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OBRAS PEQUENO PRINCIPE 2017 INVERNO (2)

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FELICIDADE CLANDESTINA
Clarice Lispector
1. FELICIDADE CLANDESTINA
Lembranças da infância da autora em Recife.
Ela gostava de ler. Sua situação financeira não era
suficientemente boa para comprar livros. Por isso, ela
vivia pedindo-os emprestados a uma colega que não
gostava de ler e que era filha de um dono de livraria.
Essa amiga da protagonista é descrita como uma
menina rica, baixa e sardenta, com um enorme talento
para a crueldade.
Certo dia, a filha do livreiro informou à narradora que
podia emprestar-lhe “As Reinações de Narizinho”, de
Monteiro Lobato, mas que fosse buscar o livro em sua
casa. A protagonista passa a sonhar com o livro. Mal sabia
que a colega queria exercitar sua crueldade. Todos os
dias, invariavelmente, o empréstimo do livro era adiado,
pelos mais diversos motivos: ou já estava emprestado, ou
estava de manhã, mas à tarde não estava mais... Enfim,
esse suplício durou muito tempo até que, certo dia, a mãe
da colega cruel interveio na conversa das duas e percebeu
a atitude da filha; então, emprestou o livro à sonhadora por
tanto tempo quanto desejasse:
“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter... Criava as
mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina
que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser
clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como
demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim...
Não era mais uma menina com um livro: era uma
mulher com seu amante”.
2. UMA AMIZADE SINCERA
O narrador conheceu um colega de escola no
último ano de estudo. Desde então, tornaram-se amigos
inseparáveis. Quando não conversavam pessoalmente,
falavam-se pelo telefone conversavam sobre tudo e a
todo tempo. Mas, aos poucos, a amizade entre ambos
vai esfriando por falta de novidades, os assuntos
começaram a faltar. Às vezes, marcavam encontro e,
não tendo sobre o que conversar logo se despediam
embora se ressentissem da solidão ao chegarem a
casa:
“Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles.
Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais
pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio.
Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes.
Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos.
Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si
mesmo... todos os problemas já tinham sido tocados,
todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas
essa coisa que havíamos procurado sedentos até então
e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo,
sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da
solidão que um espírito tem no corpo”.
Passaram a dividir o mesmo apartamento, e
apesar de se sentirem alegres, a falta de assunto
persistia. Só se sentiam amigos, nada mais.
As férias foram angustiantes. A solidão de um ao
lado do outro era incômoda demais. Quando o amigo
teve uma pequena questão com a Prefeitura, o narrador
fez disso pretexto para uma intensa movimentação,
agora tinham sobre o que comentar e exageravam nas
palavras e nos detalhes de pouca importância. Foi então
que o narrador entendeu por que os namorados se
presenteiam, por que marido e mulher cuidam um do
outro e por que as mães multiplicam o zelo pelos filhos: é
para terem oportunidade de ceder a alma um ao outro.
A pretexto de férias, arrumaram justificativas para
viajarem sozinhos para junto de suas famílias. Sabiam
que nunca mais se veriam novamente.
“Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no
aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão
por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever.
E sabíamos também que éramos amigos. Amigos
sinceros.”
3. MIOPIA PROGRESSIVA
Se era inteligente, não sabia. Ser ou não ser
inteligente dependia da instabilidade dos outros.
A chave de sua inteligência escapava ao menino,
pois, as mesmas coisas que às vezes provocavam sutis
reações de admiração nos adultos, outras vezes eram
ignoradas. Sua inteligência dependia do estado de
espírito deles? E o menino pestanejava de curiosidade,
FELICIDADE CLANDESTINA
DOM CASMURRO
SÃO BERNARDO
O PAGADOR DE PROMESSAS
denunciando um início de miopia. Passou a pestanejar e
a franzir o nariz para denunciar e aprofundar a própria
perplexidade. A aceitação da incerteza e do fato de
ninguém ter a chave fê-lo crescer normalmente e viver
em serena curiosidade. A instabilidade dos familiares
passou para ele, e manteve pelo resto da vida:
pestanejava e franzia o nariz, deslocando os óculos que
usava por causa da miopia. Toda vez que desenvolvia
esse cacoete, era sinal de que estava interiormente
tendo noção de sua instabilidade.
Certa vez, disseram-lhe que passaria o dia inteiro
na casa de uma prima casada, sem filhos, que adorava
crianças. Ali, pressentiu ele, não haveria instabilidade: o
tempo todo seria julgado o mesmo menino.
Na semana que antecedeu a esperada visita, a
cabeça do menino ferveu, pois não sabia de que forma
iria apresentar-se diante da prima. Sentia até um aperto
no estômago quando antecipava a situação de que ia
ser amado sem seleção, sem escolha, o que represen-
tava uma estabilidade ameaçadora. Aos poucos, suas
preocupações passaram a ser outras: que elementos ele
daria à prima para ela ter certeza de quem ele era?
Como encararia o amor que ela nutria por ele?
Ao entrar na casa da prima, duas surpresas o
desnortearam (ele se desnorteava com surpresas): 1) a
prima tinha um dente de ouro no lado esquerdo da boca; 2)
ela o recebeu com naturalidade, sem evidenciar amá-lo.
Já que suas previsões foram por terra, resolveu
brincar de não ser nada. No entanto, à proporção que o
dia avançava, o amor da prima se evidenciava mais. Era
um amor sem gravidez: ela queria que ele tivesse
nascido dela; por isso demonstrava o amor estável, a
estabilidade do desejo irrealizável. Amor que incluía
paixão, a paixão pelo impossível.
Quando o menino descobriu o ingrediente da
paixão no amor, ele perdeu a miopia e viu o mundo
claramente. Foi como se ele tivesse tirado os óculos e a
própria miopia o fizesse enxergar.
Desde então, talvez, ele adquiriu o novo hábito de
tirar os óculos a pretexto de limpá-los “e, sem óculos, fitava
o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.”
4. RESTOS DO CARNAVAL
Novamente, as lembranças da infância de Clarice.
A menininha de Recife gostava de carnaval. Entretanto,
a atenção da família se concentrava na doença da mãe;
por isso, permitia-se pouca participação da menina na
folia: ficava até onze horas da noite, ao pé da escada do
sobrado onde morava, olhando os outros se divertirem.
Ela não se fantasiava; porém, cheia de felicidade, se
assustava com os mascarados e até conversava com
alguns deles.
E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo
vital e necessário porque vinha de encontro à minha
mais profunda suspeita de que o rosto humano também
fosse uma espécie de máscara À porta de meu pé de
escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito
entrava no contato indispensável com o meu mundo
interior, que não era feito só de duendes e príncipes
encantados, mas de pessoas com o seu mistério.
A seu pedido a irmã frisava-lhe os cabelos, pintava
sua boca de batom bem forte e passava ruge nas faces e
ela se sentia bonita e feminina e fugia da meninice.
Tinha oito anos quando o seu carnaval foi
diferente. A mãe de uma amiguinha fantasiou a filha de
rosa (flor), usando papel crepom; com as sobras, fez a
mesma fantasia para a protagonista.
Na expectativa do momento de vestir a fantasia, a
euforia era tanta que até superou o orgulho ferido de
ganhar um presente apenas por ter sobrado papel.
Entretanto, quase na hora de ser fantasiada, sua
mãe subitamente piorou de saúde. Coube à menina, já
com a roupa, mas ainda sem os cabelos enrolados e
sem maquiagem, correr pela rua para buscar remédio.
Mais tarde, acalmada a crise da mãe, ela saiu com
a fantasia completa. Porém, o encantamento já não
existia mais:
“(...) não era mais uma rosa, era de novo uma
simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era
uma flor, era um palhaço pensativo de lábios
encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes
começavaa ficar alegre mas com remorso lembrava-me
do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.”
Só horas depois veio a compensação: um garoto
de doze anos encheu a cabeça dela de confetes:
“Considerei pelo resto da noite que alguém me
havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.”
5. O GRANDE PASSEIO
Uma velhinha pobre andava pelas ruas. Era
apelidada de Mocinha. Havia sido casada, tivera dois
filhos: todos morreram e ela ficou sozinha.
Depois de dormir em vários lugares, Mocinha
acabou, não se sabia por que, passando a dormir
sempre nos fundos de uma casa grande no bairro
Botafogo. Cedinho ela saía “passeando”. Na maior parte
do tempo, a família moradora da casa se esquecia dela.
Certo dia, a família achou que Mocinha já estava lá
por muito tempo. Resolveram levá-la para Petrópolis,
entregá-la na casa de uma cunhada alemã. Um filho da
casa, com a namorada e as duas irmãs, foi passar um
fim-de-semana lá e levou Mocinha.
Na noite anterior, a velhinha não dormiu, ansiosa por
causa do passeio e da mudança de vida. Como se fossem
flashes descontínuos, vinham-lhe à cabeça pedaços de
recordações de sua vida no Maranhão: a morte do filho
Rafael atropelado por um bonde; a morte da filha Maria
Rosa, de parto; o marido, contínuo de uma repartição,
sempre em manga de camisa – ela não conseguia se
lembrar do paletó... Só conseguiu dormir de madrugada.
Acordaram-na cedo e a acomodaram no carro.
A viagem transcorreu para Mocinha entre cochilos
e novos flashes de memória com cenas entrecortadas
da vida passada. Foi deixada perto da casa do irmão do
rapaz que dirigia, Arnaldo; indicaram-lhe o caminho e
recomendaram que dissesse que não podia mais ficar
2 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 3
na outra casa, que Arnaldo a recebesse, que ela poderia
até tomar conta do filho...
A alemã, mulher de Arnaldo, estava dando comida
ao filho; deixou Mocinha sentada sem lhe oferecer
alimento, aguardando o marido. Este veio, confabulou
com a mulher e disse a Mocinha que não poderia ficar
com ela. Deu-lhe um pouco de dinheiro para que
tomasse um trem e voltasse para a casa de Botafogo.
Ela agradeceu e saiu pela rua. Parou para tomar um
pouco de água num chafariz e continuou andando,
sentindo um peso no estômago e alguns reflexos pelo
corpo, como se fossem luzes. A estrada subia muito.
“A estrada branca de sol se estendia sobre um
abismo verde. Então, como estava cansada, a velha
encostou a cabeça no tronco de árvore e morreu.”
6. COME, MEU FILHO
A mãe dá comida ao filho Paulinho e ele fica
puxando conversa para evitar ter de comer. As pergun-
tas que ele faz são desconexas, simples pretextos para
não comer. A mãe, paciente, vai respondendo laconica-
mente e insistindo em que Paulinho não converse tanto
e coma.
No fim, ele pergunta se é verdade que adivinhou
que ela o olha daquele jeito não é para ele comer, mas
porque gosta dele. A mãe diz que ele adivinhou sim, mas
torna a insistir em que ele coma. Paulinho retruca:
“– Você só pensa nisso. Eu falei muito para você
não pensar só em comida, mas você vai e não esquece”.
7. PERDOANDO DEUS
Um profundo questionamento a respeito da
natureza de Deus.
Andando pela Avenida Copacabana, a narradora
teve uma sensação inédita: sentiu-se a mãe de Deus, o
qual era a própria Terra, o mundo. Teve um carinho
maternal por Deus.
Foi quando ela pisou num rato morto. Encheu-se
de susto e pavor como uma criança. Então revoltou-se
contra Deus. Por que num momento de tanta beleza
interior ela tinha topado exatamente com um rato? Teve
vontade de negar que Deus existisse como Deus, mas
percebeu que esse pensamento é a vingança dos fracos
quando tomam consciência de sua fraqueza.
Concluiu que a sensação tão solene que tivera era
falsa, pois estivera amando um mundo que não existe.
Finalmente, ficou esclarecido na mente dela que estava
querendo amar a um Deus só porque ela não se
aceitava. Ela estaria amando um Deus que seria seu
contraste, esse Deus seria apenas um modo de ela se
acusar pois, como ela afirma:
“Eu, que jamais me habituarei a mim, estava
querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque
eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim
mesma, pois sou tão mais inexorável que eu, eu estava
querendo me compensar de mim mesma com uma terra
menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um
Deus só porque não me quero, serei um dado marcado,
e o jogo da minha vida maior não se fará. Enquanto eu
inventar Deus, Ele não existe”.
8. TENTAÇÃO
À tarde, sentada nos degraus de uma escada,
numa rua deserta do Grajaú, a menininha pobre, ruiva,
solitária estava com um soluço seco a incomodá-la.
Nisso, veio passando um cachorro basset
também ruivo. Parou diante da menina, sem latir.
Fitaram-se silenciosamente. Sem emitir som, eles se
pediam: um solucionaria o problema de solidão do outro.
O cachorro foi embora. Incrédulos, os olhos da
menina acompanharam-no até vê-lo dobrar a outra
esquina:
“Mas ele foi mais forte do que ela. Nem uma só vez
olhou para trás.”
9. O OVO E A GALINHA
“De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo.”
A simples visão de um ovo sobre a mesa desperta
na autora uma série de complexas e, até mesmo,
confusas reflexões metafísicas sobre o fato de ser, ver e
entender a existência, a eternidade do simples fato de
ser, o princípio de qualquer tipo de criação, a semente
da vida, representada pelo ovo que existe no íntimo, no
útero da mulher.
E ela, trabalhando e recebendo dinheiro pelo seu
trabalho de criação literária, sente-se a própria galinha
que, sem saber de nada, carrega em si o ovo. Sem o
ovo, a galinha não tem sentido. Ela é o meio de
transporte para o ovo, tonta, desocupada e míope. O ovo
é sempre o mesmo, o mistério; a galinha é sempre a
tragédia de cada época. O ovo tem sua forma definida; a
galinha continua sendo redesenhada:
“Ainda não se achou a forma mais adequada para
uma galinha. (...) O seu destino é o ovo, a sua vida
pessoal não nos interessa.”
A realidade cotidiana, os afazeres domésticos, os
filhos a obrigam a quebrar o ovo para matar a fome
A galinha prejudicial ao ovo é aquela que só pensa
em si, que não quer sacrificar sua vida. Os homens são
os agentes da vida. Os que têm amor são os que
participam um pouco mais da vida. Mas, como o amor é
a desilusão de tudo o mais, poucos amam, porque a
maioria não suporta perder as outras ilusões. “Inclusive
amor é a desilusão do que se pensava que era amor.”
Os homens existem para que o ovo se faça.
Aqueles que não entendem isso, suicidam-se ou são
eliminados.
10. CEM ANOS DE PERDÃO
Lembranças da infância em Recife. A menina e
sua colega olhavam para os palacetes e disputavam a
posse imaginária deles. Um dia, a menina viu uma rosa e
apanhou-a, tomando cuidado para não ser vista.
Enquanto ela colhia as rosas a fim de levar para casa, a
colega vigiava.
O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela
era minha. Levei-a para casa, coloquei-a num copo
d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e
aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No
centro dela a cor se concentrava mais e seu coração
quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar
rosas.
As duas, utilizando-se de tal estratégia, com o
coração batendo e sempre com aquela glória, passaram
a furtar rosas com frequência. Além de rosas, furtavam
também pitangas.
“Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão
de rosas e pitangas tem cem anos de perdão. As
pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem pra
ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho,
virgens.”
11. A LEGIÃO ESTRANGEIRA
A narradora recebeu, às vésperas do Natal, um
pinto de presente, vindo de uma família hindu, soberba,
retraída e agressiva, que fora vizinha dela e
inexplicavelmente sumira.
Então, ela se lembrou de Ofélia, a filha de oito
anos dessa família. Eram pessoas que bloqueavam
qualquer intimidade, mas Ofélia adquiriu o hábito de
visitar a narradora todos os dias. Enquanto esta ficava à
máquina de escrever, trabalhando em sua profissão de
copiar o arquivo de um escritório, Ofélia sentava-se,olhava para ela e dava conselhos, muito formal, como se
fosse uma adulta cheia de sabedoria. A narradora ouvia,
dificilmente falava, sempre a última palavra era da
menina, numa postura antipática.
Certo dia, a narradora comprou na feira um pinto
para os filhos, ainda pequenos, brincarem. Quando
Ofélia chegou para a visita habitual, ouviu o piar do pinto,
pediu para vê-lo e pegá-lo. Nesse instante, perdeu a
pose de adulta e se tornou uma criança brincando com o
pintinho. Depois o deixou na cozinha, despediu-se e
voltou para a casa dela. Seguindo uma intuição, a
narradora, logo após a saída da menina, foi à cozinha e
encontrou o pinto morto.
O pinto recebido hoje estremece embaixo da
mesa. “Como na Páscoa nos é prometido, em dezembro
ele volta. Ofélia é que não voltou: cresceu (...)”
12. OS OBEDIENTES
Neste conto, após uma introdução metalinguística
sobre o processo da escritura de um texto a partir de um
fato comum, a autora utiliza um esquema dual: A
interagindo com B. O casal a princípio se identifica com a
normalidade, avessos à palavra essencial, atingem a
idade crítica. Até então, a simetria lhes era a arte
possível. O resto da narrativa mostra como a mulher,
tendo dado uma mordida numa maçã, sentiu quebrar-se
um dente da frente. Rapidamente o texto mostra como
os dois sucumbem tragicamente ao passo do
desequilíbrio descoberto.
A história do casal revela uma harmonia
aparentemente perfeita, e essa vida sem emoções e tão
metódica conduz a um trágico desfecho, após uma
tentativa de viver mais intensamente, para terem o que
contar a si mesmos. Eles não tinham o que contar.
Depois que tudo aconteceu, diziam deles apenas que
eram gente boa. E só.
Cumpriam com perfeição a rotina, totalmente
obedientes ao que se convencionou chamar de
realidade de um casal, inclusive quanto à fidelidade.
Nem individualmente nem em comum faziam ou diziam
algo de inconveniente.
Já ultrapassada a idade de 50 anos, ambos
começaram a ter alguns sonhos. Cada um pensava
timidamente em seu interior: ele imaginava que muitas
aventuras amorosas significariam vida; ela, que outro
homem a salvaria.
Certo dia, ela estava comendo uma maçã e sentiu
quebrar-se um dente da frente. Olhou-se no espelho do
banheiro, “viu uma cara pálida, de meia-idade, com um
dente quebrado, e os próprios olhos...” Então, jogou-se
pela janela.
“Quanto a ele, uma vez seco o leito do rio e sem
nenhuma água que o afogasse, ele andava sobre o
fundo sem olhar para o chão (...) Seco inesperadamente
o leito do rio, andava perplexo e sem perigo sobre o
fundo com uma lepidez de quem vai cair de bruços mais
adiante”.
13. A REPARTIÇÃO DOS PÃES
Convidados para um almoço de sábado,
compareceram à casa da anfitriã. Todos vieram por
obrigação, gostariam de estar com outras pessoas.
Ficaram constrangidos e incomunicáveis antes de
serem convidados para a sala de jantar.
Quando entraram na sala do almoço,
surpreenderam-se com o requinte da refeição: uma
quantidade excessiva de legumes e frutas, leite, vinho e
outras especiarias.
Todos comeram em nome de nada, era hora de
comer e, à medida que comiam, veio a fome.
Estabeleceu-se uma cordialidade rude: ninguém falou
de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. A
comida dizia: come, come e reparte.
Assim se expressa a narradora:
“Comi sem ternura, comi sem a paixão da piedade.
E sem me oferecer à esperança. Comi sem saudade
nenhuma.”
E termina:
“Nós somos fortes e comemos. Pão é amor entre
estranhos.”
4 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
14. UMA ESPERANÇA
Uma esperança – um inseto que se chama
esperança – pousou na parede da casa da narradora.
Ela e os filhos ficaram observando a esperança andar,
sem voar:
“Ela esqueceu que pode voar, mamãe.”
Uma aranha saiu de trás do quadro e avançou em
direção à esperança, mas rapidamente um dos filhos a
mata. A narradora se espanta de não ter apanhado a
esperança. Lembrou-se de certa vez que uma
esperança pousou no seu braço.
“Em verdade nada fiz. Fiquei extremamente quieta
como se uma flor tivesse nascido em mim. Depois não
me lembro mais o que aconteceu. E, acho que não
aconteceu nada”
15. MACACOS
Perto do Ano-Novo, a família ganhou um mico de
presente. Era um macaco ainda não crescido, que não
dava sossego a ninguém. A dona da casa-narradora
estava exausta. Uma amiga entendeu o sofrimento dela
e chamou uns meninos do morro. Eles levaram o
macaco.
Um ano depois, a narradora comprou uma
macaquinha nas mãos de um vendedor em
Copacabana. Era delicada e recebeu o nome de Lisette.
Vestiram-na de mulher e ela encantava a todos.
Três dias depois, Lisette estava na área de serviço
sendo admirada pela família. Ela encantava a todos,
sobretudo pela doçura. Só que não era doçura, era a
morte chegando. Levaram-na rapidamente para o
veterinário, enfrentando um trânsito difícil. Ela estava
tendo falta de oxigênio. Deixaram-na na clínica e, no dia
seguinte, morreu. Uma semana depois, o filho mais
velho disse para a mãe:
“Você parece tanto com Lisette! ‘Eu também gosto
de você’, respondi.”
16. OS DESASTRES DE SOFIA
A narradora recorda o que lhe aconteceu quando
tinha nove anos. Ela gostava do professor gordo,
grande, silencioso, feio. Era atraída por ele. Mas
infernizava as aulas. A menina fazia este jogo: amava-o
atormentando-o. Não estudava nem aprendia nada.
Em suas considerações analíticas embrionárias,
Sofia já estava começando a tirar a moral das histórias,
só que o sentido que dava era diverso do que previa o
professor e o resto da classe.
Segundo o professor: um homem muito pobre
sonhara que descobrira um tesouro e ficara muito rico;
acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do
tesouro; andara o mundo inteiro e continuava sem achar
o tesouro; cansado voltara para a sua pobre, pobre
casinha; e como não tinha o que comer, começara a
plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto
colhera, tanto começara a vender que terminara ficando
rico.
Segundo Sofia: Provavelmente o que o professor
quisera deixar implícito na sua história triste é que o
trabalho árduo era o único modo de se chegar a ter
fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral
oposta: alguma coisa sobre o tesouro que se disfarça,
que está onde menos se espera, que é só descobrir,
acho que falei de sujos quintais com tesouros.
A menina fez uma redação rápida, doida para ir
correr no pátio do colégio que era enorme, cheio de
árvores. Entregou logo o caderno e foi correr no pátio.
Mas, logo depois, ela se lembrou de ir procurar algo que
deixara na sala e lá encontrou o professor sozinho. Pela
primeira vez, ficou frente a frente com ele, paralisada de
medo e de confusão nos seus sentimentos. O professor
mandou que apanhasse o caderno e ela não conseguiu,
tamanha foi a sua perturbação. Pela primeira vez, ele riu e
disse que ela era engraçada e doidinha: onde tinha tirado
aquela ideia de tesouro disfarçado? A redação estava
bonita. A menina teve a sensação de ele ter-se deixado
enganar: havia acreditado nela. Pensou que um homem
adulto acreditava, como ela, nas grandes mentiras.
Sem pegar o caderno, a menina voltou correndo
para o recreio e correu tanto no parque até ficar exausta.
Era uma maneira quase desesperada de se defrontar
com a perturbação que a tomou. Naquele momento,
perdeu a fé nos adultos, pois acreditava na sua futura
bondade, superando a fase má infantil. No entanto, o
amargo ídolo havia caído na armadilha de uma criança
“safadinha”, confusa, sem candura; deixara-se guiar
pela sua diabólica inocência... Quem sabe ele estaria
pensando que ela era um tesouro disfarçado?
“O professor agora destruía meu amor por ele e
por mim (...) Aquele homem também era eu.”
A menina foi subitamente forçada a amadurecer, a
descobrir que ela conseguira atingir o coração do
professor.
“E foi assim que no grande parque do colégio
lentamente comecei a aprender a ser amada,
suportando o sacrifício de não merecer, apenas para
suavizar a dor de quem ama.”
17. A CRIADA
Na aparência comum, quase insignificante de uma
jovem doméstica, a narradora descobre, ou pelos menos
entrevê, uma profundeza de mistérios,uma floresta de
sonhos e reflexões onde a moça volta e meia mergulha
na busca de conforto, de essência de sabe lá o quê que
a deixa serena, segura, com uma maneira fugitiva de
comer o pão.
Eremita era uma empregada doméstica que nada
mais apresentava a não ser o perfil de uma criada: nem
bonita nem feia, cumpria seus deveres sem competência
e sem desleixo; mas, por trás da figura-padrão e das fra-
ses convencionais pronunciadas rotineiramente, escon-
dia-se um mundo interior indecifrável para qualquer
pessoa, inclusive para ela mesma. De vez em quando,
interiorizava-se, desligava-se; quando retornava desse
FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 5
passeio por sua floresta íntima, estava mais calma e ia
consolidando a sua doçura próxima das lágrimas.
“No resto era serena. Mesmo quando tirava o
dinheiro que a patroa esquecia sobre a mesa, mesmo
quando levava para o noivo em embrulho discreto
alguns gêneros da despensa. A roubar de leve ela
também aprendera em suas florestas.”
18. A MENSAGEM
Trabalhando sobre a linguagem, a narradora
contraponteia um rapaz e uma moça que se articulam
por um código especial. Classificam o mundo e a si
mesmos através de palavras comuns, a que dão um
sentido especial: coincidência, evoluindo, superei,
autênticos, verdade, normalidade, mensagem, poesia,
etc.
Numa primeira fase rapaz e moça se consideram
diferentes dos outros. Tanto se identificam entre si que
são sexualmente chamados de híbridos. Depois que
lhes ocorre a epifania – ladeados por um ônibus que
avança, uma fachada de casa e um cemitério –
descobrem a artificialidade de sua constituição. O resto
do conto é o desmonte dos personagens, fazendo-os
perceber melhor o seu próprio mundo e o mundo dos
outros, até que se aproximando dos animais atingem o
máximo de desamparo.
Ele tinha dezesseis anos e ela dezessete. Colegas
de escola sem outras amizades, sentiram-se ligados
porque ela disse que também sentia angústia como ele.
A partir de então se tornaram íntimos. Intimidade
que não significava sexo nem amor. Eles se sentiram
ligados porque ambos queriam ser autênticos, sinceros,
diferentes dos outros. Não se viam como homem e
mulher, mas como dois seres angustiados, à procura de
algo que eles não sabiam o que fosse. Vagamente,
confusamente, achavam-se portadores de uma
mensagem. Mas o que era isso?
Naquele último dia letivo, os dois caminhavam
numa rua próxima do Cemitério S. João Batista, no Rio.
A calçada era estreita e os ônibus passavam rentes. De
repente, os dois se viram colados a uma casa velha.
Pararam diante dela, olharam para a fachada. Em seu
íntimo cada um foi se descobrindo ali, parados: ele era
apenas um rapaz e ela, uma moça. Não tinham mais o
que se dizer e por que continuarem juntos.
Ela despediu-se, correu para um ônibus que
estava parado. Entrou subindo como se fosse um
macaco, pensou ele, vendo-a acomodar-se lá dentro.
A moça saíra envergonhada por se sentir mulher;
o rapaz tinha acabado de nascer homem:
“Mas, atolado no seu reino de homem, ele
precisava dela. Para quê? (...) para não esquecer que
eram feitos da mesma carne, essa carne podre da qual,
ao subir no ônibus, como um macaco, ela parecia ter
feito um caminho fatal.”
O que estava acontecendo a ele naquele momento
em que viu a moça entrar no ônibus daquele jeito? Nada!
Apenas um instante de fraqueza e vacilação. Só que
agora ele se sentia fraco para resistir ao que os outros
tentavam ensinar-lhe para ser homem.
“Mas e a mensagem?! a mensagem esfarelada na
poeira que o vento arrastava para as grades do esgoto.
Mamãe, disse ele.”
19. MENINO A BICO DE PENA
Cenas domésticas de rara beleza que despertam
na mãe-narradora um sem-número de reflexões sobre a
evolução do filho quanto ao autoconhecimento, à
experiência do tato e do gosto, apalpando e lambendo a
própria baba que caíra ao chão, quanto à exploração do
espaço nos primeiros passos e no voo que vai do chão
onde caiu sentado até os braços da mãe, a experiência
da comunicação pelo choro e pelas palavras dizendo
“fonfom” ao ouvir o ruído de um automóvel.
Como conhecer jamais o menino? Para
conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só
então ele estará ao meu alcance. Lá está ele, um ponto
no infinito. Ninguém conhecerá o hoje dele. Nem ele
próprio. Quanto a mim, olho, é inútil: não consigo
entender coisa apenas atual, totalmente atual. O que
conheço dele é a sua situação: o menino é aquele em
quem acabaram de nascer os primeiros dentes e é o
mesmo que será médico ou carpinteiro... Trinta mil
desses meninos sentados no chão teriam eles a chance
de construir um mundo outro, um que levasse em conta
a memória da atualidade absoluta a que um dia já
pertencemos?
Não sei como desenhar o menino... Um dia o
domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo.
20. UMA HISTÓRIA DE TANTO AMOR
Uma menina de Minas Gerais tinha duas galinhas:
Pedrina e Petronilha. Cuidava delas como se fossem
pessoas. Enfiava-lhes “remédios” goela abaixo quando
julgava que estavam doentes.
Certa vez, foi passar o dia fora e, quando voltou,
Petronilha tinha sido comida pela família. Ficou
contrariada. Mas a mãe lhe disse que foi pena as
duas – ela e a filha – não terem comido algum pedaço
de Petronilha, pois, quando a gente come os bichos,
eles ficam parecidos com a gente, assim dentro de
nós.
Pedrina morreu naturalmente. Morte apressada
pela menina que, ao vê-la doente, colocou-a
embrulhada num pano escuro, em cima de um fogão de
tijolos.
Quando estava um pouco maior, a menina teve
outra galinha, a Eponina. Esta foi comida ao molho
pardo por toda a família, inclusive pela menina que,
embora sem fome, quis que Eponina se incorporasse
nela e se tornasse mais dela morta do que em vida.
“Nessa refeição tinha ciúmes de quem também
comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até
que se tornou moça e havia os homens.”
6 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
21. AS ÁGUAS DO MUNDO
Às seis horas da manhã, a mulher entra no mar:
este, a mais ininteligível das existências não humanas;
ela, porque uma vez fizera uma pergunta sobre si
mesma, o mais ininteligível dos seres vivos.
Como numa entrega entre amantes, ela avança,
abre o mar pelo meio, o frio arrepia-lhe as pernas,
deixa-se cobrir pelas ondas, brinca com a água, com a
concha das mãos cheia de água, bebe em goles
grandes.
“E era isso o que lhe estava faltando: o mar por
dentro como o líquido espesso de um homem. Agora ela
está toda igual a si mesma.”
Mergulha de novo, de novo bebe mais água. Como
contra os costados de um navio, a água bate, volta, não
recebe transmissões. Depois caminha na água e volta à
praia. Agora, pisa na areia.
“E sabe de algum modo obscuro que seus cabelos
escorridos são de um náufrago. Porque sabe – sabe que
fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser
humano.”
22. A QUINTA HISTÓRIA
Esta história poderia chamar-se “As estátuas”.
Outro nome possível é “O assassinato”. E também “Como
matar baratas”. Farei então pelo menos três histórias,
verdadeiras, porque nenhuma delas mente a outra.
A narradora conta que se queixou a uma vizinha
de que subiam no seu apartamento as baratas que
vinham do térreo. Então a vizinha lhe deu a seguinte
receita para matar as baratas: misturar em partes iguais
açúcar, farinha e gesso:
“A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso
esturricaria o de-dentro delas”.
Assim foi feito, e as baratas morreram. Então a
narradora conta a mesma história com cinco versões:
“Como matar baratas” (exatamente a história acima); “O
Assassinato” (em que são acrescentados pormenores
do estado de espírito rancoroso da narradora);
“Estátuas” (em que se destaca a visão das baratas
mortas); na quarta versão, a narradora opta por
dedetizar a casa; a quinta história só tem o título:
“Leibnitz e a Transcendência do Amor na Polinésia”.
23. ENCARNAÇÃO INVOLUNTÁRIA
A narradora tem o hábito de, ao enxergar uma
pessoa que nunca viu, observá-la e encarnar-se nela,
para poder conhecê-la.
Certa vez, num avião encarnou-se numa missionária.
Durante toda a viagem e alguns dias em terra, assumiu o “ar
de sofrimento-superado-pela-paz-de-se-ter-umamissão”.
A narradora levanta a hipótese de nunca ter sido
ela mesma senão no momento de nascer, e no resto
tenha sido apenas encarnações. Depois ela afirma que
não, que ela é uma pessoa.
Noutra ocasião, viu uma prostituta perfumadíssima
que fumava entrefechando os olhos ao mesmo tempo em
que “hipnotizava” o homem à sua frente e tentou fazer o
mesmo:
“Mas o homem gordo que eu olhava para
experimentar e ter a alma da prostituta, o gordo estava
mergulhado no New York Times. E meu perfume era
discreto demais. Falhou tudo”.
24. DUAS HISTÓRIAS A MEU MODO
Uma vez, não tendo o que fazer, fiz uma espécie
de exercício de escrever, para me divertir. E diverti-me.
Tomei como tema uma dupla história de Marcel Aymé.
Num processo metalinguístico, a autora faz um
jogo de faz de conta entre o que Aymé escreveu,
escrevendo porque não queria continuar a escrever
como seria a história. Então é que ele para outra história.
Na primeira história, Félicien era um vinicultor
francês que produzia o melhor vinho da região, mas não
gostava de vinho. Ele e a mulher Leontina escondiam de
todo esse fato. Félicien costumava até fingir-se de
alcoolizado para esconder que não bebia vinho.
Na outra, Etienne Duvilé, funcionário estadual em
Paris, gostava de vinho, mas não o tinha. Seu sogro
comia sem parar, a família numerosa sonhava com
mesa farta e ele, com vinho. Um dia Etienne sonhou
mesmo. E a autora não deixa Marcel contar o sonho do
homem e inventa outro final: Depois daquele sonho, a
sede de vinho piorou. Ele passou, acordado, a querer
não só beber vinho mas beber todo mundo, até o
comissário de polícia. Até hoje ele está internado num
hospício, tratado com água mineral “(...) que estanca
sedes pequenas e não a grande”, enquanto Aymé
espera que ele seja enviado à terra de Félicien que
passou, não se sabe como, a gostar de vinho.
25. O PRIMEIRO BEIJO
Um rapaz conta para sua namorada que já havia
beijado outra mulher. Numa excursão de ônibus escolar,
ele estava com muita sede. Quando houve uma parada
perto de um chafariz, ele foi o primeiro a chegar para
beber. Colou a boca no orifício de onde jorrava a água.
Depois que se saciou, abriu os olhos e viu que o orifício
era a boca de uma estátua de mulher nua. Afastou-se,
ficou olhando para a estátua. Fora seu primeiro beijo.
“E soube então que havia colado sua boca na boca
da mulher de pedra. A vida havia jorrado dessa boca, de
uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia
intrigado: mas não é de uma mulher que sai o líquido
vivificador, o líquido germinador de vida... Olhou a
estátua nua.
Ele a havia beijado. [...]
Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de
seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com
uma tensão agressiva...
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de
uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o encheu de susto
e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara um homem.”
FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 7
DOM CASMURRO
Machado de Assis
O AUTOR
Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908)
era neto de escravos, órfão desde criança, sofreu com
inúmeros problemas físicos nos olhos, nos intestinos, na
fala com a gagueira, no sistema nervoso com a
epilepsia. Apesar de tudo, com incrível força de vontade,
talento e perseverança, superou as dificuldades de sua
origem humilde, tornando-se uma unanimidade
nacional, ainda em vida.
De menino de rua, vendedor de balas, tornou-se
aprendiz de tipógrafo, redator e colaborador de vários
jornais, cronista, diretor do Diário Oficial, presidente da
ABL, Diretor Geral da Viação. Casou-se aos 30 anos
com D. Carolina Xavier Novais, que mesmo não lhe
dando filhos foi sua querida companheira até que a
morte a levou, em 1904 após trinta e cinco anos de
convivência.
A personagem D. Carmo Aguiar, mulher bondosa,
serena, afetuosa e íntegra, do Memorial de Aires, de 1908,
é uma homenagem póstuma do autor à sua saudosa
esposa.
O ESTILO
O estilo machadiano é marcado pela
objetividade, pela síntese e pela mestria com que
utiliza a linguagem e todos os seus recursos, em
períodos e capítulos curtos, densos e profundos. Ao se
dirigir aos leitores em meio à narrativa, o autor ganha a
cumplicidade do público para elaborar suas teorias e a
compreensão do leitor para a estrutura da obra através
de referências metalinguísticas.
Insinuações e reticências
Seus personagens por serem profundos e
imprevisíveis são normalmente esféricos ou redon-
dos. O pessimismo com que o autor vê a vida e a acidez
com que desvenda e envenena todas as atitudes e senti-
mentos humanos, são amenizados pela fina ironia e
pelo humor sutil.
A maneira de escrever de Machado de Assis,
cheia de sutilezas, meios-tons, insinuações e reti-
cências, serve perfeitamente de instrumento para se
vasculhar e revelar os mistérios da alma humana. O
autor deixa no leitor a impressão de que nada na vida é
definitivo e se exime de tirar conclusões ou de fazer
juízos de valor, transferindo ao público a responsabili-
dade de elaborar suas próprias opiniões.
Além das conversas com o leitor, em que o
narrador não apenas comenta alguns aspectos da
trama, mas também faz observações sobre a forma de
apresentá-los, utilizando a linguagem numa função
metalinguística, o emprego das reticências grafadas ou
sugeridas transforma o leitor no coautor da obra.
Não-linearidade
O narrador desenrola os acontecimentos que não
precisam, necessariamente, ser narrados na mesma
ordem em que costumam ocorrer na vida real.
Desaparece qualquer linearidade da narrativa; os vários
episódios narrados não se enfileiram numa ordem
cronológica verdadeira. As histórias se desfazem em
fragmentos, unidos um ao outro pelas intervenções do
narrador.
A calma, o ritmo pausado com que Machado nos
faz entrar no mundo de suas personagens, a completa
ausência de pressa na narração dos episódios são outra
forma de distanciamento. As ações se desenrolam
preguiçosamente e o narrador, volta e meia,
interrompe-as para fixar a sua (e a nossa) atenção em
elementos circunstanciais e periféricos. É como se a
história emperrasse, ficando suspensa por algumas
linhas ou capítulos. Tudo previsto por Machado, em sua
função de garantir distanciamento crítico.
Machado desnuda as falsas virtudes, os
interesses escusos, a caridade ostensiva, tudo, enfim,
que constitui o avesso de uma vida socialmente digna e
respeitável; ao narrar suas histórias, é cético quanto à
sociedade brasileira e quanto à natureza humana.
8 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
A OBRA
Dom Casmurro é o maior romance de Machado
de Assis, aquele em que ele mais apurou o seu estilo e o
seu gênio em desvendar a alma humana e ir ao fundo
dos sentimentos, das ações dissimuladas, em busca da
verdadeira face interior dos personagens.
O título do livro reflete uma das características
mais marcantes do protagonista masculino no
crepúsculo da existência: a visão amarga e dolorida de
quem foi traído e machucado pela vida, e, em
consequência disso vai-se isolando e ensimesmando.
O romance, publicado em 1899, é composto por
148 capítulos curtos. Neles o autor sonda e analisa a
sociedade do Rio de Janeiro do século XIX. Explora
temas polêmicos – adultério, suicídio e religião –
apresentados por um observador arguto, o qual procura
escancarar e interpretar o mundo que o cerca. Dom
Casmurro é a narração, feita em primeira pessoa pelo
próprio protagonista, da vida de Bento de Albuquerque
Santiago, o Bentinho. A trajetória existencial recomposta
vai do ano de 1857 até meados da década de 1890,
quando o narrador, já quinquagenário, se debruça sobre
o passado, apresentando-o e, ao mesmo tempo,
analisando-o à distância. Disso resulta uma estrutura
narrativa em que se alternam a narração da ação e a
reflexão sobre a mesma.
A narrativa vai lenta até o capítulo XCVII, a partir
do qual se acelera, como declara o próprio narrador, ao
dar-se conta da sua lentidão:
“Agora não há mais que levá-la a grandes
pernadas, capítulo sobre capítulo, pouca emenda,
pouca reflexão, tudo em resumo. Já esta página vale por
meses, outrasvalerão por anos, e assim chegaremos ao
fim” (Cap. XCVII).
Assim, pois, até o capítulo XCVII, quando o
narrador sai do seminário, “com pouco mais de dezessete
anos”, focaliza-se, em câmera lenta, a infância e a
adolescência, dada a necessidade do narrador traçar o
perfil dos protagonistas da estória (Bentinho e Capitu),
revelando, desde as entranhas, o caráter e as tendências
de cada um: afinal, o adulto sempre se assenta no pilar da
infância, como insinua Dom Casmurro, no final da
narrativa, ao referir-se a Capitu:
“Se te lembras bem da Capitu menina, hás de
reconhecer que uma estava dentro da outra, como a
fruta dentro da casca”. (Cap. CXLVIII)
Escrito na primeira pessoa, em tom confidencial,
serviu para que, livremente, Machado de Assis pudesse
deixar nele muito de si, do seu temperamento, de sua
visão pessimista e irônica do mundo. É possivel-
mente um dos livros mais amargos da literatura em qual-
quer país, mas o gênio do autor impregnou-o de tal
sabedoria, de tal ironia e disfarçada malícia, que o trans-
formou numa das grandes criações literárias do Brasil
em todos os tempos. O leitor é convidado a vasculhar a
mente intrincada do protagonista que, aos poucos, vai
revelando seu interior. Assim, o amor, o ciúme e o caos
psicológico são revelados apenas parcialmente ao leitor.
A mente deste personagem, corroída de ciúme, provoca
sequelas que recheiam a narrativa de ambiguidades,
parcialidade e unilateralidade. Bentinho – à procura de
um tempo feliz perdido no passado da infância e da ado-
lescência – tenta sem sucesso atar as duas pontas da
vida, revivendo no presente o que, infelizmente, já faz
parte do passado.
Como um “Otelo” à brasileira, Bentinho transfere
para o leitor o encargo de decidir se Capitu é inocente ou
culpada.
A mais discutida personagem da ficção
brasileira, e que até hoje suscita ensaios interpretações,
exegeses e até livros, é inegavelmente Capitu, que para
muitos ainda se afigura uma esfinge, pela sua complicada
psicologia e pelo segredo que o autor deixou em
suspenso e sem decifração, do possível adultério,
apenas entrevisto nas desconfianças do marido Bentinho
e nas semelhanças do filho com o provável amante.
PERSONAGENS
� Bento Santiago (Bentinho) – Depois de velho, narra
o suposto triângulo amoroso em que viveu boa parte
da vida. Com a consciência conturbada, misturando
objetividade e ressentimento, vai desfiando o rosário
de suas dúvidas e infelicidades até chegar à triste con-
clusão de que fora covardemente traído.
� D. Casmurro – O Bentinho, tímido e ingênuo que se
espantava com as atitudes arrojadas de Capitu,
torna-se um homem amargo, descrente e ensimes-
mado. Torna-se um casmurro. Agora, velho, mora no
Engenho Novo, numa casa que mandou construir
idêntica à da rua Matacavalos, onde passara a infância
e resolve passar a limpo sua vida escrevendo sua
autobiografia que na realidade é um libelo de acusa-
ção condenatória contra Capitu e Escobar.
� D. Glória – é a mãe de Bentinho, viúva abastada com
escravos alugados e uma dúzia de prédios. Ela o des-
tinara ao sacerdócio e para tanto fizera uma promessa
quando ele nascera. Ele se acostumara a essa ideia
religiosa que era incentivada por todos os que viviam
em torno de sua família, tios, tias, o agregado José
Dias, o Padre. Mas um dia surgiu Capitu na vizinhança
e lá se foram os projetos e propósitos de D. Glória.
Bentinho apaixonou-se pela menina e viveram os dois,
nesses primeiros anos, um belo e inocente idílio.
Encontros furtivos, enlevos de crianças, beijinhos,
abraços, tudo isso foi pouco a pouco se transformando
no amor que os fez jurar, um dia, não se casarem
jamais a não ser um com o outro.
� José Dias – Agregado da casa de Bentinho, ali vivia
há muito tempo. Vestia-se à moda antiga. Amava os
superlativos. Opinava e era ouvido. Achava que
Capitu, a vizinha por quem Bentinho, sem saber,
estava apaixonado, tinha “olhos de cigana oblíqua e
dissimulada”.
FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 9
� Tio Cosme – Já viúvo, vivia com a irmã, D. Glória,
desde que esta enviuvara. Gordo e pesado, tinha a
respiração curta e os olhos dorminhocos.
� Capitu – Amiga e vizinha de Bento desde pequena,
tem personalidade forte e a capacidade de sair-se bem
em qualquer circunstância. Morena, longos cabelos,
olhos perturbadores, “de ressaca”, que, na opinião de
Bentinho, arrastam e destroem. Nunca admitiu a culpa
a ela imputada pelo marido, mas também nunca fez
grande esforço para desmenti-lo. Capitu é a figura
central dessa história que se passa no Rio de Janeiro
de meados do século XIX, em pleno II reinado, e na
qual se fixam os costumes , o ambiente, a vida familiar,
o meio social daquela época, como pano de fundo
para um drama que lentamente se desenvolve na
penumbra, numa aparência de felicidade, para explo-
dir enfim na revelação final que é a própria negação de
tudo, da beleza, da doçura e do carinho que alimenta-
vam o idílio central do livro.
Afirmar como era Capitu seria uma temeridade, a não
ser que o fizéssemos por etapas. Ela aparece no
romance, que é uma narrativa retrospectiva, ainda cri-
ança. Morava na rua Matacavalos, vizinha do menino
rico, deslumbrado com a sua beleza e graça.
Na opinião de José Dias, agregado e amigo da casa de
Bentinho, ela era uma desmiolada e vivia doida para
fisgar algum peralta para marido. Tinha uns olhos que
o diabo lhe deu “de cigana oblíqua e dissimulada”.
Mas, para Bentinho, na sua obstinada paixão, ela era o
sonho e o ideal de sua juventude amorosa e tinha uns
“olhos de ressaca” que possuíam “um fluido misterioso
e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como
a vaga que se retirava da praia nos dias de ressaca”.
Para a mãe de Bentinho ela era uma menina cândida e
inocente.
Afinal, para o mesmo Bentinho, no fim do livro e de
suas vidas em comum, já roído de ciúmes e desconfi-
anças atrozes, ela deixa de ser aquela figura ideal
para revelar-se uma falsa e fingida mulher que o enga-
nara a vida toda.
Escobar foi o grande amigo que Bentinho, conheceu
nos tempos de seminário. Conseguiu sair do internato
com Bentinho que D. Glória, para não quebrar a pro-
messa, colocasse lá um substituto.
Escobar tornou-se amigo da família e casou-se com San-
cha, amiga de Capitu. Os dois casais estreitaram
relações. Escobar ganhou uma filha que recebeu o nome
de Capitu, e Capitu deu a Bentinho um filho, que foi bati-
zado com o nome de Ezequiel, primeiro nome de Esco-
bar. A vida não se modificou por muito tempo. A amizade
dos casais era cada vez maior, frequentavam-se constan-
temente, porém, mais tarde, Bentinho recordará com
estranheza algumas visitas inesperadas do amigo a
Capitu, justo quando ele, Bentinho, estava fora, além das
muitas semelhanças de seu filho com Escobar, aponta-
das pelas más línguas e que ele próprio observara muitas
vezes sem dar importância ao fato.
Escobar morre afogado e o olhar que Capitu lança ao
seu cadáver, na saída do enterro, dá a Bentinho a cer-
teza de suas desconfianças e do adultério de Capitu.
Passou, então, a observar com mais atenção a cres-
cente semelhança do filho com o amigo morto. Os
ciúmes se acentuaram e vieram as desconfianças, as
brigas, a indiferença, a separação. Bentinho decide
suicidar-se e num momento de loucura, pensa mesmo
em matar o filho, mas desiste de um e outro intento.
� Ezequiel, filho de Capitu e Bentinho, recebeu este
nome o primeiro nome de Escobar. A gravidez de
Capitu demorou a acontecer, causando até certos
embaraços e constrangimentos ao casal, quando
estavam em companhia de Sancha e Escobar.
Logo nos primeiros anos, Bentinho começou a notar
que o menino tinha trejeitos semelhantes aos de Esco-
bar. Isto e mais a semelhança física que Bentinho foi
percebendo com o correr dos anos vão confirmar (para
ele) mais tarde as suspeitas sobre a “paternidade”.
Bentinho, no auge da crise, pensa em envenenar Eze-
quiel e a si mesmo, mas resolve apenas mandar
Capitu e o filho para a Suíça, onde ela morre. No último
encontro com Ezequiel, já adulto, Bentinho reconfirma
as semelhanças e a certeza do adultério e procura dis-
farçara versão que tem pelo moço. Ezequiel acaba
morrendo no Oriente Médio, durante uma excursão,
fato que traz alívio para o narrador.
� Outros personagens – Prima Justina, Padre
Cabral, Pádua (Tartaruga), Sancha...
ENREDO
A adolescência, o seminário
Apoiando-se na teoria de um tenor, Machado de
Assis declara que “a vida é uma ópera”, composta de
trechos cantados a duas, três ou quatro vozes, como a
vida de Bentinho e suas relações amorosas. Há uma fase
em que o personagem canta (vive) um “duo terníssimo”,
quando ele e Capitu convivem em idílio; depois a trama se
complica com a presença de um terceiro (Escobar), que
se instala para cantar (formar) um “trio”; finalmente ensaia
um “quatuor”, na fantasia erótica em que Bentinho se
envolve imaginariamente com Sancha.
Aceito a Teoria
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho
Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez
toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à
definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio,
depois um quatuor... Mas não adiantemos; vamos à
primeira parte, em que eu vim a saber que já cantava,
porque a denúncia de José Dias, meu caro leitor, foi
dada principalmente a mim. A mim é que ele me
denunciou. (cap. X)
Apesar do “duo terníssimo” de Bentinho e Capitu,
Dom Casmurro é um romance de velhos e solitários (D.
Glória, Tio Cosme, Pe. Cabral, José Dias, Prima Justina,
10 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 11
além do nosso casmurro narrador). Como é próprio de
Machado de Assis a velhice no livro é perpassada de
uma visão amarga e melancólica, dominada por mágoas
e ressentimentos. Sem dúvida, é licito afirmar que,
filtrada pela ótica do narrador, Machado de Assis insinua
que a existência humana sempre desemboca na
casmurrice e na solidão.
Bentinho, aos 15 anos, fica sabendo – “descobre”
– que está apaixonado por Capitu.
Quem lhe conta isto, indiretamente, é José Dias. O
menino, escondido, ouve quando o agregado aconselha
D. Glória a colocá-lo no seminário logo, para cumprir a
promessa que ela havia feito. Isto porque, se houvesse
demora, depois ficaria muito difícil, pois, conforme
afirmava: O rapazinho estava apaixonado pela vizinha!
Capitu demonstra afeição por D. Glória, mas,
quando Bentinho lhe diz que a mãe vai mandá-lo para o
seminário, fica furiosa, esbraveja, chama-a de
papa-missas, carola e beata.
Em outras ocasiões, faz uma carinha angelical
para se livrar de situações embaraçosas. Desde a ado-
lescência, portanto, demonstra uma capacidade incrível
de dissimulação como se estivesse já guardando a
semente de mulher misteriosa, ambígua e dúbia que
viria ser. Ela manipula Bentinho, domina-o, sabe o que
quer, e orienta o rapazinho na luta estratégica para ele
se livrar do seminário com a ajuda de José Dias.
Os planos de Capitu e Bentinho fracassam e
então, como último recurso, ele revela à mãe não ter
vocação, o que também não a faz voltar atrás. Tio
Cosme e prima Justina procuram não se envolver no
problema. Assim, D. Glória, com o apoio do padre
Cabral, decide finalmente cumprir a promessa e o envia
ao seminário, prometendo, contudo, que se dentro de
dois anos não revelasse vocação para o sacerdócio
estaria livre para seguir outra carreira. Antes da partida,
Bentinho e Capitu juram casar-se acontecesse o que
acontecesse. No seminário, Bentinho chora e sofre
horrores de saudades, solidão e ciúmes.
Bentinho conhece outro seminarista, Ezequiel
de Souza Escobar e os dois tornam-se amigos e
confidentes. Em um fim de semana em que Bentinho
visita D. Glória, Escobar o acompanha e é apresentado a
todos, inclusive a Capitu. Esta, depois da partida de
Bentinho, começara a frequentar assiduamente a casa
de D. Glória, do que nascera, aos poucos, grande
afeição recíproca, a ponto de D. Glória começar a
pensar que se Bentinho se apaixonasse por Capitu e
casasse com ela a questão da promessa estaria
resolvida a contento de todos, pois Bentinho, que a
quebraria, não a fizera, e ela, que a fizera, não a
quebraria.
Bentinho continuava seus esforços junto a José
Dias, que, tendo fracassado em seu plano de fazê-lo
estudar medicina na Europa, sugeria agora que ambos
fossem a Roma pedir ao Papa a revogação da promessa.
A solução definitiva, contudo, partiu de Escobar. Segundo
este, D. Glória prometera a Deus dar-lhe um sacerdote,
mas isto não queria dizer que este deveria ser necessari-
amente seu filho. Sugeriu então que ela adotasse algum
órfão e lhe custeasse os estudos. D. Glória consultou o
padre Cabral, este foi consultar o bispo e a solução foi
considerada satisfatória.
Bentinho deixa o seminário, com cerca de 17
anos, e vai para São Paulo estudar, tornando-se cinco
anos depois, o advogado Bento de Albuquerque
Santiago. Por sua parte, Escobar, que também saíra do
seminário, tornara-se um comerciante bem-sucedido,
vindo a casar com Sancha, amiga e colega de escola de
Capitu.
Céu e inferno
“Pois sejamos felizes de uma vez, antes que o
leitor pegue em si, morto de esperar, e vá espairecer a
outra parte; casemo-nos”.
Em l865, (cap. CI) Bento e Capitu finalmente se
casam e vão morar no bairro da Glória.
A felicidade do casal seria completa não fosse a
demora em nascer um filho. Eles sentem “inveja” de
Escobar e Sancha, que tinham tido uma filha, batizada
com o nome de Capitolina. Depois de muita espera,
preces e angústias, nasce Ezequiel, batizado com o
mesmo nome de Escobar, para retribuir a gentileza do
casal de amigos, que dera à filha o nome de Capitu.
Ezequiel revela-se muito cedo uma criança inquieta
e curiosa, tornando-se a alegria dos pais e servindo para
estreitar ainda mais as relações de amizade entre os dois
casais. A partir do momento em que Escobar e a Sancha,
que moravam em Andaraí, resolvem fixar residência no
Flamengo, a convivência entre as duas famílias torna-se
completa e os pais chegam a falar na possibilidade de
Ezequiel e Capituzinha, como era chamada a pequena
Capitolina, virem a se casar.
Bentinho, agora, depois de tantos anos, relembra
as pontadas de ciúmes que sentia, quando, nos bailes,
os lindos braços nus de Capitu chamavam a atenção
admirada de todos. Lembra como, em outra ocasião,
ficara intrigado com um dinheiro (dez libras) que Capitu,
sem seu conhecimento, ganhara através de aplicações
feitas por Escobar. Os ataques de ciúme, na época,
iam-se tornando cada vez mais assíduos, envolvendo
constantemente a figura do amigo: pequenos indícios,
encontros furtivos... Vem-lhe à mente a ocasião em que
ele, Bentinho, voltando mais cedo do teatro a que fora
sozinho, encontrou Escobar chegando a sua casa.
É o ponto de vista do narrador que começa a
alterar os fatos? É tudo verdade, são enganos ou
distorções propositais de Bentinho? Parece ou é
verdade que... Escobar se torna um tanto distante...
Capitu tem alguns modos estranhos... Ezequiel cada
vez mais imita Escobar... D. Glória está tão triste?...
Em 1871 Escobar, que gostava de nadar, morre
afogado. No enterro, Capitu, que amparava Sancha,
12 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
olha tão fixamente e com tal expressão para Escobar
morto que Bento fica abalado e “percebe claramente”
que fora vítima de uma covarde traição.
Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram
o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras
desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá
fora, como se quisesse tragar também o nadador da
manhã.” (cap. CXXIII)
Poucos dias depois, Sancha retira-se para a casa
de parentes no Paraná. Bentinho se incomoda cada vez
mais com as semelhanças de Ezequiel com Escobar, a
tal ponto que o velho companheiro de seminário parece
ressurgir fisicamente. As relações entre Bento e Capitu
deterioram-se rapidamente. A solução de colocar
Ezequiel num internato não se revela eficaz, já que
Bento não suporta mais ver o filho, o qual por sua vez, se
apega a ele cada vez mais, tornando a situação ainda
mais crítica.
Bento decide suicidar-se com veneno, então,
depois de assistir à peça Otelo de Shakespeare, depois
de se despedir das ruas e paisagens, entra em casa e no
escritório coloca o venenono café. Indeciso, resolve
esperar um pouco. A entrada de Ezequiel lhe dá uma
ideia diabólica, decide dar o café envenenado ao filho.
Mas, no último instante, recua e desabafa, transtornado,
revelando ao menino não ser seu pai. Capitu ao entrar
na sala ouve tudo e exige explicações afirmando que a
semelhança de Ezequiel com Escobar é casual,
atribuindo-a à vontade de Deus
Para manter as aparências, o casal parte pouco
depois rumo à Europa, acompanhado do filho. Bento
retorna a seguir, sozinho. Trocam algumas cartas e
Bento viaja outras vezes à Europa, sempre com o
objetivo de manter as aparências, mas nunca mais
chega a encontrar-se com Capitu. Tempos depois
morrem D. Glória e José Dias.
Bento retira-se para o Engenho Novo. Ali, certo dia,
recebe a visita de Ezequiel de Albuquerque Santiago,
que era então a imagem perfeita de seu velho colega de
seminário. Capitu morrera e fora enterrada na Europa.
Ezequiel permanece alguns meses no RJ e depois parte
para uma viagem de estudos no Oriente Médio, já que
era apaixonado por Arqueologia. Onze meses depois
morre de uma febre tifoide em Jerusalém e é ali enter-
rado. Mortos todos, familiares e velhos conhecidos,
Bento/Dom Casmurro fecha-se em si, sem se isolar
completamente alimentando algumas amizades e se
consolando com inúmeras relações ocasionais..
S. BERNARDO
Graciliano Ramos
O AUTOR
Este alagoano é considerado por muitos como o
maior escritor brasileiro, depois de Machado de Assis.
Além de grande escritor, Graciliano foi jornalista,
prefeito, diretor da Imprensa e da Instrução estaduais,
membro do Partido Comunista.
Depois de trabalhar em jornais e com comércio,
depois de enviuvar aos 28 anos e ficar responsável pela
criação de quatro filhos, Graciliano Ramos tornou-se
prefeito de Palmeira do Índios, foi descoberto como
escritor e teve publicado seu primeiro livro, Caetés, em
1933.
Nessa época, já vivia em Maceió como diretor da
Imprensa Oficial do Estado e como diretor da Instrução
pública de Alagoas e já fizera amizade com José Lins do
Rego, Rachel de Queiroz e Jorge Amado.
Reconhecido e já consagrado como escritor,
depois de publicar São Bernardo em 1934, foi preso em
1936 como subversivo, acusado de ligação com o
Partido Comunista. Embora sem acusação formal,
mandam-no de navio para o Rio de Janeiro onde vai ficar
encarcerado durante nove meses. Durante o período de
prisão do autor, José Olympio publicou Angústia.
O depoimento sobre as experiências humilhantes
que viveu, nas viagens de um presídio a outro e na vida
carcerária, foram registradas dez anos depois no livro
Memórias do Cárcere.
Morreu no Rio de Janeiro, logo depois de
regressar de uma Viagem feita à Rússia e a outros
países comunistas.
ESTILO
O estilo de Graciliano Ramos mostra a influência
que recebeu de seus autores prediletos, Machado de
Assis e Eça de Queirós:
a) Linguagem despojada, impessoal, econômica e
elegante, que mistura a linguagem acadêmica do
narrador com elementos da fala regional, mais coloquial:
...distraí-me ouvindo Padilha e Casimiro Lopes
conversarem a respeito de onças. Não se entendem.
Padilha, homem da mata e franzino, fala muito e admira
as ações violentas; Casimiro Lopes é coxo e tem um
vocabulário mesquinho. Julga o mestre-escola uma
criatura superior, porque usa livros, mas para manifestar
esta opinião arregala os olhos e dá um pequeno
assobio. Gagueja. No sertão passava horas calado, e
quando estava satisfeito, aboiava. Quanto a palavras,
meia dúzia delas. Ultimamente, ouvindo pessoas da
cidade, tinha decorado alguns termos, que empregava
fora de propósito e deturpados. Naquele dia, por mais
que forcejasse, só conseguia dizer que as onças são
bichos brabos e arteiros.
– Pintada. Dentão grande, pezão grande, cada
unha! Medonha!
b) Visão objetiva da realidade física, humana,
política e econômica brasileira, especificamente da
Região Nordeste, que leva ao extremo as tensões
existentes no convívio das personagens com a
sociedade, com o poder e com o meio ambiente:
– A oposição não sabe o que diz. Nós temos lá
oligarquia? Temos uma quantidade enorme de
cavadores no poder. Só os congressistas! E os
ministros, os presidentes, os governadores, os
secretários, os políticos do sul. Muito dente roendo o
tesouro. E que súcia! Veja os nossos representantes no
congresso federal.
c) Análise psicológica profunda que revela o
íntimo das personagens e mostra, as deteriorações da
personalidade provocadas pelas situações traumáticas.
Resultado disso é o embrutecimento, a zoomorfização
do ser humano.
Afinal, cansado daquela vida de cigano, voltei para
a mata. Casimiro Lopes, que não bebia água na ribeira
do Navio, acompanhou-me. Gosto dele. É corajoso,
laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão.
d) Criação de personagens-tipo que representam
não indivíduos, mas classes e grupos sociais. Fabiano é
o típico sertanejo sofrido; Paulo Honório é o típico
fazendeiro capitalista e ganancioso; Luís da Silva é o
típico intelectual frustrado, revoltado e marginalizado...
Aos bancos solicitei empréstimos, ao governador
comuniquei a instalação próxima de numerosas
indústrias e pedi a dispensa de imposto sobre os
maquinismos que importasse. A verdade é que os
empréstimos eram improváveis e eu não imaginava a
maneira de pagar os mecanismos. Mas havia-me
habituado a considerá-los meio comprados.
Em seguida consultei o Aprendizado Agrícola da
Satuba relativamente à possível aquisição de um
bezerro limosino.
A OBRA
Romance de tensão crítica – Nesta obra, como
nas seguintes, Graciliano Ramos integra o herói e seus
conflitos pessoais com o mundo exterior, com a
sociedade e seus mecanismos de opressão. Interagindo
de forma tensa com o mundo, Paulo Honório, ou Luís da
Silva, ou Fabiano, com seus dramas, refletem ao mesmo
tempo a consciência do homem nordestino e a do
homem universal.
O mundo que me cercava ia-se tornando um
horrível estrupício. E o outro, o grande, era uma
balbúrdia, uma confusão dos demônios, estrupício muito
maior.
Publicado em 1934, S. Bernardo é o relato em
primeira pessoa da ascensão social do personagem
narrador, Paulo Honório. Movido pela ambição de se
FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 13
tornar um grande fazendeiro, levado pela ânsia de
poder, pela obsessão da posse e pelo excessivo
autoritarismo, acaba por afastar-se do convívio dos
amigos e do amor da própria mulher.
Sua esposa, a professora Madalena, ao contrário
do marido capitalista, tem inclinações socialistas e
sentimentos filantrópicos. A mulher opõe-se, assim, à
exploração a que Paulo Honório submete os
trabalhadores.
Numa reação provocada pela ignorância e pelo
radicalismo, o fazendeiro passa a desconfiar dos gestos
e das atitudes de pessoa letrada que sua mulher toma e
começa a tratá-la com ofensas, grosserias e
humilhações derivadas de seu ciúme doentio.
Utilizando a única forma de negar e condenar
radicalmente as injustiças e violências praticadas contra
ela pelo marido, a mulher se mata.
O suicídio de Madalena, sua esposa, leva Paulo
Honório a uma retrospectiva de todos os atos de sua
vida, na tentativa de entender a causa do
desmoronamento de seu mundo.
O livro que a personagem resolve escrever é a
expressão do desabafo e de um certo exame de
consciência que tentam explicar seu jeito de ser e seu
fim solitário, amargurado e decadente.
Pelo texto a seguir, fecho do livro S. Bernardo,
tem-se uma ideia do estado de espírito desse homem,
aparentemente tão forte e destemido e tão frágil
espiritualmente.
OS PERSONAGENS
PAULO HONÓRIO é o personagem-narrador.
Começo declarando que me chamo Paulo
Honório, peso oitenta e nove quilos e completei
cinquenta anos pelo São Pedro. A idade, o peso, as
sobrancelhas cerradas e grisalhas, este rosto vermelho
e cabeludo têm-me rendido muita consideração.
Toda a estrutura do enredo se ordena em torno
dele. Representa um duplo papel: O fazendeiro
ambicioso, enérgico e dominador, aquele que veio do
nada e que alcançou estabilidade e respeito social,
tornando-se proprietário bem-sucedido da fazenda onde
no passado trabalhara na enxadae o escritor e
narrador da história que o leitor está lendo.
Esse segundo Paulo Honório vive um tempo
diferente daquele em que se situa o primeiro. O Paulo
Honório narrador está situado no presente de sua
solidão, em meio à qual rememora os fatos passados,
entregando-se ao doloroso exercício de enfrentar a
verdade sobre si mesmo.
“Quando os grilos cantam, sento-me aqui à mesa
da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às
vezes as ideias não vêm, ou vêm muito numerosas – e a
folha permanece meio escrita, como estava na véspera.
Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a
pena tentar corrigi-las. Afasto o papel”.
Através do relato, acompanhamos Paulo Honório
se construindo: de menino pobre, sem pai nem mãe,
passa pela juventude sem rumo, descobre as asperezas
de vida e desenvolve uma forte ambição. Ao
apropriar-se da fazenda São Bernardo, dá o passo
definitivo para a estabilidade e o reconhecimento social.
Se tentasse contar-lhes a minha meninice,
precisava mentir. Julgo que rolei por aí à toa. Lembro-me
de um cego que me puxava as orelhas e da velha
Margarida, que vendia doces....
MADALENA é a co-protagonista do romance. A
partir do capítulo 12, quando efetivamente passa a
participar das ações, todos os fatos narrados por Paulo
Honório estão relacionados a ela, a mulher que, mesmo
amando intimamente, ele pretende possuir como se
fosse mais um objeto de troca.
As ideias que a professorinha alimenta – sua visão
humanista e solidária, o desejo de participação
igualitária dentro do casamento e nos negócios, a
delicadeza no trato e a formação intelectual letrada – vão
motivar o choque entre os dois. A impossibilidade de
fazer-se entender pelo marido, como também a mesma
impossibilidade de compreendê-lo, mais a firme
resistência em não sucumbir a uma situação de
passividade e submissão, arrastam-na ao desespero e
ao suicídio.
Moça loura e bonita; culta, educada, direita, de
bons costumes, delicada e boa: assim era descrita
Madalena por Paulo Honório. Ela aceita um casamento
sem amor, pensando em garantir segurança para si e
para a tia. Ao entrar em contato com a vida na fazenda,
tenta promover mudanças na maneira como os colonos
eram tratados e depara-se com a intransigência e
brutalidade de um Paulo Honório dominador e cheio de
desconfianças que, no auge das crises de ciúmes,
alimentava terríveis cenas de desconfiança, imaginando
que ela o estivesse traindo com os amigos e até com os
colonos da fazenda.
Quando as dúvidas se tornavam insuportáveis,
vinha-me a necessidade de afirmar. Madalena tinha
manha encoberta, indubitavelmente.
– Indubitavelmente, indubitavelmente, compreen-
dem? Indubitavelmente.
As repetições continuadas traziam-me uma
espécie de certeza.
Esfregava as mãos. Indubitavelmente. Antes isso
que oscilar de um lado para outro.
Via-se muito bem que d. Glória era alcoviteira.
Passadas mansinhas, olhos baixos, voz sumida –
estava mesmo a preceito para alcoviteira. Antigamente
devia ter dado com os burros na água. Alcoviteira,
desencaminhara a sobrinha. Sempre de acordo,
aquelas duas éguas. [...]
Padre Silvestre passou por S. Bernardo – e eu
fiquei de orelha em pé, deconfiado. Deus me perdoe,
desconfiei. Cavalo amarrado também come.
A infelicidade deu um pulo medonho: notei que
Madalena namorava os caboclos da lavoura. Os
caboclos, sim senhor...
14 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
Uma tarde em que a Margarida subiu a ladeira a
vara e a remo para visitar-nos, vigiei-a uma hora, com
receio de que a pobre fosse portadora de alguma carta.
Creio que estava quase maluco. (cap. XXIX)
Luís Padilha, herdeiro legítimo de São Bernardo,
formou-se doutor, mas não revelou competência na
administração da herança e acabou por levar a fazenda
à falência. Preferia dedicar-se ao jogo, à bebida e às
mulheres. Intelectual sem futuro, alimentava ideias
revolucionárias de esquerda e, ao final, acaba
ingressando nas fileiras rebeldes. No capítulo 04, que
narra a venda da fazenda, fica visível a fraqueza moral
dele em contraponto com a agilidade e a competência de
Paulo Honório.
– ... Despesa muita, Padilha. Faça preço.
Debatemos a transação até o lusco-fusco. Para
começar, Luís Padilha pediu oitenta contos.
– Você está maluco! Seu pai dava isso ao Fidélis
por cinquenta. E era caro. Hoje que o engenho caiu, o
gado dos vizinhos rebentou as porteiras, as casas são
taperas, o Mendonça vai passando as unhas nos
babados...
Perdi o fôlego. Respirei e ofereci trinta contos. Ele
baixou para setenta e mudamos de conversa. Quando
voltamos à barganha, subi a trinta e dois. Padilha fez
abate para sessenta e cinco e jurou por Deus do céu que
era a última palavra. Eu também asseverei que não
pingava mais um vintém, porque não valia. Mas lancei
trinta e quatro. Padilha, por camaradagem, consentiu em
receber sessenta. Discutimos duas horas, repetindo os
mesmos embelecos, sem nenhum resultado. Resolvi
discorrer sobre minhas viagens ao sertão. Depois, com
indiferença, insisti nos trinta e quatro contos e obtive
modificação para cinquenta e cinco. Mostrei
generosidade: trinta e cinco. Padilha endureceu nos
cinquenta e cinco, e eu injuriei-o, declarei que o velho
Salustiano tinha deitado fora o dinheiro gasto com ele,
no colégio. Cheguei a ameaçá-lo com as mãos. Recuou
para cinquenta. Avancei a quarenta e afirmei que estava
roubando a mim mesmo. Neste ponto, cada um puxou
para o seu lado. Finca-pé. Chamei em meu auxílio o
Mendonça, que engolia a terra, o oficial de justiça, a
avaliação e as custas. O infeliz, apavorado, desceu a
quarenta e oito. Arrependi-me de haver arriscado
quarenta: não valia, era um roubo. Padilha escorregou a
quarenta e cinco. Firmei-me nos quarenta. Em seguida
roí a corda.
– Muito por baixo. Pindaíba. [...]
Para evitar arrependimento, levei Padilha para a
cidade, vigiei-o durante a noite. No outro dia, cedo, ele
meteu o rabo na ratoeira e assinou a escritura. Deduzi a
dívida, os juros, o preço da casa, e entreguei-lhe sete
contos quinhentos e cinquenta mil-réis. Não tive
remorsos.
Seu Ribeiro “um velho alto, magro, curvado,
amarelo, de suíças” é o velho guarda-livros, que fora no
passado um rico proprietário rural. Um patriarca amado
e respeitado por todos e que a todos atendia. Entretanto,
ele não soube acompanhar as mudanças trazidas pelos
tempos e acabou perdendo tudo. Representa no
romance os bons valores do mundo senhorial e, por isso,
contrasta com a figura de Paulo Honório.
Casimiro Lopes é a figura silenciosa e soturna do
capanga fiel que acompanha Paulo Honório como uma
sombra, permitindo dizer que funciona como a projeção
do lado mais primitivo e brutal deste. Um traço humano
sobressai, porém, em Casimiro Lopes: entre todos os
que habitam a fazenda, apenas ele dá alguma atenção
ao filho pequeno de Paulo Honório e Madalena.
Dona Glória é a tia de Madalena e única pessoa
da família da moça, sobre a qual recai grande parte da
irritação de Paulo Honório. Madalena a defende,
narrando a vida difícil de ambas, quando d. Glória
dedicava-se a várias pequenas atividades para manter
os estudos da sobrinha. A velha senhora representa um
aspecto da condição social da mulher, quando esta não
tem acesso a uma formação profissional especializada
e, para sobreviver, fica à mercê de afazeres menores e
da vontade de terceiros.
O ENREDO
A história de S. Bernardo se passa na década de
trinta. O narrador, Paulo Honório, cinquenta anos, tenta
revisitar dramas da sua vida e conflitos internos que até
o momento em que o livro era escrito permaneciam
inexplicáveis. Nem a fazenda, nem Madalena deram-lhe
o sossego que tanto buscava. Resta-lhe a escrita; talvez
ela lhe devolva a paz desejada. Mas os fatos e o tempo
não voltam. Há, assim, uma constante transição entre
passado e presente, já que o narrador, além de nós
leitores, é também o destinatário da história que ele
tenta reeditar.
Quando se decide a contar a sua história, Paulo
Honório já se encontra viúvo e sozinho, Está com
cinquenta anos, grisalho e pesa 90 quilos. Não sabia
muito de seus pais nem de sua Infância. Lembrava-se
apenasde uma Margarida de quem vendia os doces, e a
quem, agora, ele sustentava. Até os 18 anos trabalhou
na enxada, na fazenda São Bernardo.
Depois de um tempo, trabalhando como vendedor,
viajando, resolveu morar em Viçosa, sua terra natal,
Alagoas, já tencionando apropriar-se de São Bernardo.
Quando o velho Padilha (dono das terras) morreu, Paulo
criou laços de amizade com o filho daquele, Luís: devasso,
esbanjador e viciado em jogo, logo emprestando-lhe
dinheiro, tendo como garantia as terras. Paulo acabou por
tomar-lhe São Bernardo com escritura e tudo o mais. Paulo
teve que trabalhar muito para que pudesse reconstruir a
fazenda, que se encontrava praticamente arruinada. Em
pouco tempo a propriedade estava recuperada, e o passo
seguinte era ampliar os seus limites, avançando para além
das cercas do vizinho, eliminando inimigos. Logo se torna
um poderoso coronel da região.
Em uma de suas viagens a Maceió, encontrou um
velho simpático chamado Ribeiro, guarda-livros da
Gazeta. Resolveu levá-lo para a fazenda, já que a casa
FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE 15
nova estava pronta. Tudo começou a funcionar como
Paulo queria e ele se tornava cada vez mais importante
e respeitado. Alguns o criticavam, alegando que
desejava possuir o mundo todo. Paulo Honório mandou
construir uma estrada, uma escola e uma Igreja.
Recebeu a visita até do Governador. Depois mandou
chamar Padilha para ser professor na escola.
Uma ideia perseguia Paulo: a de se casar.
Desejava um herdeiro para a sua fazenda. Numa noite,
foi visitar o Juiz Dr. Magalhães com a desculpa de um
processo que estava em suas mãos, mas na verdade
tinha interesse na filha do magistrado. Na casa do juiz
encontrou muita gente, entre outras pessoas, uma
loirinha que o deixou impressionado, cuja tia encontrou
mais tarde no retorno de uma viagem. A partir daí passou
a frequentar a casa delas até que, como se estivesse
fechando uma transação comercial, propôs casamento a
Madalena. Padre Silvestre os casou. A casa e a fazenda
agradaram a Madalena e a sua tia D. Glória.
Madalena teve um menino. Completaram dois
anos de casados. Daí por diante, Paulo começou a
sentir ciúmes de sua esposa. Tinha uma cega
desconfiança de todos os seus amigos. Observava o
filho que nada tinha de parecido com ele. Ele só queria
saber se a esposa lhe era fiel. Se fosse, ele a faria a
mulher mais feliz do mundo. A situação foi-se
agravando. Paulo Honório desconfiava até do padre e
dos caboclos. Estava quase louco. À noite, ouvia passos
e assobios que acreditava serem sinais. Não dormia.
Madalena, nas conversas, mantinha-se serena. Só dizia
que, caso morresse de repente, queria que dessem seus
vestidos à família do Mestre Caetano e à Rosa; e os
seus livros ao Seu Ribeiro, Padilha e Gondim. Até que
um dia se suicidou.
Enterraram Madalena. Paulo mudou de quarto. D.
Glória e Seu Ribeiro foram-se. Estourou a Revolução.
Padilha e Padre Silvestre incorporaram-se às tropas
revolucionárias. O outro ano foi terrível. Tudo andava
mal, mas Paulo parecia não se incomodar. Era um
homem só. Viúvo há dois anos. Um homem acabado.
Sem amor, sem dinheiro, sem nada.
PONTOS IMPORTANTES
Como um novo Bentinho, Paulo Honório resolve contar a
história de sua ascensão e queda. O ciúme que sentia
de Madalena, a desconfiança de que o filho não era seu,
a amargura e o desgosto com que fecha a vida o aproxi-
mam de D. Casmurro. Paulo Honório escreve para lem-
brar um amor destruído pelo ciúme e para entender o
porquê do desmoronamento de seu mundo, que ocorreu
após o suicídio da Madalena, a mulher que ele não che-
gou a compreender, nem a conhecer de verdade.
Numa linguagem direta e seca, mostra Paulo
Honório, além do espírito capitalista emergente no
sertão, a sintonia entre o meio agreste e a dureza das
condições de vida no sertão com a alma confusa,
petrificada e bruta do personagem.
A posse, o interesse material, o lucro e os
benefícios políticos são as molas que propulsionam as
ações de Paulo Honório. O trabalho árduo, a igreja, a
escola, o casamento, tudo visa à concretização de um
objeto preestabelecido de ser “dono”. E essa finalidade é
perseguida mesmo à custa de crimes, brutalidade e
outros meios escusos.
Paulo Honório é dominador, os outros personagens
são, para ele, apenas “bichos’ que servem de meio para
atingir os fins que ele busca. Mesmo a ideia de dividir o
trabalho de escrever o livro, tem no fundo a intenção de
se aproveitar dos outros para poder mais facilmente pôr
seu nome, Paulo Honório, na capa da obra.
A ideologia socialista de Madalena, que procura
ajudar os trabalhadores de São Bernardo, entra em
choque com ganância capitalista do marido. A avareza,
que sofre pelos “esbanjamentos” de Madalena, primeiro
se transforma em “inveja” de sua sabedoria, de seu jeito
descontraído ao tratar com todas as pessoas, depois
muda-se em ciúme doentio que cerca, pressiona, tortura
e humilha.
O suicídio de Madalena é uma derrota para Paulo
Honório. Para não se sujeitar à prepotência do marido,
ela tira a própria vida. A carta de despedida que ela
escreve é levada pelo vento e Paulo Honório ao
recolhê-la julga que era destinada a outro.
Depois da morte de Madalena é que Paulo passa a
se dar conta de tudo, culpando-se pelo desfecho infeliz,
embora apresente a atenuante de, ele próprio, ser
produto do meio hostil que modelou seu caráter.
Em suma, Paulo Honório focaliza seu mundo interior, numa
espécie de auto-análise ao mesmo tempo em que se apre-
senta sua visão da realidade. São Bernardo pode, assim,
ser considerado um romance confessional.
Desde a infância foi vendedor, e seu sonho era ser
dono da São Bernardo. Seu instinto de posse, seu
espírito prático a tudo e a todos considerava passíveis
de compra.
Comprou a fazenda São Bernardo, transformou-a
numa fazenda modelo, por meios lícitos e ilícitos
conseguiu fazer tudo o que planejara.
Madalena , a mulher que Paulo Honório escolheu
para lhe dar um herdeiro, foi conquistada como se
conquista e se compra uma máquina moderna.
Mas Madalena era inteligente, mais que o marido.
Tinha uma ideologia socialista que defendia os direitos
dos trabalhadores, contra a mentalidade capitalista do
marido. Era sociável, conversava com as visitas, de
todos os níveis, e causava inveja e ciúme no marido
bronco e ignorante.
O ciúme doentio de Paulo Honório tornou-o
paranoico e insuportável. Madalena não aceitava
sujeitar-se aos caprichos do marido e, para não perder
sua dignidade de mulher e de ser humano, preferiu
suicidar-se.
Desarvorado, sem entender a “rebeldia” de Mada-
lena, Paulo Honório vai assistindo ao desmoronamento
de seu mundo e de seu império.
Qual outro D. Casmurro, Paulo Honório escreve sua his-
tória, misturando, lembranças, desabafos, confissões,
com a certeza de que se fosse para começar tudo de
novo, faria o que fez, tudo de novo.
16 FACULDADES PEQUENO PRÍNCIPE
O PAGADOR DE PROMESSAS
Dias Gomes
O AUTOR
Dias Gomes nasceu em 19 de outubro de 1922,
na rua do Bom Gosto, em Salvador (BA).
Na infância, estudou em colégios católicos, o que
fez dele um religioso até os dezessete anos, quando
passou a ser materialista.
Jovem, foi para o Rio de Janeiro tentar a sorte.
Começou o curso de Engenharia, mas abandonou-o;
estudou Direito por três anos, também abandonou o
curso. Só conseguiu se “encontrar” quando começou a
escrever peças de teatro, aptidão que desde a infância
lhe acenava com verdadeira vocação.
Nos anos 40, Dias Gomes tinha uma intensa
produção artística. Suas peças iam sendo publicadas e
o autor passou ainda a trabalhar no rádio, meio que lhe
rendia melhores ganhos.
Casou-se com Janete Clair (1925-1983),
radionovelista e, depois, telenovelista de sucesso. Tudo
parecia caminhar muito bem em sua profissão.
Entretanto, a partir dos anos 50 – e principalmente nos
anos 60 – começa a ter sérios problemas com a censura.
Quase todas as suas peças são proibidas de ir ao palco
ou ao ar.
É quando começa a escrever para a televisão,
novo modelo de mídia. Resultado? Foi o pioneiro da
literatura para a TV, dando a esse meio de cultura um
ótimo

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