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FELICIDADE CLANDESTINA Clarice Lispector 1. FELICIDADE CLANDESTINA Lembranças da infância da autora em Recife. Ela gostava de ler. Sua situação financeira não era suficientemente boa para comprar livros. Por isso, ela vivia pedindo-os emprestados a uma colega que não gostava de ler e que era filha de um dono de livraria. Essa amiga da protagonista é descrita como uma menina rica, baixa e sardenta, com um enorme talento para a crueldade. Certo dia, a filha do livreiro informou à narradora que podia emprestar-lhe “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, mas que fosse buscar o livro em sua casa. A protagonista passa a sonhar com o livro. Mal sabia que a colega queria exercitar sua crueldade. Todos os dias, invariavelmente, o empréstimo do livro era adiado, pelos mais diversos motivos: ou já estava emprestado, ou estava de manhã, mas à tarde não estava mais... Enfim, esse suplício durou muito tempo até que, certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversa das duas e percebeu a atitude da filha; então, emprestou o livro à sonhadora por tanto tempo quanto desejasse: “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter... Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim... Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante”. 2. UMA AMIZADE SINCERA O narrador conheceu um colega de escola no último ano de estudo. Desde então, tornaram-se amigos inseparáveis. Quando não conversavam pessoalmente, falavam-se pelo telefone conversavam sobre tudo e a todo tempo. Mas, aos poucos, a amizade entre ambos vai esfriando por falta de novidades, os assuntos começaram a faltar. Às vezes, marcavam encontro e, não tendo sobre o que conversar logo se despediam embora se ressentissem da solidão ao chegarem a casa: “Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo... todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo”. Passaram a dividir o mesmo apartamento, e apesar de se sentirem alegres, a falta de assunto persistia. Só se sentiam amigos, nada mais. As férias foram angustiantes. A solidão de um ao lado do outro era incômoda demais. Quando o amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura, o narrador fez disso pretexto para uma intensa movimentação, agora tinham sobre o que comentar e exageravam nas palavras e nos detalhes de pouca importância. Foi então que o narrador entendeu por que os namorados se presenteiam, por que marido e mulher cuidam um do outro e por que as mães multiplicam o zelo pelos filhos: é para terem oportunidade de ceder a alma um ao outro. A pretexto de férias, arrumaram justificativas para viajarem sozinhos para junto de suas famílias. Sabiam que nunca mais se veriam novamente. “Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.” 3. MIOPIA PROGRESSIVA Se era inteligente, não sabia. Ser ou não ser inteligente dependia da instabilidade dos outros. A chave de sua inteligência escapava ao menino, pois, as mesmas coisas que às vezes provocavam sutis reações de admiração nos adultos, outras vezes eram ignoradas. Sua inteligência dependia do estado de espírito deles? E o menino pestanejava de curiosidade, FELICIDADE CLANDESTINA DOM CASMURRO SÃO BERNARDO O PAGADOR DE PROMESSAS denunciando um início de miopia. Passou a pestanejar e a franzir o nariz para denunciar e aprofundar a própria perplexidade. A aceitação da incerteza e do fato de ninguém ter a chave fê-lo crescer normalmente e viver em serena curiosidade. A instabilidade dos familiares passou para ele, e manteve pelo resto da vida: pestanejava e franzia o nariz, deslocando os óculos que usava por causa da miopia. Toda vez que desenvolvia esse cacoete, era sinal de que estava interiormente tendo noção de sua instabilidade. Certa vez, disseram-lhe que passaria o dia inteiro na casa de uma prima casada, sem filhos, que adorava crianças. Ali, pressentiu ele, não haveria instabilidade: o tempo todo seria julgado o mesmo menino. Na semana que antecedeu a esperada visita, a cabeça do menino ferveu, pois não sabia de que forma iria apresentar-se diante da prima. Sentia até um aperto no estômago quando antecipava a situação de que ia ser amado sem seleção, sem escolha, o que represen- tava uma estabilidade ameaçadora. Aos poucos, suas preocupações passaram a ser outras: que elementos ele daria à prima para ela ter certeza de quem ele era? Como encararia o amor que ela nutria por ele? Ao entrar na casa da prima, duas surpresas o desnortearam (ele se desnorteava com surpresas): 1) a prima tinha um dente de ouro no lado esquerdo da boca; 2) ela o recebeu com naturalidade, sem evidenciar amá-lo. Já que suas previsões foram por terra, resolveu brincar de não ser nada. No entanto, à proporção que o dia avançava, o amor da prima se evidenciava mais. Era um amor sem gravidez: ela queria que ele tivesse nascido dela; por isso demonstrava o amor estável, a estabilidade do desejo irrealizável. Amor que incluía paixão, a paixão pelo impossível. Quando o menino descobriu o ingrediente da paixão no amor, ele perdeu a miopia e viu o mundo claramente. Foi como se ele tivesse tirado os óculos e a própria miopia o fizesse enxergar. Desde então, talvez, ele adquiriu o novo hábito de tirar os óculos a pretexto de limpá-los “e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.” 4. RESTOS DO CARNAVAL Novamente, as lembranças da infância de Clarice. A menininha de Recife gostava de carnaval. Entretanto, a atenção da família se concentrava na doença da mãe; por isso, permitia-se pouca participação da menina na folia: ficava até onze horas da noite, ao pé da escada do sobrado onde morava, olhando os outros se divertirem. Ela não se fantasiava; porém, cheia de felicidade, se assustava com os mascarados e até conversava com alguns deles. E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara À porta de meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. A seu pedido a irmã frisava-lhe os cabelos, pintava sua boca de batom bem forte e passava ruge nas faces e ela se sentia bonita e feminina e fugia da meninice. Tinha oito anos quando o seu carnaval foi diferente. A mãe de uma amiguinha fantasiou a filha de rosa (flor), usando papel crepom; com as sobras, fez a mesma fantasia para a protagonista. Na expectativa do momento de vestir a fantasia, a euforia era tanta que até superou o orgulho ferido de ganhar um presente apenas por ter sobrado papel. Entretanto, quase na hora de ser fantasiada, sua mãe subitamente piorou de saúde. Coube à menina, já com a roupa, mas ainda sem os cabelos enrolados e sem maquiagem, correr pela rua para buscar remédio. Mais tarde, acalmada a crise da mãe, ela saiu com a fantasia completa. Porém, o encantamento já não existia mais: “(...) não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começavaa ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.” Só horas depois veio a compensação: um garoto de doze anos encheu a cabeça dela de confetes: “Considerei pelo resto da noite que alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.” 5. O GRANDE PASSEIO Uma velhinha pobre andava pelas ruas. Era apelidada de Mocinha. Havia sido casada, tivera dois filhos: todos morreram e ela ficou sozinha. Depois de dormir em vários lugares, Mocinha acabou, não se sabia por que, passando a dormir sempre nos fundos de uma casa grande no bairro Botafogo. Cedinho ela saía “passeando”. Na maior parte do tempo, a família moradora da casa se esquecia dela. Certo dia, a família achou que Mocinha já estava lá por muito tempo. Resolveram levá-la para Petrópolis, entregá-la na casa de uma cunhada alemã. Um filho da casa, com a namorada e as duas irmãs, foi passar um fim-de-semana lá e levou Mocinha. Na noite anterior, a velhinha não dormiu, ansiosa por causa do passeio e da mudança de vida. Como se fossem flashes descontínuos, vinham-lhe à cabeça pedaços de recordações de sua vida no Maranhão: a morte do filho Rafael atropelado por um bonde; a morte da filha Maria Rosa, de parto; o marido, contínuo de uma repartição, sempre em manga de camisa – ela não conseguia se lembrar do paletó... Só conseguiu dormir de madrugada. Acordaram-na cedo e a acomodaram no carro. A viagem transcorreu para Mocinha entre cochilos e novos flashes de memória com cenas entrecortadas da vida passada. Foi deixada perto da casa do irmão do rapaz que dirigia, Arnaldo; indicaram-lhe o caminho e recomendaram que dissesse que não podia mais ficar 2 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 3 na outra casa, que Arnaldo a recebesse, que ela poderia até tomar conta do filho... A alemã, mulher de Arnaldo, estava dando comida ao filho; deixou Mocinha sentada sem lhe oferecer alimento, aguardando o marido. Este veio, confabulou com a mulher e disse a Mocinha que não poderia ficar com ela. Deu-lhe um pouco de dinheiro para que tomasse um trem e voltasse para a casa de Botafogo. Ela agradeceu e saiu pela rua. Parou para tomar um pouco de água num chafariz e continuou andando, sentindo um peso no estômago e alguns reflexos pelo corpo, como se fossem luzes. A estrada subia muito. “A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde. Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco de árvore e morreu.” 6. COME, MEU FILHO A mãe dá comida ao filho Paulinho e ele fica puxando conversa para evitar ter de comer. As pergun- tas que ele faz são desconexas, simples pretextos para não comer. A mãe, paciente, vai respondendo laconica- mente e insistindo em que Paulinho não converse tanto e coma. No fim, ele pergunta se é verdade que adivinhou que ela o olha daquele jeito não é para ele comer, mas porque gosta dele. A mãe diz que ele adivinhou sim, mas torna a insistir em que ele coma. Paulinho retruca: “– Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece”. 7. PERDOANDO DEUS Um profundo questionamento a respeito da natureza de Deus. Andando pela Avenida Copacabana, a narradora teve uma sensação inédita: sentiu-se a mãe de Deus, o qual era a própria Terra, o mundo. Teve um carinho maternal por Deus. Foi quando ela pisou num rato morto. Encheu-se de susto e pavor como uma criança. Então revoltou-se contra Deus. Por que num momento de tanta beleza interior ela tinha topado exatamente com um rato? Teve vontade de negar que Deus existisse como Deus, mas percebeu que esse pensamento é a vingança dos fracos quando tomam consciência de sua fraqueza. Concluiu que a sensação tão solene que tivera era falsa, pois estivera amando um mundo que não existe. Finalmente, ficou esclarecido na mente dela que estava querendo amar a um Deus só porque ela não se aceitava. Ela estaria amando um Deus que seria seu contraste, esse Deus seria apenas um modo de ela se acusar pois, como ela afirma: “Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo da minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe”. 8. TENTAÇÃO À tarde, sentada nos degraus de uma escada, numa rua deserta do Grajaú, a menininha pobre, ruiva, solitária estava com um soluço seco a incomodá-la. Nisso, veio passando um cachorro basset também ruivo. Parou diante da menina, sem latir. Fitaram-se silenciosamente. Sem emitir som, eles se pediam: um solucionaria o problema de solidão do outro. O cachorro foi embora. Incrédulos, os olhos da menina acompanharam-no até vê-lo dobrar a outra esquina: “Mas ele foi mais forte do que ela. Nem uma só vez olhou para trás.” 9. O OVO E A GALINHA “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.” A simples visão de um ovo sobre a mesa desperta na autora uma série de complexas e, até mesmo, confusas reflexões metafísicas sobre o fato de ser, ver e entender a existência, a eternidade do simples fato de ser, o princípio de qualquer tipo de criação, a semente da vida, representada pelo ovo que existe no íntimo, no útero da mulher. E ela, trabalhando e recebendo dinheiro pelo seu trabalho de criação literária, sente-se a própria galinha que, sem saber de nada, carrega em si o ovo. Sem o ovo, a galinha não tem sentido. Ela é o meio de transporte para o ovo, tonta, desocupada e míope. O ovo é sempre o mesmo, o mistério; a galinha é sempre a tragédia de cada época. O ovo tem sua forma definida; a galinha continua sendo redesenhada: “Ainda não se achou a forma mais adequada para uma galinha. (...) O seu destino é o ovo, a sua vida pessoal não nos interessa.” A realidade cotidiana, os afazeres domésticos, os filhos a obrigam a quebrar o ovo para matar a fome A galinha prejudicial ao ovo é aquela que só pensa em si, que não quer sacrificar sua vida. Os homens são os agentes da vida. Os que têm amor são os que participam um pouco mais da vida. Mas, como o amor é a desilusão de tudo o mais, poucos amam, porque a maioria não suporta perder as outras ilusões. “Inclusive amor é a desilusão do que se pensava que era amor.” Os homens existem para que o ovo se faça. Aqueles que não entendem isso, suicidam-se ou são eliminados. 10. CEM ANOS DE PERDÃO Lembranças da infância em Recife. A menina e sua colega olhavam para os palacetes e disputavam a posse imaginária deles. Um dia, a menina viu uma rosa e apanhou-a, tomando cuidado para não ser vista. Enquanto ela colhia as rosas a fim de levar para casa, a colega vigiava. O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha. Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho. Foi tão bom. Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. As duas, utilizando-se de tal estratégia, com o coração batendo e sempre com aquela glória, passaram a furtar rosas com frequência. Além de rosas, furtavam também pitangas. “Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e pitangas tem cem anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem pra ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.” 11. A LEGIÃO ESTRANGEIRA A narradora recebeu, às vésperas do Natal, um pinto de presente, vindo de uma família hindu, soberba, retraída e agressiva, que fora vizinha dela e inexplicavelmente sumira. Então, ela se lembrou de Ofélia, a filha de oito anos dessa família. Eram pessoas que bloqueavam qualquer intimidade, mas Ofélia adquiriu o hábito de visitar a narradora todos os dias. Enquanto esta ficava à máquina de escrever, trabalhando em sua profissão de copiar o arquivo de um escritório, Ofélia sentava-se,olhava para ela e dava conselhos, muito formal, como se fosse uma adulta cheia de sabedoria. A narradora ouvia, dificilmente falava, sempre a última palavra era da menina, numa postura antipática. Certo dia, a narradora comprou na feira um pinto para os filhos, ainda pequenos, brincarem. Quando Ofélia chegou para a visita habitual, ouviu o piar do pinto, pediu para vê-lo e pegá-lo. Nesse instante, perdeu a pose de adulta e se tornou uma criança brincando com o pintinho. Depois o deixou na cozinha, despediu-se e voltou para a casa dela. Seguindo uma intuição, a narradora, logo após a saída da menina, foi à cozinha e encontrou o pinto morto. O pinto recebido hoje estremece embaixo da mesa. “Como na Páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu (...)” 12. OS OBEDIENTES Neste conto, após uma introdução metalinguística sobre o processo da escritura de um texto a partir de um fato comum, a autora utiliza um esquema dual: A interagindo com B. O casal a princípio se identifica com a normalidade, avessos à palavra essencial, atingem a idade crítica. Até então, a simetria lhes era a arte possível. O resto da narrativa mostra como a mulher, tendo dado uma mordida numa maçã, sentiu quebrar-se um dente da frente. Rapidamente o texto mostra como os dois sucumbem tragicamente ao passo do desequilíbrio descoberto. A história do casal revela uma harmonia aparentemente perfeita, e essa vida sem emoções e tão metódica conduz a um trágico desfecho, após uma tentativa de viver mais intensamente, para terem o que contar a si mesmos. Eles não tinham o que contar. Depois que tudo aconteceu, diziam deles apenas que eram gente boa. E só. Cumpriam com perfeição a rotina, totalmente obedientes ao que se convencionou chamar de realidade de um casal, inclusive quanto à fidelidade. Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam algo de inconveniente. Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos começaram a ter alguns sonhos. Cada um pensava timidamente em seu interior: ele imaginava que muitas aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro homem a salvaria. Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu quebrar-se um dente da frente. Olhou-se no espelho do banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade, com um dente quebrado, e os próprios olhos...” Então, jogou-se pela janela. “Quanto a ele, uma vez seco o leito do rio e sem nenhuma água que o afogasse, ele andava sobre o fundo sem olhar para o chão (...) Seco inesperadamente o leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o fundo com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais adiante”. 13. A REPARTIÇÃO DOS PÃES Convidados para um almoço de sábado, compareceram à casa da anfitriã. Todos vieram por obrigação, gostariam de estar com outras pessoas. Ficaram constrangidos e incomunicáveis antes de serem convidados para a sala de jantar. Quando entraram na sala do almoço, surpreenderam-se com o requinte da refeição: uma quantidade excessiva de legumes e frutas, leite, vinho e outras especiarias. Todos comeram em nome de nada, era hora de comer e, à medida que comiam, veio a fome. Estabeleceu-se uma cordialidade rude: ninguém falou de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. A comida dizia: come, come e reparte. Assim se expressa a narradora: “Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade nenhuma.” E termina: “Nós somos fortes e comemos. Pão é amor entre estranhos.” 4 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 14. UMA ESPERANÇA Uma esperança – um inseto que se chama esperança – pousou na parede da casa da narradora. Ela e os filhos ficaram observando a esperança andar, sem voar: “Ela esqueceu que pode voar, mamãe.” Uma aranha saiu de trás do quadro e avançou em direção à esperança, mas rapidamente um dos filhos a mata. A narradora se espanta de não ter apanhado a esperança. Lembrou-se de certa vez que uma esperança pousou no seu braço. “Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não aconteceu nada” 15. MACACOS Perto do Ano-Novo, a família ganhou um mico de presente. Era um macaco ainda não crescido, que não dava sossego a ninguém. A dona da casa-narradora estava exausta. Uma amiga entendeu o sofrimento dela e chamou uns meninos do morro. Eles levaram o macaco. Um ano depois, a narradora comprou uma macaquinha nas mãos de um vendedor em Copacabana. Era delicada e recebeu o nome de Lisette. Vestiram-na de mulher e ela encantava a todos. Três dias depois, Lisette estava na área de serviço sendo admirada pela família. Ela encantava a todos, sobretudo pela doçura. Só que não era doçura, era a morte chegando. Levaram-na rapidamente para o veterinário, enfrentando um trânsito difícil. Ela estava tendo falta de oxigênio. Deixaram-na na clínica e, no dia seguinte, morreu. Uma semana depois, o filho mais velho disse para a mãe: “Você parece tanto com Lisette! ‘Eu também gosto de você’, respondi.” 16. OS DESASTRES DE SOFIA A narradora recorda o que lhe aconteceu quando tinha nove anos. Ela gostava do professor gordo, grande, silencioso, feio. Era atraída por ele. Mas infernizava as aulas. A menina fazia este jogo: amava-o atormentando-o. Não estudava nem aprendia nada. Em suas considerações analíticas embrionárias, Sofia já estava começando a tirar a moral das histórias, só que o sentido que dava era diverso do que previa o professor e o resto da classe. Segundo o professor: um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara muito rico; acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e continuava sem achar o tesouro; cansado voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto começara a vender que terminara ficando rico. Segundo Sofia: Provavelmente o que o professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho árduo era o único modo de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que falei de sujos quintais com tesouros. A menina fez uma redação rápida, doida para ir correr no pátio do colégio que era enorme, cheio de árvores. Entregou logo o caderno e foi correr no pátio. Mas, logo depois, ela se lembrou de ir procurar algo que deixara na sala e lá encontrou o professor sozinho. Pela primeira vez, ficou frente a frente com ele, paralisada de medo e de confusão nos seus sentimentos. O professor mandou que apanhasse o caderno e ela não conseguiu, tamanha foi a sua perturbação. Pela primeira vez, ele riu e disse que ela era engraçada e doidinha: onde tinha tirado aquela ideia de tesouro disfarçado? A redação estava bonita. A menina teve a sensação de ele ter-se deixado enganar: havia acreditado nela. Pensou que um homem adulto acreditava, como ela, nas grandes mentiras. Sem pegar o caderno, a menina voltou correndo para o recreio e correu tanto no parque até ficar exausta. Era uma maneira quase desesperada de se defrontar com a perturbação que a tomou. Naquele momento, perdeu a fé nos adultos, pois acreditava na sua futura bondade, superando a fase má infantil. No entanto, o amargo ídolo havia caído na armadilha de uma criança “safadinha”, confusa, sem candura; deixara-se guiar pela sua diabólica inocência... Quem sabe ele estaria pensando que ela era um tesouro disfarçado? “O professor agora destruía meu amor por ele e por mim (...) Aquele homem também era eu.” A menina foi subitamente forçada a amadurecer, a descobrir que ela conseguira atingir o coração do professor. “E foi assim que no grande parque do colégio lentamente comecei a aprender a ser amada, suportando o sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem ama.” 17. A CRIADA Na aparência comum, quase insignificante de uma jovem doméstica, a narradora descobre, ou pelos menos entrevê, uma profundeza de mistérios,uma floresta de sonhos e reflexões onde a moça volta e meia mergulha na busca de conforto, de essência de sabe lá o quê que a deixa serena, segura, com uma maneira fugitiva de comer o pão. Eremita era uma empregada doméstica que nada mais apresentava a não ser o perfil de uma criada: nem bonita nem feia, cumpria seus deveres sem competência e sem desleixo; mas, por trás da figura-padrão e das fra- ses convencionais pronunciadas rotineiramente, escon- dia-se um mundo interior indecifrável para qualquer pessoa, inclusive para ela mesma. De vez em quando, interiorizava-se, desligava-se; quando retornava desse FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 5 passeio por sua floresta íntima, estava mais calma e ia consolidando a sua doçura próxima das lágrimas. “No resto era serena. Mesmo quando tirava o dinheiro que a patroa esquecia sobre a mesa, mesmo quando levava para o noivo em embrulho discreto alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela também aprendera em suas florestas.” 18. A MENSAGEM Trabalhando sobre a linguagem, a narradora contraponteia um rapaz e uma moça que se articulam por um código especial. Classificam o mundo e a si mesmos através de palavras comuns, a que dão um sentido especial: coincidência, evoluindo, superei, autênticos, verdade, normalidade, mensagem, poesia, etc. Numa primeira fase rapaz e moça se consideram diferentes dos outros. Tanto se identificam entre si que são sexualmente chamados de híbridos. Depois que lhes ocorre a epifania – ladeados por um ônibus que avança, uma fachada de casa e um cemitério – descobrem a artificialidade de sua constituição. O resto do conto é o desmonte dos personagens, fazendo-os perceber melhor o seu próprio mundo e o mundo dos outros, até que se aproximando dos animais atingem o máximo de desamparo. Ele tinha dezesseis anos e ela dezessete. Colegas de escola sem outras amizades, sentiram-se ligados porque ela disse que também sentia angústia como ele. A partir de então se tornaram íntimos. Intimidade que não significava sexo nem amor. Eles se sentiram ligados porque ambos queriam ser autênticos, sinceros, diferentes dos outros. Não se viam como homem e mulher, mas como dois seres angustiados, à procura de algo que eles não sabiam o que fosse. Vagamente, confusamente, achavam-se portadores de uma mensagem. Mas o que era isso? Naquele último dia letivo, os dois caminhavam numa rua próxima do Cemitério S. João Batista, no Rio. A calçada era estreita e os ônibus passavam rentes. De repente, os dois se viram colados a uma casa velha. Pararam diante dela, olharam para a fachada. Em seu íntimo cada um foi se descobrindo ali, parados: ele era apenas um rapaz e ela, uma moça. Não tinham mais o que se dizer e por que continuarem juntos. Ela despediu-se, correu para um ônibus que estava parado. Entrou subindo como se fosse um macaco, pensou ele, vendo-a acomodar-se lá dentro. A moça saíra envergonhada por se sentir mulher; o rapaz tinha acabado de nascer homem: “Mas, atolado no seu reino de homem, ele precisava dela. Para quê? (...) para não esquecer que eram feitos da mesma carne, essa carne podre da qual, ao subir no ônibus, como um macaco, ela parecia ter feito um caminho fatal.” O que estava acontecendo a ele naquele momento em que viu a moça entrar no ônibus daquele jeito? Nada! Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Só que agora ele se sentia fraco para resistir ao que os outros tentavam ensinar-lhe para ser homem. “Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto. Mamãe, disse ele.” 19. MENINO A BICO DE PENA Cenas domésticas de rara beleza que despertam na mãe-narradora um sem-número de reflexões sobre a evolução do filho quanto ao autoconhecimento, à experiência do tato e do gosto, apalpando e lambendo a própria baba que caíra ao chão, quanto à exploração do espaço nos primeiros passos e no voo que vai do chão onde caiu sentado até os braços da mãe, a experiência da comunicação pelo choro e pelas palavras dizendo “fonfom” ao ouvir o ruído de um automóvel. Como conhecer jamais o menino? Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele próprio. Quanto a mim, olho, é inútil: não consigo entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o mesmo que será médico ou carpinteiro... Trinta mil desses meninos sentados no chão teriam eles a chance de construir um mundo outro, um que levasse em conta a memória da atualidade absoluta a que um dia já pertencemos? Não sei como desenhar o menino... Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo. 20. UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR Uma menina de Minas Gerais tinha duas galinhas: Pedrina e Petronilha. Cuidava delas como se fossem pessoas. Enfiava-lhes “remédios” goela abaixo quando julgava que estavam doentes. Certa vez, foi passar o dia fora e, quando voltou, Petronilha tinha sido comida pela família. Ficou contrariada. Mas a mãe lhe disse que foi pena as duas – ela e a filha – não terem comido algum pedaço de Petronilha, pois, quando a gente come os bichos, eles ficam parecidos com a gente, assim dentro de nós. Pedrina morreu naturalmente. Morte apressada pela menina que, ao vê-la doente, colocou-a embrulhada num pano escuro, em cima de um fogão de tijolos. Quando estava um pouco maior, a menina teve outra galinha, a Eponina. Esta foi comida ao molho pardo por toda a família, inclusive pela menina que, embora sem fome, quis que Eponina se incorporasse nela e se tornasse mais dela morta do que em vida. “Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.” 6 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 21. AS ÁGUAS DO MUNDO Às seis horas da manhã, a mulher entra no mar: este, a mais ininteligível das existências não humanas; ela, porque uma vez fizera uma pergunta sobre si mesma, o mais ininteligível dos seres vivos. Como numa entrega entre amantes, ela avança, abre o mar pelo meio, o frio arrepia-lhe as pernas, deixa-se cobrir pelas ondas, brinca com a água, com a concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes. “E era isso o que lhe estava faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela está toda igual a si mesma.” Mergulha de novo, de novo bebe mais água. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, não recebe transmissões. Depois caminha na água e volta à praia. Agora, pisa na areia. “E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano.” 22. A QUINTA HISTÓRIA Esta história poderia chamar-se “As estátuas”. Outro nome possível é “O assassinato”. E também “Como matar baratas”. Farei então pelo menos três histórias, verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra. A narradora conta que se queixou a uma vizinha de que subiam no seu apartamento as baratas que vinham do térreo. Então a vizinha lhe deu a seguinte receita para matar as baratas: misturar em partes iguais açúcar, farinha e gesso: “A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso esturricaria o de-dentro delas”. Assim foi feito, e as baratas morreram. Então a narradora conta a mesma história com cinco versões: “Como matar baratas” (exatamente a história acima); “O Assassinato” (em que são acrescentados pormenores do estado de espírito rancoroso da narradora); “Estátuas” (em que se destaca a visão das baratas mortas); na quarta versão, a narradora opta por dedetizar a casa; a quinta história só tem o título: “Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”. 23. ENCARNAÇÃO INVOLUNTÁRIA A narradora tem o hábito de, ao enxergar uma pessoa que nunca viu, observá-la e encarnar-se nela, para poder conhecê-la. Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária. Durante toda a viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-umamissão”. A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido ela mesma senão no momento de nascer, e no resto tenha sido apenas encarnações. Depois ela afirma que não, que ela é uma pessoa. Noutra ocasião, viu uma prostituta perfumadíssima que fumava entrefechando os olhos ao mesmo tempo em que “hipnotizava” o homem à sua frente e tentou fazer o mesmo: “Mas o homem gordo que eu olhava para experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava mergulhado no New York Times. E meu perfume era discreto demais. Falhou tudo”. 24. DUAS HISTÓRIAS A MEU MODO Uma vez, não tendo o que fazer, fiz uma espécie de exercício de escrever, para me divertir. E diverti-me. Tomei como tema uma dupla história de Marcel Aymé. Num processo metalinguístico, a autora faz um jogo de faz de conta entre o que Aymé escreveu, escrevendo porque não queria continuar a escrever como seria a história. Então é que ele para outra história. Na primeira história, Félicien era um vinicultor francês que produzia o melhor vinho da região, mas não gostava de vinho. Ele e a mulher Leontina escondiam de todo esse fato. Félicien costumava até fingir-se de alcoolizado para esconder que não bebia vinho. Na outra, Etienne Duvilé, funcionário estadual em Paris, gostava de vinho, mas não o tinha. Seu sogro comia sem parar, a família numerosa sonhava com mesa farta e ele, com vinho. Um dia Etienne sonhou mesmo. E a autora não deixa Marcel contar o sonho do homem e inventa outro final: Depois daquele sonho, a sede de vinho piorou. Ele passou, acordado, a querer não só beber vinho mas beber todo mundo, até o comissário de polícia. Até hoje ele está internado num hospício, tratado com água mineral “(...) que estanca sedes pequenas e não a grande”, enquanto Aymé espera que ele seja enviado à terra de Félicien que passou, não se sabe como, a gostar de vinho. 25. O PRIMEIRO BEIJO Um rapaz conta para sua namorada que já havia beijado outra mulher. Numa excursão de ônibus escolar, ele estava com muita sede. Quando houve uma parada perto de um chafariz, ele foi o primeiro a chegar para beber. Colou a boca no orifício de onde jorrava a água. Depois que se saciou, abriu os olhos e viu que o orifício era a boca de uma estátua de mulher nua. Afastou-se, ficou olhando para a estátua. Fora seu primeiro beijo. “E soube então que havia colado sua boca na boca da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra. Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador de vida... Olhou a estátua nua. Ele a havia beijado. [...] Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva... Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele... Ele se tornara um homem.” FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 7 DOM CASMURRO Machado de Assis O AUTOR Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908) era neto de escravos, órfão desde criança, sofreu com inúmeros problemas físicos nos olhos, nos intestinos, na fala com a gagueira, no sistema nervoso com a epilepsia. Apesar de tudo, com incrível força de vontade, talento e perseverança, superou as dificuldades de sua origem humilde, tornando-se uma unanimidade nacional, ainda em vida. De menino de rua, vendedor de balas, tornou-se aprendiz de tipógrafo, redator e colaborador de vários jornais, cronista, diretor do Diário Oficial, presidente da ABL, Diretor Geral da Viação. Casou-se aos 30 anos com D. Carolina Xavier Novais, que mesmo não lhe dando filhos foi sua querida companheira até que a morte a levou, em 1904 após trinta e cinco anos de convivência. A personagem D. Carmo Aguiar, mulher bondosa, serena, afetuosa e íntegra, do Memorial de Aires, de 1908, é uma homenagem póstuma do autor à sua saudosa esposa. O ESTILO O estilo machadiano é marcado pela objetividade, pela síntese e pela mestria com que utiliza a linguagem e todos os seus recursos, em períodos e capítulos curtos, densos e profundos. Ao se dirigir aos leitores em meio à narrativa, o autor ganha a cumplicidade do público para elaborar suas teorias e a compreensão do leitor para a estrutura da obra através de referências metalinguísticas. Insinuações e reticências Seus personagens por serem profundos e imprevisíveis são normalmente esféricos ou redon- dos. O pessimismo com que o autor vê a vida e a acidez com que desvenda e envenena todas as atitudes e senti- mentos humanos, são amenizados pela fina ironia e pelo humor sutil. A maneira de escrever de Machado de Assis, cheia de sutilezas, meios-tons, insinuações e reti- cências, serve perfeitamente de instrumento para se vasculhar e revelar os mistérios da alma humana. O autor deixa no leitor a impressão de que nada na vida é definitivo e se exime de tirar conclusões ou de fazer juízos de valor, transferindo ao público a responsabili- dade de elaborar suas próprias opiniões. Além das conversas com o leitor, em que o narrador não apenas comenta alguns aspectos da trama, mas também faz observações sobre a forma de apresentá-los, utilizando a linguagem numa função metalinguística, o emprego das reticências grafadas ou sugeridas transforma o leitor no coautor da obra. Não-linearidade O narrador desenrola os acontecimentos que não precisam, necessariamente, ser narrados na mesma ordem em que costumam ocorrer na vida real. Desaparece qualquer linearidade da narrativa; os vários episódios narrados não se enfileiram numa ordem cronológica verdadeira. As histórias se desfazem em fragmentos, unidos um ao outro pelas intervenções do narrador. A calma, o ritmo pausado com que Machado nos faz entrar no mundo de suas personagens, a completa ausência de pressa na narração dos episódios são outra forma de distanciamento. As ações se desenrolam preguiçosamente e o narrador, volta e meia, interrompe-as para fixar a sua (e a nossa) atenção em elementos circunstanciais e periféricos. É como se a história emperrasse, ficando suspensa por algumas linhas ou capítulos. Tudo previsto por Machado, em sua função de garantir distanciamento crítico. Machado desnuda as falsas virtudes, os interesses escusos, a caridade ostensiva, tudo, enfim, que constitui o avesso de uma vida socialmente digna e respeitável; ao narrar suas histórias, é cético quanto à sociedade brasileira e quanto à natureza humana. 8 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE A OBRA Dom Casmurro é o maior romance de Machado de Assis, aquele em que ele mais apurou o seu estilo e o seu gênio em desvendar a alma humana e ir ao fundo dos sentimentos, das ações dissimuladas, em busca da verdadeira face interior dos personagens. O título do livro reflete uma das características mais marcantes do protagonista masculino no crepúsculo da existência: a visão amarga e dolorida de quem foi traído e machucado pela vida, e, em consequência disso vai-se isolando e ensimesmando. O romance, publicado em 1899, é composto por 148 capítulos curtos. Neles o autor sonda e analisa a sociedade do Rio de Janeiro do século XIX. Explora temas polêmicos – adultério, suicídio e religião – apresentados por um observador arguto, o qual procura escancarar e interpretar o mundo que o cerca. Dom Casmurro é a narração, feita em primeira pessoa pelo próprio protagonista, da vida de Bento de Albuquerque Santiago, o Bentinho. A trajetória existencial recomposta vai do ano de 1857 até meados da década de 1890, quando o narrador, já quinquagenário, se debruça sobre o passado, apresentando-o e, ao mesmo tempo, analisando-o à distância. Disso resulta uma estrutura narrativa em que se alternam a narração da ação e a reflexão sobre a mesma. A narrativa vai lenta até o capítulo XCVII, a partir do qual se acelera, como declara o próprio narrador, ao dar-se conta da sua lentidão: “Agora não há mais que levá-la a grandes pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda, pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por meses, outrasvalerão por anos, e assim chegaremos ao fim” (Cap. XCVII). Assim, pois, até o capítulo XCVII, quando o narrador sai do seminário, “com pouco mais de dezessete anos”, focaliza-se, em câmera lenta, a infância e a adolescência, dada a necessidade do narrador traçar o perfil dos protagonistas da estória (Bentinho e Capitu), revelando, desde as entranhas, o caráter e as tendências de cada um: afinal, o adulto sempre se assenta no pilar da infância, como insinua Dom Casmurro, no final da narrativa, ao referir-se a Capitu: “Se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”. (Cap. CXLVIII) Escrito na primeira pessoa, em tom confidencial, serviu para que, livremente, Machado de Assis pudesse deixar nele muito de si, do seu temperamento, de sua visão pessimista e irônica do mundo. É possivel- mente um dos livros mais amargos da literatura em qual- quer país, mas o gênio do autor impregnou-o de tal sabedoria, de tal ironia e disfarçada malícia, que o trans- formou numa das grandes criações literárias do Brasil em todos os tempos. O leitor é convidado a vasculhar a mente intrincada do protagonista que, aos poucos, vai revelando seu interior. Assim, o amor, o ciúme e o caos psicológico são revelados apenas parcialmente ao leitor. A mente deste personagem, corroída de ciúme, provoca sequelas que recheiam a narrativa de ambiguidades, parcialidade e unilateralidade. Bentinho – à procura de um tempo feliz perdido no passado da infância e da ado- lescência – tenta sem sucesso atar as duas pontas da vida, revivendo no presente o que, infelizmente, já faz parte do passado. Como um “Otelo” à brasileira, Bentinho transfere para o leitor o encargo de decidir se Capitu é inocente ou culpada. A mais discutida personagem da ficção brasileira, e que até hoje suscita ensaios interpretações, exegeses e até livros, é inegavelmente Capitu, que para muitos ainda se afigura uma esfinge, pela sua complicada psicologia e pelo segredo que o autor deixou em suspenso e sem decifração, do possível adultério, apenas entrevisto nas desconfianças do marido Bentinho e nas semelhanças do filho com o provável amante. PERSONAGENS � Bento Santiago (Bentinho) – Depois de velho, narra o suposto triângulo amoroso em que viveu boa parte da vida. Com a consciência conturbada, misturando objetividade e ressentimento, vai desfiando o rosário de suas dúvidas e infelicidades até chegar à triste con- clusão de que fora covardemente traído. � D. Casmurro – O Bentinho, tímido e ingênuo que se espantava com as atitudes arrojadas de Capitu, torna-se um homem amargo, descrente e ensimes- mado. Torna-se um casmurro. Agora, velho, mora no Engenho Novo, numa casa que mandou construir idêntica à da rua Matacavalos, onde passara a infância e resolve passar a limpo sua vida escrevendo sua autobiografia que na realidade é um libelo de acusa- ção condenatória contra Capitu e Escobar. � D. Glória – é a mãe de Bentinho, viúva abastada com escravos alugados e uma dúzia de prédios. Ela o des- tinara ao sacerdócio e para tanto fizera uma promessa quando ele nascera. Ele se acostumara a essa ideia religiosa que era incentivada por todos os que viviam em torno de sua família, tios, tias, o agregado José Dias, o Padre. Mas um dia surgiu Capitu na vizinhança e lá se foram os projetos e propósitos de D. Glória. Bentinho apaixonou-se pela menina e viveram os dois, nesses primeiros anos, um belo e inocente idílio. Encontros furtivos, enlevos de crianças, beijinhos, abraços, tudo isso foi pouco a pouco se transformando no amor que os fez jurar, um dia, não se casarem jamais a não ser um com o outro. � José Dias – Agregado da casa de Bentinho, ali vivia há muito tempo. Vestia-se à moda antiga. Amava os superlativos. Opinava e era ouvido. Achava que Capitu, a vizinha por quem Bentinho, sem saber, estava apaixonado, tinha “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”. FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 9 � Tio Cosme – Já viúvo, vivia com a irmã, D. Glória, desde que esta enviuvara. Gordo e pesado, tinha a respiração curta e os olhos dorminhocos. � Capitu – Amiga e vizinha de Bento desde pequena, tem personalidade forte e a capacidade de sair-se bem em qualquer circunstância. Morena, longos cabelos, olhos perturbadores, “de ressaca”, que, na opinião de Bentinho, arrastam e destroem. Nunca admitiu a culpa a ela imputada pelo marido, mas também nunca fez grande esforço para desmenti-lo. Capitu é a figura central dessa história que se passa no Rio de Janeiro de meados do século XIX, em pleno II reinado, e na qual se fixam os costumes , o ambiente, a vida familiar, o meio social daquela época, como pano de fundo para um drama que lentamente se desenvolve na penumbra, numa aparência de felicidade, para explo- dir enfim na revelação final que é a própria negação de tudo, da beleza, da doçura e do carinho que alimenta- vam o idílio central do livro. Afirmar como era Capitu seria uma temeridade, a não ser que o fizéssemos por etapas. Ela aparece no romance, que é uma narrativa retrospectiva, ainda cri- ança. Morava na rua Matacavalos, vizinha do menino rico, deslumbrado com a sua beleza e graça. Na opinião de José Dias, agregado e amigo da casa de Bentinho, ela era uma desmiolada e vivia doida para fisgar algum peralta para marido. Tinha uns olhos que o diabo lhe deu “de cigana oblíqua e dissimulada”. Mas, para Bentinho, na sua obstinada paixão, ela era o sonho e o ideal de sua juventude amorosa e tinha uns “olhos de ressaca” que possuíam “um fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retirava da praia nos dias de ressaca”. Para a mãe de Bentinho ela era uma menina cândida e inocente. Afinal, para o mesmo Bentinho, no fim do livro e de suas vidas em comum, já roído de ciúmes e desconfi- anças atrozes, ela deixa de ser aquela figura ideal para revelar-se uma falsa e fingida mulher que o enga- nara a vida toda. Escobar foi o grande amigo que Bentinho, conheceu nos tempos de seminário. Conseguiu sair do internato com Bentinho que D. Glória, para não quebrar a pro- messa, colocasse lá um substituto. Escobar tornou-se amigo da família e casou-se com San- cha, amiga de Capitu. Os dois casais estreitaram relações. Escobar ganhou uma filha que recebeu o nome de Capitu, e Capitu deu a Bentinho um filho, que foi bati- zado com o nome de Ezequiel, primeiro nome de Esco- bar. A vida não se modificou por muito tempo. A amizade dos casais era cada vez maior, frequentavam-se constan- temente, porém, mais tarde, Bentinho recordará com estranheza algumas visitas inesperadas do amigo a Capitu, justo quando ele, Bentinho, estava fora, além das muitas semelhanças de seu filho com Escobar, aponta- das pelas más línguas e que ele próprio observara muitas vezes sem dar importância ao fato. Escobar morre afogado e o olhar que Capitu lança ao seu cadáver, na saída do enterro, dá a Bentinho a cer- teza de suas desconfianças e do adultério de Capitu. Passou, então, a observar com mais atenção a cres- cente semelhança do filho com o amigo morto. Os ciúmes se acentuaram e vieram as desconfianças, as brigas, a indiferença, a separação. Bentinho decide suicidar-se e num momento de loucura, pensa mesmo em matar o filho, mas desiste de um e outro intento. � Ezequiel, filho de Capitu e Bentinho, recebeu este nome o primeiro nome de Escobar. A gravidez de Capitu demorou a acontecer, causando até certos embaraços e constrangimentos ao casal, quando estavam em companhia de Sancha e Escobar. Logo nos primeiros anos, Bentinho começou a notar que o menino tinha trejeitos semelhantes aos de Esco- bar. Isto e mais a semelhança física que Bentinho foi percebendo com o correr dos anos vão confirmar (para ele) mais tarde as suspeitas sobre a “paternidade”. Bentinho, no auge da crise, pensa em envenenar Eze- quiel e a si mesmo, mas resolve apenas mandar Capitu e o filho para a Suíça, onde ela morre. No último encontro com Ezequiel, já adulto, Bentinho reconfirma as semelhanças e a certeza do adultério e procura dis- farçara versão que tem pelo moço. Ezequiel acaba morrendo no Oriente Médio, durante uma excursão, fato que traz alívio para o narrador. � Outros personagens – Prima Justina, Padre Cabral, Pádua (Tartaruga), Sancha... ENREDO A adolescência, o seminário Apoiando-se na teoria de um tenor, Machado de Assis declara que “a vida é uma ópera”, composta de trechos cantados a duas, três ou quatro vozes, como a vida de Bentinho e suas relações amorosas. Há uma fase em que o personagem canta (vive) um “duo terníssimo”, quando ele e Capitu convivem em idílio; depois a trama se complica com a presença de um terceiro (Escobar), que se instala para cantar (formar) um “trio”; finalmente ensaia um “quatuor”, na fantasia erótica em que Bentinho se envolve imaginariamente com Sancha. Aceito a Teoria Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio, depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava, porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi dada principalmente a mim. A mim é que ele me denunciou. (cap. X) Apesar do “duo terníssimo” de Bentinho e Capitu, Dom Casmurro é um romance de velhos e solitários (D. Glória, Tio Cosme, Pe. Cabral, José Dias, Prima Justina, 10 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 11 além do nosso casmurro narrador). Como é próprio de Machado de Assis a velhice no livro é perpassada de uma visão amarga e melancólica, dominada por mágoas e ressentimentos. Sem dúvida, é licito afirmar que, filtrada pela ótica do narrador, Machado de Assis insinua que a existência humana sempre desemboca na casmurrice e na solidão. Bentinho, aos 15 anos, fica sabendo – “descobre” – que está apaixonado por Capitu. Quem lhe conta isto, indiretamente, é José Dias. O menino, escondido, ouve quando o agregado aconselha D. Glória a colocá-lo no seminário logo, para cumprir a promessa que ela havia feito. Isto porque, se houvesse demora, depois ficaria muito difícil, pois, conforme afirmava: O rapazinho estava apaixonado pela vizinha! Capitu demonstra afeição por D. Glória, mas, quando Bentinho lhe diz que a mãe vai mandá-lo para o seminário, fica furiosa, esbraveja, chama-a de papa-missas, carola e beata. Em outras ocasiões, faz uma carinha angelical para se livrar de situações embaraçosas. Desde a ado- lescência, portanto, demonstra uma capacidade incrível de dissimulação como se estivesse já guardando a semente de mulher misteriosa, ambígua e dúbia que viria ser. Ela manipula Bentinho, domina-o, sabe o que quer, e orienta o rapazinho na luta estratégica para ele se livrar do seminário com a ajuda de José Dias. Os planos de Capitu e Bentinho fracassam e então, como último recurso, ele revela à mãe não ter vocação, o que também não a faz voltar atrás. Tio Cosme e prima Justina procuram não se envolver no problema. Assim, D. Glória, com o apoio do padre Cabral, decide finalmente cumprir a promessa e o envia ao seminário, prometendo, contudo, que se dentro de dois anos não revelasse vocação para o sacerdócio estaria livre para seguir outra carreira. Antes da partida, Bentinho e Capitu juram casar-se acontecesse o que acontecesse. No seminário, Bentinho chora e sofre horrores de saudades, solidão e ciúmes. Bentinho conhece outro seminarista, Ezequiel de Souza Escobar e os dois tornam-se amigos e confidentes. Em um fim de semana em que Bentinho visita D. Glória, Escobar o acompanha e é apresentado a todos, inclusive a Capitu. Esta, depois da partida de Bentinho, começara a frequentar assiduamente a casa de D. Glória, do que nascera, aos poucos, grande afeição recíproca, a ponto de D. Glória começar a pensar que se Bentinho se apaixonasse por Capitu e casasse com ela a questão da promessa estaria resolvida a contento de todos, pois Bentinho, que a quebraria, não a fizera, e ela, que a fizera, não a quebraria. Bentinho continuava seus esforços junto a José Dias, que, tendo fracassado em seu plano de fazê-lo estudar medicina na Europa, sugeria agora que ambos fossem a Roma pedir ao Papa a revogação da promessa. A solução definitiva, contudo, partiu de Escobar. Segundo este, D. Glória prometera a Deus dar-lhe um sacerdote, mas isto não queria dizer que este deveria ser necessari- amente seu filho. Sugeriu então que ela adotasse algum órfão e lhe custeasse os estudos. D. Glória consultou o padre Cabral, este foi consultar o bispo e a solução foi considerada satisfatória. Bentinho deixa o seminário, com cerca de 17 anos, e vai para São Paulo estudar, tornando-se cinco anos depois, o advogado Bento de Albuquerque Santiago. Por sua parte, Escobar, que também saíra do seminário, tornara-se um comerciante bem-sucedido, vindo a casar com Sancha, amiga e colega de escola de Capitu. Céu e inferno “Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a outra parte; casemo-nos”. Em l865, (cap. CI) Bento e Capitu finalmente se casam e vão morar no bairro da Glória. A felicidade do casal seria completa não fosse a demora em nascer um filho. Eles sentem “inveja” de Escobar e Sancha, que tinham tido uma filha, batizada com o nome de Capitolina. Depois de muita espera, preces e angústias, nasce Ezequiel, batizado com o mesmo nome de Escobar, para retribuir a gentileza do casal de amigos, que dera à filha o nome de Capitu. Ezequiel revela-se muito cedo uma criança inquieta e curiosa, tornando-se a alegria dos pais e servindo para estreitar ainda mais as relações de amizade entre os dois casais. A partir do momento em que Escobar e a Sancha, que moravam em Andaraí, resolvem fixar residência no Flamengo, a convivência entre as duas famílias torna-se completa e os pais chegam a falar na possibilidade de Ezequiel e Capituzinha, como era chamada a pequena Capitolina, virem a se casar. Bentinho, agora, depois de tantos anos, relembra as pontadas de ciúmes que sentia, quando, nos bailes, os lindos braços nus de Capitu chamavam a atenção admirada de todos. Lembra como, em outra ocasião, ficara intrigado com um dinheiro (dez libras) que Capitu, sem seu conhecimento, ganhara através de aplicações feitas por Escobar. Os ataques de ciúme, na época, iam-se tornando cada vez mais assíduos, envolvendo constantemente a figura do amigo: pequenos indícios, encontros furtivos... Vem-lhe à mente a ocasião em que ele, Bentinho, voltando mais cedo do teatro a que fora sozinho, encontrou Escobar chegando a sua casa. É o ponto de vista do narrador que começa a alterar os fatos? É tudo verdade, são enganos ou distorções propositais de Bentinho? Parece ou é verdade que... Escobar se torna um tanto distante... Capitu tem alguns modos estranhos... Ezequiel cada vez mais imita Escobar... D. Glória está tão triste?... Em 1871 Escobar, que gostava de nadar, morre afogado. No enterro, Capitu, que amparava Sancha, 12 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE olha tão fixamente e com tal expressão para Escobar morto que Bento fica abalado e “percebe claramente” que fora vítima de uma covarde traição. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.” (cap. CXXIII) Poucos dias depois, Sancha retira-se para a casa de parentes no Paraná. Bentinho se incomoda cada vez mais com as semelhanças de Ezequiel com Escobar, a tal ponto que o velho companheiro de seminário parece ressurgir fisicamente. As relações entre Bento e Capitu deterioram-se rapidamente. A solução de colocar Ezequiel num internato não se revela eficaz, já que Bento não suporta mais ver o filho, o qual por sua vez, se apega a ele cada vez mais, tornando a situação ainda mais crítica. Bento decide suicidar-se com veneno, então, depois de assistir à peça Otelo de Shakespeare, depois de se despedir das ruas e paisagens, entra em casa e no escritório coloca o venenono café. Indeciso, resolve esperar um pouco. A entrada de Ezequiel lhe dá uma ideia diabólica, decide dar o café envenenado ao filho. Mas, no último instante, recua e desabafa, transtornado, revelando ao menino não ser seu pai. Capitu ao entrar na sala ouve tudo e exige explicações afirmando que a semelhança de Ezequiel com Escobar é casual, atribuindo-a à vontade de Deus Para manter as aparências, o casal parte pouco depois rumo à Europa, acompanhado do filho. Bento retorna a seguir, sozinho. Trocam algumas cartas e Bento viaja outras vezes à Europa, sempre com o objetivo de manter as aparências, mas nunca mais chega a encontrar-se com Capitu. Tempos depois morrem D. Glória e José Dias. Bento retira-se para o Engenho Novo. Ali, certo dia, recebe a visita de Ezequiel de Albuquerque Santiago, que era então a imagem perfeita de seu velho colega de seminário. Capitu morrera e fora enterrada na Europa. Ezequiel permanece alguns meses no RJ e depois parte para uma viagem de estudos no Oriente Médio, já que era apaixonado por Arqueologia. Onze meses depois morre de uma febre tifoide em Jerusalém e é ali enter- rado. Mortos todos, familiares e velhos conhecidos, Bento/Dom Casmurro fecha-se em si, sem se isolar completamente alimentando algumas amizades e se consolando com inúmeras relações ocasionais.. S. BERNARDO Graciliano Ramos O AUTOR Este alagoano é considerado por muitos como o maior escritor brasileiro, depois de Machado de Assis. Além de grande escritor, Graciliano foi jornalista, prefeito, diretor da Imprensa e da Instrução estaduais, membro do Partido Comunista. Depois de trabalhar em jornais e com comércio, depois de enviuvar aos 28 anos e ficar responsável pela criação de quatro filhos, Graciliano Ramos tornou-se prefeito de Palmeira do Índios, foi descoberto como escritor e teve publicado seu primeiro livro, Caetés, em 1933. Nessa época, já vivia em Maceió como diretor da Imprensa Oficial do Estado e como diretor da Instrução pública de Alagoas e já fizera amizade com José Lins do Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado. Reconhecido e já consagrado como escritor, depois de publicar São Bernardo em 1934, foi preso em 1936 como subversivo, acusado de ligação com o Partido Comunista. Embora sem acusação formal, mandam-no de navio para o Rio de Janeiro onde vai ficar encarcerado durante nove meses. Durante o período de prisão do autor, José Olympio publicou Angústia. O depoimento sobre as experiências humilhantes que viveu, nas viagens de um presídio a outro e na vida carcerária, foram registradas dez anos depois no livro Memórias do Cárcere. Morreu no Rio de Janeiro, logo depois de regressar de uma Viagem feita à Rússia e a outros países comunistas. ESTILO O estilo de Graciliano Ramos mostra a influência que recebeu de seus autores prediletos, Machado de Assis e Eça de Queirós: a) Linguagem despojada, impessoal, econômica e elegante, que mistura a linguagem acadêmica do narrador com elementos da fala regional, mais coloquial: ...distraí-me ouvindo Padilha e Casimiro Lopes conversarem a respeito de onças. Não se entendem. Padilha, homem da mata e franzino, fala muito e admira as ações violentas; Casimiro Lopes é coxo e tem um vocabulário mesquinho. Julga o mestre-escola uma criatura superior, porque usa livros, mas para manifestar esta opinião arregala os olhos e dá um pequeno assobio. Gagueja. No sertão passava horas calado, e quando estava satisfeito, aboiava. Quanto a palavras, meia dúzia delas. Ultimamente, ouvindo pessoas da cidade, tinha decorado alguns termos, que empregava fora de propósito e deturpados. Naquele dia, por mais que forcejasse, só conseguia dizer que as onças são bichos brabos e arteiros. – Pintada. Dentão grande, pezão grande, cada unha! Medonha! b) Visão objetiva da realidade física, humana, política e econômica brasileira, especificamente da Região Nordeste, que leva ao extremo as tensões existentes no convívio das personagens com a sociedade, com o poder e com o meio ambiente: – A oposição não sabe o que diz. Nós temos lá oligarquia? Temos uma quantidade enorme de cavadores no poder. Só os congressistas! E os ministros, os presidentes, os governadores, os secretários, os políticos do sul. Muito dente roendo o tesouro. E que súcia! Veja os nossos representantes no congresso federal. c) Análise psicológica profunda que revela o íntimo das personagens e mostra, as deteriorações da personalidade provocadas pelas situações traumáticas. Resultado disso é o embrutecimento, a zoomorfização do ser humano. Afinal, cansado daquela vida de cigano, voltei para a mata. Casimiro Lopes, que não bebia água na ribeira do Navio, acompanhou-me. Gosto dele. É corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão. d) Criação de personagens-tipo que representam não indivíduos, mas classes e grupos sociais. Fabiano é o típico sertanejo sofrido; Paulo Honório é o típico fazendeiro capitalista e ganancioso; Luís da Silva é o típico intelectual frustrado, revoltado e marginalizado... Aos bancos solicitei empréstimos, ao governador comuniquei a instalação próxima de numerosas indústrias e pedi a dispensa de imposto sobre os maquinismos que importasse. A verdade é que os empréstimos eram improváveis e eu não imaginava a maneira de pagar os mecanismos. Mas havia-me habituado a considerá-los meio comprados. Em seguida consultei o Aprendizado Agrícola da Satuba relativamente à possível aquisição de um bezerro limosino. A OBRA Romance de tensão crítica – Nesta obra, como nas seguintes, Graciliano Ramos integra o herói e seus conflitos pessoais com o mundo exterior, com a sociedade e seus mecanismos de opressão. Interagindo de forma tensa com o mundo, Paulo Honório, ou Luís da Silva, ou Fabiano, com seus dramas, refletem ao mesmo tempo a consciência do homem nordestino e a do homem universal. O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício. E o outro, o grande, era uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, estrupício muito maior. Publicado em 1934, S. Bernardo é o relato em primeira pessoa da ascensão social do personagem narrador, Paulo Honório. Movido pela ambição de se FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 13 tornar um grande fazendeiro, levado pela ânsia de poder, pela obsessão da posse e pelo excessivo autoritarismo, acaba por afastar-se do convívio dos amigos e do amor da própria mulher. Sua esposa, a professora Madalena, ao contrário do marido capitalista, tem inclinações socialistas e sentimentos filantrópicos. A mulher opõe-se, assim, à exploração a que Paulo Honório submete os trabalhadores. Numa reação provocada pela ignorância e pelo radicalismo, o fazendeiro passa a desconfiar dos gestos e das atitudes de pessoa letrada que sua mulher toma e começa a tratá-la com ofensas, grosserias e humilhações derivadas de seu ciúme doentio. Utilizando a única forma de negar e condenar radicalmente as injustiças e violências praticadas contra ela pelo marido, a mulher se mata. O suicídio de Madalena, sua esposa, leva Paulo Honório a uma retrospectiva de todos os atos de sua vida, na tentativa de entender a causa do desmoronamento de seu mundo. O livro que a personagem resolve escrever é a expressão do desabafo e de um certo exame de consciência que tentam explicar seu jeito de ser e seu fim solitário, amargurado e decadente. Pelo texto a seguir, fecho do livro S. Bernardo, tem-se uma ideia do estado de espírito desse homem, aparentemente tão forte e destemido e tão frágil espiritualmente. OS PERSONAGENS PAULO HONÓRIO é o personagem-narrador. Começo declarando que me chamo Paulo Honório, peso oitenta e nove quilos e completei cinquenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho e cabeludo têm-me rendido muita consideração. Toda a estrutura do enredo se ordena em torno dele. Representa um duplo papel: O fazendeiro ambicioso, enérgico e dominador, aquele que veio do nada e que alcançou estabilidade e respeito social, tornando-se proprietário bem-sucedido da fazenda onde no passado trabalhara na enxadae o escritor e narrador da história que o leitor está lendo. Esse segundo Paulo Honório vive um tempo diferente daquele em que se situa o primeiro. O Paulo Honório narrador está situado no presente de sua solidão, em meio à qual rememora os fatos passados, entregando-se ao doloroso exercício de enfrentar a verdade sobre si mesmo. “Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as ideias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar corrigi-las. Afasto o papel”. Através do relato, acompanhamos Paulo Honório se construindo: de menino pobre, sem pai nem mãe, passa pela juventude sem rumo, descobre as asperezas de vida e desenvolve uma forte ambição. Ao apropriar-se da fazenda São Bernardo, dá o passo definitivo para a estabilidade e o reconhecimento social. Se tentasse contar-lhes a minha meninice, precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me de um cego que me puxava as orelhas e da velha Margarida, que vendia doces.... MADALENA é a co-protagonista do romance. A partir do capítulo 12, quando efetivamente passa a participar das ações, todos os fatos narrados por Paulo Honório estão relacionados a ela, a mulher que, mesmo amando intimamente, ele pretende possuir como se fosse mais um objeto de troca. As ideias que a professorinha alimenta – sua visão humanista e solidária, o desejo de participação igualitária dentro do casamento e nos negócios, a delicadeza no trato e a formação intelectual letrada – vão motivar o choque entre os dois. A impossibilidade de fazer-se entender pelo marido, como também a mesma impossibilidade de compreendê-lo, mais a firme resistência em não sucumbir a uma situação de passividade e submissão, arrastam-na ao desespero e ao suicídio. Moça loura e bonita; culta, educada, direita, de bons costumes, delicada e boa: assim era descrita Madalena por Paulo Honório. Ela aceita um casamento sem amor, pensando em garantir segurança para si e para a tia. Ao entrar em contato com a vida na fazenda, tenta promover mudanças na maneira como os colonos eram tratados e depara-se com a intransigência e brutalidade de um Paulo Honório dominador e cheio de desconfianças que, no auge das crises de ciúmes, alimentava terríveis cenas de desconfiança, imaginando que ela o estivesse traindo com os amigos e até com os colonos da fazenda. Quando as dúvidas se tornavam insuportáveis, vinha-me a necessidade de afirmar. Madalena tinha manha encoberta, indubitavelmente. – Indubitavelmente, indubitavelmente, compreen- dem? Indubitavelmente. As repetições continuadas traziam-me uma espécie de certeza. Esfregava as mãos. Indubitavelmente. Antes isso que oscilar de um lado para outro. Via-se muito bem que d. Glória era alcoviteira. Passadas mansinhas, olhos baixos, voz sumida – estava mesmo a preceito para alcoviteira. Antigamente devia ter dado com os burros na água. Alcoviteira, desencaminhara a sobrinha. Sempre de acordo, aquelas duas éguas. [...] Padre Silvestre passou por S. Bernardo – e eu fiquei de orelha em pé, deconfiado. Deus me perdoe, desconfiei. Cavalo amarrado também come. A infelicidade deu um pulo medonho: notei que Madalena namorava os caboclos da lavoura. Os caboclos, sim senhor... 14 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE Uma tarde em que a Margarida subiu a ladeira a vara e a remo para visitar-nos, vigiei-a uma hora, com receio de que a pobre fosse portadora de alguma carta. Creio que estava quase maluco. (cap. XXIX) Luís Padilha, herdeiro legítimo de São Bernardo, formou-se doutor, mas não revelou competência na administração da herança e acabou por levar a fazenda à falência. Preferia dedicar-se ao jogo, à bebida e às mulheres. Intelectual sem futuro, alimentava ideias revolucionárias de esquerda e, ao final, acaba ingressando nas fileiras rebeldes. No capítulo 04, que narra a venda da fazenda, fica visível a fraqueza moral dele em contraponto com a agilidade e a competência de Paulo Honório. – ... Despesa muita, Padilha. Faça preço. Debatemos a transação até o lusco-fusco. Para começar, Luís Padilha pediu oitenta contos. – Você está maluco! Seu pai dava isso ao Fidélis por cinquenta. E era caro. Hoje que o engenho caiu, o gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos babados... Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele baixou para setenta e mudamos de conversa. Quando voltamos à barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do céu que era a última palavra. Eu também asseverei que não pingava mais um vintém, porque não valia. Mas lancei trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os mesmos embelecos, sem nenhum resultado. Resolvi discorrer sobre minhas viagens ao sertão. Depois, com indiferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive modificação para cinquenta e cinco. Mostrei generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos cinquenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com ele, no colégio. Cheguei a ameaçá-lo com as mãos. Recuou para cinquenta. Avancei a quarenta e afirmei que estava roubando a mim mesmo. Neste ponto, cada um puxou para o seu lado. Finca-pé. Chamei em meu auxílio o Mendonça, que engolia a terra, o oficial de justiça, a avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida roí a corda. – Muito por baixo. Pindaíba. [...] Para evitar arrependimento, levei Padilha para a cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo, ele meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete contos quinhentos e cinquenta mil-réis. Não tive remorsos. Seu Ribeiro “um velho alto, magro, curvado, amarelo, de suíças” é o velho guarda-livros, que fora no passado um rico proprietário rural. Um patriarca amado e respeitado por todos e que a todos atendia. Entretanto, ele não soube acompanhar as mudanças trazidas pelos tempos e acabou perdendo tudo. Representa no romance os bons valores do mundo senhorial e, por isso, contrasta com a figura de Paulo Honório. Casimiro Lopes é a figura silenciosa e soturna do capanga fiel que acompanha Paulo Honório como uma sombra, permitindo dizer que funciona como a projeção do lado mais primitivo e brutal deste. Um traço humano sobressai, porém, em Casimiro Lopes: entre todos os que habitam a fazenda, apenas ele dá alguma atenção ao filho pequeno de Paulo Honório e Madalena. Dona Glória é a tia de Madalena e única pessoa da família da moça, sobre a qual recai grande parte da irritação de Paulo Honório. Madalena a defende, narrando a vida difícil de ambas, quando d. Glória dedicava-se a várias pequenas atividades para manter os estudos da sobrinha. A velha senhora representa um aspecto da condição social da mulher, quando esta não tem acesso a uma formação profissional especializada e, para sobreviver, fica à mercê de afazeres menores e da vontade de terceiros. O ENREDO A história de S. Bernardo se passa na década de trinta. O narrador, Paulo Honório, cinquenta anos, tenta revisitar dramas da sua vida e conflitos internos que até o momento em que o livro era escrito permaneciam inexplicáveis. Nem a fazenda, nem Madalena deram-lhe o sossego que tanto buscava. Resta-lhe a escrita; talvez ela lhe devolva a paz desejada. Mas os fatos e o tempo não voltam. Há, assim, uma constante transição entre passado e presente, já que o narrador, além de nós leitores, é também o destinatário da história que ele tenta reeditar. Quando se decide a contar a sua história, Paulo Honório já se encontra viúvo e sozinho, Está com cinquenta anos, grisalho e pesa 90 quilos. Não sabia muito de seus pais nem de sua Infância. Lembrava-se apenasde uma Margarida de quem vendia os doces, e a quem, agora, ele sustentava. Até os 18 anos trabalhou na enxada, na fazenda São Bernardo. Depois de um tempo, trabalhando como vendedor, viajando, resolveu morar em Viçosa, sua terra natal, Alagoas, já tencionando apropriar-se de São Bernardo. Quando o velho Padilha (dono das terras) morreu, Paulo criou laços de amizade com o filho daquele, Luís: devasso, esbanjador e viciado em jogo, logo emprestando-lhe dinheiro, tendo como garantia as terras. Paulo acabou por tomar-lhe São Bernardo com escritura e tudo o mais. Paulo teve que trabalhar muito para que pudesse reconstruir a fazenda, que se encontrava praticamente arruinada. Em pouco tempo a propriedade estava recuperada, e o passo seguinte era ampliar os seus limites, avançando para além das cercas do vizinho, eliminando inimigos. Logo se torna um poderoso coronel da região. Em uma de suas viagens a Maceió, encontrou um velho simpático chamado Ribeiro, guarda-livros da Gazeta. Resolveu levá-lo para a fazenda, já que a casa FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 15 nova estava pronta. Tudo começou a funcionar como Paulo queria e ele se tornava cada vez mais importante e respeitado. Alguns o criticavam, alegando que desejava possuir o mundo todo. Paulo Honório mandou construir uma estrada, uma escola e uma Igreja. Recebeu a visita até do Governador. Depois mandou chamar Padilha para ser professor na escola. Uma ideia perseguia Paulo: a de se casar. Desejava um herdeiro para a sua fazenda. Numa noite, foi visitar o Juiz Dr. Magalhães com a desculpa de um processo que estava em suas mãos, mas na verdade tinha interesse na filha do magistrado. Na casa do juiz encontrou muita gente, entre outras pessoas, uma loirinha que o deixou impressionado, cuja tia encontrou mais tarde no retorno de uma viagem. A partir daí passou a frequentar a casa delas até que, como se estivesse fechando uma transação comercial, propôs casamento a Madalena. Padre Silvestre os casou. A casa e a fazenda agradaram a Madalena e a sua tia D. Glória. Madalena teve um menino. Completaram dois anos de casados. Daí por diante, Paulo começou a sentir ciúmes de sua esposa. Tinha uma cega desconfiança de todos os seus amigos. Observava o filho que nada tinha de parecido com ele. Ele só queria saber se a esposa lhe era fiel. Se fosse, ele a faria a mulher mais feliz do mundo. A situação foi-se agravando. Paulo Honório desconfiava até do padre e dos caboclos. Estava quase louco. À noite, ouvia passos e assobios que acreditava serem sinais. Não dormia. Madalena, nas conversas, mantinha-se serena. Só dizia que, caso morresse de repente, queria que dessem seus vestidos à família do Mestre Caetano e à Rosa; e os seus livros ao Seu Ribeiro, Padilha e Gondim. Até que um dia se suicidou. Enterraram Madalena. Paulo mudou de quarto. D. Glória e Seu Ribeiro foram-se. Estourou a Revolução. Padilha e Padre Silvestre incorporaram-se às tropas revolucionárias. O outro ano foi terrível. Tudo andava mal, mas Paulo parecia não se incomodar. Era um homem só. Viúvo há dois anos. Um homem acabado. Sem amor, sem dinheiro, sem nada. PONTOS IMPORTANTES Como um novo Bentinho, Paulo Honório resolve contar a história de sua ascensão e queda. O ciúme que sentia de Madalena, a desconfiança de que o filho não era seu, a amargura e o desgosto com que fecha a vida o aproxi- mam de D. Casmurro. Paulo Honório escreve para lem- brar um amor destruído pelo ciúme e para entender o porquê do desmoronamento de seu mundo, que ocorreu após o suicídio da Madalena, a mulher que ele não che- gou a compreender, nem a conhecer de verdade. Numa linguagem direta e seca, mostra Paulo Honório, além do espírito capitalista emergente no sertão, a sintonia entre o meio agreste e a dureza das condições de vida no sertão com a alma confusa, petrificada e bruta do personagem. A posse, o interesse material, o lucro e os benefícios políticos são as molas que propulsionam as ações de Paulo Honório. O trabalho árduo, a igreja, a escola, o casamento, tudo visa à concretização de um objeto preestabelecido de ser “dono”. E essa finalidade é perseguida mesmo à custa de crimes, brutalidade e outros meios escusos. Paulo Honório é dominador, os outros personagens são, para ele, apenas “bichos’ que servem de meio para atingir os fins que ele busca. Mesmo a ideia de dividir o trabalho de escrever o livro, tem no fundo a intenção de se aproveitar dos outros para poder mais facilmente pôr seu nome, Paulo Honório, na capa da obra. A ideologia socialista de Madalena, que procura ajudar os trabalhadores de São Bernardo, entra em choque com ganância capitalista do marido. A avareza, que sofre pelos “esbanjamentos” de Madalena, primeiro se transforma em “inveja” de sua sabedoria, de seu jeito descontraído ao tratar com todas as pessoas, depois muda-se em ciúme doentio que cerca, pressiona, tortura e humilha. O suicídio de Madalena é uma derrota para Paulo Honório. Para não se sujeitar à prepotência do marido, ela tira a própria vida. A carta de despedida que ela escreve é levada pelo vento e Paulo Honório ao recolhê-la julga que era destinada a outro. Depois da morte de Madalena é que Paulo passa a se dar conta de tudo, culpando-se pelo desfecho infeliz, embora apresente a atenuante de, ele próprio, ser produto do meio hostil que modelou seu caráter. Em suma, Paulo Honório focaliza seu mundo interior, numa espécie de auto-análise ao mesmo tempo em que se apre- senta sua visão da realidade. São Bernardo pode, assim, ser considerado um romance confessional. Desde a infância foi vendedor, e seu sonho era ser dono da São Bernardo. Seu instinto de posse, seu espírito prático a tudo e a todos considerava passíveis de compra. Comprou a fazenda São Bernardo, transformou-a numa fazenda modelo, por meios lícitos e ilícitos conseguiu fazer tudo o que planejara. Madalena , a mulher que Paulo Honório escolheu para lhe dar um herdeiro, foi conquistada como se conquista e se compra uma máquina moderna. Mas Madalena era inteligente, mais que o marido. Tinha uma ideologia socialista que defendia os direitos dos trabalhadores, contra a mentalidade capitalista do marido. Era sociável, conversava com as visitas, de todos os níveis, e causava inveja e ciúme no marido bronco e ignorante. O ciúme doentio de Paulo Honório tornou-o paranoico e insuportável. Madalena não aceitava sujeitar-se aos caprichos do marido e, para não perder sua dignidade de mulher e de ser humano, preferiu suicidar-se. Desarvorado, sem entender a “rebeldia” de Mada- lena, Paulo Honório vai assistindo ao desmoronamento de seu mundo e de seu império. Qual outro D. Casmurro, Paulo Honório escreve sua his- tória, misturando, lembranças, desabafos, confissões, com a certeza de que se fosse para começar tudo de novo, faria o que fez, tudo de novo. 16 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE O PAGADOR DE PROMESSAS Dias Gomes O AUTOR Dias Gomes nasceu em 19 de outubro de 1922, na rua do Bom Gosto, em Salvador (BA). Na infância, estudou em colégios católicos, o que fez dele um religioso até os dezessete anos, quando passou a ser materialista. Jovem, foi para o Rio de Janeiro tentar a sorte. Começou o curso de Engenharia, mas abandonou-o; estudou Direito por três anos, também abandonou o curso. Só conseguiu se “encontrar” quando começou a escrever peças de teatro, aptidão que desde a infância lhe acenava com verdadeira vocação. Nos anos 40, Dias Gomes tinha uma intensa produção artística. Suas peças iam sendo publicadas e o autor passou ainda a trabalhar no rádio, meio que lhe rendia melhores ganhos. Casou-se com Janete Clair (1925-1983), radionovelista e, depois, telenovelista de sucesso. Tudo parecia caminhar muito bem em sua profissão. Entretanto, a partir dos anos 50 – e principalmente nos anos 60 – começa a ter sérios problemas com a censura. Quase todas as suas peças são proibidas de ir ao palco ou ao ar. É quando começa a escrever para a televisão, novo modelo de mídia. Resultado? Foi o pioneiro da literatura para a TV, dando a esse meio de cultura um ótimo
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