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INOCÊNCIA O AUTOR O nobre Alfredo d´Escragnolle de Taunay, pertencente a uma aristocrática e culta família francesa, nasceu no Rio de Janeiro em 22 de fevereiro de 1843 e morreu na mesma cidade, em 25 de janeiro de 1899. Sua obra é objeto de discussão sobretudo pelo fato de confundir os críticos. Muitos vinculam seus romances ao regionalismo romântico; outros veem nele traços marcantes do Realismo. Embora a consagração literária de Taunay tenha se limitado a duas obras, o conjunto diversificado de sua produção escrita muito contribuiu. OS PERSONAGENS � Inocência – a nossa protagonista. Personagem tipicamente romântica, dotada de todas as virtudes físicas e morais possíveis. Seu nome é capaz de espelhar suas características – Inocência (do latim innocentiae) significa pureza, simplicidade, ingenuidade. Seu defeito? Sofria de maleita, estando constantemente fragilizada pela doença. Pode- mos fazer uma série de associações entre o seu nome e o todo da obra. A vida de moça obediente e frágil sofrerá mudanças ao conhecer Cirino, que a cura da febre da doença e a infecta com a febre da paixão. É exemplo da situação da mulher à época: segregada, acostumada à obediência cega, proibida de ter acesso à cultura, destinada aos serviços domésticos, sujeita à vontade do dono, quer ele seja o pai ou o marido que o pai lhe escolher. � Cirino – forma com Inocência o par romântico do livro. Mais curioso que estudioso, é o moço da cidade que per- corre o sertão curando pessoas doentes, munido de um livro de medicina e de ervas curativas sem, entretanto, ter autorização para medicar. Dotado de nobre caráter, respeitado por todos, culto, honesto, humilde, generoso, con- quista a confiança do previdente Pereira e o coração da frágil Inocência. � Pereira – pai de Inocência. Tipifica o patriarca, que dispõe de plenos poderes em sua terra e em sua casa, fazendo valer suas leis e direitos. Também representa o sertanejo totalmente comprometido com os valores da sociedade agrária de origem colonial. Seu conhecimento de mundo é formado pela cultura oral, uma vez que não conheceu o mundo da escrita. Vê a sua filha como uma criança, procurando protegê-la dos homens. � Manecão – o noivo prometido de Inocência. Durante quase toda narrativa, Manecão permanece ausente de todo o desenrolar da trama, uma vez que se encontra viajando para negociar gado e para providenciar a documentação para o casamento. Desempenha o papel de vilão da história. � Meyer – Um entomologista (que estuda insetos) alemão que se instalará na casa de Pereira. Não poupa elogios à beleza de Inocência, o que desperta em Pereira grande preocupação. Não podendo expulsar o alemão de sua casa, pois não podia voltar atrás em sua palavra, Pereira passa a controlar todas as atitudes de Meyer, pois achava que este queria se aproveitar de Inocência. � Tico – anão e mudo, verdadeiro “cão de guarda” da nossa protagonista. Pereira confia a esta personagem tão gro- tesca a tarefa de proteger e vigiar a donzela Inocência. INOCÊNCIA CONTOS DE BELAZARTE O PAGADOR DE PROMESSAS FELICIDADE CLANDESTINA 2 PUCPR O ENREDO I – O Sertão e o Sertanejo O narrador emite em 3ª pessoa, como observador, seu ponto de vista sobre o sertão e, principalmente, as relações existentes entre esse espaço e o homem que nele habita: o sertanejo. Longa e detalhada descrição do campo, da estrada (descreve o cerrado com abundância de arbustos), alguns fenômenos provocados pela ação do homem, como o incêndio: a tímida centelha que com o soprar do vento transforma-se em uma devoradora língua de fogo. Depois de acalmado o fogo, tudo fica sob a cinza. A transformação verdejante se dá ao cair a primeira chuva. Se não há chuva, os campos ficam devastados por meses; o carcará e o gavião habitam essas paisagens. O Sertanejo descansa e prossegue, adormece com serenidade, embora saiba dos perigos que o rodeiam – é fatalista, sente a paz de espírito ao cair da tarde. Não tem família, em geral; mas quando a tem, sua prole segue pelo mesmo caminho. II – O Viajante Era inverno no interior do Brasil, em 1860. A Vila de Sant’Ana do Parnaíba passa por uma fase – como era comum à época – de ataque de maleitas (febres, sezões e males) que sempre era da mais perfeita providência a passagem de um médico por essas paragens. Vem o viajante, com aparência de não mais de 25 anos, a cavalo, encontra-se com o sertanejo: conversam, cada um conta um pouco sobre sua vida e seguem juntos. O sertanejo oferece ao viajante, que a princípio se dirige para a casa de Leal, hospedagem em sua casa, pois lá há onde ficar e mais ainda: ao descobrir que o viajante é doutor, diz ter em casa uma filha, acometida pelas maleitas da febre. Além disso, o viajante revela ter contraído dívida de jogo e tem necessidade de ter muitos clientes para quitar tal débito. III – O Doutor O narrador revela então uma porção de omissões sobre Cirino. Nasceu mesmo no interior de São Paulo, na Vila de Casa Branca, filho de “boticário”. Aos 12 anos foi mandado para a casa de um tio em Ouro Preto (onde não foi bem acolhido), foi mandado ao internato, o tio faleceu e por não ter deixado coisa alguma para os padres, sequer algum bem em testamento, o menino, então com 18 anos, foi expulso do colégio. Voltou a trabalhar numa botica, como fazia antes com seu pai. Matriculou-se depois na Escola de Farmácia de Ouro Preto, mas antes de tirar a carta, começou a viajar pelo sertão. Como um simples curandeiro, decidiu ir para o Mato Grosso do Sul, onde pessoas sem esperanças de melhora depositavam nele toda a fé da cura. IV – A Casa do Mineiro Pereira (O Sertanejo) apresentou-se, desde o princí- pio como nascido em Minas, mas veio morar no interior depois que a mulher faleceu e ele ficou só com a filha por criar, pois o filho vive mundo afora. Ao chegar a casa, são saudados por cachorros, galos e galinhas; aparece também a preta velha Maria Conga. Cirino preocupa-se por não ter avisado os cavaleiros que o acompanhavam que não estava mais indo para a casa do Leal, mas Pereira o tranquiliza, pois tinha deixado galhos verdes quebrados no meio do caminho como indicadores. Jantam e Cirino prepara os remédios para ver a moça. V – Aviso Prévio Pereira chama Cirino para ver a moça (está anoitecendo). Pereira “prepara” Cirino para entrar em sua casa e ao contrário do que disse anteriormente sobre a filha (14 ou 15 anos), revela que a menina já completou 18 e parece moça da cidade. Fala também da promessa da mão da filha feita a Manecão e fala sobre este seu futuro genro. Cita-se o tratamento destinado à mulher no sertão e a desconfiança alimentada em relação a elas como se fossem seres capazes de pôr alguém a perder pelo feitiço. O bom pai passa a discorrer emocionado sobre os encantos e a beleza da filha. Cirino mais uma vez reforça que sabe respeitar todas as famílias por onde passa; diz que não compartilha da opinião de Pereira em relação às mulheres. VI – Inocência Passeio entre as flores do pomar (flores de laranjeira). O narrador descreve a alvura do colo da menina, que deixa Cirino impressionado. Ele a examina e promete a Pereira que ficará boa em uma semana. Aparece Tico, um anão que é quase um “cachorrinho” de Inocência, está sempre pajeando a menina, não fala, apenas esboça alguns grunhidos quando muito exaltados. Após as conveniências de apresentação, Cirino dá o diagnóstico das sezões e recomenda um suadouro para a menina. VII – O Naturalista Descreve um viajante, que, pelo jeito de vir e de tratar (fustigar) o animal em que vinha montado, não tem a mínima prática com essa lida. VIII – Os Hóspedes da Meia-Noite O “viajante atrapalhado” e seu companheiro acabam por ser desviados para a casa de Pereira. Após algumas discussões, chegam à casa e são abrigados. Muito bem recebidos, os novos hóspedes vão dormir, enquanto Cirino e Pereira vão visitar a moça para ver se o suador já fez efeito (já passa da meia-noite). IX – O Medicamento No quarto da moça falam sobre as sezões. O pai vai buscar a dose de café para a menina; enquanto isso, Cirinofica embevecido com a beleza da moça. Ela bebe o medicamento e ele não consegue dormir, pois o mal da paixão instalara-se em seu coração. X – A Carta de Recomendação Meyer fala a respeito do propósito de sua viagem ao Brasil: descobrir novos espécimes de borboletas. Em meio à conversa, Meyer fala das cartas que vai levar de volta por não ter encontrado os destinatários, uma delas é justamente para Pereira; é de seu irmão Chiquinho. Pereira fala tanto que não deixa sequer o alemão agradecer. XI – O Almoço Cirino fala da vontade de partir no dia seguinte. Pereira pede para que ele fique por mais duas semanas. Almoçam e, em meio às falações de Pereira, este lembra-se de apresentar a filha ao alemão Meyer, pois ele deve ser considerado da família, já que foi recomendado pelo irmão de Pereira (Chico) como hóspede. XII – A Apresentação Por ser “de casa”, o alemão elogia abundantemente a filha de Pereira, fazendo com que o zeloso pai fique aborrecidíssimo e enfurecido, mas procurando conter-se. Enquanto o alemão diz que ficará umas boas duas semanas em sua fazenda caçando borboletas, Pereira comenta com Cirino o incômodo que sente com os elogios à filha. Pereira ainda retruca em voz baixa que Meyer há de se ver com Manecão caso se meta a gracejos com Inocência. XIII – Desconfianças O alemão oferece de bom grado o vinho que trazia na bagagem para a cura completa da menina. Pereira (com alguma desconfiança que não deixa explícita qual seja) pergunta a Juque (companheiro de viagem de Meyer) por que ele chama Meyer de Mochu. Juque responde que é um termo francês, equivalente a senhor. Pereira começa a adquirir confiança desmedida e imediata em Cirino, pois este continua comportando-se de maneira respeitosa em relação a Inocência, enquanto Meyer, desavisado, não faz questão de esconder sua surpresa agradável por ver moça tão bela. Pereira tem de dar uma rápida saída; a confiança em Cirino é tanta que chega a dizer para o rapaz que pode ir dar o medicamento à moça sozinho, se ele não tiver voltado ao meio-dia. XIV – Realidade Cirino vê Pereira sumir-se além das laranjeiras. O dia prometia ser ótimo, tudo era cheio de vida ao seu redor, e ele estava levemente inquieto. Ao se aproximar da hora da medicação, aparece Tico, sempre com ar de poucos amigos quando se trata de Cirino. Cirino se aproxima de Inocência, beija-lhe o braço, propõe que dividam o remédio para que ele possa compartilhar do que ela sente. Ela desmaia, ele lhe dá vinho para revigorar e confessa que ela é a dona de sua alma. XV – História de Meyer Pereira conta a Cirino que o “alamão” passou o dia todo a puxar conversa sobre a menina. Falam descontraidamente durante o jantar sobre a aventura de Meyer – ele caiu e perdeu as espécies novas capturadas. Descrevem o ridículo e grotesco da cena do alemão tirando a roupa, acometido pelo ataque de formigas. XVI – O Empalamado Pereira passa a dormir na sala para vigiar Meyer e não repara na penosa agitação de Cirino. Falam dos doentes que começam a chegar para serem curados pelo doutor. Mais uma vez Meyer dá com a língua nos dentes sobre a beleza de Inocência. Cirino ensina como se faz o tratamento para a Moléstia do Empalamado. XVII – O Morfético Pereira pergunta ao sr. Garcia (o leproso que vem procurar o médico) como ele está. Segue-se uma conversa pungente entre os dois, enquanto aguardam Cirino sair de dentro de casa. Garcia faz uma pergunta direta a Cirino: se a doença é contagiosa; Cirino responde que sim. Então Garcia diz que sairá de casa para não causar mal aos seus, dá um adeus triste e diz que vai para São Paulo, e o sertão da Parnaíba nunca mais tornará a vê-lo. XVIII – Idílio Pereira fala que Manecão não deve tardar a voltar de Uberaba com os papéis para o casamento. Cirino se inquieta. Trava-se uma ardente conversa ele e Inocência, já de madrugada, quando Cirino não aguenta e resolve ir até o quarto da moça. Ela sempre ingênua e amedrontada e ele cheio de galanteios que falam de amor. Importante o tipo de evocação ao amor que aqui aparece: Inocência parece a toda hora tentar saber se aquilo que sente não é doença, mas amor, enquanto Cirino o tempo todo a faz crer que realmente se amam porque ele compartilha da mesma inquietação e desassossego que ela sente. Escutam um assobio estridente, e o arremesso de uma pedra na direção dos dois põe fim ao momento de arrebatamento amoroso. Inocência se assusta, Cirino vasculha o pátio, mas nada enxerga. XIX – Cálculos e Esperanças Inocência já curada do mal e Meyer a reclamar que ela não aparece. Pereira replica com raiva que são costumes do lugar. Cirino e Inocência conversam novamente, e ela diz que dirá ao pai que já não quer casar-se com Manecão. Inocência fala longamente, reservada por seu manto de pureza. Cirino decide então falar com o pai da moça no dia seguinte. XX – Novas Histórias de Meyer Pereira reclama a Cirino do abuso de Meyer. Conta-lhe da insistência do alemão em trazer a filha como assunto. Mais e mais Pereira dá voto de confiança a Cirino. Cirino cogita, em uma de suas conversas, se PUCPR 3 Pereira não deveria consultar a filha sobre o casamento antes de casá-la. Ao ver a reação totalmente raivosa de Pereira, logo diz que se enganou e isso de consultar a opinião das mulheres são coisas da cidade. XXI – Papilio innocentia Meyer corre a dizer e mostrar a nova espécie de borboleta que encontrou, denominando-a Papilio innocentia, em homenagem à bela filha de Pereira. Meyer fala também que quando voltar à sua terra já se terão passado 18 signos do zodíaco e dirá que os brasileiros são felizes e têm boa índole. Particularmente, Pereira acrescenta que zelam pela família. XXII – Meyer parte Descreve as consultas dadas por Cirino e diz que no estado em que se encontrava o médico – a perturbação em nutrir um amor proibido – era natural que trocasse um remédio por outro, mas o que importava era a crença dos doentes. A partida de Meyer alegrava Pereira, que pensava estar se livrando do intruso que vivia no encalço de Inocência (segundo o que imaginava Pereira). O alemão parte e logo após retorna, querendo despedir-se de Inocência, o que não havia feito por esquecimento. o pai desconversa e não permite que ele vá se despedir. Mesmo assim, ele diz que será sempre seu criado, no mundo todo. Finalmente Meyer e seu companheiro partem. XXIII – A Última Entrevista Com a partida de Meyer, os encontros de Cirino e Inocência se tornaram impossíveis. Combinam um encontro para lá do laranjal para que não sejam vistos. Abraçam-se e entram ambos em êxtase, enquanto a aurora surge. Antes falaram da única possibilidade de fazer com que a moça não se casasse com Manecão: a intercessão do padrinho, que Cirino resolve partir no dia seguinte para encontrá-lo. Ouvem o assobio e uma gargalhada novamente, Cirino procura e nada vê. Há uma confusão na casa, Pereira acorda e atira, Cirino aparece e pergunta o que acontece, ao que Pereira responde que ouviu um grito no laranjal e acha que é alma penada. Era Tico, que acompanhava todos os movimentos do casal. XXIV – A Vila de Sant’Ana Cirino segue a cavalo com grande perturbação de espírito, ora amaldiçoa os olhos que lhe puseram a perder, ora se dá conta de que isso foi o momento de sua felicidade. Ao passar pelo povoado, é bombardeado por perguntas das mais variadas. Encontra Manecão e este está indo para a casa de Pereira (parece-lhe rude, selvagem, áspero). XXV – A Viagem Cirino enfrenta uma difícil empreitada de transpor as matas e rios. Há uma descrição detalhada do ambiente inóspito da mata e uma série de conjugação de sentimentos que perpassam a alma do rapaz: uma meditação aliada à tristeza; alegria como fato repentino e passageiro da natureza. Cirino pensa em Manecão, em sua impotência diante dessa figura. Seu coração estava tomado de apreensões. Dá-se conta de que tudo ao seu redor está alegre. Alcança, então, no quarto dia, a casa de Antonio Cesário, padrinho de Inocência. XXVI – Recepção Cordial Pereira recebe Manecão efusivamente, e este lhe pergunta sobre Inocência.Inocência está no córrego e não responde ao chamado do pai, que desejava que a moça viesse falar com o noivo prometido. Noivo e “futuro sogro” conversam enquanto esperam pela moça. XXVII – Cenas íntimas Inocência expressa terror ao encontrar Manecão. Depois, Manecão e Pereira falam sobre a reação da moça. Simulando recaída de sezões, Inocência tranca-se no quarto e sente toda a perturbação na alma. O pai vai falar com ela. Inocência mente que a mãe apareceu-lhe dizendo para não se casar com Manecão; porém, não suportando o peso da mentira, desmente a história da visão e o pai diz, enérgico, que se ela não aparecer de boa cara no jantar, irá matá-la. Nesse ponto, no momento em que Inocência iria revelar o seu desejo de não se casar com Manecão, há uma suspensão da narrativa, pois o capítulo seguinte enfocará o que acontece com Cirino na visita ao padrinho. XXVIII – Em casa de Cesário Cirino é recebido e falam de Inocência. Cesário diz que não é favorável ao casamento da moça com Manecão, embora já tenha dado a licença. Há um temor na voz de Cesário ao falar de mulheres (parece crer que elas enfeitiçam mesmo). Marcam de conversar enquanto caminham. Cirino começa a falar por meio de ilustrações, não indo direto ao assunto. Até que perde as forças e acaba tendo uma atitude grotesca: ele pede que Cesário o mate para aplacar de vez o seu sofrimento. Depois confessa seu amor por Inocência e diz que sua única chance é a intervenção do padrinho. Cesário, desconfiado, faz muitas perguntas a Cirino e, por fim, pede-lhe que faça um juramento. Cirino aceita imediatamente, e Cesário, impressionado com o caráter e os sentimentos nobres do moço, que jurara sem saber o quê, promete-lhe pensar durante oito dias. Se resolvesse ajudá-los, apareceria até o final desse período; caso contrário, valeria o juramento: Cirino deveria desaparecer de suas terras e da vida de Inocência. XXIX – Resistência de Corsa Inocência é chamada à sala para falar sobre o casamento. Faz-se de desentendida, diz que não se lembra de qualquer acerto e prefere morrer a se casar com Manecão. O pai, encolerizado, arremessa-a contra a parede e acha que foi Meyer que a pôs a perder. Manecão promete ir atrás dele na manhã seguinte. O anão, que sempre espreitara o relacionamento entre Cirino e Inocência, se aproxima e conta através de 4 PUCPR gestos que foi Cirino e não Meyer o responsável pela atitude de Inocência. Manecão, para lavar sua honra manchada, parte para Sant’Ana em busca de Cirino. XXX – Desenlace No último dia do prazo combinado, Cirino espera ansiosamente ver Cesário. Expirado o prazo, decide se matar, quando ouve um barulho de cavalo. Era Manecão, que o vigiava há três dias. Manecão diz algumas palavras desaforadas a Cirino e, em seguida, saca de sua arma e atira impiedosamente no rival, que a princípio o amaldiçoa e depois, sentindo o suor da morte, diz que não quer morrer assim e faz questão de perdoar a Manecão, que diz não querer o perdão. Manecão ouve um barulho e foge; era Cesário, que vinha encontrar Cirino. Era o apoio por que Cirino e Inocência tanto esperavam, mas que chegara tarde. Cirino faz Cesário prometer que este dirá a Inocência que morrera por sua causa. Cirino morre murmurando o nome de Inocência. Epílogo: Reaparece Meyer Em 18 de agosto de 1863, em Magdeburgo, Germânia, há homenagens da sociedade entomológica para Meyer. Aparece a notícia no jornal sobre a espécie encontrada no Brasil que ele explica ter dado o nome em homenagem à moça bela do sertão do Mato Grosso. Exatamente nesse dia, completavam-se dois anos da morte de Inocência. COMENTÁRIOS FOCO NARRATIVO em 3ª pessoa, com um narra- dor onisciente que não é somente o relator dos fatos, mas sobretudo alguém que julga, que faz interferências na narrativa através de comentários de várias espécies. ESPAÇO: o campo, com toda a sua exuberância: árvores, flores, bichos, etc.: o espaço geográfico é, no livro, uma verdadeira extensão da vida emotiva. Enquanto a vida toda se desenrola em campo aberto, os comportamentos são comandados por valores sociais que levam à reclusão. TEMPO: Há duas datas que definem a duração do conjunto de episódios que constituem a narrativa de Inocência: 15 de julho de 1860 (dia do encontro entre Cirino e Pereira) e o dia 18 de agosto de 1863 (dia da apresentação de Meyer à comunidade científica alemã o seu grande achado em terras brasileiras). É, via de regra, histórico, pois busca certa ordem cronológica. A obra inteira parece estar permeada de uma beleza que encanta e perturba, representada principalmente pela beleza misteriosa de Inocência e pela crença dos homens de que as mulheres têm realmente o poder de enfeitiçar um homem. Além da ambientação e do aparecimento de um estrangeiro louvando as belezas do Brasil, é a construção da heroína que identifica com maior ênfase a nacionalidade da obra: a moça é branca, mas tem cabelos negros e é uma sertaneja, de falares, hábitos e costumes regionais. Quanto à linguagem, Taunay conseguiu dar a seu romance um dinamismo inigualável entre outros romances da época. Procurou transcrever o falar do sertanejo, com os devidos traços de oralidade. Além disso, o romance está permeado de provérbios, crendices e “causos” populares, o que reforça a cultura e o viver do homem do interior. PUCPR 5 CONTOS DE BELAZARTE Mário de Andrade O AUTOR � Mário de Andrade nasceu em 9 de outubro de 1893, na cidade de São Paulo, tão festejada em seus versos. � Fez os estudos iniciais no Ginásio de N. S. do Carmo, cursando a seguir o Conservatório Dramático e Musi- cal de São Paulo, de que foi mais tarde professor. � Foi um dos líderes do Movimento Modernista, que rea- lizou em São Paulo a Semana de Arte Moderna, tor- nando-se por muitos anos a figura mais completa e representativa de nossas letras modernas. Dotado de extraordinária probidade moral e intelectual, de verda- deiro espírito de liderança, filósofo da literatura, pro- fessor de estética, crítico de letras e de artes, poeta, ficcionista, ensaísta, erudito, folclorista, Mário de Andrade cultivou todos os gêneros, destacando-se assim para sempre entre os maiores mestres da Lite- ratura Brasileira. Foi um mestre por excelência em toda a extensão da palavra. � Chamado de “papa do Modernismo” e de “poeta de São Paulo”, Mário de Andrade esteve presente em todos os momentos da preparação, realização e afir- mação do movimento modernista brasileiro. � Morreu em São Paulo, em sua casa, em 25 de feverei- ro de 1945. OBRAS Poesia – Paulicéia Desvairada, com o Prefácio Interessantíssimo; Clã do Jabuti; Remate de Males; Lira Paulistana. Prosa – Amar, verbo intransitivo; Macunaíma; Os contos de Belazarte; Contos Novos. O ESTILO � A pontuação acompanha o ritmo das emoções e do pensamento. � O autor utiliza com frequência: a) a metalinguagem (o texto que se refere ao próprio texto); b) a intertextualidade (referência a textos de outros autores); c) o discurso indireto livre (intercalação do discurso do narrador com o discurso direto); d) o monólogo interior, em que o personagem dis- serta consigo mesmo, seguindo um raciocínio lógico. � Linguagem contida, acabada, que traz como resultado um profundo mergulho na realidade social e psíquica do homem brasileiro. � Os tipos humanos têm densidade psicológica, mos- tram uma consciência dividida e até contraditória, exprimem claramente sua relação problemática com o mundo. A OBRA Mário de Andrade utiliza linguagem coloquial próxima da oralidade. Belazarte, solidário, recolhe situações do arrabalde paulistano que o tocam em profundidade. Situados em bairros na época bem afstados do centro da cidade – como Lapa e Brás – os contos colocam em cena brasileiros e imigrantes, homens e mulheres, trabalhadores e marginais. Belazarte espelha, sem psicologismo barato, a angústia do homem; denuncia as contradições da sociedade. À trama de cada conto prende-se a intensidade e mesmo o mistério de sentimentos e paixões humanas, fazendo com que os personagens trascendam situações datadas. A ausência de perspectivadas vidas entregues à pobreza e à mediocridade, continua no Brasil de hoje. As narrativas de Belazarte, como as conversas de subúrbio, retomam personagens como quem amarra os capítulos de uma novela. Carmela, personagem secundária em O besouro e a rosa, torna-se protagonista em Jaburu malandro, onde reaparece João, o enamorado de Rosa, para ser novamente desiludido. Teresinha que acaba viúva de marido vivo, em Caim, Caim e o resto, ressurge em Piá não sofre? Sofre. Invertendo a lógica dos contos de fadas cujo final afiança que os protagonistas “Iviveram felizes para sempre”, as mulheres n’Os contos de Belazarte, Rosa, Carmela, Teresinha, “foi/era muito infeliz” as outras foram falsamente felizes. I – O BESOURO E A ROSA Belazarte me contou: Desde muito pequena, quando a mãe a deu ou morreu, Rosa vivia com as velhotas solteironas, dona Carlotinha e dona Ana. Agora já está com 18 anos e continua “criança”, ingênua, inocente, servindo e obedecendo às duas velhas. Moça bonita e de corpo sensual, chamou a atenção de João, o padeiro que se apaixonou e pediu-a em casamento. Rosa desandou a chorar, negou-se a casar porque não queria afastar-se das velhotas. João sofreu, quase perdeu o rumo e Rosa aos poucos não se lembrava mais dele. Certa noite de muito calor, Rosa resolveu dormir de janela aberta. Acordou assustada com um besouro em cima de seu peito. “O besouro passeava lentamente. Encontrou o orifício da camisola e avançava pelo vale ardente entre morros.” Ao levantar-se, o besouro (bzzz...bzzz..) foi descendo por dentro da camisola, pela barriga até... emaranhar-se lá... nos pelos dela. “Rosa estirava as pernas com endurecimentos de ataque. Rolava. Caiu. Dona Ana e dona Carlotinha vieram encontrá-la assim, espasmódica, com a espuma escorrendo do canto da boca. Olhos esgazeados relampejando que nem brasa.” 6 PUCPR Rosa mudou. Passou a ficar quieta, indiferente, louca para ter um homem. Casou-se com um mulato, pálido por causa da pinga, e desocupado. Rosa foi muito infeliz. II – JABURU MALANDRO Belazarte me contou: O João, aquele padeiro com quem Rosa não quis se casar, começou a namorar Carmela, uma linda moça, de uma numerosa família italiana. Namoravam no portão para não serem incomodados pelos irmãos. Certo dia, um circo se instala no bairro e o povo todo vai ver os espetáculos. Cada membro da família gostava de um número especial. Rosa fica impressionada com o número do homem-cobra. Pietro, irmão de Carmela sumido há anos aparece em casa dizendo que estava trabalhando no circo e apresentou vários artistas aos pais e irmãos. Almeidinha, o homem-cobra, tímido e educado, agradou à Carmela que passou a flertar com ele. Nos encontros que aconteceram em seguida, a moça atirou-se ao rapaz numa paixão enlouquecida, afirmando que não gostava de João, um pamonha segundo ela, e que casaria só com o artista. O “Meidinha” ficou apavorado com a ideia do casamento, abandonou o circo e sumiu. Nada de grave, além dos beijos ardentes, havia acontecido entre Carmela e o artista, mas o desespero da moça quando soube do sumiço do amado, deixou todo mundo achando... sabe, né? “Os rapazes principiaram olhando pra Carmela dum jeito especial, e ficavam se rindo uns pros outros. Até propostas lhe fizeram. E ninguém mais não quis casar com ela. E só se vendo como ela procurava!... Uma verdadeira... nem sei o que! Até que ficou... não-sei-o-quê de verdade. E sabe inda por cima o que andaram espalhando? Que quem principiou foi o irmão dela mesmo, o tal da dançarina... Porám coisa que não vi, não juro. E falo sempre que não sei. Só sei que Carmela foi muito infeliz. III – CAIM, CAIM E O RESTO Belazarte me contou: De repente, os irmãos Aldo, forte e gordo, e Tino, franzino, sempre tão unidos em tudo e amigos, começaram a se desentender, a discutir e a se pegar nos tapas. Tino era fraco mas traiçoeiro e esperto: mordia, espetava com agulha; Aldo, forte como um touro, quando perdia a paciência, arrebentava o irmão de socos. Um dia, numa briga violenta, Tino mordeu a mão de Aldo e arrancou-lhe um dedo. Aldo esganou o irmão até a morte. A mãe, viúva e desesperada, não conseguiu fazer nada. Aldo foi solto. Legítima defesa. Aos poucos voltou á vida normal de trabalho. Um dia foi encontrado morto. O marido da Teresinha, o Alfredo matou-o em legítima defesa. Mas os jurados não acreditaram em Alfredo, que foi preso e condenado. Acreditaram que Aldo, o louco, porque tinha um dedo a menos e era quieto, era inocente. Teresinha ficou viúva, com dois filhos, era socorrida com um dinheiro que a sogra lhe dava. Ia vivendo, recebia até propostas, mas tinha medo de que, quando o marido, um assassino, fosse solto... credo! Teresinha era muito infeliz. IV – MENINA DE OLHO NO FUNDO Belazarte me contou: O maestro Marchese, com o sucesso de sua escola de música, contratou para auxiliá-lo um jovem violinista chamado Carlos Gomes. Dolores, filha de uma rica família, de olhos verdes insinuantes e que costumava conseguir tudo dos professores com seus olhares fundos, maliciosos e encantadores, foi matriculada como aluna do jovem professor. Dolores apaixonou-se pelo mestre, insinuou-se inutilmente, passou a estudar seriamente, tornou-se uma verdadeira artista, mas nada mais conseguiu devido à seriedade do professor, apesar deste sentir um chamego especial pela aluna. A moça, então, utilizou-se de artimanhas. Noivou e desmanchou o noivado duas vezes, para ver se o professor se decidia por ela; espalhou entre as colegas fofocas de um suposto relacionamento entre ela e o professor; denunciou o professor ao diretor da escola como sedutor; insinuou que a escola estava sendo mal vista na cidade. O jovem professor demitiu-se da escola por não aceitar as acusações do diretor e foi falar com dona Marina, mãe de Dolores. Diante do escândalo que a filha quis aprontar a mãe deu-lhe uma bofetada na boca. Quase enlouquecida com a rejeição do professor, Dolores agarrou-se a ele, confessou as mentiras que espalhara. Seu Gomes com doçura se desenlaçando. Dores gritava, dando cotoveladas na mãe, “Me largue! Me largue!” rouca duma vez. “Eu quero ir com ele!...” ...Foi chorando pra cama, com uma dor de angústia aguda, sem ninguém dentro do corpo. Mas três meses depois estava curada. V – TÚMULO, TÚMULO, TÚMULO Belazarte me contou: Ele próprio, Belazarte, contratou como criado um pretinho chamado Ellis. Um rapazinho bonito, dedicado, fiel, que aos poucos conquistou o patrão e com ele manteve uma amizade muito grande. Belazarte faz inúmeras considerações sobre a superioridade da amizade sobre o amor, amizade esta que o levou a não conseguir ficar sem os préstimos de Ellis, que quase nem trabalhava, apenas lhe fazia companhia. Ellis se casa com Dora, tem um filho e Belazarte é o padrinho do casamento e do menino. Ellis empobrece, adoece, Dora morre, o filho também morre. Ellis contrai tuberculose e só consegue morrer quando o ex-patrão vai visitá-lo e garante que cuidará dele. PUCPR 7 VI – PIÁ NÃO SOFRE? SOFRE. Belazarte me contou: Sabe aquela Teresinha que indiretamente provocou a briga dos irmãos Aldo e Tino, em que Aldo acabou matando o irmão que lhe arrancara o dedo com uma mordida? E cujo marido Alfredo matou o Aldo para se defender e acabou indo para a cadeia como culpado? Pois o filho menor dessa Teresinha morreu de tifo e ela, mais a mãe e o filho que sobrou, viviam na miséria, passando fome num porão sujo, sobrevivendo com o dinheirinho que a mulatona, mãe de Alfredo, levava todo mês. O piá barrigudinho, de tanta fome que passava, começou a comer formiga, barata e terra. Teresinha finalmente arranjou um amante. A sogra descobriu, discutiu um monte de baixarias com a nora, levou o neto com ela e não ajudou mais a Teresinha. Depois de sofrer toda sorte de violência da mãe, o menino passou a sofrer mais ainda nas mãos da avó e das filhas dela. Seu consolo era comer terra, apesar de agora ter comida em abundância. Foi emagrecendo, tossindo, vomitando, sujando a casa e sendo obrigado a cada acesso de tosse e de baba a sair lá fora. Elacom uma vontade louca de comer terra, mas se segurava para não apanhar da avó e das tias. Um dia estava ele no portão vendo o movimento, quando viu a mãe vestida de prostituta passando. Gritou pela mãe, que o abraçou, chorou, beijou e foi embora pensando que ele estava em boas mãos. E o piá, carente de amor, sozinho, doente. Paulino de-pezinho, sem um gesto, sem um movi- mento, viu afinal lá longe o vestido azul desaparecer. Virou o rostinho.Havia um pedaço de papel de embrulho, todo engordurado, rolando engraçado no chão. Dar três passos pra pegá-lo... Nem valia a pena. Sentou-se de novo no degrau. As cores da tarde iam cinzando man- sas. Paulino encostou a bochecha na palminha da mão e meio enxergando, meio escutando, numa indiferença exausta, ficou assim. Até a gosma escorria da boca aberta na mão dele. Depois pingava na camisolinha. Que era escura pra não sujar. VII – NÍZIA FIGUEIRA, SUA CRIADA Belazarte me contou: Essas coisas de felicidade e infelicidade não tem significado nenhum, si a gente se compara a si mesmo. Infelicidade é fenômeno de relação... Quando se pensa que alguém é feliz... ou infeliz, vai ver, é o contrário do que se imaginava. Nízia Figueira aos dezessete anos ficou sozinha no mundo com uma criada preta que ela se acostumou a chamar de prima Rufina. Viviam as duas sozinhas na chacrinha cultivando frutas e verduras, ela costurando e fazendo crochê e Rufina vendendo tudo nas feiras e casas. O dinheiro era bastante e Rufina sempre trazia as compras, dinheiro e...cachaça para casa. A pinga e o cachimbo eram o consolo de Rufina. A bebedeira era seu céu. Rufina acabou se engraçando por um filho-da-mãe que a engravidou e fugiu com o dinheiro delas. Nízia acreditou que a barriga de Rufina era doença e nem percebeu quando a preta teve nenê, saiu às escondidas e deu sumiço na criança. Nízia vivia na santa ingenuidade até que, já com vinte e poucos anos, começou a sentir vontade de homem. Ficava no portão. Começou a beber junto com Rufina, só um pouquinho no começo, mas quando as duas ficavam tontas, Rufina revelava os segredos do mundo para Nízia. Seu Lemos trabalhava no correio, morava numa casinha embaixo do Viaduto do Chá. Quando morreu a velha sua mãe. Resolveu pedir Nízia em casamento. Viam-se uma vez por semana, depois a cada quinzes dias, depois a cada mês, até que seu Lemos, encrencado no novo emprego não apareceu mais. Nízia que a princípio pensara ter encontrado a felicidade, percebeu que o amor começou a lhe trazer mais ansiedade e angústia. O bairro cresceu, as pessoas se conheciam e conversavam, só Nízia não se dava nem não se dava com ninguém. Deu mais foi pra beber. E os porres com Rufina se tornaram frequentes. Prima Rufina punha a mão sem tato na cabeça de Nízia e consolava a serena: – É isso mêmo, mia fia... num chore mais não! A gente toma pifão, pifão dá gosto e bota desgraça pra fora... Mecê pensa que pifão num é bom... é bão sim! Pifão... pifãozinho... pra esquentá desgraça desse mundo duro... Nízia ficava piscando, piscando devagar, mansamente. Que calma no quarto sem voz, na casa... Que calma na terra inexistente pra ela... Piscava mais. Os cabelos meio soltos se confundiam com o assoalho na escureza da noitinha. Mas inda restava bastante luz na terra, pra riscar sobre o chão aquele rosto claro. Muito sereno, um reflexo leve de baba no queixo, rubor mais acentuado na face conservada, sem uma ruga, bonita. Os beiços entreabriam pro suspiro de sono sair. Adormecida calma, sem nenhum sonho e sem gestos. Nízia era muito feliz. 8 PUCPR O PAGADOR DE PROMESSAS O AUTOR Dias Gomes nasceu em 19 de outubro de 1922, na rua do Bom Gosto, em Salvador (BA). Na infância, estudou em colégios católicos, o que fez dele um religioso até os dezessete anos, quando passou a ser materialista. Jovem, foi para o Rio de Janeiro tentar a sorte. Começou o curso de Engenharia, mas abandonou-o; estudou Direito por três anos, também abandonou o curso. Só conseguiu se “encontrar” quando começou a escrever peças de teatro, aptidão que desde a infância lhe acenava com verdadeira vocação. Nos anos 40, Dias Gomes tinha uma intensa produção artística. Suas peças iam sendo publicadas e o autor passou ainda a trabalhar no rádio, meio que lhe rendia melhores ganhos. Casou-se com Janete Clair (1925-1983), radionovelista e, depois, telenovelista de sucesso. Tudo parecia caminhar muito bem em sua profissão. Entretanto, a partir dos anos 50 – e principalmente nos anos 60 – começa a ter sérios problemas com a censura. Quase todas as suas peças são proibidas de ir ao palco ou ao ar. É quando começa a escrever para a televisão, novo modelo de mídia. Resultado? Foi o pioneiro da literatura para a TV, dando a esse meio de cultura um ótimo nível de qualidade. Além de um dos maiores dramaturgos brasileiros de todos os tempos, Dias Gomes torna-se também um dos maiores nomes da teledramaturgia, ao escrever novelas de grande sucesso junto ao público e à crítica, tais como Roque Santeiro, O Bem-Amado, Sinal de alerta e Saramandaia. O pagador de promessas, sua obra mais importante, mostra o choque da religiosidade ingênua e simplória do Zé-do-Burro com a malícia e os interesses dos personagens urbanos, tanto os religiosos quanto os seculares. Esta e outras obras de Dias Gomes (O Santo Inquérito, A Revolução dos Beatos) colocam em destaque os choques e conflitos sociais, culturais, religiosos, econômicos e políticos. É uma eterna luta de classes abrangente e generalizada. O autor falece aos 76 anos, em 18 de maio de 1999, vítima de um acidente automobilístico. A OBRA Encenada pela primeira vez em 1960, essa marca a consagração de Dias Gomes como um dos mais consagrados autores do teatro brasileiro. A adaptação da peça para o cinema, em 1962, recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes, até o hoje o maior prêmio recebido pelo cinema brasileiro. Além disso, a peça também recebeu importantes prêmios nacionais e internacionais. Peça rápida, que retrata muito bem um sério problema enfrentado pelo Zé-do-Burro, o protagonista: a tragédia da incomunicabilidade. A peça guarda a unidade de tempo e espaço, isto é, tudo se passa num mesmo período temporal (a ação começa de madrugada e termina ao entardecer) e no mesmo lugar (tudo ocorre em frente à igreja). É nesse sentido que O pagador de promessas possui todos os ingredientes próprios da tragédia, pois além da unidade de tempo e de espaço, a colisão entre o protagonista e o antagonista verifica-se em função de valores fundamentais, ao menos para os dois adversários e os grupos humanos a que pertencem; valores religiosos pelos quais se empenham até o âmago de sua existência. A religiosidade arcaica e o ingênuo sincretismo de Zé-do-Burro, para quem Iansã e Santa Bárbara, o terreiro e a igreja tendem a confundir-se, chocando-se inevitavelmente com o formalismo dogmático do padre que, ademais, não pode admitir a promoção do burro a ente digno de promessas. Está claro que O pagador de promessas constitui uma crítica ao formalismo clerical, que inscreve sob uma mesma rubrica problemas tão diferentes. O apego a certas aparências e o culto rigoroso da razão, em casos como o de Zé-do-Burro, tornam-se, inevitavelmente, formas de intolerância, embora tudo se faça para negá-la. Essa intolerância erige-se, na peça, em símbolo da tirania de qualquer sistema organizado contra o indivíduo desprotegido e só. (Sábato Magaldi) O Pagador de Promessas: a tirania do sistema contra o indivíduo Considerada pela crítica como uma tragédia, no sentido clássico do termo, O pagador de promessas retrata o drama vivido pelo nosso protagonista, ao querer simplesmente cumprir uma promessa. Zé-do-Burro é um sertanejo baiano, simples e crédulo que, para pagar uma promessa feita a Santa Bárbara, divide seu sítio com lavradores pobres e carrega uma pesada cruz aos ombros num trajeto de 7 léguas (= 42 quilômetros!). A santa salvara a vida do burro Nicolau e Zé quer cumprir a sua promessa: depositar a cruz no altar-mor da igreja da santa, em Salvador. Após vencer todos osobstáculos físicos (o cansaço e o desgaste), começam seus problemas com as pessoas, quando chega a Salvador. A crença simples de Zé-do-Burro vai se chocar com a praticidade de Rosa, sua mulher, que se deixa levar por Bonitão, um cafetão, para o conforto do hotel. Vai ser impedido de entrar na igreja pelo padre Olavo, um símbolo da intolerância eclesiástica e universal, fanático e intransigente, que não permite a entrada de Zé-do-Burro no templo, por entender que sua promessa era um ato de feitiçaria, coisa do demônio, pois fora feita a Iansã, num terreiro de candomblé. Emerge assim o conflito, baseado em dupla PUCPR 9 intransigência – a do padre, que não admite o sincretismo religioso, e a de Zé-do-Burro, que não arreda pé e quer entrar na igreja a qualquer custo. Nosso personagem terá ainda suas ideias mal interpretadas e deturpadas pela imprensa, tendenciosa e ávida de sensacionalismo, e será mostrado como um pseudo-herói oportunista. Enquanto a discussão toma vulto, a praça da igreja fica repleta de gente: ali estão os tipos baianos, a partici- par do conflito, cada qual a seu modo: é Dedé-Cospe-Rima, poeta popular, querendo capitalizar o episódio para um folheto de cordel; são Mestre Coca e Manoelzinho-Sua-Mãe, mestres de capoeira; é Minha-Tia, figura tradicional da Bahia, a vender seus quitutes. Não faltam outros elementos, a participar direta ou indiretamente da trama: o espanhol Galego, dono de um bar, feliz com os lucros possíveis; o repórter sensaci- onalista, fazendo estardalhaço com o “furo” exclusivo para o jornal; o Secreta, que, “comprado” por Bonitão, explorador de mulheres e sedutor de Rosa, mulher de Zé-do-Burro, investiga o caso. Importante observar que, ao mesmo tempo em que o conflito se avulta, o ambiente é festivo, já que se comemora o dia de Iansã por toda a cidade: cantos, rodas de capoeira, foguetório. O desfecho da confusão em torno de Zé-do-Burro e de sua promessa é trágico: acuado pela polícia e decidido mesmo a entrar na igreja, Zé-do-Burro saca de um punhal. Nesse momento, o padre Olavo o desarma, os policiais caem sobre ele e os capoeiras por cima dos policiais. Um tiro atinge Zé-do-Burro. Morto, paga a sua promessa: é conduzido pelo povo para dentro da igreja, estendido sobre a cruz, até o altar de Santa Bárbara. As ideias singelas do protagonista entrarão em choque com as peças dessa engrenagem destrutiva que é a sociedade e suas instituições e Zé-do-Burro será destruído, aniquilado. O autor, Dias Gomes, assim se manifesta no prefácio da obra: “Zé-do-Burro é trucidado não pela Igreja, mas por toda uma organização social, na qual somente o povo das ruas com ele confraterniza e a seu lado se coloca... A invasão final do templo tem nítido sentido de vitória popular e destruição de uma engrenagem da qual, é verdade, a Igreja, como instituição, faz parte... O sincretismo religioso que dá motivo ao drama é fato comum nas regiões brasileiras que, ao tempo da escravidão, receberam influências de cultos africanos. Não podendo praticar livremente esses cultos, procura- vam os escravos burlar a vigilância dos senhores bran- cos, fingindo cultuar santos católicos, quando, na verdade, adoravam seus deuses nagôs... O Pagador de Promessas nasceu, principal- mente, dessa consciência que tenho de ser explorado e impotente para fazer uso da liberdade que, em princípio, me é concedida. ... Zé-do-Burro faz aquilo que eu desejaria fazer – morre para não conceder. Não se prostitui. E sua morte não é inútil, não é um gesto de afirmação individualista, porque dá consciência ao povo, que carrega o seu cadáver como bandeira.” CENAS FUNDAMENTAIS DA OBRA I (Uma praça pequena, ladeiras, prédios coloniais, uma igreja modesta com escadaria de quatro ou cinco degraus. Uma vendola na esquina onde se vendem café, cachaça, etc. São quatro e meia da manhã. Ouvem-se sons distantes dos atabaques dum candomblé. Zé-do-Burro surge carregando uma enorme e pesada cruz de madeira, seguido de Rosa, sua mulher. Estão cansados, de passos lentos. Zé tem uns 30 anos, magro, de estatura mediana, de olhar morto e contemplativo. Seu rosto transmite um ar de bondade, tolerância e certa infantilidade. Seus gestos e sua maneira de falar são lentos e preguiçosos. Tem barba de dois ou três dias e traja-se decentemente, embora sua roupa seja mal talhada e esteja amarrotada e suja de poeira. Rosa parece ter pouco em comum com ele, é uma bela mulher, embora seus traços sejam um pouco grosseiros, tal como suas maneiras. Ao contrário do marido, tem “sangue quente”, revelando, logo à primeira vista, uma insatisfação sexual e uma ânsia recalcada de romper com o ambiente em que se sente sufocar. Veste-se como uma provinciana que vem à cidade, mas também como uma mulher que não deseja ocultar os encantos que possui.) ROSA – Que é que você está procurando? ZÉ – Qualquer coisa escrita... pra a gente saber se essa é mesmo a igreja de Santa Bárbara. ROSA – Claro que é essa. ZÉ – (Corre os olhos em volta). Se a gente pudesse perguntar a alguém... ROSA – Essa hora está todo o mundo dormindo. (Olha-o quase com raiva e procura convencê-lo). Escute, Zé... já que a igreja está fechada, a gente podia ir procurar um lugar pra dormir... ZÉ – E a cruz? ROSA – Você deixava a cruz aí e amanhã, de dia... ZÉ – Podem roubar... ROSA – Quem é que vai roubar uma cruz, homem de Deus? ZÉ – Tem tanta maldade no mundo. Era correr um risco muito grande, depois de ter quase cumprido a promessa. E você já pensou; se me roubassem a cruz, eu ia ter que fazer outra e vir de novo com ela nas costas da roça até aqui. Sete léguas! ROSA – Você já pagou a promessa, trouxe a cruz de madeira até à igreja de Santa Bárbara. Pronto. Agora, vamos embora. ZÉ – A igreja é da porta pra dentro. ROSA – Mas a porta está fechada e a culpa não é sua. Santa Bárbara deve saber disso, que diabo. ZÉ – Eu prometi levar a cruz até dentro da igreja e tenho que levar. Não vou me sujar com a santa por causa de meio metro. 10 PUCPR (Rosa olha-o com raiva e vai deitar-se num dos degraus da escada da igreja. Zé se ajeita ali mesmo perto da cruz. Subitamente, irrompem na praça Marli e Bonitão. Ela tem, na realidade, vinte e oito anos, mas aparenta mais dez. Pinta-se com algum exagero, mas mesmo assim não consegue esconder a tez amarelo-esverdeada. Possui alguns traços de uma beleza doentia, uma beleza triste e suicida. Seus gestos e atitudes refletem o conflito da mulher que quer libertar-se de uma tirania que, no entanto, é necessária ao seu equilíbrio psíquico – a exploração de que é vítima por parte de Bonitão vem, em parte, satisfazer um instinto maternal frustrado. Há em seu amor e em seu aviltamento, em sua degradação voluntária, muito de sacrifício maternal, ao qual não falta, inclusive, um certo orgulho. Bonitão é insensível a tudo isso. Ele é frio e brutal em sua “profissão”. Encara a exploração a que submete Marli e outras mulheres, como um direito que lhe assiste, ou melhor, um dom que a natureza lhe concedeu, juntamente com seus atributos físicos. Em seu entender, sua beleza máscula e seu vigor sexual, aliados a um direito natural de subsistir, justificam plenamente seu modo de vida. De estatura um pouco acima da média, forte e de pele trigueira, amulatada. A ascendência negra é visível, embora os cabelos sejam lisos, reluzentes de gomalina e os traços regulares, com exceção dos lábios grossos e sensuais e das narinas um tanto dilatadas. Veste-se sempre de branco, colarinho alto, sapatos de duas cores. Descem a ladeira, ela na frente, passos rápidos. Ele a segue, como se viessem já de uma discussão.) BONITÃO – (Segura-a pelo braço, mete subitamente a mão no decote de Marli e tira de entre os seios uma nota). Sua vaca! (Ele faz menção de dar-lhe um bofetão, ela corre e refugia-se atrás da cruz. Zé-do-Burro desperta de sua semi-sonolência e começa a prestar atenção à cena). MARLI – Eu precisava desse dinheiro. Pra pagar o quarto, você sabe. BONITÃO – Não gosto de ser tapeado. Por que não pediu? MARLI – E você dava? BONITÃO – Ora, mas é claroque não. MARLY – O que lhe falta? Eu não tenho lhe dado tudo o que você me pede? Se for preciso dou mais ainda. (Alisa sua roupa e admira-o maternalmente). Tenho prazer em ver você vestido com a roupa que eu dei, com os sapatos que eu comprei e com a carteira recheada de notas que eu ganhei pra você. Tenho orgulho, sabe? BONITÃO – (Guardando o dinheiro no bolso). Então... Agora vai pra casa que eu preciso trabalhar! (Acende um cigarro, abstraindo-se da presença de Marli, que o fita como um cão escorraçado pelo dono e sai. Bonitão se mostra intrigado com a cruz no meio da praça. Examina-a curiosamente e por fim dirige-se a Zé-do-Burro). É sua? (Zé balança a cabeça em sinal afirmativo). ZÉ – (Olhando na direção de Marli). É sua? BONITÃO – (Faz que mais ou menos). Digamos que eu sou assim uma espécie de fiscal do imposto de renda. (Olha a cruz). Encomenda? ZÉ – Não. Promessa. (Bonitão faz como se fosse sair, mas se detém diante de Rosa, cujo vestido, levantado, deixa um palmo de coxa). ROSA – (Abre os olhos, sentindo que está sendo observada). Que é? (conserta o vestido). BONITÃO – Também veio pagar promessa... ROSA – Eu não, ele. Por causa disso tenho que dormir aqui no batente de uma igreja, como mendiga. (Senta-se). ZÉ – Que horas são? BONITÃO – (Consulta o relógio). Um quarto para as cinco. ZÉ – A que horas abre a igreja? BONITÃO – Não é bem o meu ramo... ZÉ – Mas hoje é o dia de Santa Bárbara... BONITÃO – Quem sabe a sacristia já esteja aberta. Por que o senhor não vai olhar? A porta é do lado de lá... ZÉ – É... Rosa, você vigia a cruz, eu não demoro. (Sai) BONITÃO – Isso não é trato que se dê a uma mulher... mesmo sendo mulher da gente. Tem qualida- des para exigir mais: boa cama e melhor companhia. ROSA – Não fale em cama pra quem tem o corpo todo moído, como eu. Duas noites sem dormir... BONITÃO – (Se aproxima dela e acaricia-lhe o braço). Pobrezinha... (Rosa puxa o braço bruscamente, depois mantém, por alguns segundos, um olhar de desafio). ROSA – Não faça isso! Ele pode voltar de repente. (Volta a sentar-se na escada). Dava a vida por uma cama... BONITÃO – Eu posso lhe arranjar um hotelzinho aqui perto... Sou muito cotado com o porteiro do hotel e tenho boas relações com a polícia. Nesta zona, todos respeitam o Bonitão. ROSA – (Quase sensualmente). Bonitão, é... BONITÃO – (Senta-se junto dela)... No hotel tem banheiro... colchão de mola... (Entra Zé-do-Burro. Bonitão levanta-se). ZÉ – Tudo fechado. Tem jeito não. ROSA – (Revoltada) E eu que aguente este batente frio até Deus sabe que horas. A promessa nem é minha, e eu aqui, pagando... ZÉ – Paciência, Rosa, essa a santa fica lhe devendo... PUCPR 11 ROSA – E desde quando santo paga dívida? (Rosa volta a deitar-se no degrau) BONITÃO – (Assumindo um ar tão eclesiástico quanto possível). Não seja assim tão descrente... Quem sabe se Santa Bárbara já não está providenciando o pagamento dessa dívida também e escolheu a mim pra pagador? Porque o senhor não sabe, mas eu posso, em cinco minutos, arranjar uma boa cama num hotel perto daqui. ZÉ – (Pensativo)... Que é que você diz, Rosa? ROSA – (Percebendo o jogo de Bonitão). Quero não, Zé. Prefiro ficar aqui com você. ZÉ – Ainda agora mesmo você estava se queixando.Vá com o moço, não tenha acanhamento. BONlTÃO – Eu vou com ela até lá, apresento ao porteiro, que é meu conhecido, depois volto para lhe dizer o número do quarto. ZÉ – Se o senhor fizer isso, é um grande favor. ROSA – Zé, é melhor eu ficar com você... ZÉ – Pra que, Rosa? Assim você descansa, não precisa ficar aí nesse batente frio... BONlTÃO – Um perigo! Pode pegar uma pneumonia. ROSA – (Inicia a saída. Pára, hesitante. Pressente o perigo que vai correr. Procura, com o olhar, fazer Zé-do-Burro compreender o seu receio). Zé... ZÉ – Ah, sim. (Enfia a mão no bolso, tira um maço de notas). Pode ser que precise pagar adiantado... (Rosa recebe o dinheiro. Encara o marido e sobe a ladei- ra. Bonitão a segue. Zé senta-se ao pé da cruz e procura uma maneira de apoiar o corpo sobre ela. Aos poucos, é vencido pelo sono. Entra Beata). II (O sacristão sonolento é xingado pela Beata porque a igreja ainda está fechada e ambos conversam sobre o estranho com uma cruz dormindo na praça) BONlTÃO – ( Bonitão e vê a igreja aberta. Sacode Zé-do-Burro). Camarado... oh, meu camarado!... ZÉ – (Desperta). Já é dia... BONITÃO – Já. E a igreja já está aberta, você pode entregar o carreto. ZÉ – (Levanta-se, com dificuldade, os músculos adormecidos e doloridos). É verdade... BONITÃO – Eu voltei aqui pra lhe dizer o número do quarto de sua senhora. É o 27. Um bom quarto, no segundo andar. (Apressadamente). Foi o que o porteiro garantiu, e o hotel é aquele ali, Hotel Ideal. ZÉ – Ah, obrigado... (Entra Padre Olavo. É um padre moço ainda. Deve con- tar, no máximo, quarenta anos. Sua convicção religiosa aproxima-se do fanatismo. Talvez, no fundo, isto seja uma prova e falta de convicção e autodefesa. Sua intole- rância, que o leva, por vezes, a chocar-se contra princí- pios de sua própria religião e a confundir com inimigos aqueles que estão de seu lado, não passa, talvez, de uma couraça com que se mune contra uma fraqueza consciente). ZÉ – (Adianta-se inclina-se, respeitoso e beija-lhe a mão). PADRE – Deus te abençoe, meu filho. ZÉ – Eu vim de muito longe, Padre, pra trazer esta cruz. Promessa pra Santa Bárbara. Estava esperando abrir a igreja... PADRE – Deve ter recebido dela uma graça muito grande! ZÉ – Ah, sim! Graças a Santa Bárbara, a morte não levou o meu melhor amigo, Nicolau. Ele foi ferido na cabeça por um galho de árvore que caiu, num dia de tempestade. Eu e minha mulher tratamos dele, mas no dia seguinte, quando saí de casa Nicolau estava prostrado, tinha muita febre e não pôde se levantar. Foi a primeira vez que isso aconteceu. Todo mundo reparou, porque ele andava sempre comigo. Se eu ia na missa, ele ficava esperando na porta da igreja... PADRE – Porque, ele não é católico? ZÉ – (Com grande tristeza). Não. Nicolau teve o azar de nascer burro... de quatro patas. (Bonitão dá uma estrondosa gargalhada). PADRE – Burro?! Então foi por um burro que o senhor fez essa promessa? ZÉ – Foi. PADRE – (Tentando se controlar). Continue. ZÉ – Nem as rezas do preto Zeferino deram jeito. Eu já estava começando a perder a esperança, pensei que nunca mais ia ouvir os passos do meu bom amigo me seguindo por toda parte. Até me puseram um apelido: Zé-do-Burro. Foi então que comadre Miúda recomendou que eu fosse no candomblé de Maria de Iansã. Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo. Mas o pobre Nicolau estava morrendo. A Mãe-de-Santo disse que eu devia fazer uma promessa pra Iansã. E já que Iansã é Santa Bárbara, prometi que se Nicolau ficasse bom eu carregava uma cruz de madeira lá da roça até a Igreja de Santa Bárbara, no dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo. E prometi também dividir as minhas terras com os lavradores mais pobres que eu. SACRISTÃO – E o burro ficou bom? ZÉ – Sarou em dois tempos. Milagre de Santa Bárbara! PADRE – (Procurando inicialmente controlar-se). Em primeiro lugar, não se trata de um milagre, apenas de uma graça. Além disso, Santa Bárbara jamais faria isso num terreiro de candomblé! ZÉ – Mas Iansã é Santa Bárbara... PADRE – (Explodindo). Santa Bárbara é uma santa católica! E mais! O senhor disse que prometeu carregar uma cruz tão pesada como a de Cristo! Isso prova que está querendo igualar-se ao Filho de Deus! Com certeza está querendo ser visto como um novo Cristo! Mas é muita pretensão! De jeito nenhum! Nesta 12 PUCPR igreja o senhor não entrará com essa cruz! (Dá as costas e dirige-se à igreja). ZÉ – (Em desespero). Mas Padre... eu preciso cumprir a minha promessa! PADRE – Fizesse-a então numa igreja e não num antro de feitiçaria. Não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao diabo! ZÉ – O senhor não entendeu, foi pra salvar o Nicolau! Eu sempre servi a Deus e a igreja é dele. O senhor não pode impedir a minha entrada! PADRE – Vai desrespeitar a minha autoridade?ZÉ – Entre o senhor e Santa Bárbara, eu fico com Santa Bárbara. PADRE – Pois eu fecho as portas da igreja! Aqui essa cruz não passa! (Entra na igreja). III (Zé-do-Burro, nervos tensos, olhos dilatados, numa ati- tude de incompreensão e revolta, parece disposto a não arredar pé dali. Bonitão, um pouco afastado, observa, tendo nos lábios um sorriso irônico... Ouve-se um pre- gão: “Beiju... olha o beiju!” ...Logo após, surge uma bai- ana em trajes típicos, com um tabuleiro na cabeça). MINHA TIA – ( Para Galego que estava abrindo a venda). Iansã lhe dê um bom-dia. GALEGO – Graças, Minha Tia. (Ele a ajuda a montar seu tabuleiro). MINHA TIA – Não vai abrir a igreja hoje? Dia de Santa Bárbara... BEATA – (Lança um olhar para Zé-do-Burro). Não enquanto ele não for embora. Quer entrar com essa cruz na igreja. MINHA TIA – Foi promessa? BEATA – Foi. Mas pra Iansã... (Minha Tia toca com as pontas dos dedos o chão e a testa.) (Minha Tia, Dedé, poeta popular, Galego, Beata e Boni- tão comentam os acontecimentos – Aparece o Guarda e insiste com Zé para que tire a cruz do caminho e depois vai falar com o padre. – Rosa desce a ladeira. Vem um pouco apressada, como se temesse não mais encon- trá-lo ali. Mas quando vê Zé-do-Burro, diminui o passo, tranquiliza-se em parte. Não perde, entretanto, um certo ar culposo, que procura disfarçar). ROSA – Você ainda está aí! (Nota a igreja fechada). A igreja não abriu? ZÉ – Abriu, sim. Mas o Padre não quer me deixar entrar com a cruz. ROSA – Por quê? ZÉ – (Balança a cabeça, na maior infelicidade). Não sei, Rosa, não sei... Já não entendo nada... parece que me viraram pelo avesso e estou vendo as coisas ao contrário do que elas são. O céu no lugar do inferno... o demônio no lugar dos santos. ROSA – (Refletindo na própria experiência). É... De repente, a gente percebe que é outra pessoa... É horrível. Zé, isso está parecendo castigo! Vamos embora daqui. ZÉ – Não posso. REPÓRTER – (Entra acompanhado do Fotógrafo) Lá está ele. (Vai a Zé, enquanto o Fotógrafo circula à procura de ângulos. O Repórter é vivo e perspicaz). Bom dia, amigo! (Aperta efusivamente a mão de Zé-do-Burro). Parabéns! O senhor é um herói. Sete léguas carregando esta cruz! Quarenta e dois quilômetros! Puxa! (Desconfiança de Rosa e Zé-do-Burro). (Para o Fotógrafo). Carijó, pode bater uma chapa. (Posa de frente para Zé-do-Burro, de caderno e lápis em punho). O senhor vai ficar famoso! ZÉ – (Contrariado). Eu não quero ficar famoso. ROSA – (Interrompe, em tom de repreensão). Que é isso, Zé. Ele é da gazeta... REPÓRTER – Mulher dele? ROSA – Sou. (Como uma metralhadora giratória). Também andei sete léguas. Saímos ontem de manhãzinha, cinco horas da manhã, e chegamos aqui antes das cinco. Por causa do burro que adoeceu e ia morrer, daí ele fez a promessa pra Santa Bárbara. REPÓRTER – Um burro? ZÉ – (Irritado). Por quê? O senhor também acha que o meu burro não vale uma promessa? REPÓRTER – Não, de modo algum... Tudo isso é por causa de um burro... (Repentinamente, antevendo o interesse que despertará a reportagem). Fabuloso! ROSA – E não foi só isso. Ele prometeu também repartir o nosso sítio com aquela gente... ZÉ – Gente que quer trabalhar e não tem terra. E não estou arrependido. O que ficou pra nós dá e sobra. Cada um tem que trabalhar no que é seu. REPÓRTER – (Anota). É a favor da Reforma Agrária e contra a exploração do homem pelo homem. O senhor pertence a algum partido político, seu...? ZÉ – ... Zé-do-Burro... Não, não sou político, não senhor. REPÓRTER – Mas com certeza seria eleito com burro e tudo! Avalio a agitação que o senhor fez com isso. Pelas estradas, no caminho até aqui, deve ter-se juntado uma verdadeira multidão para vê-lo passar. ZÉ – É, tinha... REPÓRTER – E imaginem a volta! A chegada à sua cidade, em carro aberto, banda de música, foguetório! ZÉ – Moço, eu vim a pé e vou voltar a pé. ROSA – Não seja estúpido, homem! O moço está querendo ajudar a gente. ZÉ – Então ele que me ajude a convencer o vigário a abrir a porta... REPÓRTER – Eu vou já entrevistar o vigário. ZÉ – Eu vou também. REPÓRTER – Carijó, bata mais uma chapa. (Para Zé-do-Burro). Quer fazer o favor de carregar a cruz? PUCPR 13 (Para Rosa). A senhora também. (Zé-do-Burro fica indeciso, sem palavras para traduzir a sua indignação.) ROSA – Vamos, Zé! (Empurra-o para baixo da cruz e coloca-se a seu lado, numa atitude forçada. O Fotógrafo bate a chapa). IV (Bonitão desce a ladeira e para na vendola. Rosa o vê e não esconde a emoção, vai à venda e encosta-se no bal- cão ao lado de Bonitão). BONITÃO – Ele desconfiou de nós? ROSA – Nada. Só pensa na cruz e na promessa. BONITÃO – Sabe que eu não consegui dormir pensando em você? ROSA – Melhor que não pense. BONITÃO – Está arrependida? ROSA – Estou. BONITÃO – Agora é tarde. ROSA – Dá vontade de contar tudo. BONITÃO – Não é má ideia. Ele largava você aqui na cidade e voltava sozinho. ROSA – Você me obriga a fazer o que eu não quero BONITÃO – Que culpa tenho eu de ter nascido com tantas qualidades? ROSA – Ele precisa de mim. (Ela vai voltar ao centro da praça. Ele a segura pelo braço). BONITÃO – (Baixo). Espere... ROSA – Está louco? BONITÃO – Ele não pode sair de junto da cruz. Mas você pode. Vamos descansar lá no hotel... (Entra Zé-do-Burro. Rosa e Bonitão disfarçam). MINHA TIA – (Detendo-o). Meu filho, eu sou “ekédi” no candomblé da Menininha. Você fez obrigação pra Iansã, Iansã está lá pra receber! ZÉ – Como? MINHA TIA – Eu levo você lá com a cruz a santa recebe e você fica em paz com ela! ZÉ – Não, não foi num terreiro que eu disse que levaria a cruz, foi numa igreja de Santa Bárbara. MINHA TIA – Santa Bárbara é Iansã. E ela está lá! ZÉ – Não. Não é a mesma coisa. (Abre-se a porta da igreja e surgem Repórter e Fotógrafo). REPÓRTER – (Indo a Zé-do-Burro). Nada feito, o padre é uma rocha. Mas ele vai acabar cedendo. Eu lhe garanto. Agora a causa não é só sua, é também do nosso jornal e do povo! Resista! Afinal de contas, é um direito que o senhor adquiriu em 42 quilômetros de “via crucis”. Eu confio no senhor. (Sai seguido do Fotógrafo). BONITÃO – Jornalistas, é? ROSA – É. (Com vaidade). E tiraram o meu retrato. (Neste momento, entra Marli pela direita. Ao ver Bonitão junto a Rosa, avança para ele em atitude agressiva). MARLI – Eu sabia!... BONITÃO – Que é que você vem fazer aqui? MARLI – Venho saber por que o senhor não apareceu em casa esta noite. BONITÃO – Que casa? MARLI – A minha casa. BONITÃO – Estava indisposto. Porquê? MARLI – (Mede Rosa de alto a baixo). Eu estou vendo a sua “indisposição” BONITÃO – (Em voz contida, mas enérgico). Não faça escândalo! Pra que fazer a senhora passar vexame. MARLI – (Irônica) Senhora! Se essa daí é senhora, eu sou donzela... Dormiu com ela, não foi? (O rosto de Zé-do-Burro se cobre de sombras e ele busca nos olhos de Rosa uma explicação. Ela não o fita). BONITÃO – (Segura Marli por um braço, violentamente). Vamos para casa! MARLI – Eu vou! Mas primeiro quero que essa vaca saiba que você é meu. (Com orgulho). Meu! (Grita para Rosa). Esta roupa foi comprada com o meu dinheiro! Esta e todas as que ele tem! BONITÃO – (Perde a paciência, ameaçador). Se você não for para casa imediatamente, nunca mais eu deixo você me dar nada! MARLI – (Deixando-se arrastar por ele). Fique com seu beato e deixe meu homem em paz! (Há uma pausa longa, na qual Zé-do-Burro apenas fita Rosa, silenciosamente, sob o impacto da cena. Em seu olhar, lê-se a dúvida, a incredulidade e sobretudo o pavor diante de um mundo que começa a desmoronar). V ROSA – (Para o marido). São três horas da tarde. Você não está com fome? ZÉ – Não. (Não esconde o ressentimento que guarda dela). Com certeza Santa Bárbara está me tes- tando pra ver se eu desisto da promessa... Ainda há pouco quase que eu caio. Quando aquela sujeita disse aquilo tudo de você, o sangue me subiu e se eu não con- trolo tinha matado um homem ou uma mulher, ia preso e não cumpria a promessa. Tudo isso é uma provação. ROSA – É a única explicação, Santa Bárbara me usoupra te pôr à prova. Foi uma vontade maior que a minha. E você ajudou. Você também é culpado. Eu não queria ir mas você insistiu. O que é que eu podia fazer? ZÉ – Resistir, como eu fiz ainda há pouco. ROSA – Isso não vai acontecer mais... ZÉ – (Não muito convencido). Esse assunto nós vamos resolver depois, na volta. (Entra Bonitão pela direita e com o Secreta. Traz um jor- nal embaixo do braço). BONITÃO – (Em voz baixa, disfarçadamente). Você veio depressa. SECRETA – Que é que você quer falar comigo? ( 14 PUCPR BONITÃO – (Corta, sorrindo) Olha aí... (Indica, com o olhar, Zé-do-Burro). SECRETA – Quem é ele? BONITÃO – (Mostrando o jornal). Leia... (O Secreta põe-se a ler o jornal atentamente). O homem é perigoso. Não é à toa que o padreco fechou a igreja e jurou que ele não entra. SECRETA – É... BONITÃO – Porque não “guarda” ele por uns dias... Dá o flagra no homem! (Vão até Zé-do-Burro. Zé-do-Burro recebe Bonitão e Secreta com desconfiança. Rosa mostra certo constrangimento diante de Bonitão. Este apresenta o Secreta). BONITÃO – Já viram isso? (Dá o jornal a Rosa). ROSA – (lê e mostra-o a Zé-do-Burro). Não estou gostando nada disso, Zé. ZÉ – (Vendo o jornal). Nem eu... BONITÃO – (Apresentando o Secreta). Um amigo. Ele quer ajudar. ZÉ – (Dentro dele, uma revolta de proporções imprevisíveis começa a crescer). Todo o mundo quer ajudar... (Rasga o jornal). ROSA – (Assustada). Não faça isso, homem! SECRETA – O senhor sabia que suas ideias são muito perigosas? ZÉ – Perigosas? SECRETA – O senhor não devia dizer isso no jornal. Pode lhe dar muita complicação. Por muito menos já vi gente ir parar no xadrez. Estou avisando como amigo. ZÉ – Amigo. Já vi que estou cercado de amigos. É amigo por todo lado... Cada qual querendo ajudar mais do que o outro. A vontade que eu tenho é de jogar uma bomba... Que Deus me perdoe! Padre! Deus é testemunha! Ainda não comi hoje... E não vou comer até que abra a porta! Vou morrer de fome na porta da sua igreja, padre! (Abre-se de súbito a porta da igreja e entra o Padre). PADRE – Que pretende com essa gritaria? Desrespeitar a casa de Deus? ZÉ – Não, Padre, lembrar somente que ainda estou aqui com a minha cruz. PADRE – (Agora para toda a praça). Estive o dia todo estudando este caso. Consultei livros, textos sagrados. Naquele burro está a explicação de tudo. É Satanás! Só mesmo Satanás podia levar alguém a ridicularizar o sacrifício de Jesus. ROSA – Não, Padre, o Zé é um homem bom. Nunca fez mal a ninguém. ZÉ – (Interrompe) Padre, eu sou católico. Pode ser que eu tenha errado, mas sou um bom católico. PADRE – Então desista da promessa que fez jogue fora essa cruz e venha, sozinho, pedir perdão a Deus. ZÉ – Não! Não posso fazer isso! Não posso arriscar a vida do meu burro! PADRE – Então é porque você acredita mais na força do demônio do que na força de Deus! ZÉ – (Subitamente fora de si, corre para a cruz, levanta-a nos braços como um aríete e grita) Padre! Por Santa Bárbara ou por Satanás, vou colocar esta cruz dentro da igreja, custe o que custar! PADRE – Eis a prova! Um católico não ameaça invadir a casa de Deus! (E ante a investida de Zé-do-Burro, que caminha para a igreja, corre e cerra a porta no momento mesmo em que Zé sobe os degraus. Zé-do-Burro solta a cruz, senta-se num dos degraus e esconde o rosto entre as mãos). BONITÃO – (Para o Secreta). Que está esperando?.. Não está convencido ainda?.. SECRETA – Você fica aí e vigia o homem que eu vou buscar reforço. (Sai). VI (ROSA – Zé, esta praça está ficando cada vez menor... como se eles estivessem fechando todas as saídas. (Volta-se para ele, com veemência). Vamos embora Zé, enquanto é tempo! ZÉ – (Notando a apreensão de Rosa) Que há? ROSA – Aquele homem que estava com Bonitão não é nosso amigo. Ouvi dizer que é da polícia. Alguém denunciou você. ZÉ – Não sou nenhum criminoso, não fiz mal a ninguém. ROSA – Por isso mesmo, você não sabe fazer mal... ZÉ – (Desiludido). Não se preocupe, Rosa. Esta noite a gente vai embora. ROSA – E por que não agora? De noite, talvez seja tarde pra voltar! Com certeza foi o próprio Bonitão que denunciou você à polícia, era amigo dele, não era? A gente devia ganhar a estrada agora mesmo. Você tinha razão, todos querem ajudar, mas só fazem é desgraçar a vida da gente. MINHA TIA – (Para Zé-do-Burro) Chegou um carro da Polícia! Eles estão com o Padre, na sacristia. ZÉ – Eu não roubei, não matei ninguém! Não vou fugir como qualquer criminoso. ROSA – Zé! Não adianta... não adianta mais... A Polícia já está aí! Veio cercar a praça! MINHA TIA – Some daqui, meu filho! ROSA – Vamos, Zé! ZÉ – Santa Bárbara me abandonou, Rosa! ROSA – Se ela abandonou você, abandone também a promessa. PUCPR 15 ZÉ – Não... mesmo que ela me abandone... eu preciso ir até o fim...ainda que já não seja por ela... que seja só para ficar em paz comigo mesmo. DELEGADO – Vamos à delegacia...! ZÉ – Mas eu não fiz nada... ROSA – Não! ZÉ – Ninguém vai me levar! Eu não fiz nada pra ser preso! Daqui só saio é morto! Juro por Santa Bárbara! Só morto! ROSA – Zé! ZÉ – Me deixe, Rosa! Não venha para cá! Zé-do-Burro, de faca em punho, recua em direção da igreja. Sobe um ou dois degraus, de costas. P Padre vem por trás e dá uma pancada em seu braço, fazendo com que a faca vá cair no meio da praça. Zé-do-Burro corre e abai- xa-se para apanhá-la. Os policiais aprovei- tam e caem sobre ele para subjugá-lo. E os capoeiras caem sobre os policiais para defendê-lo. Zé-do-Burro desaparece na onda humana. Ouve-se um tiro. A multi- dão se dispersa como num estouro de boiada. Fica ape- nas Zé-do-Burro no meio da praça, com as mãos sobre o ventre. Ele dá ainda um passo em direção à igreja e cai morto). ROSA – (Num grito.) Zé! (Corre para ele.) PADRE – (Num começo de reconhecimento de culpa.) Virgem Santíssima! (Desce os degraus da igreja em direção ao corpo de Zé-do-Burro.) ROSA – (Com rancor.) Não chegue perto! PADRE – Queria encomendar a alma dele... ROSA – Encomendar a quem? Ao Demônio? O Padre baixa a cabeça e volta ao alto da escada. Bonitão surge na ladeira. Mestre Coca consulta os com- panheiros com o olhar. Todos compreendem a sua inten- ção e respondem afirmativamente com a cabeça. Mestre Coca inclina-se diante de Zé-do-Burro, segura-o pelos braços, os outros capoeiras se aproximam também e aju- dam a carregar o corpo. Colocam-no sobre a cruz, de costas, com os braços estendidos, como um crucificado. Carregam-no assim, como numa padiola e avançam para a igreja.Bonitão segura Rosa por um braço, tentando levá-la dali. Mas Rosa repele-o com um safanão e segue os capoeiras. Bonitão dá de ombros e sobe a ladeira. Inti- midados, o Padre e o Sacristão recuam, a Beata foge e os capoeiras entram na igreja com a cruz, sobre ela o corpo de Zé-do-Burro. O Galego, Dedé e Rosa fecham o cor- tejo. Só Minha Tia permanece em cena. Quando uma tro- voada tremenda desaba sobre a praça. MINHA TIA – (Encolhe-se toda, amedrontada, toca com as pontas dos dedos o chão e a testa.) Eparrei, minha mãe! E O PANO CAI LENTAMENTE. FIM 16 PUCPR FELICIDADE CLANDESTINA Clarice Lispector 1. FELICIDADE CLANDESTINA Lembranças da infância da autora em Recife. Ela gostava de ler. Sua situação financeira não era suficientemente boa para comprar livros. Por isso, ela vivia pedindo-os emprestados a uma colega que não gostava de ler e que era filha de um dono de livraria. Essa amiga da protagonista é descrita como uma menina rica, baixa e sardenta, com um enorme talento para a crueldade. Certo dia, a filha do livreiro informou à narradora que podia emprestar-lhe “As Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato, mas que fosse buscar o livro em sua casa. A protagonista passa a sonhar com o livro. Mal sabia que a colega queria exercitar sua crueldade. Todos os dias, invariavelmente, o empréstimo do livro era adiado, pelos mais diversos motivos: ou já estava emprestado, ou estava de manhã, mas à tarde não estava mais... Enfim, esse suplício durou muito tempo até que, certo dia, a mãe da colega cruel interveio na conversadas duas e percebeu a atitude da filha; então, emprestou o livro à sonhadora por tanto tempo quanto desejasse: “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter... Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar... Havia orgulho e pudor em mim... Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com seu amante”. 2. UMA AMIZADE SINCERA O narrador conheceu um colega de escola no último ano de estudo. Desde então, tornaram-se amigos inseparáveis. Quando não conversavam pessoalmente, falavam-se pelo telefone conversavam sobre tudo e a todo tempo. Mas, aos poucos, a amizade entre ambos vai esfriando por falta de novidades, os assuntos começaram a faltar. Às vezes, marcavam encontro e, não tendo sobre o que conversar logo se despediam embora se ressentissem da solidão ao chegarem a casa: “Cheguei a ler livros apenas para poder falar deles. Mas uma amizade sincera queria a sinceridade mais pura. À procura desta, eu começava a me sentir vazio. Nossos encontros eram cada vez mais decepcionantes. Minha sincera pobreza revelava-se aos poucos. Também ele, eu sabia, chegara ao impasse de si mesmo... todos os problemas já tinham sido tocados, todas as possibilidades estudadas. Tínhamos apenas essa coisa que havíamos procurado sedentos até então e enfim encontrado: uma amizade sincera. Único modo, sabíamos, e com que amargor sabíamos, de sair da solidão que um espírito tem no corpo”. Passaram a dividir o mesmo apartamento, e apesar de se sentirem alegres, a falta de assunto persistia. Só se sentiam amigos, nada mais. As férias foram angustiantes. A solidão de um ao lado do outro era incômoda demais. Quando o amigo teve uma pequena questão com a Prefeitura, o narrador fez disso pretexto para uma intensa movimentação, agora tinham sobre o que comentar e exageravam nas palavras e nos detalhes de pouca importância. Foi então que o narrador entendeu por que os namorados se presenteiam, por que marido e mulher cuidam um do outro e por que as mães multiplicam o zelo pelos filhos: é para terem oportunidade de ceder a alma um ao outro. A pretexto de férias, arrumaram justificativas para viajarem sozinhos para junto de suas famílias. Sabiam que nunca mais se veriam novamente. “Um aperto de mão comovido foi o nosso adeus no aeroporto. Sabíamos que não nos veríamos mais, senão por acaso. Mais que isso: que não queríamos nos rever. E sabíamos também que éramos amigos. Amigos sinceros.” 3. MIOPIA PROGRESSIVA Se era inteligente, não sabia. Ser ou não ser inteligente dependia da instabilidade dos outros. A chave de sua inteligência escapava ao menino, pois, as mesmas coisas que às vezes provocavam sutis reações de admiração nos adultos, outras vezes eram ignoradas. Sua inteligência dependia do estado de espírito deles? E o menino pestanejava de curiosidade, denunciando um início de miopia. Passou a pestanejar e a franzir o nariz para denunciar e aprofundar a própria perplexidade. A aceitação da incerteza e do fato de ninguém ter a chave fê-lo crescer normalmente e viver em serena curiosidade. A instabilidade dos familiares passou para ele, e manteve pelo resto da vida: pestanejava e franzia o nariz, deslocando os óculos que usava por causa da miopia. Toda vez que desenvolvia esse cacoete, era sinal de que estava interiormente tendo noção de sua instabilidade. Certa vez, disseram-lhe que passaria o dia inteiro na casa de uma prima casada, sem filhos, que adorava crianças. Ali, pressentiu ele, não haveria instabilidade: o tempo todo seria julgado o mesmo menino. Na semana que antecedeu a esperada visita, a cabeça do menino ferveu, pois não sabia de que forma iria apresentar-se diante da prima. Sentia até um aperto no estômago quando antecipava a situação de que ia ser amado sem seleção, sem escolha, o que represen- tava uma estabilidade ameaçadora. Aos poucos, suas preocupações passaram a ser outras: que elementos ele daria à prima para ela ter certeza de quem ele era? Como encararia o amor que ela nutria por ele? PUCPR 17 Ao entrar na casa da prima, duas surpresas o desnortearam (ele se desnorteava com surpresas): 1) a prima tinha um dente de ouro no lado esquerdo da boca; 2) ela o recebeu com naturalidade, sem evidenciar amá-lo. Já que suas previsões foram por terra, resolveu brincar de não ser nada. No entanto, à proporção que o dia avançava, o amor da prima se evidenciava mais. Era um amor sem gravidez: ela queria que ele tivesse nascido dela; por isso demonstrava o amor estável, a estabilidade do desejo irrealizável. Amor que incluía paixão, a paixão pelo impossível. Quando o menino descobriu o ingrediente da paixão no amor, ele perdeu a miopia e viu o mundo claramente. Foi como se ele tivesse tirado os óculos e a própria miopia o fizesse enxergar. Desde então, talvez, ele adquiriu o novo hábito de tirar os óculos a pretexto de limpá-los “e, sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.” 4. RESTOS DO CARNAVAL Novamente, as lembranças da infância de Clarice. A menininha de Recife gostava de carnaval. Entretanto, a atenção da família se concentrava na doença da mãe; por isso, permitia-se pouca participação da menina na folia: ficava até onze horas da noite, ao pé da escada do sobrado onde morava, olhando os outros se divertirem. Ela não se fantasiava; porém, cheia de felicidade, se assustava com os mascarados e até conversava com alguns deles. E as máscaras? Eu tinha medo, mas era um medo vital e necessário porque vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara À porta de meu pé de escada, se um mascarado falava comigo, eu de súbito entrava no contato indispensável com o meu mundo interior, que não era feito só de duendes e príncipes encantados, mas de pessoas com o seu mistério. A seu pedido a irmã frisava-lhe os cabelos, pintava sua boca de batom bem forte e passava ruge nas faces e ela se sentia bonita e feminina e fugia da meninice. Tinha oito anos quando o seu carnaval foi diferente. A mãe de uma amiguinha fantasiou a filha de rosa (flor), usando papel crepom; com as sobras, fez a mesma fantasia para a protagonista. Na expectativa do momento de vestir a fantasia, a euforia era tanta que até superou o orgulho ferido de ganhar um presente apenas por ter sobrado papel. Entretanto, quase na hora de ser fantasiada, sua mãe subitamente piorou de saúde. Coube à menina, já com a roupa, mas ainda sem os cabelos enrolados e sem maquiagem, correr pela rua para buscar remédio. Mais tarde, acalmada a crise da mãe, ela saiu com a fantasia completa. Porém, o encantamento já não existia mais: “(...) não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.” Só horas depois veio a compensação: um garoto de doze anos encheu a cabeça dela de confetes: “Considerei pelo resto da noite que alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.” 5. O GRANDE PASSEIO Uma velhinha pobre andava pelas ruas. Era apelidada de Mocinha. Havia sido casada, tivera dois filhos: todos morreram e ela ficou sozinha. Depois de dormir em vários lugares, Mocinha acabou, não se sabia por que, passando a dormir sempre nos fundos de uma casa grande no bairro Botafogo. Cedinho ela saía “passeando”. Na maior parte do tempo, a família moradora da casa se esquecia dela. Certo dia, a família achou que Mocinha já estava lá por muito tempo. Resolveram levá-la para Petrópolis, entregá-la na casa de uma cunhada alemã. Um filho da casa, com a namorada e as duas irmãs, foi passar um fim-de-semana lá e levou Mocinha. Na noite anterior, a velhinha não dormiu, ansiosa por causa do passeio e da mudança de vida. Como se fossem flashes
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