ao mesmo tempo lúcida e engenhosa, de uma imaginação dotada de todos os recursos para comover, encantar, fazer sorrir, de uma sensibilidade permeável a toda a radiação da beleza das coisas e das palavras e capaz de captar e transmitir pelo modo mais sugestivo e aliciante, e teremos uma imagem de qual seria a sedução deste mago da palavra! Depois de tudo, faltará ainda o conjunto dos dotes físicos do orador: a sua estatura acima da média, a voz quente com o seu leve ressaibo brasílico, o rosto, moreno carregado, linhas regulares e, sobretudo, aqueles olhos enormes e pretos, porventura uma das suas heranças da avó mulata, cheios de tanta claridade, de tão funda penetração, habituados a contemplar as realidades humanas e as perspectivas divinas, tão atentos às pedras do caminho como às estrelas do Firmamento…” Padre Antônio Vieira é autor de aproximadamente 200 sermões e é considerado o maior orador sacro de Portugal. Na época dele o sermão possibilitava que a pala- vra do pregador chegasse a todas as camadas sociais. Seus sermões abordam não só a temática teológica, mas tam- bém as questões da moralidade, filosofia e política. Entre os inúmeros recursos utilizados pelo autor, es- pecificamente no Sermão aos peixes destacam-se: 1. Antíteses – Muito pescam, mas não me espanto do muito; o que me espanta é que pesquem tanto e que tremam tão pouco. Tanto pescar e tão pouco tremer! – Pudera-se fazer problema; onde há mais pescadores e mais modos e traças de pescar, se no mar ou na terra? E é certo que na terra. Não quero discorrer por eles, ainda que fora grande consolação para os peixes; baste fazer a comparação com a cana, pois é o instrumento do nosso caso. No mar, pescam as canas, na terra, as varas... – Filosofando, pois, sobre a causa natural desta pro- vidência, notei que aqueles quatro olhos estão lançados um pouco fora do lugar ordinário, e cada par deles, unidos como os dois vidros de um relógio de areia, em tal forma que os da parte superior olham diretamente para cima, e os da parte inferior diretamente para baixo. E a razão des- ta nova arquitetura, é porque estes peixinhos, que sempre andam na superfície da água, não só são perseguidos dos outros peixes maiores do mar, senão também de grande quantidade de aves marítimas, que vivem naquelas praias; e como têm inimigos no mar e inimigos no ar, dobrou-lhes a natureza as sentinelas e deu-lhes dois olhos, que direta- mente olhassem para cima,para se vigiarem das aves, e outros dois que diretamente olhassem para baixo, para se vigiarem dos peixes. – Uma é louvar o bem, outra repreender o mal: louvar o bem para o conservar e repreender o mal para preservar dele. Nem cuideis que isto pertence só aos homens, por- que também nos peixes tem seu lugar. 2. Comparações – Assim como não há quem seja mais digno de re- verência e de ser posto sobre a cabeça que o pregador que ensina e faz o que deve, assim é merecedor de todo o desprezo e de ser metido debaixo dos pés, o que com a palavra ou com a vida prega o contrário. – Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma corda, parecia um retrato marítimo de Santo Antônio. – O que é a baleia entre os peixes, era o gigante Go- lias entre os homens. – (...) com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma es- trela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mes- ma brandura (...) – As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia (...) 3 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes 3. Paralelismos e anáforas – Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregado- res não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não deixa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma cousa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. – Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar... – Quantos, correndo fortuna na nau Soberba, com as velas inchadas do vento e da mesma soberba (que tam- bém é vento), se iam desfazer nos baixos, que já rebenta- vam por proa, se a língua de Antônio, como rêmora, não tivesse mão no leme, até que as velas se amainassem, como mandava a razão, e cessasse a tempestade de fora e a de dentro? Quantos, embarcados na nau Vingança, com a artilharia abocada e os botafogos acesos, corriam enfu- nados a dar-se batalha, onde se queimariam ou deitariam a pique se a rêmora da língua de Antônio lhes não detives- se a fúria, até que, composta a ira e ódio, com bandeiras de paz se salvassem amigavelmente? Quantos, navegan- do na nau Cobiça, sobrecarregada até às gáveas e aberta com o peso por todas as costuras, incapaz de fugir, nem se defender, dariam nas mãos dos corsários com perda do que levavam e do que iam buscar, se a língua de Antônio os não fizesse parar, como rêmora, até que, aliviados da carga injusta, escapassem do perigo e tomassem porto? Quantos, na nau Sensualidade, que sempre navega com cerração, sem sol de dia, nem estrelas de noite, engana- dos do canto das sereias e deixando-se levar da corrente, se iriam perder cegamente, ou em Sila, ou em Caribes, onde não aparecesse navio nem navegante, se a rêmora da língua de Antônio os não contivesse, até que esclare- cesse a luz e se pusessem em vista. – Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo (...) 4. Ironia – Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não prego a vós, prego aos peixes. – E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hi- pocrisia tão santa (...) o dito polvo é o maior traidor do mar. 5. Metáforas – Esta é a língua, peixes, do vosso grande pregador, que também foi rêmora vossa, enquanto o ouvistes; e porque agora está muda (...) se veem e choram na terra tantos naufrágios. – (...) pois às águias, que são os linces do ar (...) e aos linces que são as águias da terra (...) – (...) e o polvo dos próprios braços faz as cordas. – Mas nem por isso vos negarei que também cá se deixam pescar os homens pelo mesmo engano, menos honrada e mais ignoradamente. Quem pesca as vidas a todos os homens do Maranhão, e com quê? 6. Trocadilhos – Os homens tiveram entranhas para deitar Jonas ao mar, e o peixe recolheu nas entranhas a Jonas, para o levar vivo à terra. – E porque nem aqui o deixavam os que o tinham dei- xado, primeiro deixou Lisboa, depois Coimbra, e finalmen- te Portugal. – (...) o peixe abriu a boca contra quem se lavava, e Santo Antônio abria a sua contra os que se não queriam lavar. 7. Intertextos – Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os prega- dores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. – Assim o diz o grande Doutor da Igreja S. Basílio: Não só há que notar, diz o Santo, e que repreender nos peixes, senão também que imitar e louvar. – O que se há de fazer ao sal que não salga, Cristo o disse logo: Se o sal perder a substância e a virtude, e o pregador faltar à doutrina e ao exemplo, o que se lhe há de fazer, é lançá-lo fora como inútil para que seja pisado de todos. – Olhai como estranha isto Santo Agostinho: Os ho- mens com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes, que se comem uns aos outros. 8. Prosopopeias ou personificações – Eis aqui, peixinhos ignorantes e miseráveis, quão errado e enganoso é este modo de vida que escolhestes. Tomai o exemplo nos homens, pois eles o não tomam em vós, nem seguem, como deveram, o de Santo Antônio. – Louvai, peixes, a Deus, os grandes e os pequenos, e repartidos em dois coros tão inumeráveis, louvai-o todos uniformemente. Louvai a Deus, que vos multiplica; louvai a Deus, enfim, servindo e sustentando ao homem, que é o fim para que vos criou; e assim como no princípio vos deu sua bênção, vo-la dê também agora. 4 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes 9. Gradações – Vejo, peixes, que pelo conhecimento que tendes das terras em que batem os vossos mares, me estais res- pondendo e convindo, que também nelas há falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas e muito maiores e mais perniciosas traições. Mas ponde os olhos em Antônio, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar da can- dura, da sinceridade e da verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. A OBRA Vieira aparece como missionário e grande defensor dos Índios, sobretudo no famoso Sermão de Santo Antô- nio aos peixes, pregado em 13 de junho de 1654 em São Luís do Maranhão, três dias antes de embarcar escondido para Portugal no auge da luta dos jesuítas contra a escra- vização dos índios pelos colonizadores. O escrito revela a ironia, a riqueza das sugestões alegóricas, o agudo senso de observação dos vícios e vaidades dos homens, compa- rando-os alegoricamente aos peixes. Com surpreendente imaginação, habilidade oratória e poder satírico, Padre Antônio Vieira toma vários peixes (o roncador, o pegador, o voador e o polvo) como símbolos dos vícios dos colonos. Censura os soberbos (= roncadores); os pregadores (= parasitas); os ambiciosos (= voadores); os hipócritas e traidores (= polvos). Critica a prepotência dos grandes, que, como peixes, vivem do sacrifício de muitos pequenos, aos quais “engo- lem” e “devoram”. No entanto, ironicamente, o pregador mostra que, se no Brasil eles são grandes, em Portugal “acham outros maiores que os comam, também a eles”. Vieira conseguiu atingir os seus objetivos, a contra- gosto dos colonos que assim perdiam parte da sua mão de obra barata, que exploravam impiedosamente. Testes 01. Assinale a alternativa que preenche corretamente as lacunas. O movimento literário denominado Barroco tem no padre Antônio Vieira uma de suas grandes expressões. Em sua vasta obra, incluem-se .............................. em que aborda temas ..........................., ........................... e .......................... . a) sermões – satíricos – historiográficos – religiosos; b) sermões – sociais – políticos – religiosos; c) poemas – religiosos – satíricos – místicos; d) cartas – amorosos – historiográficos – sociais; e) epístolas – políticos – amorosos – místicos; 02. (UNIP) – Sobre cultismo e conceptismo, os dois aspectos construtivos do Barroco, assinale a únicaalternativa incorreta. a) O cultismo opera através de analogias sensoriais, valorizando a identificação dos seres por metáfo- ras. O conceptismo valoriza a atitude intelectual, a argumentação. b) Cultismo e conceptismo são partes construtivas do Barroco que não se excluem. É possível locali- zar no mesmo autor e até no mesmo texto os dois elementos. c) O cultismo é perceptível no rebuscamento da lin- guagem, pelo abuso no emprego de figuras se- mânticas, sintáticas e sonoras. O conceptismo va- loriza a atitude intelectual, o que se concretiza no discurso pelo emprego de sofismas, silogismos, paradoxos. d) O cultismo na Espanha, em Portugal e no Brasil é também conhecido como Gongorismo; seu mais ar- dente defensor entre nós, foi o Padre Antônio Vieira que propõe a primazia da palavra sobre a ideia. e) O método cultista de Gôngora, e o conceptismo de Quevedo foram os que maiores influências deixaram em Gregório de Matos. 03. Nos sermões do Padre Vieira, o estilo barroco sus- tenta a) os ideais abolicionistas e republicanos. b) denúncias contra movimentos emancipacionistas. c) a propagação dos ideais da Reforma. d) o entrelaçamento dos assuntos de fé aos históricos. e) um lirismo amoroso atormentado pela culpa. 5 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes 04. (UNIFENAS) – Sobre o Barroco do Brasil, assinale a afirmativa incorreta: a) Vários poemas de Gregório de Matos Guerra fo- ram gravados por cantores brasileiros. b) Apesar de ter nascido em Portugal, Padre Antô- nio Vieira só é citado na literatura brasileira. c) Padre Antônio Vieira escreveu vários sermões, entre eles, o Sermão de Santo Antônio aos peixes. d) Por seus sermões, Padre Antônio Vieira é consi- derado nosso maior autor sacro. e) Gregório de Matos Guerra foi apelidado Boca de Inferno, pela ferocidade de suas críticas à sua ci- dade, ao povo, ao clero e ao governo. 05. Assinale a incorreta: O Barroco surgiu como reação aos ideais da Idade Média e à valorização demasiada da Antiguidade clássica, apresentando a) a fusão do teocentrismo com o antropocentrismo; b) o predomínio do equilíbrio em todas as formas artísticas; c) o estilo rebuscado como manifestação de angústia; d) o predomínio de forma, cor e riqueza, em detri- mento do conteúdo; e) a fusão do pecado com o perdão. 06. (UFBA) – Assinale o texto que, pela linguagem e pe- las ideias, pode ser considerado como representante da corrente barroca: a) “Brando e meigo sorriso se deslizava em seus lá- bios; os negros caracóis de suas belas madeixas brincavam, mercê do zéfiro, sobre suas faces . . . e ela também suspirava”. b) “Estiadas amáveis iluminavam instantes de céus sobre ruas molhadas de pipilos nos arbustos dos squares. Mas a abóbada de garoa desabava os quarteirões”. c) “Os sinos repicavam numa impaciência alegre. Padre Antônio continuou a caminhar lentamente, pensando que cem vezes estivera a cair, ceden- do à fatalidade da herança e à influência do meio que o arrastavam para o pecado”. d) “De súbito, porém, as lancinantes incertezas, as brumosas noites pesadas de tanta agonia, de tan- to pavor de morte, desfaziam-se, desapareciam completamente como os tênues vapores de um letargo. . .” e) “Ah! Peixes, quantas invejas vos tenho a essa natu- ral irregularidade! A vossa bruteza é melhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras: eu lembro-me, mas vós não ofen- deis a Deus com a memória: eu discorro mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento: eu que- ro, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade”. 07. TEXTO No tempo de Noé sucedeu o dilúvio que cobriu e alagou o Mundo, e de todos os animais quais livra- ram melhor? Dos leões escaparam dois, leão e leoa, e assim dos outros animais da terra; das águias es- caparam duas, fêmea e macho, e assim das outras aves. E dos peixes? Todos escaparam, antes não só escaparam todos, mas ficaram muito mais largos que dantes, porque a terra e o mar tudo era mar. Pois se morreram naquele universal castigo todos os animais da terra e todas as aves, por que não morreram tam- bém os peixes? Sabeis por quê? Diz Santo Ambrósio: porque os outros animais, como mais domésticos ou mais vizinhos, tinham mais comunicação com os ho- mens, os peixes viviam longe e retirados deles. Padre Antônio Vieira – Sermão de Santo Antônio aos peixes A passagem acima é representativa de uma das ten- dências estéticas típicas da prosa seiscentista, a saber: a) o Sebastianismo, isto é, a celebração do mito da volta de D. Sebastião, rei de Portugal, morto na batalha de Alcácer-Quibir. b) a busca do exotismo e da aventura ultramarina, presentes nas crônicas e narrativas de viagens. c) a exaltação do heroico e do épico, por meio das metáforas grandiloquentes das epopeias. d) o lirismo trovadoresco, caracterizado por figuras de estilo passionais e místicas. e) o Conceptismo, caracterizado pela utilização cons- tante dos recursos da dialética. 08. Assinale a alternativa correta: a) Antônio Vieira é o maior representante da poesia barroca no Brasil e o maior orador sacro do Brasil Colônia. b) Os sermões do Padre Vieira são o melhor exem- plo do Neoclassicismo no Brasil. c) Os textos de Antônio Vieira usam a retórica, com jogos de ideias e palavras, para convencer os ou- vintes mais pela emoção que pelo raciocínio. d) No Sermão de Santo Antônio aos peixes, além de exaltar a necessidade da pregação, Vieira usa a alegoria dos peixes para criticar a exploração do homem pelo homem e, mais especificamente, para condenar a escravidão indígena. e) Na época em que o sermão foi escrito, 1654, Pa- dre Antônio Vieira lutava contra a invasão holan- desa no Nordeste e contra os cristãos-novos. 6 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes 09. A respeito do padre Antônio Vieira e de sua obra, po- demos afirmar: a) Os sermões de Vieira são textos representativos do cultismo barroco, que chamam a atenção mais pela forma que pelo conteúdo. b) Seu estilo literário é essencialmente barroco: lon- gos períodos construídos com o uso intensivo de figuras de linguagem, como metáforas e antíte- ses, formando um discurso altamente persuasivo, com o intuito de convencer o ouvinte pelo racio- cínio e pela razão. c) No Sermão de Santo Antônio aos peixes, Vieira junta sua devoção ao santo à preocupação que o levaria, dias depois da pregação, a fugir secre- tamente para Portugal: a perseguição que sofria por causa de seu apoio à invasão holandesa. d) Padre Vieira, nessa alegoria, evita a ironia contra os colonos para não exacerbar os ânimos. e) Vieira, em Sermão de Santo Antônio aos peixes, apenas faz um discurso descritivo que quer levar o ouvinte a tomar atitudes práticas. 10. Leia o texto a seguir, do Sermão de Santo Antônio aos peixes: Peixes! Quanto mais longe dos homens, tanto melhor; trato e familiaridade com eles, Deus vos li- vre! Se os animais da terra e do ar querem ser seus familiares, façam-no muito embora, que com suas pensões o fazem. Cante-lhes aos homens o rouxinol, mas na sua gaiola; diga-lhes ditos o papagaio, mas na sua cadeia; vá com eles à caça o açor, mas nas suas piozes; faça-lhes bufonarias o bugio, mas no seu cepo; contente-se o cão de lhes roer um osso, mas levado onde não quer pela trela; preze-se o boi de lhe chamarem formoso ou fidalgo, mas com o jugo sobre a cerviz, puxando pelo arado e pelo carro; glorie-se o cavalo de mastigar freios dourados, mas debaixo da vara e da espora; e se os tigres e os le- ões lhe comem a ração da carne que não caçaram no bosque, sejam presos e encerrados com grades de ferro. E entretanto vós, peixes, longe dos homens e fora dessas cortesanias, vivereis só convosco, sim, mas como peixe na água. Sobre a linguagem barroca de Antônio Vieira, pode- mos dizer que: a) exibe o emprego moderado de figuras de lingua- gem, principalmente de antíteses; b) o emprego de trocadilhos e paradoxos visa a dar maior clareza às ideias do texto; c) dá destaque aoemprego da ordem direta e dos versos brancos; d) devido à complexidade do modelo, faz pouco uso do soneto; e) é extremamente elaborada, culta, repetitiva e convincente. 7 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes I I Capítulo I Exórdio - Parte Introdutória Na abertura do Sermão de Santo Antônio aos peixes, a apresentação do tema de extração bíblica (Vos estis sal ter- rae) oferece oportunidade para o questionamento das cau- sas da ineficácia da oratória sacra. A argumentação concep- tista apoia-se no paralelismo sintático, na repetição anafórica das alternativas que servem de eixo básico do raciocínio: Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar... Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pre- gam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal! O primeiro capítulo é o exórdio aos homens. Padre Antônio Vieira serve-se do conceito predicável “Vos estis sal terrae” (“Vós sois o sal da Terra”), para iniciar o seu sermão. Segundo Cristo, os pregadores eram o “sal da ter- ra” porque, tal como o sal impede que os alimentos se corrompam, também os pregadores tinham a missão de impedir a corrupção na Terra: O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tan- tos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? [...]Suposto, pois, que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar; que se há de fazer a este sal e que se há de fazer a esta terra? Sendo o defeito dos pregadores, a solução seria se- guir o conselho de Cristo e expulsá-los, mas, sendo o de- feito dos ouvintes, poder-se-ia tomar a resolução de Santo Antônio, quando pregava em Arimino e, não sendo ouvido pelos homens, resolveu mudar de auditório e pregar aos peixes, que o ouviram com atenção: Oh maravilhas do Altíssimo! Oh poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos, e postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, Antônio pregava e eles ouviam. Capítulo II Louvores em geral Padre Antônio Vieira elogia a qualidade peculiar dos peixes de serem capazes de ouvir e de não falar. Contudo, têm o defeito de não poderem converter-se, mas o prega- dor já está habituado a essa dor (observação irônica em relação aos homens): Vindo pois, irmãos, às vossas virtudes, que são as que só podem dar o verdadeiro louvor, a primeira que se me oferece aos olhos hoje, é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor, e aquela ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca de seu servo Antônio. Oh grande louvor verdadeiramente para os peixes e gran- de afronta e confusão para os homens! Os homens perse- guindo a Antônio, querendo-o lançar da terra e ainda do mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender com seus erros, e no mesmo tempo os peixes em inume- rável concurso acudindo à sua voz, atentos e suspensos às suas palavras, escutando com silêncio e com sinais de ad- miração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam. Quem olhasse neste passo para o mar e para a terra, e visse na terra os homens tão furiosos e obs- tinados e no mar os peixes tão quietos e tão devotos, que havia de dizer? Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em pei- xes, mas em feras. Aos homens deu Deus uso de razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes o uso sem a razão. Capítulo III Louvores em particular Peixe de Tobias cura a cegueira e expulsa os demônios: De alguns somente farei menção. E o que tem o pri- meiro lugar entre todos, como tão celebrado na Escritura, é aquele santo peixe de Tobias a quem o texto sagrado não dá outro nome que de grande, como verdadeiramente o foi nas virtudes interiores, em que só consiste a verdadeira grande- za. Ia Tobias caminhando com o anjo S. Rafael, que o acom- panhava, e descendo a lavar os pés do pó do caminho nas margens de um rio, eis que o investe um grande peixe com a boca aberta em ação de que o queria tragar. Gritou To- bias assombrado, mas o anjo lhe disse que pegasse no peixe pela barbatana e o arrastasse para terra; que o abrisse e lhe tirasse as entranhas e as guardasse, porque lhe haviam de servir muito. Fê-lo assim Tobias, e perguntando que vir- tude tinham as entranhas daquele peixe que lhe mandara guardar, respondeu o anjo que o fel era bom para sarar da cegueira e o coração para lançar fora os demônios. 8 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes Assim o disse o anjo, e assim o mostrou logo a experi- ência, porque, sendo o pai de Tobias cego, aplicando-lhe o filho aos olhos um pequeno pedaço do fel, cobrou inteira- mente a vista; e tendo um demônio, chamado Asmodeu, morto sete maridos a Sara, casou com ela o mesmo Tobias; e queimando na casa parte do coração, fugiu dali o demô- nio e nunca mais tornou. De sorte que o fel daquele peixe tirou a cegueira a Tobias, o velho, e lançou os demônios de casa a Tobias, o moço. Um peixe de tão bom coração e de tão proveitoso fel, quem o não louvará mais? Certo que se a este peixe o vestiram de burel e o ataram com uma cor- da, parecia um retrato marítimo de Santo Antônio. Santo Antônio alumiava e curava as cegueiras dos ouvintes e lançava os demônios fora de casa. Ah moradores do Maranhão, quanto eu vos pudera agora dizer neste caso! Abri, abri estas entranhas; vede, vede este coração. Mas ah sim, que me não lembrava! Eu não vos prego a vós, prego aos peixes. Rêmora Um peixe pequeno mas que tem muita força. Repre- senta a força da palavra de Santo Antônio. Quem haverá, digo, que não admire a virtude daque- le peixezinho tão pequeno no corpo e tão grande na força e no poder, que não sendo maior de um palmo, se se pega ao leme de uma nau da Índia, apesar das velas e dos ven- tos, e de seu próprio peso e grandeza, a prende e amarra mais que as mesmas âncoras, sem se poder mover, nem ir por diante? Oh se houvera uma rêmora na terra, que tives- se tanta força como a do mar, que menos perigos haveria na vida e que menos naufrágios no Mundo! Se alguma rêmora houve na terra, foi a língua de San- to Antônio, na qual, como na rêmora, se verifica o verso de São Gregório Nazianzeno: Lingua quidem parva est, sed viribus omnia vincit. O Apóstolo Santiago, naquela sua eloquentíssima Epístola, compara a língua ao leme da nau e ao freio do cavalo. Uma e outra comparação juntas declaram maravilhosamente a virtude da rêmora, a qual, pegada ao leme da nau, é freio da nau e leme do leme. E tal foi a virtude e força da língua de Santo Antônio. O leme da natureza humana é o alvedrio, o piloto é a razão: mas quão poucas vezes obedecem à razão os ímpetos precipi- tados do alvedrio? Neste leme, porém, tão desobediente e rebelde, mostrou a língua de Antônio quanta força tinha, como rêmora, para domar a fúria das paixões humanas. A rêmora é comparável à língua de Santo Antônio, que serve de guia às pessoas e doma a fúria das paixões humanas: soberba, vingança, cobiça, sensualidade. Torpedo Peixe que faz descargas eléctricas para se defender. Representa a conversão. Está o pescador com a cana na mão, o anzol no fundo e a boia sobre a água, e em lhe picando na isca o torpedo começa a lhe tremer o braço. Pode haver maior, mais breve e mais admirável efeito? De maneira que, num momento, passa a virtude do peixezinho, da boca ao anzol, do anzol à linha, da linha à cana e da cana ao braço do pescador. Com muita razão disse que este vosso louvor o havia de referir com inveja. Quem dera aos pescadores do nosso elemento, ou quem lhes pusera esta qualidade tremente, em tudo o que pescam na terra! [...] pescamas ginetas, pescam as bengalas, pescam os bastões e até os cetros pescam, e pescam mais que to- dos, porque pescam cidades e reinos inteiros. Pois é possí- vel que, pescando os homens, cousas de tanto peso, lhes não trema a mão e o braço?! Se eu pregara aos homens e tivera a língua de Santo Antônio, eu os fizera tremer. Quatro Olhos Vê para cima e para baixo. Representa a capacidade de distinguir o bem do mal (céu/inferno), a vigilância e a providência. Navegando de aqui para o Pará, vi correr pela tona da água de quando em quando, a saltos, um cardume de peixinhos que não conhecia; e como me dissessem que os Portugueses lhes chamavam quatro-olhos, quis averiguar ocularmente a razão deste nome, e achei que verdadeira- mente têm quatro olhos, em tudo cabais e perfeitos. Dá graças a Deus, lhe disse, e louva a liberalidade de sua di- vina providência para contigo; pois às águias, que são os linces do ar, deu somente dois olhos, e aos linces, que são as águias da terra, também dois; e a ti, peixezinho, quatro. Mais me admirei ainda, considerando nesta maravi- lha a circunstância do lugar. Tantos instrumentos de vista a um bichinho do mar, nas praias daquelas mesmas ter- ras vastíssimas, onde permite Deus que estejam vivendo em cegueira tantos milhares de gentes há tantos séculos! Oh quão altas e incompreensíveis são as razões de Deus, e quão profundo o abismo de seus juízos! [...] Oh que bem informara estes quatro olhos uma alma racional, e que bem empregada fora neles, melhor que em muitos homens! Esta é a pregação que me fez aquele pei- xezinho, ensinando-me que, se tenho fé e uso da razão, só devo olhar diretamente para cima, e só diretamente para baixo: para cima, considerando que há Céu, e para baixo, lembrando-me que há Inferno. Capítulo IV Repreensões em geral Passando às repreensões dos peixes, Vieira critica-os por se comerem uns aos outros (sentido denotativo ou li- teral) e por serem os grandes que comem os pequenos: 9 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes A primeira cousa que me desedifica, peixes, de vós, é que vos comeis uns aos outros. Grande escândalo é este, mas a circunstância o faz ainda maior. Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os peque- nos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os peque- nos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. Mas com os homens passa-se um fenômeno seme- lhante. Olhai, peixes, lá do mar para a terra. Não, não: não é isso o que vos digo. Vós virais os olhos para os matos e para o sertão? Para cá, para cá; para a cidade é que haveis de olhar. Cuidais que só os Tapuias se comem uns aos outros? Muito maior açougue é o de cá, muito mais se comem os Brancos. Vedes vós todo aquele bulir, vedes todo aquele an- dar, vedes aquele concorrer às praças e cruzar as ruas; vedes aquele subir e descer as calçadas, vedes aquele entrar e sair sem quietação nem sossego? Pois tudo aquilo é andarem buscando os homens como hão de comer e como se hão de comer. Morreu algum deles, vereis logo tantos sobre o mi- serável a despedaçá-lo e comê-lo. Comem-no os herdeiros, comem-no os testamenteiros, comem-no os legatários, co- mem-no os credores; comem-no os oficiais dos órfãos e os dos defuntos e ausentes; come-o o médico, que o curou ou ajudou a morrer; come-o o sangrador que lhe tirou o san- gue; come-a a mesma mulher, que de má vontade lhe dá para a mortalha o lençol mais velho da casa; come-o o que lhe abre a cova, o que lhe tange os sinos, e os que, cantan- do, o levam a enterrar; enfim, ainda o pobre defunto o não comeu a terra, e já o tem comido toda a terra. Vede um homem desses que andam perseguidos de pleitos ou acusados de crimes, e olhai quantos o estão co- mendo. Come-o o meirinho, come-o o carcereiro, come-o o escrivão, come-o o solicitador, come-o o advogado, come- -o o inquiridor, come-o a testemunha, come-o o julgador, e ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos. O triste que foi à forca, não o comem os corvos senão depois de executado e morto; e o que anda em juízo, ainda não está executado nem senten- ciado, e já está comido. Crítica à escravização dos índios: A diferença que há entre o pão e os outros comeres, é que para a carne, há dias de carne, e para o peixe, dias de peixe, e para as frutas, diferentes meses no ano; porém o pão é comer de todos os dias, que sempre e continua- damente se come: e isto é o que padecem os pequenos. São o pão quotidiano dos grandes; e assim como o pão se come com tudo, assim com tudo e em tudo são comidos os miseráveis pequenos, não tendo nem fazendo ofício em que os não carreguem, em que os não multem, em que os não defraudem, em que os não comam, traguem e devo- rem: Qui devorant plebem meam, ut cibum panis. Padre Antônio Vieira alerta os peixes que Deus os pode castigar, tal como castiga os homens, pois poderão encontrar sempre outros peixes maiores que os “come- rão” a eles: Os mais velhos, que me ouvis e estais presentes, bem vistes neste Estado, e quando menos ouviríeis murmurar aos passageiros nas canoas, e muito mais lamentar aos miseráveis remeiros delas, que os maiores que cá foram mandados, em vez de governar e aumentar o mesmo Es- tado, o destruíram; porque toda a fome que de lá traziam, a fartavam em comer e devorar os pequenos. Assim foi; mas, se entre vós se acham acaso alguns dos que, seguindo a esteira dos navios, vão com eles a Por- tugal e tornam para os mares pátrios, bem ouviriam estes lá no Tejo que esses mesmos maiores que cá comiam os pequenos, quando lá chegam, acham outros maiores que os comam também a eles. O pregador, falando aos peixes, indiretamente se diri- ge às pessoas que o ouvem: Não vedes que contra vós até as canas são lanças e as cortiças armas ofensivas? Não vos basta, pois, que tenhais tantos e tão armados inimigos de fora, senão que também vós de vossas portas a dentro o haveis de ser mais cruéis, perseguindo-vos com uma guerra mais que civil e comen- do-vos uns aos outros? Vieira argumenta: Após o dilúvio, se os animais se comessem, não se teriam multiplicado, uma vez que só havia dois de cada espécie. Outro defeito dos peixes consiste em deixarem-se tentar por um bocado de pano atado num anzol. Do mes- mo defeito padecem os homens e pelo mesmo motivo se guerreiam uns aos outros: Dá um exército batalha contra outro exército, me- tem-se os homens pelas pontas dos piques, dos chuços e das espadas, e porquê? Porque houve quem os engodou e lhes fez isca com dois retalhos de pano. A vaidade entre os vícios é o pescador mais astuto e que mais facilmente engana os homens. E que faz a vaidade? Põe por isca na ponta desses piques, desses chuços e dessas espadas dois retalhos de pano, ou branco, que se chama hábito de Mal- ta, ou verde, que se chama de Avis, ou vermelho, que se chama de Cristo e de Santiago; e os homens, por chega- rem a passar esse retalho de pano ao peito, não reparam em tragar e engolir o ferro. No Maranhão as pessoas se deixam iludir também com os tecidos que chegam de Portugal, e contraem dívi- das enormes para os terem e ostentarem: Um homem do mar com uns retalhos de pano. Vem um mestre de navio de Portugal com quatro varreduras das lojas, com quatro panos e quatro sedas, que já se lhes passou a era e não têm gasto; e que faz? Isca com aqueles trapos aos moradores da nossa terra: dá-lhes uma saca- 10 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes dela e dá-lhes outra, com que cada vez lhes sobe mais o preço; e os bonitos, ou os que querem parecer, todos esfai- mados aos trapos, e ali ficam engasgados e presos, com dívidas de um ano para outro ano, e de uma safra para outra safra, e lá vai a vida. Isto não é encarecimento. To- dos a trabalhar toda a vida, ou na roça, ou na cana, ou no engenho, ou no tabacal; e este trabalho de toda a vida, quemo leva? ... Não é isto, meus peixes, grande loucura dos homens com que vos escusais? Claro está que sim; nem vós o podeis negar. Pois se é grande loucura esperdiçar a vida por dois retalhos de pano, quem tem obrigação de se vestir; vós, a quem Deus vestiu do pé até à cabeça, ou de peles de tão vis- tosas e apropriadas cores, ou de escamas prateadas e doi- radas, vestidos que nunca se rompem, nem gastam com o tempo, nem se variam ou podem variar com as modas; não é maior ignorância e maior cegueira deixardes-vos enganar ou deixardes-vos tomar pelo beiço com duas tirinhas de pano? Capítulo V Repreensões em particular Neste capítulo fazem-se repreensões individuais aos peixes, que representam os mais variados defeitos humanos: Os roncadores, símbolos da soberba, da arrogância e do orgulho. Representam as pessoas que se vangloriam de seus dons, mas pouco ou nada demonstram. É possível que sendo vós uns peixinhos tão pequenos, haveis de ser as roncas do mar?! Se, com uma linha de coser e um alfinete torcido, vos pode pescar um aleija- do, porque haveis de roncar tanto? Mas por isso mesmo roncais. Dizei-me: o espadarte porque não ronca? Por- que, ordinariamente, quem tem muita espada, tem pou- ca língua. Isto não é regra geral; mas é regra geral que Deus não quer roncadores e que tem particular cuidado de abater e humilhar aos que muito roncam. S. Pedro, a quem muito bem conheceram vossos antepassados, tinha tão boa espada, que ele só avançou contra um exército inteiro de soldados romanos; e se Cristo lha não manda- ra meter na bainha, eu vos prometo que havia de cortar mais orelhas que a de Malco. Contudo, que lhe sucedeu naquela mesma noite? Tinha roncado e barbateado Pedro que, se todos fraqueassem, só ele havia de ser constante até morrer se fosse necessário; e foi tanto pelo contrário, que só ele fraqueou mais que todos, e bastou a voz de uma mulherzinha para o fazer tremer e negar... O muito roncar antes da ocasião, é sinal de dormir nela. Pois que vos parece, irmãos roncadores? Se isto su- cedeu ao maior pescador, que pode acontecer ao menor peixe? Medi-vos, e logo vereis quão pouco fundamento tendes de blasonar, nem roncar. Os pegadores (como a rêmora) simbolizam os para- sitas e oportunistas. Representam aquelas pessoas que sem iniciativa ou vida própria vivem na dependência dos poderosos e desaparecem com eles. Pegadores se chamam estes de que agora falo, e com grande propriedade, porque sendo pequenos, não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam aos costados que jamais os desferram. De alguns animais de menos força e indústria se conta que vão seguindo de longe aos leões na caça, para se sustentarem do que a eles sobeja. O mesmo fazem estes pegadores, tão seguros ao perto como aqueles ao longe; porque o peixe grande não pode dobrar a cabeça, nem voltar a boca sobre os que traz às costas, e assim lhes sustenta o peso e mais a fome. Este modo de vida, mais astuto que generoso, se aca- so se passou e pegou de um elemento a outro, sem dúvida que o aprenderam os peixes do alto, depois que os nossos Portugueses o navegaram; porque não parte vice-rei ou governador para as Conquistas, que não vá rodeado de pegadores, os quais se arrimam a eles, para que cá lhes matem a fome, de que lá não tinham remédio. Os menos ignorantes, desenganados da experiência, despegam-se e buscam a vida por outra via; mas os que se deixam estar pegados à mercê e fortuna dos maiores, vem-lhes a suce- der no fim o que aos pegadores do mar. Rodeia a nau o tubarão nas calmarias da linha com os seus pegadores às costas, tão cerzidos com a pele, que mais parecem remendos ou manchas naturais, que os hós- pedes ou companheiros. Lançam-lhe um anzol de cadeia com a ração de quatro soldados, arremessa-se furiosa- mente à presa, engole tudo de um bocado, e fica preso. Corre meia companha a alá-lo acima, bate fortemente o convés com os últimos arrancos; enfim, morre o tubarão, e morrem com ele os pegadores. Os voadores, peixes que pretendem voar como as aves, simbolizam a presunção, o capricho, a vaidade e a ambição. Representam as pessoas que pretendem mos- trar-se mais do que são. Grande ambição é que, sendo o mar tão imenso, lhe não basta a um peixe tão pequeno todo o mar, e queira outro elemento mais largo. Mas vedes, peixes, o castigo da ambição. O voador fê-lo Deus peixe, e ele quis ser ave, e permite o mesmo Deus que tenha os perigos de ave e mais 11 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes os de peixe. Todas as velas para ele são redes, como peixe, e todas as cordas, laços, como ave. Vê, voador, como cor- reu pela posta o teu castigo. Pouco há nadavas vivo no mar com as barbatanas, e agora jazes em um convés amorta- lhado nas asas. Não contente com ser peixe, quiseste ser ave, e já não és ave nem peixe; nem voar poderás já, nem nadar. A natureza deu-te a água, tu não quiseste senão o ar, e eu já te vejo posto ao fogo. Peixes, contente-se cada um com o seu elemento. Se o voador não quisera passar do segundo ao terceiro, não viera a parar no quarto. Bem seguro estava ele do fogo, quando nadava na água, mas porque quis ser borboleta das ondas, vieram-se-lhe a quei- mar as asas. O polvo simboliza a dissimulação, o fingimento, a traição. Como as pessoas falsas ataca sempre de embos- cada porque se disfarça. Vieira o compara a Judas. O polvo com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, tes- temunham constantemente os dois grandes Doutores da Igreja latina e grega, que o dito polvo é o maior traidor do mar. Consiste esta traição do polvo primeiramente em se vestir ou pintar das mesmas cores de todas aquelas cores a que está pegado. As cores, que no camaleão são gala, no polvo são malícia; as figuras, que em Proteu são fábula, no polvo são verdade e artifício. Se está nos limos, faz-se verde; se está na areia, faz-se branco; se está no lodo, faz-se pardo: e se está em alguma pedra, como mais ordinaria- mente costuma estar, faz-se da cor da mesma pedra. E da- qui que sucede? Sucede que outro peixe, inocente da trai- ção, vai passando desacautelado, e o salteador, que está de emboscada dentro do seu próprio engano, lança-lhe os braços de repente, e fá-lo prisioneiro. Fizera mais Judas? Não fizera mais, porque não fez tanto. Judas abraçou a Cristo, mas outros o prenderam; o polvo é o que abraça e mais o que prende. Judas com os braços fez o sinal, e o polvo dos próprios braços faz as cordas. Judas é verdade que foi traidor, mas com lanternas diante; traçou a traição às escuras, mas executou-a muito às claras. O polvo, escu- recendo-se a si, tira a vista aos outros, e a primeira traição e roubo que faz, é a luz, para que não distinga as cores. Capítulo VI Peroração ou conclusão Padre Antônio Vieira despede-se dos peixes, dizendo que, dos animais que Deus tinha escolhido para lhe serem sacrificados, os peixes tinham sido excluídos, porque os outros animais, ao contrário dos peixes, podiam ir vivos aos sacrifícios. Entre os homens, havia muitos que chega- vam ao altar com as suas almas mortas pelo pecado e, por isso, era preferível não se ser sacrificado a Deus a ser-se sacrificado morto. Vieira faz um ato de contrição, reconhecendo que os peixes o excedem em tudo. Os peixes não falam, mas não ofendem a Deus com as palavras, não entendem, mas não ofendem a Deus com o entendimento. Os homens, sendo seres dotados de razão, respondem mal pelas suas obriga- ções, por isso é melhor ser peixe. Vieira termina com um apelo, pedindo aos peixes para louvarem a Deus. Na última frase, parece que o pú- blico real e o ficcional se coincidem, percebendo-se que Vieira se dirige mais aos homens, ao dizer que não pode acabar o sermão em graça, porque os peixes (ou seja, os homens) tambémnão estão em graça. Ah peixes, quantas invejas vos tenho a essa natural irregularidade! Quanto melhor me fora não tomar a Deus nas mãos, que tomá-lo indignamente! Em tudo o que vos excedo, peixes, vos reconheço muitas vantagens. A vossa bruteza é melhor que a minha razão e o vosso instinto me- lhor que o meu alvedrio. Eu falo, mas vós não ofendeis a Deus com as palavras; eu lembro-me, mas vós não ofen- deis a Deus com a memória; eu discorro, mas vós não ofendeis a Deus com o entendimento; eu quero, mas vós não ofendeis a Deus com a vontade. Vós fostes criados por Deus, para servir ao homem, e conseguis o fim para que fostes criados; a mim criou-me para o servir a ele, e eu não consigo o fim para que me criou. Vós não haveis de ver a Deus, e podereis aparecer diante dele muito confiadamen- te, porque o não ofendestes; eu espero que o hei de ver; mas com que rosto hei de aparecer diante do seu divino acatamento, se não cesso de o ofender? 12 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes Testes 11. Avalie as seguintes afirmações a respeito do Sermão de Santo Antônio aos peixes: 1. O sermão é construído em forma de alegoria, di- rige-se aos peixes, mas, na verdade, fala aos ho- mens. 2. O texto está dividido em seis partes. A primeira delas é o exórdio, ou introdução, na qual faz o cha- mamento “Vós sois o sal da terra”. Os pregadores são o sal da terra, cabendo ao sal impedir a cor- rupção. 3. Os vícios são representados por: peixe de Tobias, rêmora, torpedo e quatro-olhos. As virtudes são simbolizadas estão pelos roncadores, pegadores, voadores e polvo. 4. O principal defeito dos peixes, apontado pelo pre- gador, é a voracidade, já que os peixes devoram uns aos outros, e, pior, os maiores devoram os menores. Estão corretas as afirmativas a) 1, 2 e 3; b) 2, 3 e 4; c) 1, 2 e 4; d) 1, 3 e 4; e) 1 e 4. 12. Avalie as assertivas a seguir, sobre Antônio Vieira e seu Sermão de Santo Antônio aos peixes: 1. A saudação inicial do Sermão, “Vós sois o sal da terra”, é um chamamento à participação ativa dos pregadores na sociedade. 2. A discussão sobre as virtudes e os vícios huma- nos passa necessariamente por uma preocupação social. A ideia de que peixes maiores comem os peixes menores, ou seja, que a grandeza de cada um na sociedade tem valor relativo, surge espan- tosamente à frente do seu tempo. 3. Em plena era mercantil, o texto de Vieira, por meio da alegoria, desvenda para os colonos do Mara- nhão a realidade da competição protocapitalista: são peixes grandes na colônia, pois escravizam os nativos, que consideram inferiores, porém, uma vez na metrópole, serviriam de alimento para ou- tros peixes maiores, contra os quais não teriam defesa. 4. O texto de Vieira, datado do século XVII, traz para nós uma inquietante contemporaneidade, pois seus temas principais são a ganância humana e a corrupção da sociedade, assuntos mais do que presentes em nosso cotidiano. Estão corretas as alternativas. a) 1, 2 e 3; b) 1, 2 e 4; c) 1, 3 e 4; d) 2, 3 e 4; e) 1, 2, 3 e 4. 13. Neste Sermão de Santo Antônio aos peixes, Vieira utiliza a rêmora para simbolizar a) um peixe que vivia do oportunismo. b) o poder que a palavra do pregador tem de ser guia das almas. c) o poder que a palavra de Deus tem de fazer tre- mer os pecadores. d) o poder purificador da palavra de Deus. 14. (FUVEST – SP) – A respeito do padre Vieira, pode-se afirmar: a) Embora vivesse no Brasil, por sua formação lusi- tana não se ocupou de problemas locais. b) Procurava adequar os textos bíblicos às realida- des de que tratava. c) Dada a sua espiritualidade, demonstrava desinte- resse por assuntos mundanos. d) Em função de seu zelo para com Deus, utilizava-o para justificar todos os acontecimentos políticos e sociais. e) Mostrou-se tímido diante dos interesses dos po- derosos. 15. Sobre as características da obra de Padre Antônio Vieira, estão corretas as proposições: 1. Principal expressão do Barroco em Portugal, sua obra pertence tanto à literatura portuguesa quan- to à brasileira. 2. Maior poeta barroco brasileiro e um dos fundado- res da poesia lírica e satírica em nosso país, Padre Antônio Vieira, em pleno século XVII, foi um dos precursores da poesia moderna brasileira do sé- culo XX. 13 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes 3. A maior parte de sua obra foi escrita no Brasil e está relacionada com as inúmeras atividades que o autor desempenhou como religioso, como con- selheiro de D. João IV ou como mediador e repre- sentante de Portugal em relações econômicas e políticas com outros países. 4. Sua poesia lírica pode ser dividida em três ver- tentes: poesia religiosa, poesia amorosa e poesia filosófica. Na poesia religiosa, tem como temas o amor a Deus, a culpa, o pecado e o perdão. A po- esia amorosa é marcada pelo dualismo amoroso carne/espírito, e a poesia filosófica refere-se ao desconcerto do mundo e às frustrações humanas diante da realidade. 5. Aliando sua formação jesuítica à estética barroca em voga no século XVII, pronunciou sermões que se tornaram ao mesmo tempo a expressão má- xima do Barroco em prosa sacra e uma das prin- cipais expressões ideológicas e literárias da Con- trarreforma. a) 1 e 2; b) 4 e 5; c) 2 e 4; d) 1, 3 e 5; e) todas estão corretas. 16. Avalie as assertivas a seguir, sobre Padre Antônio Viei- ra e sua obra, Sermão de Santo Antônio aos peixes: 1. Por meio de sua linguagem finamente elaborada, Vieira nos faz refletir sobre os desafios da socieda- de de seu tempo, nos ajudando também a pensar sobre a nossa realidade. 2. O Sermão de Santo Antônio aos peixes é uma ale- goria, na medida em que os peixes são a personifi- cação dos homens. 3. O Padre Antônio Vieira toma como ponto de par- tida uma frase bíblica (Vós sois o sal da terra) ir- refutavelmente aplicável às condições políticas e sociais da sua época. 4. No contexto do sermão, a pessoa gramatical utili- zada com mais insistência é, obviamente, a tercei- ra, visto que o objetivo não é persuadir e contar com a adesão dos ouvintes, mas apontar o cami- nho da salvação. Estão corretas apenas as afirmativas a) 1, 2 e 3; b) 1, 3 e 4; c) 2, 3 e 4; d) 1 e 2; e) 2 e 3. 17. O Sermão de Santo Antônio aos peixes tem grande coesão e coerência textual graças à utilização de re- cursos estilísticos. Assinale a alternativa em que nem todos os recursos indicados são utilizados pelo autor: a) Antítese, apóstrofe, comparação; b) Paralelismo, anáfora, enumeração; c) Exclamação retórica, gradação crescente, inter- textualidade; d) Ironia, metáfora, paradoxo; e) Onomatopeia, trocadilho, sarcasmo. 18. Observe o excerto a seguir retirado do Sermão de Santo Antônio aos peixes, do Padre Antônio Vieira: Que faria neste caso o ânimo generoso do gran- de Antônio? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas Antônio com os pés descalços não podia fazer esta protestação; e uns pés a que se não pegou nada da terra não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se- -ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Que recursos dialéticos se destacam no texto? a) antíteses e trocadilhos; b) exclamações retóricas; c) interrogações retóricas; d) metáforas e paradoxos; e) paralelismos e enumeração. O texto a seguir é referência para as questões 19 e 20. Vós, diz Cristo, Senhor nosso, falando com os prega- dores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção; mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra se não deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra se não dei- xa salgar e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhes dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadoresdizem uma cousa e fa- zem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é tudo isto verdade? Ainda mal! Antônio Vieira, Sermão de Santo Antônio, em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000033.pdf>. 14 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes O excerto acima é o início do “Sermão de Santo Antônio aos Peixes” escrito por Antônio Vieira, que se imortalizou pela coerência lógica de seus textos, além de suas qualidades literárias. 19. (UFPR) – O texto trabalha fundamentalmente com duas metáforas: o sal e a terra, que representam, respectivamente, os pregadores (aqueles que de- veriam propagar a palavra de Cristo) e os ouvintes (aqueles que deveriam ser convertidos). O tema cen- tral do texto é a reflexão sobre as possíveis causas da ineficiência dos pregadores. Para tanto, o autor levanta algumas hipóteses. Tendo isso em vista, con- sidere as seguintes afirmativas: 1. Os pregadores não pregam o que deveriam pregar. 2. Os ouvintes se recusam a aceitar o que os prega- dores pregam. 3. Os pregadores não agem de acordo com os valo- res que pregam. 4. Os ouvintes agem como os pregadores em vez de agir de acordo com o que eles pregam. 5. Os pregadores promovem a si mesmos na prega- ção ao invés de promover as palavras de Cristo. Constituem hipóteses levantadas pelo autor do texto: a) 1 e 3 apenas. b) 3 e 5 apenas. c) 1, 2 e 4 apenas. d) 2, 4 e 5 apenas. e) 1, 2, 3, 4 e 5. 20. (UFPR) – Vieira é um homem do século XVII. É possí- vel detectar, no texto de Vieira, características da lín- gua portuguesa que divergem de seu uso contempo- râneo. Pensando nessa diferença entre o português atual e o português usado por Vieira, considere as seguintes afirmativas: 1. Diferentemente de hoje, o pronome pessoal oblí- quo átono antecedia a negação. 2. O “porque” é empregado no texto como conjun- ção explicativa e sua grafia é a mesma usada atu- almente. 3. A conjunção “ou” tem no texto um uso que não é o de alternância. Assinale a alternativa correta. a) Somente a afirmativa 1 é verdadeira. b) Somente a afirmativa 3 é verdadeira. c) Somente as afirmativas 1 e 2 são verdadeiras. d) Somente as afirmativas 2 e 3 são verdadeiras. e) As afirmativas 1, 2 e 3 são verdadeiras. 21. (UFPR) – Com base na leitura integral do “Sermão de Santo Antônio aos peixes”, de Antônio Vieira, assina- le a alternativa correta. a) O texto se estrutura através de uma rede de ana- logias em que os peixes são equiparados à pró- pria palavra de Deus. b) A palavra de Deus é comparada ao sal da terra, mas nunca consegue fertilizá-la, porque falta à terra a leveza dos peixes. c) Depois de ser lançado ao mar pelos homens, San- to Antônio foi reconduzido à praia pelos peixes, tornando-se exemplo da conduta cristã. d) O sal da terra é a palavra de Cristo e, segundo a parábola citada no sermão, ele preferiu pregar para os peixes a pregar para os homens. e) A terra, mesmo infértil, poderia ser melhor culti- vada, caso houvesse pregadores que soubessem semear a boa palavra. 15 Padre Antônio Vieira Sermão de Santo Antônio aos peixes Gabarito 01. b 02. d 03. d 04. b 05. c 06. e 07. e 08. d 09. b 10. e Toda mudança sempre começa com uma ideia! Aquele aBRAZço!!! abrazzzos@terra.com.br 11. c 12. e 13. b 14. b 15. d 16. a 17. e 18. c 19. e 20. c 21. e 16 Anotações 17 Obra Literária – Últimos Cantos Gonçalves Dias I O AUTOR Gonçalves Dias (1823 – 1864), poeta e teatrólogo bra- sileiro, é o grande nome da poesia indianista da primeira geração romântica. Carregou de Romantismo o tema do índio e deu feição nacional à literatura. É um dos melhores poetas líricos da literatura brasileira. Gonçalves Dias nasceu nos arredores de Caxias, no Maranhão, filho de um comerciante português e uma mestiça. Iniciou seus estudos em seu estado natal e com quinze anos ingressou no Colégio das Artes em Coimbra. Com 17 anos, na Universidade de Direito de Coimbra, pas- sa a ter contato com escritores do Romantismo português, como Almeida Garret, Alexandre Herculano e Feliciano de Castilho. Formado, o poeta volta ao Maranhão em 1845, ocu- pa vários cargos no governo e faz diversas viagens oficiais à Europa. No Rio de Janeiro, em 1847, publica Primeiros Cantos, no ano seguinte, Segundos Cantos e, em 1851, Últimos Cantos. De regresso ao Maranhão, conhece Ana Amélia Fer- reira do Vale, por quem se apaixona. Por ele ser mestiço, a família dela proíbe o casamento. Mais tarde, casa-se com Olímpia da Costa. Em 1862, Antônio Gonçalves Dias vai à Europa para tratamento de saúde. Sem obter resultados, embarca de volta dois anos depois. No dia 3 de novembro, morre no naufrágio do navio francês Ville de Boulogne em que viaja- va. O poeta foi a única vítima do desastre porque não teve forças para sair do camarote e foi esquecido pela tripula- ção. Tinha 41 anos. ESTILO E TEMÁTICA Intelectual, historiador, político, jurista, teatrólogo, Gonçalves Dias foi o primeiro grande poeta do Roman- tismo brasileiro e influenciou fortemente as gerações se- guintes de poetas e escritores. Seu estilo é marcado pelo amor ao Brasil, pela sensi- bilidade amorosa e pela exaltação do herói indígena. O sentimentalismo e o lirismo amoroso se revelam em apaixonados poemas de amor. Poemas em que se alternam sentimentos de desejo, angústia, perda e conquista. A visão romantizada do índio, retrata nosso sel- vagem como guerreiro nobre, forte e heroico valorizan- do seus costumes e sua cultura, ao contrário do homem branco, muitas vezes visto como explorador, malicioso e sem escrúpulos. O poeta, em diversos textos, faz um retrato humano e positivo dos negros. Seu nacionalismo manifesta-se na exaltação das be- lezas naturais do Brasil, na exuberância das paisagens, na delicadeza das cores e dos perfumes, no encantamento dos ventos e do espaço sideral que ilustram seus textos. Fiel às tendências do Romantismo, Gonçalves Dias va- loriza os ideais cristãos, religiosos e morais, personificados na dignidade e honradez dos cavaleiros medievais, trans- portados e adaptados para o contexto brasileiro. Quanto à forma, é impressionante a sonoridade, a musicalidade, o ritmo de suas composições, resultados de sua busca pela perfeição rítmica e formal, através da ori- ginalidade e liberdade com que utiliza a rima, a estrofação e a métrica. Assim, são frequentes os poemas com versos brancos (sem rima), poemas com variações na métrica e nas estrofes, e alternância de versos duros e suaves. Demonstrando amplo conhecimento da literatura universal, Gonçalves Dias introduz a maior parte de seus poemas com epígrafes em que cita inúmeros poetas. POESIA LÍRICA Os poemas de amor são marcados pela dor da separação ou da união impossível: por ser mestiço, Gon- çalves Dias foi impedido de namorar Ana Amélia, filha de uma família rica e racista do Maranhão. O poema a seguir retoma a tradição da cantiga me- dieval portuguesa, utilizando o recurso do estribilho e da linguagem arcaica: 18 Gonçalves Dias Últimos Cantos OLHOS VERDES São uns olhos verdes, verdes, Uns olhos de verde-mar, Quando o tempo vai bonança; Uns olhos cor de esperança, Uns olhos por que morri; Que ai de mi! Nem já sei qual fiquei sendo Depois que os vi! Como duas esmeraldas, Iguais na forma e na cor, Têm luz mais branda e mais forte, Diz uma – vida, outra – morte; Uma – loucura, outra – amor. Mas ai de mi! Nem já sei qual fiquei sendo Depois que os vi! São verdes da cor do prado, Exprimem qualquer paixão, Tão facilmente se inflamam, Tão meigamente derramam Fogo e luz do coração; Mas ai de mi! Nem sei já qual fiquei sendo Depois que os vi! (...) Nos excertos de poemas a seguir o tema central que se impõe quase exclusivamente é o Amor,nas suas mais diversas manifestações e provocando as mais diferentes expansões líricas e atitudes: COMO EU TE AMO Como se ama o silêncio, a luz, o aroma, O orvalho numa flor, nos céus a estrela, No largo mar a sombra de uma vela, Que lá na extrema do horizonte assoma; Como se ama o clarão da branca lua, Da noite na mudez os sons da flauta, As canções saudosíssimas do nauta, Quando em mole vaivém a nau flutua; (...) Como se ama o calor e a luz querida, A harmonia, o frescor, os sons, os céus, Silêncio, e cores, e perfume, e vida, Os pais e a pátria e a virtude e a Deus. Assim eu te amo, assim; mais do que podem Dizer-to os lábios meus, – mais do que vale Cantar a voz do trovador cansada: O que é belo, o que é justo, santo e grande Amo em ti. – Por tudo quanto sofro, Por quanto já sofri, por quanto ainda Me resta sofrer, por tudo eu te amo. OS BEIJOS Amo uns suspiros quebrados Sobre uns lábios nacarados A gemer, a soluçar; Como a onda bonançosa Que numa praia arenosa Vem tristemente expirar. Amo ouvir uma voz pura, Uns acentos de ternura, Que trazem vida e calor, Que se derramam a medo, Como temendo o segredo Revelar do oculto amor! Amo a lágrima que chora Terna virgem que descora, Presa de interna aflição; Amo um riso, um gesto vivo, Um olhar honesto, esquivo, Que alvoroça o coração. Porém mais que o olhar honesto, Mais que o riso e brando gesto, Mais do que o pranto a correr, Mais que a voz quando amor jura, Que um suspiro de ternura Que vem aos lábios morrer, 19 Gonçalves Dias Últimos Cantos Amo o leve som de um beijo, Quando rompe o véu do pejo, Mal sentido a murmurar: É viva flor de esperança, Que nos promete bonança, Como a flor do nenufar. Mente o olhar, mesmo em donzela, Mente a voz que amor assela, Mente o riso, mente a dor, Mente o cansado desejo; Só não mente o som de um beijo, Primícias de um longo amor! MEU ANJO, ESCUTA Meu anjo, escuta: quando junto à noite Perpassa a brisa pelo rosto teu, Como suspiro que um menino exala; Na voz da brisa quem murmura e fala Brando queixume, que tão triste cala No peito teu? Sou eu, sou eu, sou eu! Quando tu sentes lutuosa imagem De aflito pranto com sombrio véu, Rasgado o peito por acerbas dores; Quem murcha as flores Do brando sonho? — Quem te pinta amores Dum puro céu? Sou eu, sou eu, sou eu! Se alguém te acorda do celeste arroubo. Na amenidade do silêncio teu, Quando tua alma noutros mundos erra, Se alguém descerra Ao lado teu Fraco suspiro que no peito encerra; Sou eu, sou eu, sou eu! Se alguém se aflige de te ver chorosa, Se alguém se alegra com um sorriso teu, Se alguém suspira de te ver formosa O mar e a terra a enamorar e o céu; Se alguém definha Por amor teu, Sou eu, sou eu, sou eu! POR UM AI Se me queres ver rendido, De joelhos, a teus pés, Por um olhar que me deites, Por um só ai que me dês; Se queres ver o meu peito rugindo como um vulcão, Estourar, arder em chamas, Ferver de amor e paixão; Se me queres ver sujeito, curvado e preso à tua lei, Mais humilde que um escravo, Mais orgulhoso que um rei; Meus olhos sobre os teus olhos, Meu coração a teus pés; Por um olhar que me deites, Por um só ai que me dês; [...] Ouça, feliz, dos teus lábios Esta só palavra – amor! – Estrela cortando os ares, Abelha sobre uma flor. Não quero palavras falsas, Não quero um olhar que minta, Nenhum suspiro fingido, Nem voz que o peito não sinta. Basta-me um gesto, um aceno, Uma só prova, – e verás Minha alma presa em teus lábios, Como de amor se desfaz! Ver-me-ás rendido e sujeito, Cativo e preso à tua lei, Mais humilde que um escravo, Mais orgulhoso que um rei! 20 Gonçalves Dias Últimos Cantos O QUE MAIS DÓI NA VIDA O que mais dói na vida não é ver-se Mal pago um benefício, Nem ouvir dura voz dos que nos devem Agradecidos votos, Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato, Que as devera beijar! ... Não! o que mais dói não é do mundo A sangrenta calúnia, Nem ver como se infama a ação mais nobre, Os motivos mais justos, Nem como se deslustra o melhor feito, A mais alta façanha! O que dói, mas de dor que não tem cura, O que aflige, o que mata, Mas de aflição cruel, de morte amara, É morrermos em vida No peito da mulher que idolatramos, No coração do amigo! Amizade e amor! — laço de flores, Que prende um breve instante O ligeiro batel à curva margem De terra hospitaleira; Com tanto amor se enastra, e tão depressa, E tão fácil se rompe! O poeta e a poesia. Nos trechos de poemas a seguir, vemos o pioneirismo de Gonçalves Dias, ao utilizar, pelo menos implicitamente, o recurso da metalinguagem. QUE ME PEDES Tu pedes-me um canto na lira de amores, Um canto singelo de meigo trovar?! Um canto fagueiro já — triste — não pode Na lira do triste fazer-se escutar. Outrora, coberto meu leito de flores, Um canto singelo já soube trovar; Mas hoje na lira, que o pranto umedece, As notas d’outrora não posso encontrar! Outrora os ardores que eu tinha no peito Em cantos singelos podia trovar; Mas hoje, sofrendo, como hei de sorrir-me, Mas hoje, traído, como hei de cantar? Não peças ao bardo, que aflito suspira, Uns cantos alegres de meigo trovar; À lira quebrada só restam gemidos, Ao bardo traído só resta chorar. LIRA QUEBRADA Pede cantos aos ledos passarinhos, Pede clarão ao sol, perfume às flores, Às brisas, suspirar, murmúrio aos ventos, Doces querelas ao correr das fontes; ... Mas não peças à lira abandonada Um alegre cantar, – já murchas pendem As grinaldas gentis que a toucaram Donzéis louçãos, enamoradas virgens. ... Desejar coisas vãs, viver de sonhos, Correr após um bem logo esquecido, Sentir amor e só topar frieza, Cismar venturas e encontrar só dores; Fizeram-se o que vês: não canto, sofro! Lira quebrada, coração sem forças De poético manto as vou cobrindo, Por disfarçar destarte o mal que passo. AS DUAS COROAS Há duas coroas na terra, Uma de ouro cintilante Com esmalte de diamante, Na fronte do que é senhor; Outra modesta e singela, Coroa de meiga poesia, Que a fronte ao vate alumia Como a luz de um resplendor. ... E quando o vate suspira Sobre esta terra maldita, Ninguém a voz lhe acredita, Mas riem dos cantos seus: Os anjos, não; porque sabem Que essa voz é verdadeira, Que é dos homens a primeira, Enquanto a outra é de Deus! 21 Gonçalves Dias Últimos Cantos POESIAS DIVERSAS Visão poética das montanhas à beira mar no Rio de Janeiro. O GIGANTE DE PEDRA Gigante orgulhoso, de fero semblante, Num leito de pedra lá jaz a dormir! Em duro granito repousa o gigante, Que os raios somente puderam fundir. Dormido atalaia no serro empinado Devera cuidoso, sanhudo velar; O raio passando o deixou fulminado, E à aurora, que surge, não há de acordar! ... Banha o sol os horizontes, Trepa os castelos dos céus, Aclara serras e fontes, Vigia os domínios seus: Já descai para o ocidente, E em globo de fogo ardente Vai-se no mar esconder; E lá campeia o gigante, Sem destorcer o semblante, Imóvel, mudo, a jazer! ... Viu primeiro os íncolas Robustos, das florestas, Batendo os arcos rígidos, Traçando homéreas festas, À luz dos fogos rútilos, Aos sons do murmuré! E em Guanabara esplêndida As danças dos guerreiros, E o guau cadente e vário Dos moços prazenteiros, E os cantos da vitória Tangidos no boré. ... Mudaram-se os tempos e a face da terra, Cidades alastram o antigo paul; Mas inda o gigante, que dorme na serra, Se abraça ao imenso cruzeiro do sul. Reflexão sobre a morte SOBRE O TÚMULO DE UM MENINO O invólucro de um anjo aqui descansa Alma do céu nascida entre amargores, Como flor entre espinhos! — Tu que passas, Não perguntes quem foi. — Nuvem risonha Que um instante correu no mar da vida; Romper da aurora que não teve ocaso, Realidade no céu, na terra um sonho! Fresca rosa nas ondas da existência, Levada à plaga eterna do infinito, Como oferenda de amor ao Deus que o rege; Não perguntes quem foi, não chores: passa. Virtuosismo rítmico Uma descrição fantástica da fúria da natureza. O poe- ta utiliza todos os metros da língua, desde o dissílabo que traduz rapidez, até o endecassílaboque sonoriza o auge da tempestade, passando por diversos movimentos sono- ros como uma sinfonia. A TEMPESTADE Um raio Fulgura No espaço Esparso, De luz; Vem a aurora Pressurosa, Cor de rosa, Que se cora De carmim; O sol desponta Lá no horizonte, Doirando a fonte, E o prado e o monte E o céu e o mar; Oh! vede a procela Infrene, mas bela, No ar s’encapela Já pronta a rugir! 22 Gonçalves Dias Últimos Cantos Não solta a voz canora No bosque o vate alado, Que um canto d’inspirado Tem sempre a cada aurora; Fogem do vento que ruge As nuvens aurinevadas, Como ovelhas assustadas Dum fero lobo cerval; Disseras que viras vagando Nas furnas do céu entreabertas Que mudas fuzilam, — incertas Fantasmas do gênio do mal! Logo um raio cintila e mais outro, Ainda outro veloz, fascinante, Qual centelha que em rápido instante Se converte d’incêndios em mar. Um som longínquo cavernoso e oco Rouqueja, e n’amplidão do espaço morre; Eis outro inda mais perto, inda mais rouco, Que alpestres cimos mais veloz percorre, Troveja, estoura, atroa; e dentro em pouco Do Norte ao Sul, — dum ponto a outro corre: Devorador incêndio alastra os ares, Enquanto a noite pesa sobre os mares. Nos últimos cimos dos montes erguidos Já silva, já ruge do vento o pegão; Estorcem-se os leques dos verdes palmares, Volteiam, rebramam, doudejam nos ares, Até que lascados baqueiam no chão. Da nuvem densa, que no espaço ondeia, Rasga-se o negro bojo carregado, E enquanto a luz do raio o sol roxeia, Onde parece à terra estar colado, Da chuva, que os sentidos nos enleia, O forte peso em turbilhão mudado, Das ruínas completa o grande estrago, Parecendo mudar a terra em lago. Inda ronca o trovão retumbante, Inda o raio fuzila no espaço, E o corisco num rápido instante Brilha, fulge, rutila, e fugiu. Deixando a palhoça singela, Humilde labor da pobreza, Da nossa vaidosa grandeza, Nivela os fastígios sem dó; Cresce a chuva, os rios crescem, Pobres regatos se empolam, E nas turvas ondas rolam Grossos troncos a boiar! Os troncos arrancados Sem rumo vão boiantes; E os tetos arrasados, Inteiros, flutuantes, Dão antes crua morte, Que asilo e proteção! Porém no ocidente Se ergue de repente O arco luzente, De Deus o farol; Nas águas pousa; E a base viva De luz esquiva, E a curva altiva Sublima ao céu; Tal a chuva Transparece, Quando desce E ainda vê-se O sol luzir; 23 Gonçalves Dias Últimos Cantos A folha Luzente Do orvalho Nitente A gota Retrai: Vacila, Palpita; Mais grossa Hesita, E treme E cai. Poema autobiográfico. O convívio com a irmã, bem mais nova. Sofrimento com a morte do pai a quem assistiu no leito de morte. A viagem para a Europa, o sofrimento no exílio como ele chamava, o clima frio e nublado da Europa. A frustração de não ter filhos, nem poder conviver com os filhos de sua irmã. SAUDADES A minha irmã Eras criança ainda; mas teu rosto De ver-me ao lado teu se espanejava A luz fugaz de um infantil sorriso! ... A luz de uma razão que desabrocha, As leves graças, que a inocência adornam, Os infantis requebros, as meiguices De uma alma ingênua e pura – em ti brilhavam. ... O mudo, amargo pranto que eu vertia, Anúncio triste foi de uma desdita, Qual jamais sentirás: teus tenros anos Pouparam-te essa dor, que não tem nome. De quando sobre as bordas de um sepulcro Anseia um filho, e nas feições queridas Dum pai, dum conselheiro, dum amigo O selo eterno vai gravando a morte! Escutei suas últimas palavras, Repassando de dor! – junto ao seu leito, De joelhos, em lágrimas banhado, Recebi os seus últimos suspiros. ... O encanto se quebrara! – duros fados Inda outra vez de ti me separavam. ... Parti! sulquei as vagas do oceano; Nas horas melancólicas da tarde, Volvendo atrás o coração e o rosto, Onde o sol, onde a esperança me ficava, Misturei meus tristíssimos gemidos Aos sibilos dos ventos nas enxárcias! ... Subitâneo tufão arrebatou-me, Perdi a verde relva, o brando ninho, Nem jamais casarei doces gorjeios Ao saudoso rugir dos meus palmares; ... Largo espaço de terras estrangeiras E de climas inóspitos e duros Interpôs-se entre nós! – Ao ver nublado Um céu de inverno e as árvores sem folhas, De neve as altas serras branqueadas, E entre esta natureza fria e morta A espaços derramadas pelos vales Triste oliveira, ou fúnebre cipreste, O coração se me apertou no peito. ... Tão louco estava então, – dores tão cruas, Mágoas tantas depois me acabrunharam, Que desse meu passado extinta a ideia, Deixou-me apenas um sofrer confuso, Como quem de um mau sonho se recorda! ... Rotos na infância os laços de família, Os fados me vedavam reatá-los, Ter a meu lado uma consorte amada, Rever-me na afeição dos filhos caros, Viver neles, curar do seu futuro E neste empenho consumir meus dias; ... Um tufão me expeliu do pátrio ninho. As tardes dos meus dias borrascosos Não terei de passar, sentado à porta Do abrigo de meu país, – nem longe dele, Verei tranquilo aproximar-se o inverno, E o pôr-do-sol dos meus cansados anos! Considerações e reflexões sobre o mundo, a vida, o tempo, o amor, a criação em geral. 24 Gonçalves Dias Últimos Cantos A HARMONIA [...] E o giro perene Dos astros, dos mundos Dos eixos profundos No eterno volver; Do caos medonho A triste harmonia, Da noite sombria No eterno jazer, – Quem ouve? – Os arcanjos Que os astros regulam, Que as notas modulam Do eterno girar. ... E as aves trinando, E as feras rugindo, E os ventos zunindo Da noite no horror, Também são concertos; Mas esses rugidos E tristes gemidos E incerto rumor, – Quem houve? – O poeta Que imita e suspira Nas cordas da lira Mais doce cantar. PROTESTO Ainda quando os homens te odiassem, E anátema contra ti gritasse o mundo, Por ti sentira amor, te amara sempre, Te amara eternamente. A UNS ANOS No segredo da larva delicada A borboleta mora, Antes que veja a luz, que estenda as asas, Que surja fora! A flor antes de abrir-se, se recata; No botão se resume, Antes que mostre o colorido esmalte, Que espalhe seu perfume. ... De graças cheia, a delicada virgem Da vida no verdor, Semelha à borboleta melindrosa, Semelha a linda flor. A HISTÓRIA ... Eis a História! – um espelho do passado, Folhas do livro eterno desdobradas Aos olhos dos mortais; – aqui, sem manchas, Além golfeja sangue e sua crimes. Tal foi, tal é: retrato desbotado, Onde se mira a geração que passa, Sem cor, sem vida, – e ao mesmo tempo espelho, Que há de ser nova cópia à gente nova, Como os anos aos anos se sucedem. Ondas de mar sereno ou tormentoso, As mesmas na aparência, que se quebram Sobre as de areia flutuantes praias. MENINA E MOÇA É leda a flor que desponta Sobre o talo melindroso, E o rebento viçoso Crescendo em flóreo tapiz; É doce o romper da aurora, Doce a luz da madrugada, Doce o luzir da alvorada, Doce, mimoso e feliz! ... Porque tudo, quando nasce, Seja a luz da madrugada, Seja o romper da alvorada, Seja a virgem, seja a flor; Tem mais amor, tem mais vida, Como celeste feitura, Que sai melindrosa e pura Dentre as mãos do Criador. 25 Gonçalves Dias Últimos Cantos URGE O TEMPO Urge o tempo, os anos vão correndo, Mudança eterna os seres afadiga! O tronco, o arbusto, a folha, a flor, o espinho, Quem vive, o que vegeta, vai tomando Aspectos novos, nova forma, enquanto Gira no espaço e se equilibra a terra. ... Tudo se muda aqui! Somente o afeto, Que se gera e se nutre em almas grandes, Não acaba, não muda; vai crescendo, Com o tempo avulta, mais aumenta em forças, E a própria morte o purifica e alinda, Semelha estátua erguida entre ruínas, Firme na base, intacta, mais bela Depois que o tempo a rodeou de estragos. DESALENTO Nascer, lutar, sofrer, – eis toda a vida: De esperança e de amor um raio breve Se mistura e confunde Às cruas dores de um viver cansado, Como raio fugaz que luz nas trevas Para as tornar mais feias! ... Se a mão do poderoso, a mão dourada Do crime impune – esbofeteia as faces Do homem vil, que a beija! Oh! Meus irmãos não são, não são os filhos Desta pátria que eu amo,
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