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FURET, François A oficina da História

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A História, hoje
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Os intelectuais franceses e o estrutura-
lismo"
o diagnóstico do «fim das ideologias», tal como é apresentado
por exemplo por Raymond Aron no seu último livro I, trata geralmente
do conjunto das sociedades desenvolvidas da América e da Europa
Ocidental. Põe em relação a prosperidade, o crescimento económico,
a integração social, por um lado, e a progressiva extinção dos extre-
mismos políticos, por outro: o automóvel, o frigorífico e a televisão
teriam matado a revolução. Este tipo de análise já inspirou inumeráveis
comentários sobre o neocapitalismo, o regime gauIlista e a espécie de
entorpecimento político que caracteriza a França desde o fim da guerra
ela Argélia: como se uma das [unções do nacionalismo gaullista fosse,
IIoje em dia, fazer um balanço de um processo objectivo de «ameri-
canização» da França.
Mas o fim das ideologias significará o fim dos ideólogos? Se é
-.eniade que a França actual, nas suas profundidades sociais, tende
a adormecer numa sociedade de abundância e de integração social,
este diagnóstico será igualmente válido para os grupos e os homens
que têm a profissão de pensar e de escrever? Objectar-se-a talvez que
esta questão supõe um certo desvio em relação à definição original
• Preuves, n." 92, Fevereiro de 1967.
1 Raymond Aron, Trois Essais sur I'âge industriel, Plon.
41
t
angelo
A OFICINA DA HISTORIA
donde partimos: com efeito, as relações dos intelectuais com as ideo-
logias são de outra natureza, e em todo o caso mais complexas (mesmo
quando são aparentemente simples, ou voluntariamente simplificadas)
do que as do grande público. Todavia, em consequência do magistério
de opinião exercido pelos intelectuais franceses desde a época das
Luzes, são muitas vezes reveladoras dos problemas e das opções da
sociedade inteira. Historicamente, nada é mais simplificador do que
divinizar uma função puramente protestatória da intelligentsia: por
intermédio de grandes antepassados malditos, instalamo-nos facil-
mente numa herança excepcional. Acontece que Voltaire é o homem
mais festejado do século XVIII, Rousseau é levado para o Panthéon
pela Revolução e o caixão de Victor Hugo é seguido por uma multidão
imensa. A esquerda intelectual raramente governou a França contem-
porânea, mas deu-lhe os seus valores universais. Nem o processo Dreyfus,
nem a Frente Popular, nem a expansão do comunismo depois da guerra
são compreensíveis sem o brilho que lhes deu a intervenção dos inte-
lectuais.
É por isso que a ideologia está longe de estar toda ela contida
numa teoria da história, mesmo que o marxismo-Ieninismo tenha
sido a forma mais espalhada e a mais extrema na França de ontem.
A ideologia nasce do sentimento de que um grande problema his-
tórico pode e deve ser resolvido por um comprometimento individual.
Daí a paixão que lhe é inseparável, o proselitismo, a condenação
do adversário e mesmo do indiferente, a amálgama entre a ordem da
razão histórica e a da moral pessoal. As lutas de classes segundo Guizot
ou segundo Marx têm finalidades diferentes, uma assegurando o reino
da burguesia, a outra o advento do proletariado; no entanto, ambas
supõem - mesmo que o neguem, como Marx - uma visão moral
do mundo político, uma partilha entre o bem e o mal e um compro-
metimento do lado do bem.
De facto, a esquerda francesa não tem o monopólio da ideo-
logia: é antes a própria oposição esquerda-direita que é desde há perto
de duzentos anos a trama na qual se tecem as ideologias. Apoiado
em Barrês contra Zola, em Maurras contra Romain RoIland, em Drieu
contra Aragon, o francês de direita possui também o seu pedigree cul-
tural, de que a esquerda denunciou muitas vezes os postulados implícitos
42
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"'..l!i"{OO
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(
e a hipocrisia política, O masoquismo nacional do burguês pétainista
ou, quinze anos mais tarde, a exaltação nacionalista da «Argélia fran-
cesa» levam ao mesmo sistema de justificações intelectuais e morais,
de que apenas as modalidades variaram com o acontecimento. Porque
privilegiar então hoje a ideologia de esquerda e o intelectual de esquerda?
É que a última grande batalha da ideologia de direita foi empreendida
- e perdida - pelo fascismo: desde o fim da guerra, a elaboração
ideológica tornou-se por este facto quase um monopólio da esquerda.
Como Raymond Aron mostrou, esta esquerda vitoriosa a quem
a história «dava razão» abusou loucamente do famoso tribunal hege-
liano, tornado «o ópio dos intelectuais», antes mesmo que o tribunal
político-moral do estalinismo se desmantelasse com a morte de Esta-
line. Combinavam-se aí certeza histórica e juízo moral, reforçando-se
mutuamente: ora, os dois elementos deste apogeu da idade ideológica
foram atingidos ao mesmo tempo pela evolução do mundo contem-
porâneo.
A desestalinização pôs em causa justiça e verdade no interior do
mundo socialista: os «indecentes» não eram unicamente os burgueses,
e a União Soviética não estava forçosamente, sempre e por essência,
na vanguarda da história humana. Primeira diáspora dos intelectuais
comunistas e progressistas: um mundo inteiro desfazia-se -lembro-me
disso, eu estava lá. Varsóvia, Budapeste, o cisma chinês apenas vieram
acentuar o processo, consagrando o fim de um marxismo-leninismo
ao mesmo tempo encarnado e universal. Mas é justamente nestes anos
que uma nova miragem universalista, que um messianismo de substi-
tuição se ofereceu aos intelectuais revolucionários, o da luta do Terceiro
Mundo pela sua independência, isto é, no contexto francês, o apoio
da F.L.N. na guerra da Argélia. Esta experiência suplementar do extre-
mismo ideológico foi tanto mais característica dos meios de intelectuais
de esquerda quanto foi vivida no isolamento social, desacreditada pelo
Partido Comunista, incompreendida pela classe operária: o vínculo
(mítico) do intelectual ocidental com os oprimidos e os agentes da
revolução mundial era procurado para além das fronteiras, num adver-
sário por definição supostamente socialista e internacionalista. O felá
muçulmano cantado por Fanon tinha-se tornado o último aliado em
data do derrotismo revolucionário de tipo leninista, Sabe-se o segui-
.........-...........------.,..,-----l
j
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A. HIBT6RIA., HOJE
43
A OFIOINA DA HIST6RIA
mento: onde a esquerda intelectual investira os seus valores revolu-
cionários tornados disponíveis, encontrou uma consciência nacional
e religiosa; ao buscar o partido boIchevique de 17, encontrou o islão,
Boumediene em vez de Lenine.
O fracasso argelino e as próprias vitórias dos povos colonizados
travaram o investimento dos intelectuais de esquerda no Terceiro
Mundo: é que as dificuldades do «arranque» económico são de natu-
reza muitas vezes demasiado técnica para alimentar as paixões, e há
uma espécie de decepção amorosa entre os amigos franceses da F.L.N.
em guerra e a Argélia do coronel Boumediene. No entanto, o fracasso
económico da maior parte dos países recém-descolonizados dá de
novo crédito, de uma certa maneira, à ideia da ditadura leninista
--- ou maoísta: não encontrando nos seus países o terreno favorável a
uma experiência deste tipo, alguns intelectuais ocidentais exaltam a
necessidade desta ditadura para os países subdesenvolvidos como
único meio para quebrar os obstáculos de todos os géneros à mobi-
lização do trabalho e à poupança nacional. Enquanto a revolução
cubana, há alguns anos atrás, tinha entusiasmado sobretudo pelo seu
carácter romântico e antiburocrático (que se distinguia tão nitidamente
dos socialismos de tipo soviético), o modelo chinês parece voltar a dar
os seus direitos prioritários ao desenvolvimento económico, e pode
justificar de novo, desta maneira clássica, a defesa de uma política tota-
litária. Mas é obviamente inadequado às condições das sociedades euro-
peias, ao mesmo tempo demasiado «exótico» pela cultura e demasiado
conhecido pelos seus antecedentes para suscitar muitas adesões; a hos-
tilidade do Partido Comunista Francês tira-lhe finalmentegrande parte
do seu esplendor.
Na realidade, em vez de revigorar um marxismo «à chinesa», a
irrupção das nações do Terceiro Mundo na história contribuiu, pelo
contrário, para apressar o fim das ideologias na cultura francesa con-
temporânea; o que, à superfície e por um instante, parecia reanimar
as grandes intenções universalistas de transformação social, desacre-
ditou em profundidade e de maneira duradoura as filosofias da his-
tória do século XIX: fenómeno que se poderia resumir grosseiramente
dizendo que na vida intelectual francesa, tão sensível à conjuntura,
44
A HIST6RIA, HOJE
e tão pronta à generalização, a etnologia estrutural tirou uma parte
do seu esplendor do facto de oferecer uma anti-histôria,
Uma esquerda intelectual desiludida, desmoralizada pela história,
virou-se para o homem primitivo, já não tanto para decifrar a infância
do homem - o que conduziria ainda à história -, mas para nele
encontrar a verdade do homem; este plesbicito do «selvagem» por uma
sociedade que se considera satura da de riqueza e de «civilização», como
se dizia já no tempo de Rousseau, não é um fenómeno novo. Mas o
interessante é que o «selvagem» se tenha tornado por um instante o
modelo das ciências do homem: não é portanto por acaso, nem o único
efeito de um chauvinismo cultural aliás demasiado evidente, que o
estruturalismo, que domina as investigações linguísticas europeias desde
o princípio do após-guerra, desabrochou em França, não através da
linguística, mas sobretudo através da etnologia. Também não é só
por causa da importância da obra de Lévi-Strauss: as «estruturas ele-
mentares» datam de 1949 c antecipam portanto de quase dez anos
a grande notoriedade do autor. Foi necessária a deslocação do dogma-
tismo marxista, nos anos 1955-1960, para que a etnologia viesse preen-
cher uma expectativa social, uma situação histórica. É que a descolo-
nização revelou a todos os segredos dos etnólogos, esses pioneiros
do anticolonialismo: que as culturas são múltiplas, igualmente respei-
táveis, e que se manifestam mais em termos de permanência do que de
mudança. A colonização francesa (que foi muitas vezes de «esquerda»
nas suas origens, é preciso não esquecê-lo) pretendera reunificá-las
num «tempo» à ocidental, fazendo-Ihes ultrapassar a todo o custo
as etapas europeias do progresso; em contrapartida, há talvez hoje um
pouco de masoquismo expiatório na revalorização dos mundos extra-
-europeus.
Por outro lado, estes mundos exóticos e pobres têm o condão de
cristalizar todas as repugnâncias e todas as recusas que nascem da
«sociedade da abundância»: mesmo que tenham deixado de ser pólos
revolucionários, mesmo que se afundem a pouco e pouco abaixo da
linha de sobrevivência, são pelo menos inocentes e puros, aos olhos de
uma esquerda que é no fundo moralista e mais cristã do que julga ser;
continuam ainda a ser um recurso do espaço contra o tempo imobili-
zado (visto não ser revolucionário) do Ocidente. Por pouco que a
45
A OFICINA DA HISTóRIA
chama revolucionária esteja latente, como na América do Sul, ou
irrompa, como na China, o desespero dos estudantes da Europa rica
pode um dia reinvestir-se de esperança.
Produziu-se finalmente, entre ontem e hoje, uma profunda muta-
ção na ideia que um intelectual francês faz do mundo e do papel que
o seu país tem nele. A transferência da esperança revolucionária para
a União Soviética, depois para o Terceiro Mundo, constituía já uma
confissão de implícita impotência quanto às possibilidades nacionais.
Mas traduzia também a sobrevivência da tradição jacobina, a nostalgia
da França de 93, um patriotismo provisoriamente frustrado mas opti-
mista: um dia, a França retomaria nas suas próprias mãos o archote
da história revolucionária. Eis que até este sonho se apaga no hori-
zonte: hoje que a chama soviética se extingue e o Terceiro Mundo
desconcerta ou desilude os seus amigos dos tempos heróicos, eis que
a própria França já não é a França. O intelectual francês, herdeiro
de um prestígio menos frágil do que a força, e inconscientemente habi-
tuado ao esplendor universal da sua cultura, ainda não vive a infeli-
cidade de ser belga. Mas já se compreende a si próprio, já se compreende
cada vez mais como o cidadão de um país que, apesar da retórica gaul-
lista, já não tem o sentimento de fazer a história humana: esta França,
expulsa da história, aceita tanto melhor expulsar a história. Pode deitar
sobre o mundo um olhar que já não está velado pelo seu próprio
exemplo e pela sua obsessão civilizadora: um olhar quase espacial,
doravante céptico sobre as «lições» e o «sentido» da história. Desde o
primeiro após-guerra, nos seus Regards SUl" /e monde actuel, Valéry
pressentira admiravelmente o fenômeno.
Assim, as desilusões recentes dos intelectuais franceses e a con-
juntura política geral cumulam os seus efeitos para chegar a um ques-
tionamento da história - esta mestra * que foi durante tanto tempo
tirânica, antes de se tornar infiel.
É sem dúvida esta situação que explica a repercussão actual de
um tipo de pensamento de que se vê em Lévi-Strauss o modelo e o
* Maitresse, em francês, tem dois sentidos, que o autor aqui refere simulta-
neamente: o de «mestra» (de escola) e o de amante, eventualmente infiel. (N. do R.)
46
A HISTóRIA, HOJE
representante. Não é aliás certo, é mesmo improvável que Lévi-Strauss,
que tem a paixão da exactidão, aceite esta espécie de paternidade geral
e vaga que se quer de todos os lados endossar-lhe, sob o rótulo de
«estruturalismo». No entanto, do ponto de vista de uma sociologia
da sua audiência, pouco importa: é significativo, pelo contrário, que
uma obra tão particular e tão técnica como a sua tenha tido uma resso-
nância bastante geral para que a invoquem hoje homens de letras,
críticos de arte, filósofos. Ao tentar-se inventariar os grandes temas e as
ambições, não se procurará portanto escapar ao movimento que
generaliza o seu alcance, pois que é isso mesmo que se trata de com-
preender.
Por mais abstracta, por mais intelectualista que seja, a obra de
Lévi-Strauss impressiona antes de mais como uma renovação do grande
paradoxo rousseauísta que corta em dois o século XVIII: pressente-se
ao longo de toda ela este amor pela vida natural, pelo campo e pelas
flores, esta ternura pelo homem «primitivo» que evoca inevitavelmente
a nostalgia de uma felicidade perdida pelas sociedades industriais.
Lévi-Strauss fala de um mundo onde a águia, o urso, a selva existem.
Mas tal como Rousseau, um dos seus autores preferidos, não acredita
no regresso de uma felicidade primitiva perdida. O herdeiro de Boas
e de Mauss sabe que não há estado natural, mas múltiplos, colectivi-
dades e culturas que são outras tantas formas dadas ao confronto com
a natureza, e entre as quais o saber positivo não pode estabelecer uma
hierarquia. A sociedade industrial da Europa ou da América perde
então os privilégios que crê ter sobre as tribos perdidas na floresta ama-
zónica: «É preciso muito egocentrismo e ingenuidade para acreditar
que o homem está totalmente refugiado num só modo histórico ou
geográfico do seu ser, enquanto a verdade do homem reside no sis-
tema das suas diferenças e das suas propriedades comuns» (La Pensée
sauvagey. O «selvagem» não oferece portanto a imagem da infância
do homem, como se pensava nos séculos XVIII e XIX, segundo um modelo
ingenuamente europeu da história humana; não é sequer uma imagem
adequada entre outras. Desde que se lhe reconheça ter imaginado
sociedades muito variadas e usar uma lógica tão erudita - ou tão
simples - como a da ciência moderna, já não existe como tal, nem
como «primitivo». Oferece simplesmente, como as chamadas sociedades
47
48
A OFICINA DA HISTóRIA
desenvolvidas, uma multiplicidade de soluções culturais à eterna con-
tradição entre o homem e a natureza.
O papel da etnologia é então o de classificar os sistemas culturais,
de continuar, no interior de cada um deles, a análise objectiva dos
signos e da sua articulação. A ambição psicanalítica é implicitamente
transferi da do individual para o colectivo,da análise clínica para a
«descodificação» de uma linguagem social como o mito: sabe-se até
que ponto o Freud do último período se apaixonou pela interpretação
da informação etnológica (que ele de resto conhecia mal). Aliás, Lévi-
-Strauss recusa a confusão metodológica deste parentesco dissimulado
etnologia-psicanálise. Nunca extrapola no seu domínio os processos
da psicanálise. Mas a sua reflexão sobre os mitos estende ao colectivo
as ambições da cura individual; quer pôr à luz do dia as estruturas
inconscientes da mensagem social, o seu código subjacente anterior
ao que cada homem pensa, e determinando finalmente o que ele pensa
de si próprio e dos outros. Lévi-Strauss está de acordo neste ponto
com Marx, com Freud: tal como o domínio do mito, o das ideologias
é o de uma falsa consciência do real, que depende de uma explicação
feita a um outro nível. Mas, contrariamente a Marx, não entrevê
nenhuma solução histórica para esta falsa consciência, nenhuma
reconciliação do homem com a sua verdadeira história.
Além disso, o que tenta ainda a etnologia estrutural é a promoção
das ciências humanas a uma metodologia enfim rigorosa, comparável
à das ciências exactas. É que em certo sentido a análise etnológica
é uma experiência de laboratório. Tanto nas ciências humanas como
nas ciências exactas, o objecto da observação é tratado como um objecto
natural; desdobrado no espaço, permite experimentações múltiplas;
enfim, a consciência da distância entre o observador e o observado é
muito viva. Porém, noutro sentido, as discussões metodológicas dos
etnólogos ameaçam esta assimilação da etnologia às ciências exactas.
Lévi-Strauss nunca deixou de ter o duplo sentimento deste parentesco
e desta distância a preencher: daí a originalidade da sua obra e sem
dúvida o seu alcance geral que contrasta com o carácter voluntaria-
mente restrito da descrição etnológica. É que, trabalhando com algumas
sociedades onde a história não introduziu o caos e onde é relativamente
fácil a redução a variantes pouco numerosas, Lévi-Strauss pode satis-
r
i
1
A HIST6RIA, HOJE
fazer, nas melhores condições, a sua preocupação pelo rigor científico
e a sua obsessão pelo «modelo» linguístico.
É verdade, como repete muitas vezes, que nunca se aventurou
para além desse campo, conquanto, como acontece sempre desde que
a moda se apropria de uma obra, discípulos demasiado zelosos ou impru-
dentes tenham tendência a alargar o seu método a uma teoria geral
das sociedades. Mas esta antecipação ligeira, ilusória talvez, sublinha
ainda mais o brilho metodológico dos livros de Lévi-Strauss. A figura
deste entomólogo dos comportamentos humanos, capaz de executar
com sucesso a saída do seu mundo cultural, não será a imagem inver-
tida do homem sartriano para quem o afundamento na história e a
emergência de uma práxis revolucionária impõem o célebre compro-
misso? É portanto insignificante que Lévi-Strauss pertença à mesma
geração que Sartre, tenha vivido - mais ou menos - a mesma his-
tória e seja considerado também «à esquerda»: para ele, esta própria
definição pertence ao domínio da opinião, não da ciência. Em que
é que, aliás, ele é de esquerda? Esta palavra não tem qualquer sentido
para um homem que pensa que, no estado de infância e de balbucia-
mento, as ciências humanas, a que consagrou a sua vida, e fora das
quais não quer dizer nada, não têm de momento nada a propor de
sério, menos ainda de útil, à cidade e às suas lutas - salvo precisa-
mente em voltar a cair na ideologia. É mesmo com a condição expressa
de se calarem sobre este assunto que podem ter a possibilidade de
merecer um dia o seu nome: «Às ciências exactas e naturais, pode-se
legitimamente perguntar o que são. Mas as ciências sociais e humanas
não estão ainda em condições de prestar contas. Se quisermos exigir
isso delas ou se, por política, crermos ser astucioso fazer de conta,
não nos deveremos admirar se recebermos balanços falsificados» (Revue
internationale des sciences sociales, 1964).
Será necessário ver nesta meticulosa obstinação - o que seria
para o nosso assunto o mais significativo - uma verdadeira ruptura
com a história? Lévi-Strauss não cessa de defender-se disso, de prestar
homenagens explícitas à história, consentindo mesmo em «reservar
os seus direitos» (lição inaugural). Mas para quando, e para que histó-
ria? Tratar-se-á do sentido histórico forjado pela razão dialéctica de
Sartre? Evidentemente que não, visto que um olhar retrospectivo só
49
A OFICINA DA HISTóRIA
pode mostrar no presente o resultado necessário do passado à custa
de uma falsificação inconsciente. Para Sartre, um homem pode sempre
retomar a continuação. Para Lévi-Strauss, só pode acreditar nisso.
Tenaz ilusão, que confere ao presente um privilégio um pouco sim-
plório, sem ver que é o presente que introduz nas sucessões uma flexi-
bilidade tirada do seu próprio fundo. Sob o olhar etnológico afunda-
-se portanto a segurança de um movimento retrógrado do verdadeiro,
e a filosofia da história torna-se um mito cuja necessidade não faz
senão sublinhar a inconsistência. Lévi-Strauss, criticando o fabrico
do sentido histórico pela razão dialéctica de Sartre, escreve estas
frases significativas sobre a história da Revolução Francesa: «O cha-
mado homem de esquerda agarra-se ainda a um período da história
contemporânea que lhe dispensava o privilégio de uma congruência
entre os imperativos práticos e os esquemas de interpretação. Talvez
que esta idade de ouro da consciência histórica já esteja terminada; e
o facto de se poder pelo menos conceber esta eventualidade prova que
se trata unicamente de uma situação contingente, como poderia ser
a 'focagem' fortuita de um instrumento de óptica em que a objectiva
e o foco estivessem num movimento relativo uma em relação ao outro.
Estamos ainda 'focados' na Revolução Francesa; mas teríamos estado
'focados' na Fronda se tivéssemos vivido mais cedo» (Pensée sauvage).
Mas, uma vez saldada a conta deste pseudo-saber, continua a
ser verdade que as sociedades se transformam e que pelo menos algu-
mas histórias - se não uma história - podem reclamar os seus obser-
vadores. A história, como o planeta de Le Verrier, é então a incansável
«perturbadora», que introduz os desequilíbrios estruturais. Ora, não
se pode conhecer tudo ao mesmo tempo; sincronia e diacronia não
podem ser apreendidas de um só relance. Quanto mais se multiplicam
num domínio as oportunidades de conhecer, mais nos privamos, em
proporção, das oportunidades de aceder a outro domínio. Precisamos
portanto de etnólogos estruturalistas para a ordem, de historiadores
para a desordem. Esta divisão de tarefas, contudo, tem uma equidade
apenas aparente. O estudo das estruturas conserva um duplo privi-
légio, cronológico e lógico. Cronológico, visto ser pela sua descrição
que é preciso começar. A actividade estruturalista tem por este facto
uma inteira autonomia, e a recíproca não é verdadeira: o trabalho
50
_______ """!
A HIST6RIA, HOJE
do historiador é dependente, ornamental, relegado de qualquer forma
a um futuro distante. E lógico, porquanto, ao contrário das estruturas,
a história pulveriza a norma no acontecimento, racionaliza-se com
grande dificuldade e talvez mesmo absolutamente nada.
Deste ponto de vista, que é talvez o mais significativo para o nosso
intento, Marx e Sartre estão do mesmo lado da barricada: o da his-
tória, e Lévi-Strauss do outro, o da estrutura. Como Hegel e como
Marx, Sartre descreve ainda um advento, uma história que realiza o
homem; Lévi-Strauss reduz o homem múltiplo aos seus mecanismos
comuns, dissolve-o no determinismo universal, estende-o no limite
como um objecto natural. Os seus livros, com um rigor um pouco
precioso, são um comentário sem esperança do nada do homem. Corte
epistemológico provavelmente fundamental em relação à «idade ideo-
lógica» e sistematizado por Foucault em Les Mots et les Choses.
Não quereria cair nas facilidades da amálgama, misturando inde-
vidamente obras e autores; mas do ponto de vista em que esta análise
se situa, e de acordo comum parentesco espontaneamente sentido
pela opinião intelectual, é permitido aproximar de Lévi-Strauss os
trabalhos de Barthes e de Foucault. Os domínios de investigação são
muito diversos, mas a inspiração metodológica é comum: trata-se da
tentativa de lançar um olhar etnológico sobre as sociedades e as culturas
contemporâneas. Imitando e invertendo a visão penetrante (télescopage)
cultural do etnólogo, Foucault procura alargar-lhe a luz. Lévi-Strauss
mistura o mundo jívaro e o seu olhar de europeu; quer considerar
a cultura europeia com um olhar de jívaro, para conjurar finalmente a
sua presença, para fazer dela um objecto científico. Quer descrever, não
as modalidades individuais, à maneira de um estudo das opiniões,
mas as estruturas conceptuais que, no interior de cada período, tor-
nam possíveis estas opiniões: a rotura com a historicidade, o fim do
antropocentrismo humanista caracterizam para ele a revolução actual
do saber. Sartre torna-se assim - o que não o terá seduzido! - «o
último filósofo do século XIX». A agressividade metodológica de Fou-
cault -provavelmente uma das chaves do sucesso do seu livro- tem
o interesse de procurar sistematizar a significação geral do estrutura-
lismo na cultura europeia de hoje: os analistas da «dissolução» do
homem sucederam aos profetas do seu advento.
51
,
l
A OFIOIN A DA HISTÓRIA
Mas se esta significação é precisamente a que Foucault descreve,
se o estruturalismo encerra Marx num século XIX cujo saber é dominado
pela história, é então muito curioso e sociologicamente muito interessante
que o estruturalismo se tenha desenvolvido em França de uma forma ao
mesmo tempo tão tardia e tão sistemática, e nos próprios meios inte-
lectuais e de esquerda que tinham sido marxistas (no sentido lato do
termo) desde a Libération. Fica portanto por descrever e compreender
este fenómeno aparentemente contraditório, ao mesmo tempo que a
contaminação curiosa e, penso, especificamente francesa que daí resul-
tou entre marxismo e estruturalismo.
Num primeiro nível de análise, é evidente que, se o marxismo
continua a estar no âmago do debate dos intelectuais franceses, é menos
como saber do que como valor, menos como instrumento intelectual
do que como herança política. Faz agora vinte anos que Sartre procura
conciliar a causa existencialista e o determinismo marxista, isto é,
a sua teoria da liberdade e as suas opiniões progressistas. O que o leva,
no último trabalho filosófico, a substituir a dialéctica da liberdade
individual pela dialéctica materialista de Marx, ratificando como uma
«evidência» e sem a mínima crítica o conjunto das teses do Capital
- isto é, o essencial da filosofia da história marxista-. Com este subter-
fúgio, põe a consciência filosófica de acordo com o progressismo polí-
tico; mas ilustra ao mesmo tempo a profunda dualidade da sua obra
e a desigualdade do seu rigor intelectual: é a constituição de um novo
fundamento existencial da história humana que o interessa, e a revisão
daquilo que considera na obra de Marx como a marca do cientismo.
A chapelada respeitosa e distante que tira ao Capital não é, no fundo,
de ordem filosófica: indica a fidelidade à intelligentsia de esquerda,
à resistência de ontem e às lutas populares de hoje contra o imperia-
lismo. É a marca histórica de uma época, precisamente a da idade
ideológica. Sartre fala e falará sempre como um grande irmão de
todos os homens que viveram profundamente os tempos do fascismo
e do comunismo: paradoxalmente, o génio deste filósofo profissional
2 Cf. um artigo de R. Aron consagrado à «Critique de Ia raison dialectique»,
Figaro littéraire, 29 de Outubro de 1964.
52
A HISTóRIA, HOJE
é talvez feito mais de um segredo de sensibilidade e de arte do que
de um pensamento claro. Por mais que Sartre recuse ser aquilo em
que se tornou, é apanhado pela implacável história da literatura: assumiu
hoje uma figura de patriarca, o rosto de um antepassado que envelhece
na glória, Prémio Nobel contra a sua vontade, mas Prémio Nobel
ainda assim. A última astúcia das «palavras».
Perante o marxismo, é verdade que também Lévi-Strauss pagou a
sua dívida. Mas num sentido diferente: voluntariamente ausente das
lutas políticas do após-guerra, fechado na sua torre de marfim de
sábio, não sentiu a necessidade de se definir em relação ao comunismo
ou ao anticomunismo; as poucas entrevistas que deu à imprensa (visi-
velmente sem entusiasmo), mais do que prudência, demonstram uma
vontade profissional de conservar a distância relativamente ao seu
próprio mundo cultural e à história caótica que nele introduz as suas
desordens. Contudo, mais do que Sartre, Lévi-Strauss pode ser consi-
derado como alguém que permanece fiel às premissas filosóficas e ao
deterrninismo materialista de Marx. Herdou-lhes a ambição científica
de interpretar em termos inteligíveis, através de um outro sistema que
lhes está subjacente, as representações que os homens fazem do natural
e do social; aceita a ideia de uma sociedade global, onde em última
análise as relações do homem com a natureza permanecem determi-
nantes. Mas transforma-a profundamente esboçando uma verdadeira
teoria das superstruturas: é aliás, diga-se de passagem, um dos sin-
tomas mais claros deste fim da idade ideológica nos intelectuais fran-
ceses, este afinco ao estudo das superstruturas, como se se quisesse
cercar, desvendar, compreender as produções intelectuais dos homens
e dos grupos através das suas motivações mais recônditas. Mas é tam-
bém o ponto mais fraco das análises de Marx. Para Lévi-Strauss, que
se explicou a respeito disso claramente em La Pensée sauvage, o pri-
mado das infra-estruturas deve entender-se no sentido de uma dis-
tribuição das cartas: o que as sociedades fazem desta distribuição,
que é suportada, faz parte da invenção cultural dos homens, mas esta
invenção não propõe um número ilimitado de variantes. Traduz, pelo
contrário, estruturas e sistemas lógicos cujo aparecimento e mutação,
em vez de serem necessários como outras tantas etapas de uma evo-
lução idêntica da humanidade, fazem, pelo contrário, parte do cálculo
:j
1
53
.,.,
:1
3 Cf. Esprit de Novembro de 1963.
4 . Cf. E. Leach, «Genesis as Myth», Discovery, Maio de 1962; «The Legitimacy
of Solornon», Archives européennes de sociologie, 1966; «C. Lévi-Strauss, Anthropolo-
gist and Philosopher», New Left Review, 1966.
A OFICINA DA HISTORIA
das probabilidades: o que justifica a concomitante multiplicidade das
sociedades e das culturas.
É verdade que se podem tirar interpretações menos materialistas
e menos marxistas de outras passagens dos livros de Lévi-Strauss, visto
nunca se saber bem se a estrutura lógica revelada pela análise é da
mesma natureza que a matéria, produzida por ela, ou se, pelo contrário,
ela enforma a realidade. De facto, o problema de saber se ele próprio
é materialista ou kantiano (um kantismo sem sujeito transcenden-
tal3, disse Paul Ricoeur), interessa pouco Lévi-Strauss, que parece
aceitar as duas hipóteses: seja como for, apenas se interessa secun-
dariamente pelas suas relações filosóficas com o marxismo. '
Aliás, sempre se coibiu de fazer qualquer extrapolação dos seus
processos de análise às mitologias, às crenças ou às sociedades «his-
tóricas»: disse-o explicitamente em resposta ao antropólogo inglês
Leach+, que propunha uma «descodificação» lévi-straussiana do texto
do Génesis - e este contraste entre a ambição teórica implícita das
suas ideias e a escassez do seu campo de aplicação alimenta aliás a
desconfiança de muitos dos seus colegas anglo-saxónicos que continuam
ligados à acumulação empírica de conhecimentos limitados. Em França,
pelo contrário, é esta própria ambição, mais do que o seu contributo
particular para a etnografia sul-americana, que despertou o entusiasmo
dos meios intelectuais e rapidamente provocou discussões a um nível
mais geral: existencialismo, marxismo, estruturalismo. A leitura das
publicações periódicas de esquerda testemunha este facto: um pouco
contrariado, o etnógrafo foi sagrado filósofo. Talvez seja precisover-
-se aí, com certos antropólogos anglo-saxónicos, um traço particular
da tradição nacional. Mas no caso presente, a fascinação exercida
por Lévi-Strauss sobre muitos intelectuais marxistas ou ex-marxistas
parece-me ter uma explicação mais precisa: não nasce nem de uma
fraternidade de opiniões políticas - visto Lévi-Strauss ser o contrário
54
A HISTóRIA) HOJE
de um homem «engagé» - nem de um parentesco filosófico - muito
aleatório, mesmo que este exista, e em qualquer dos casos relativa-
mente indiferente a Lévi-Strauss -, mas de uma relação de inversão
em que a nostalgia do marxismo se pôde investir. Simplesmente, ponto
por ponto, a descrição estrutural do homem convertido objecto subs-
tituiu o advento histórico do homem-deus.
Mas as relações entre marxistas e estruturalistas tomaram também
um outro aspecto, mais espantoso ainda: é significativo que toda uma
corrente de pensamento comunista apele implicitamente para o estru-
turalismo, não para romper com o marxismo, mas para o renovar: é o
sentido da tentativa de A1thusser e dos seus amigos, que procuram dar
à obra de Marx e de Lenine o seu valor teórico pela análise rigorosa
dos seus conceitos operatórios, para a libertar da ideologia prosaica-
mente humanista em que Garaudy a diluiu. Já não se trata, portanto,
como na obra de Sartre, de conciliar uma teoria do conhecimento
com opiniões progressistas, mas antes de unir o método estruturalista
à teoria marxista. Daí resulta um marxismo depurado da sua filiação
hegeliana, lavado de qualquer contaminação com o humanismo bur-
guês, diferente até daquilo que Marx pôde pensar da sua própria dou-
trina, visto tratar-se de a redefinir através da revelação das suas estru-
turas conceptuais fundamentais. Para Althusser, é unicamente com
esta condição que o marxismo pode tornar a ser enfim aquilo que é,
mas que é mascarado pela imensa sedimentação social e histórica: a
teoria, a ciência em oposição às ideologias. Compreende-se desta forma
o curioso itinerário de A1thusser: ao procurar «desideologizar» o
marxismo, não cessa contudo - por postulado ímplicito - de o tomar
ao mesmo tempo como objecto de estudo e como a única referência
científica. A análise estrutural, que é uma tentativa para estender às
«ciências humanas» os métodos das ciências da natureza, é aqui subtil-
mente desviada para o dogmatismo marxista posto como um a priori
da reflexão - visto que o modelo marxista é assimilado logo à partida
ao modelo científico. Dai a contradição epistemológica e a ambigui-
dade política dos trabalhos de Althusser e dos seus amigos, dedicados
a dar de novo vida a uma análise rigorosa de Marx, mas bloqueados
pelo fideísmo a um aparelho conceptual que, por mais genial que tenha
sido, data de uma outra época e de um outro mundo.
55
56
A OFIOIN A DA HISTORIA
Mas talvez que esta própria ambiguidade seja significativa, num
outro plano, o da evolução de uma parte dos intelectuais comunistas,
entre aqueles que permaneceram no interior do partido desde a crise
da desestalinização, e os mais jovens que aderiram a essa causa desde
então para cá num clima muito mais tolerante e muito mais crítico
do que o dos anos cinquenta: Althusser oferece ao mesmo tempo estru-
turalismo e marxismo, estudo crítico e intransigência doutrinária, fide-
lidade ao PCF e reticências a seu respeito. Há muitas razões para pensar
que um estudo sociológico da sua audiência actual realçaria estes ele-
mentos, tão característicos do passado recente e do presente dos intelec-
tuais comunistas. Pouco importa que sejam contraditórios; é precisa-
mente porque o são que uma interpretação estruturalista de Marx
pode dar-Ihes um asilo provisório. Contradição intelectual e contra-
dição sociológica explicam-se e reforçam-se mutuamente: a «desideo-
logização» estruturalista do marxismo é, sem dúvida, uma forma de
viver o fim das ideologias no interior do próprio mundo comunista.
Se o conjunto desta análise é exacto, se existe um laço entre um
fenómeno geral como o fim das ideologias e a atracção do estrutura-
lismo no meio particular dos intelectuais franceses, seremos então
surpreendidos pelo facto de a dissolução das certezas ideológicas e do
«sentido» da história não ter desembocado numa revalorização da
investigação e da informação empírica, à maneira anglo-saxónica.
Não é que esta investigação e esta informação não se desenvolvam,
uma vez que, pelo contrário, os inquéritos sociológicos, as sondagens
de opinião, as inventariações maciças de séries de arquivos se multi-
plicam tanto em França como no estrangeiro, mas tudo continua subor-
dinado mais do que nunca, mais ainda do que antes, à elaboração de
uma teoria geral. Tudo se passa como se a crise do pensamento mar-
xista tivesse desbravado o terreno para uma metodologia de uma outra
espécie, mas do mesmo nível, herdeira da mesma ambição de inteligi-
bilidade global e sistemática. Aquilo a que se chama, à falta de melhor
termo, a «moda» parisiense do estruturalismo, isto é, o seu sucesso
e o seu momento, explicar-se-ia assim pelas suas relações profundas, ao
mesmo tempo contraditórias e homogéneas, com o marxismo. O modelo
das ciências da natureza substituiu o modelo histórico, ° homem-
-objecto substituiu-se ao homem-sujeito, a estrutura ao processo, °
A HIST6RIA, HOJE
conceito à práxis; mas é no interior de uma mesma ambição determi-
nista, a partir de uma mesma vontade de decifrar o sentido do compor-
tamento humano para além do sentido aparente ou simplesmente
consciente.
É portanto provável que entre os intelectuais franceses o fim da
idade ideológica tenha englobado dois fenómenos distintos e de natureza
diferente. A desestalinização, o cisma sino-soviético, a crise do Ter-
ceiro Mundo - e a prosperidade francesa e europeia - atingiram
profundamente o progressismo dos anos cinquenta, tão característico
da idade ideológica. Daí uma disponibilidade da opinião intelectual,
uma espécie de expectativa - um pouco como, há um século atrás,
o fracasso sem glória dos «quarante-huitardsn" românticos precedeu
e facilitou a formação da geração realista e positivista. Mas facilitou-a,
não a criou: a própria transformação intelectual não depende de uma
explicação sociológica. Hoje, as desilusões políticas do progressismo
atingiram profundamente a difusão do marxismo entre os intelectuais
de esquerda, mas neste vazio assim criado não é Raymond Aron que
reina, mas Lévi-Strauss; não uma crítica liberal e empirista do mar-
xismo, mas um pensamento hiperintelectualista e sistemático, que
tende para uma teoria geral do homem. Os marxistas ou ex-marxistas
não puderam só investir nele o seu passado sem se renegarem; encon-
traram nele, «desideologizados», desenvencilhados das ingenuidades
do compromisso e do sentido da história, a ambição de uma ciência
sintética do homem e o seu velho sonho totalizante. É talvez nesta
medida que o caso dos intelectuais franceses merece tornar-se clássico:
o fim da idade ideológica encontrou nele os seus doutrinários.
* Junho de 1848, com a insurreição dos bairros operários a leste de Paris
e a constituição da 11 República, sob a presidência de Louis-Napoléon Bonaparte,
marcou uma geração de pensadores e de artistas românticos tardios conjugando
romantismo e realismo a que se deu o nome de «quarante-huitards», (N. do R.)
57
o quantitativo em história
A história quantitativa está hoje na moda, tanto na Europa como
nos Estados Unidos: assiste-se, com efeito, desde há mais ou menos
meio século, ao desenvolvimento rápido da utilização das fontes quan-
titativas e dos processos de contagem e de quantificação na investigação
histórica. Porém, como todas as palavras na moda, a de «história quan-
titativa» acabou por ter uma acepção de tal modo lata que abrange
praticamente tudo o que se quiser: do uso crítico de uma simples enu-
meração feita pelos aritméticos políticos do século XVII até à utilização
sistemática de modelos matemáticos na reconstituição do passado, a
«história quantitativa» designa com o mesmo termo várias coisas:
quer um tipo de fonte, queruma maneira de proceder, e sempre, de
uma forma ou de outra, explicitamente ou não, um tipo de conceptua-
lização do passado. Parece-me que, partindo do geral para o particu-
lar e procurando delimitar a especificidade do saber histórico em rela-
ção às ciências sociais, podem distinguir-se três conjuntos de problemas
relativos à história quantitativa.
1. Um primeiro grupo de problemas diz respeito aos processos
de tratamento dos dados históricos quantitativos: problemas de com-
posição das diferentes populações de dados, da unidade geográfica no
interior da qual são reunidos, limiares que diferenciam os grupos no
interior de uma mesma população, dos cálculos de correlação entre
duas séries diferentes, do valor dos diferentes tipos de análise estatís-
tica em relação aos dados, da interpretação das relações estatísticas, etc.
59
A OFICINA DA HIST6RIA
Estes problemas dependem da tecnologia da investigação em ciências
sociais. É verdade que podem também cobrir questões metodológicas:
não só porque nenhuma técnica é «neutra», mas porque, mais espe-
cificamente, qualquer processo estatístico põe forçosamente a questão
de saber se e em que medida o conhecimento histórico ou sociológico
é compatível com ou esgotado por uma conceptualização matemática
de tipo probabilístico. Mas nem a discussão técnica nem o debate
teórico são específicos à história: dizem respeito ao conjunto das ciên-
cias sociais, e a história quantitativa não apresenta a este respeito
qualquer diferença de natureza com o que se chama hoje «sociologia
empírica», que não passa, deste ponto de vista, de uma história quan-
titativa contemporânea.
2. O termo «história quantitativa» designa igualmente, pelo
menos em França, a ambição e os trabalhos de certos historiadores
economistas 1: trata-se de fazer da história uma econometria retros-
pectiva-, quer dizer, de preencher, para os séculos anteriores aos nossos,
e sobre o modelo das nossas contabilidades nacionais actuais, todas
as colunas de um quadro imaginário de input-output. Os defensores
desta história econométrica advogam portanto uma quantificação total
e sistemática: é esta, a seus olhos, a condição indispensável da elimi-
nação do arbitrário na escolha dos dados, e a da utilização de modelos
matemáticos no seu tratamento, a partir do conceito de equilíbrio
geral tal como ele pode ser importado da economia política para a
história económica.
A verdadeira história quantitativa resultaria assim, na lógica desta
concepção, de uma dupla redução da história: redução, pelo menos
provisória, do seu campo à economia, e redução do sistema descritivo
e interpretativo ao sistema que foi elaborado pela ciência social mais
rigorosamente constituída nos nossos tempos: a economia matemática.
Poder-se-ia aliás fazer a mesma análise a propósito da demografia e da
história demográfica : uma ciência conceptualmente constituída indica
1 Histoire quantitative de l'économie française, sob a direcção de J. Marczewski,
Paris, I.S.E.A., 1961-1968. Cf., nomeadamente, o tomo I, Histoire quantitative, buts
et méthodes, por J. Marczewski.
2 O termo é de Pierre Vilar.
60
A HISTóRIA, HOJE
os seus dados e fornece os seus instrumentos a uma dada disciplina
histórica, que se torna desde então como que um subproduto da dis-
ciplina principal cujas questões e conceitos transpõe simplesmente
para o estudo do passado.
É naturalmente ainda necessário que os dados existam para o
passado como existem para o presente, que existam ou, pelo menos,
possam existir, quer dizer, suficientemente elaborados, reconstituídos
ou extrapolados. Este imperativo fixa um primeiro limite à quantifi-
cação integral dos dados históricos: é que esta quantificação, supondo
mesmo que ela tenha sido possível antes do século XIX, não pode ir
além do período do recenseamento estatístico ou proto-estatístico,
que coincide com a centralização dos grandes Estados monárquicos
europeus. Ora, a história não começou com Petty ou Vauban.
Além disso, não há nenhuma razão para que o historiador aceite,
mesmo provisoriamente, a redução do seu campo de investigação
à economia ou à demografia. Com efeito, ou a história não é senão
o estudo de um domínio previamente definido como determinado
sector limitado do passado, no interior do qual se importam modelos
matemáticos estabelecidos por certas ciências sociais para os testar,
positiva ou negativamente. Neste caso, voltamos a cair na economia
política contemporânea, que me parece ser a única ciência social que
dispõe de tais modelos; e a história aparece então apenas como um
grande campo adicional de dados e nada mais. Ou então considera-se
a disciplina histórica na sua acepção mais lata, isto é, na sua indeter-
minação conceptual, na multiplicidade dos seus níveis de análise, e tra-
balha-se então na descrição desses níveis e no estabelecimento de sim-
ples ligações estatísticas entre eles, a partir de hipóteses que, originais
ou importadas, não passam de intuições do investigador.
3. É isto que faz que não se possa escapar, mesmo que se acres-
cente o qualificativo de «quantitativo» à história, ao que constitui o
objecto específico da investigação histórica: o estudo do tempo, da
dimensão diacrónica dos fenómenos. Ora, a este respeito, a ambição
ao mesmo tempo mais geral e mais elementar da história quantitativa
é de constituir o facto histórico em séries temporais de unidades homo-
géneas e comparáveis, e, assim, poder medir-lhes a evolução em deter-
minados intervalos de tempo, geralmente anuais. Esta operação lógica
61
A OFICINA DA HISTóRIA
fundamental define a história serial, segundo o termo proposto por
Pierre Chaunu 3: condição necessária, mas não suficiente da história
estritamente quantitativa tal como foi definida acima. É que a história
serial apresenta a vantagem decisiva, do ponto de vista científico, de
substituir ao incompreensível «acontecimento» da história positivista
a repetição regular de dados seleccionados e construídos em função
do seu carácter comparável. Mas ela não implica nem a pretensão à
exaustão do conjunto documental descrito, nem sistema de interpretação
global, nem formulação matemática, visto que, pelo contrário, o corte
da realidade histórica em séries deixa o historiador perante um mate-
rial decomposto em níveis, em subsistemas, cujas articulações ele é
livre, em seguida, de propor ou não.
Assim definidas, a história quantitativa e a história serial apare-
cem ao mesmo tempo ligadas e diferentes. Contudo, têm em comum
qualquer coisa de elementar que serve de fundamento a ambas: a
substituição da série ao acontecimento, isto é, a construção do dado
histórico em função de uma análise probabilística. À pergunta clássica:
que é um facto histórico?, dão ambas uma resposta nova que trans-
forma para o historiador a constituição do seu material de análise,
o tempo. É sobre o alcance desta transformação interior que gostaria
de adiantar algumas ideias.
Acrescento, para evitar qualquer equívoco, que este artigo não
comporta qualquer pretensão normativa: acontece que a história serial
é, desde há dez ou vinte anos, uma das vias mais fecundas do desenvol-
vimento do conhecimento histórico; além disso, apresenta a imensa
vantagem de fornecer a esta tão velha disciplina que é a história um
rigor e uma eficácia superiores aos que oferece a metodologia qualita-
tiva. No entanto, ela é, por natureza, impotente para tratar e até abor-
dar, por razões de circunstância (ausência irremediável de dados) ou de
3 P. Chaunu defendeu e utilizou esta terminologia em numerosos trabalhos.
Referir-nos-emos sobretudo a: «Histoire quantitative ou histoire sérielle», Cahiers
Vilfredo Pareto, Généve, 1968, e «L'hístoire sérielle: bilan et perspectives», artigo
publicado simultaneamente na Revue historique, Abril-Junho de 1970, e na Revue
roumaine d'histoire, n.? 3, 1970.
62
A HIST6RIA, HOJE
fundo (natureza qualitativa irredutível do fenómeno estudado), impor-
tantes sectores da realidade histórica: é o que explica, por exemplo,
que os historiadores da Antiguidade, que trabalhamcom dados muito
descontínuos no tempo, ou os especialistas da biografia intelectual,
que privilegiam o que a criação comporta de singular e de não com-
parável, sejam mais raramente sensíveis às seduções da história seria I
do que, por exemplo, os historiadores das estruturas agrárias da Europa
moderna.
Haveria deste ponto de vista um outro problema a apresentar e que
é talvez mais fundamental: a história seria I com certeza que apresenta
processos precisos para medir a mudança, mas em que 'medida é que
ela permite pensar as mutações? Por natureza, a série comporta uni-
dades identicamente constituídas, para serem comparáveis: a variação
temporal a longo prazo destas unidades, quando desenha ciclos, remete
para o que se poderia chamar a mudança na esta.nlidade, e portanto
para uma análise em termos de equilíbrio; mas quando a variação tem-
poral de uma ou várias séries desenha uma tendência de crescimento
indefinido, isto é, cumulativo, a decomposição desta tendência em
unidades relativamente pequenas (anuais ou decenais, por exemplo)
obscurece a definição do limiar a partir do qual há transformação da
estrutura da temporal idade e dos ritmos da mudança: daí os temíveis
problemas de datação e de periodização. Além disso, a mutação his-
tória decisiva pode não se inscrever em qualquer das séries endógenas
a um determinado sistema, mas resultar quer de uma inovação da qual
nenhuma contabilidade anterior deixou vestígios, quer de um facto r
exógeno que vem perturbar o equilíbrio plurissecular do sistema: estes
problemas metodológicos estão no centro do debate actual sobre a
questão do arranque industrial 4. Noutros termos, se é verdade que
nenhuma metodologia é inocente, a história serial, porque privilegia
4 Cf. especialmente: P. Deane e W. A. Cole, British Economic Growth, 1688-
-1959. Trends and Structure, Cambridge, 1962; D. Landes, Prometheus Unbound,
Cambridge University Press, 1969, trad. Gallimard, 1975; F. Crouzet, «Angleterre
et France au XVIII" siêcle», in Annales E. S. c., 1966, n." 2.
63
o historiador e as suas fontes
A OFICINA DA HIBT6RIA
o longo prazo e o equilíbrio de um sistema, afigura-se-me dar uma
espécie de crédito à conservação: é um bom correctivo à identificação
da história e da mudança, tal como o século XIX no-Ia legou, e é nesta
medida uma etapa capital na constituição da história como saber;
é, no entanto, ainda necessário darmo-nos conta dos seus pressupostos
e dos seus limites.
Mas este problema dos limites da história serial, que não pode
ser tratado no âmbito deste artigo, não deve servir de álibi à preguiça
intelectual ou à tradição: se, hoje, um pouco por todo o lado, a his-
tória se evade da narração para abordar problemas, isto deve-se em
grande parte à modificação dos elementos do puzzle a partir dos quais
reconstitui as imagens do passado. Graças à história serial, o histo-
riador encontra-se hoje perante uma nova configuração de dados e
perante uma nova tomada de consciência dos pressupostos do seu ofício.
É provável que não lhe tenhamos esgotado as virtudes.
Na medida em que a história quantitativa supõe a existência e a
elaboração de longas séries de dados homogéneos e comparáveis, o pri-
meiro problema que se põe em termos novos é o das fontes. De maneira
geral, os arquivos europeus foram constituídos e classificados no sé-
culo XIX segundo processos e critérios que refiectem as preocupações
ideológicas e metodológicas da história nessa época: predominância
dos valores nacionais e, por consequência, prioridade dada às fontes
político-administrativas, por um lado. Mas, por outro lado, conser-
vação e classificação do documento correspondente a uma finalidade
restrita e precisa da investigação: o arquivo é constituído para teste-
munhar mais sobre o acontecimento do que sobre a duração. Esta deve
ser estabelecida e criticada por si própria, e não como elemento de uma
série. O seu ponto de referência é externo: é o «facto» histórico dos
positivistas, ilusório ponto de fixação da consciência ingénua sobre
o que se supõe ser o real em relação ao testemunho, sequência incom-
preensível, descontínua, particular, no interior de um devir indefinido
64
A HISTóRIA, HOJE
ou de uma cronologia preestabelecida em séculos, em reinados, em
governos. Em suma, o arquivo constitui a memória das nações, como,
à escala de uma vida, as cartas que guardamos testemunham aquilo
que as nossas recordações escolheram.
Pelo contrário, os dados da história quantitativa não remetem para
um incompreensível corte externo do «facto», mas para critérios de
coerência interna: o facto já não é o acontecimento seleccionado por-
que marca o compasso dos tempos fortes de uma história cujo «sen-
tido» foi previamente definido, mas um fenómeno escolhido e eventual-
mente construído em função do seu carácter repetitivo, portanto
comparável através de uma unidade-tempo. A própria concepção
da ciência dos arquivos encontra-se radicalmente transformada no
próprio momento em que as suas possibilidades técnicas se multi-
plicam com O tratamento electrónico da informação. Este encontro
de uma revolução metodológica e de uma revolução técnica, que aliás
não são estranhas uma à outra, permite encarar a constituição de arqui-
vos novos, conservados em bandas perfuradas, que não remetem só
para um novo sistema de classificação, mas sobretudo para uma crí-
tica documental diferente da do século XIX. O documento e o dado já não
existem por si próprios, mas em relação com a série que os precede
e os segue; é o seu valor relativo que se torna objectivo e não a sua
relação com uma incompreensível substância «real». Assim se encontra
deslocado, pela mesma razão, o velho problema da «crítica» do docu-
mento histórico. A crítica «externa» já não se estabelece a partir de uma
credibilidade fundada na comparação com textos contemporâneos de
outra natureza, mas a partir de uma coerência com um texto da mesma
natureza diferentemente situado na série temporal, isto é, antes ou
depois. A crítica «interna» acha-se tanto mais simplificada quanto
muitas das operações de «limpeza» dos dados podem ser postas em
memória de computador.
A coerência é instituída, antes de mais, no momento da verificação,
por um mínimo de formalização do documento, de modo que se possa
reencontrar, num longo período de tempo e para cada unidade-tempo, os
mesmos dados, na mesma sucessão lógica. Deste ponto de vista, a uti-
lização do computador pelo historiador não é unicamente um imenso
progresso técnico, pelo ganho de tempo que permite (sobretudo quando
65
A OFICINA DA HISTóRIA
a verificação dos dados, como no método Couturier 5, se faz verbal-
mente, no gravador); é também um constrangimento teórico muito
útil, na medida em que a formalização de uma série documental desti-
nada a ser programada obriga de antemão o historiador a renunciar
à sua ingenuidade epistemológica, a construir o seu objecto de inves-
tigação, a refiectir nas suas hipóteses e a passar do implícito ao explícito.
O segundo trabalho crítico, desta vez interno, consiste em testar a coe-
rência dos próprios dados, em relação aos que os precedem ou aos que
se lhes seguem, isto é, em eliminar os erros: aparece então como uma
espécie de consequência do primeiro e pode ser aliás largamente auto-
matizado, pelos processos programados de verificação dos dados.
Muito naturalmente, a história serial «artesanal» começou por
utilizar as séries históricas mais simples de manejar, isto é, os docu-
mentos económicos, fiscais ou demográficos. A revolução trazida pelo
computador na recolha e no tratamento dos dados multiplicou progres-
sivamente as possibilidades de exploração destas séries numéricas. Hoje,
estende-se a todas as espécies de dados históricos que sejam reduzíveis
a uma linguagem susceptível de programação: não só aos papéis fiscais
ou às mercuriais*, mas também às séries de corpus literários relativa-
mente homogéneas como os cartulários da Idade Média ou os Cadernos
dos Estados Gerais da França monárquica.
Assim se precisa a primeira tarefa da história serial,o imperativo
do seu desenvolvimento: é a constituição do material de análise. A his-
toriografia clássica foi construída a partir dos arquivos elaborados
e tratados segundo as regras críticas que os beneditinos de Saint-Maur
do século XVIII e os historiadores alemães do século XIX nos legaram.
A historiografia serial de hoje deve reconstituir os seus arquivos em
s M. Couturier, «Vers une nouveJIe méthode mécanograph ique», Annales
E. S. C., 1966, n." 4.
• Disposições que o ministério público tomava a respeito da administração
da justiça, no Antigo Regime, e que eram tomadas em assembleia que na origem
se realizava às quartas-feiras (mercredi). Daí o nome de «mercuriales», As de Agues-
seau, pronunciadas entre 1698 e 1715, em Paris, no Parlamento, ficaram célebres e
tornaram-se praticamente em código do bom magistrado. (N. do R.)
66
A HISTóRIA, HOJE
função da dupla revolução meto dológica e técnica que transformou
os processos e as regras da disciplina.
Mas temos então o direito de pôr a questão da existência aleatória
deste material histórico, dos acasos da sua conservação, da sua des-
truição parcial ou do seu desaparecimento total. Não estou certo de
que esta questão separe, tão nitidamente como se pretende algumas
vezes, a história das outras ciências do homem cujo objecto é mais
especificamente definido. É que a história se caracteriza, na realidade,
por uma elasticidade extraordinária e quase ilimitada das suas fontes.
São descobertos imensos sectores «adormecidos» de documentação à
medida que se desloca a curiosidade do investigador: qual foi o histo-
riador que, no século XIX, se preocupou em estudar estes registos de paró-
quias, que se tornaram hoje, nomeadamente em França e em Ingla-
terra, uma das bases mais seguras dos nossos conhecimentos sobre a
antiga sociedade pré-industrial?
Além disso, fontes já exploradas no passado podem ser reutili-
zadas para outros fins, se forem investidas de uma nova significação
pelo investigador: descrições de movimentos de preços podem conduzir
a análises sociológicas ou políticas, e passa-se de Avenel a Labrousse.
Séries demográficas, estudadas, por exemplo, do ponto de vista do
desenvolvimento da contracepção conjugal, podem esclarecer problemas
de mentalidade ou de prática religiosa 6. Actas notariais, com a con-
dição de se contabilizar as assinaturas, podem permitir estatísticas de
alfabetização. Biografias sistematicamente reunidas em função de
critérios comuns, a partir de uma dada hipótese de trabalho, podem
constituir séries documentais que renovem completamente um dos
mais velhos «géneros» da narração histórica.
Por outro lado, a história quase só se baseou, até hoje, nos ves-
tígios escritos da existência dos homens. A interrogação oral, que for-
nece tantos dados à sociologia empírica, escapa-lhe sem dúvida para
6 E. Le Roy Ladurie, «Révolution française et contraception, dossiers langue-
dociens», in Annales de démographie historique, 1966, e «Révolution française et
funestes secrets», Ann. hist, Rév,fr., Outubro-Dezembro de 1965. Ver igualmente
A. Chamoux e C. Dauphin, «La contraception avant ia Révolution française: l'exem-
pIe de Chãtillon-sur-Seine», in Annales E. S. C., 1969, n.· 3.
.~'
67
68
A OFICINA DA HIST6RIA
sempre, pelo menos em tudo o que não diz respeito ao período contem-
porâneo. Em contrapartida, porém, quantos testemunhos não escri-
tos cujo inventário e descrição sistemáticos estão ainda por fazer!
O habita! rural, a disposição das terras de cultura, a iconografia reli-
giosa ou profana, a organização do antigo espaço urbano, o arranjo
interior das casas - seria interminável a lista de todos os elementos
de civilização cujo inventário e classificação minuciosos permitiriam a
constituição de séries cronológicas novas e poriam à disposição do
historiador um material inédito, que reclama o alargamento conceptual
da disciplina. É que não são as fontes que definem a sua problemática,
mas é, sim, a sua problemática que define as fontes.
Não se deve sem dúvida desenvolver demasiado este tipo de argu-
mentação. Existem, em história, do ponto de vista das exigências docu-
mentais de certas ciências sociais contemporâneas, lacunas irreparáveis:
não se vê que fontes de substituição ou que extrapolações possam
encher as colunas de um quadro de input-output da economia francesa
na época de Henrique IV, para já não falar de períodos mais recuados.
Mas isto significa sobretudo que, conceptualmente, a história não é
redutível à economia política. Na realidade, para o historiador, o pro-
blema das fontes é menos o das lacunas absolutas do que o das séries
incompletas: não só por causa das dificuldades de interpolação ou
extrapolação, mas em consequência das ilusões cronológicas que são
susceptíveis de acarretar.
Tomarei o exemplo clássico das revoltas populares na França no
ínicio do século XVII: em consequência da grande abundância das fontes
administrativas sobre este assunto, na primeira metade do século XVII,
este período tornou-se o sector cronológico mais bem conhecido da
história das revoltas camponesas, entre o fim da Idade Média e 1789.
Os acasos da conservação fizeram até com que uma grande parte destes
arquivos (o fundo Séguier) fosse parar finalmente a Leninegrado, e
permitisse desta forma a alguns historiadores soviéticos avançar uma
interpretação marxista do «Antigo Regime» francês que suscitou uma
polémica e valorizou tanto os arquivos. Mas existe um problema que
precede o debate de interpretação - o exame da hipótese implícita
comum às duas interpretações: a de que se produz, neste período, isto
é, no momento da construção do Estado absolutista e de um cresci-
"/"
A HISTóRIA, HOJE
.mento provavelmente rápido da punção fiscal, uma determinada con-
centração cronológica do fenómeno clássico da história de França que
constitui a «jacquerie»*. Esta concentração cronológica apenas pode
ser estabelecida com certeza pelo exame de uma série homogénea longa
e pela lista das diferenças com o que eu chamaria o montante e o jusante:
ora, esta série não pode ser constituída por várias razões. Primeira-
mente, porque não existe, num período longo, uma fonte única e homo-
génea sobre as revoltas; além disso, há todas as razões para pensar que
a sobrevivência de um fundo excepcionalmente rico deste ponto de vista,
o fundo Séguier de Leninegrado, limitado aos papéis de uma família
e portanto submetido ao acaso das biografias e das carreiras, falseia
a nossa percepção cronológica do fenómeno. A jacquerie é, por outro
lado, uma história sem fontes directas, revolta de analfabetos estranhos
ao mundo da escrita. Atingimo-Ia hoje por intermédio de arquivos
administrativos ou judiciários; mas, na verdade, como o notou Charles
Tilly, qualquer revolta que escape à repressão escapa à história, e a
riqueza das nossas fontes durante um determinado período pode tra-
duzir mais as mudanças institucionais (reforço do aparelho repressivo)
ou puramente individuais (vigilância particular de um administrador)
do que a frequência do fenómeno estudado. A contabilidade dife-
rencial das jacqueries no reinado de Henrique II ou no de Luís XIII
pode reflectir sobretudo os progressos da centralização monárquica.
O manejo das fontes seriais obriga portanto o historiador a reflec-
tir cuidadosamente na incidência que podem ter as condições de organi-
zação destas fontes na sua utilização quantitativa. Deste ponto de vista,
parece-me que se pode distinguir, por ordem de complexidade crescente
no estabelecimento das séries:
1. As fontes estruturalmente numéricas, reunidas como tais, e
utilizadas pelo historiador para responder a questões directamente
ligadas ao seu campo original de investigação. Por exemplo: os registos
das paróquias francesas para o historiador demógrafo, os inquéritos
• A «jacquerie» (de Jacques) é o nome por que são conhecidas as revoltas de
camponeses em França, a mais célebre das quais ocorreu em 1358, depois da derrota
de Poitiers. (N. do R.)
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70
A OFIOINA DA HISTORIA
dos governos civis de estatística industrialou agrícola do século XIX
francês para o historiador economista, ou os dados das eleições presi-
denciais americanas para o especialista de história sociopolítica. Estas
fontes exigem por vezes serem homogeneizadas (quando há variação
da unidade local ou modificação do critério de classificação); quando
há lacunas na cadeia documental, podem-se igualmente extrapolar
certos elementos. Mas as duas operações são feitas então com o mínino
de incerteza.
2. As fontes estruturalmente numéricas, mas utilizadas pelo his-
toriador de forma substitutiva, para encontrar resposta a questões
completamente estranhas ao seu campo original de investigação. Por
exemplo: a análise dos comportamentos sexuais a partir dos registos
de paróquias, o estudo do crescimento económico a partir de séries de
preços, a evolução socioprofissional de uma população a partir de uma
série fiscal. O trabalho do historiador é aqui duplamente mais difícil:
precisa de determinar tanto mais meticulosamente as suas questões
quanto mais o material documental não tenha sido reunido em função
delas e, por conseguinte, quanto mais o problema da sua «pertinência»
em relação a elas se encontrar permanentemente posto. Deve o mais
frequentemente possível reorganizar completamente este material para
o tomar utilizável; contudo, feito isto, toma-o mais arbitrário e por-
tanto mais discutível.
3. As fontes não estruturalmente numéricas, mas que o historiador
procura utilizar de forma quantitativa, por um processo duplamente
substitutivo: é necessário determinar uma significação unívoca, em rela-
ção à questão que põe; mas também que possa reorganizá-Ias em séries,
isto é, em unidades cronológicas comparáveis, à custa de um trabalho
de homogeneização evidentemente mais complexo ainda do que no
caso precedente. Os dados deste tipo - cada vez mais numerosos à
medida que se avança no passado - podem ser eles próprios subdi-
vididos em duas categorias: as fontes não numéricas embora seriais
e portanto facilmente quantificáveis, como os contratos notariais de
casamento da Europa moderna, que podem ser, pela escolha do his-
toriador, indicadores da endogamia, da mobilidade social, dos rendi-
mentos, do grau de alfabetização, etc.; e as fontes estritamente quali-
l
A HISTóRIA, HOJE
tativas, portanto não seriais, ou pelo menos particularmente delicadas
para organizar em séries e homogeneizar - como as fontes adminis-
trativas ou judiciárias de que se falou acima, ou ainda os vestígios
iconográficos testemunhos de fidelidades desaparecidas.
Além disso, em todos estes casos, o historiador de hoje vê-se obri-
gado a renunciar à ingenuidade metodológica e a refiectir nas condições
de estabelecimento do seu saber. O computador deixa-lhe tempo livre,
libertando-o daquilo que ocupava até então o essencial do seu tempo,
a recolha dos dados em fichas. Mas obriga-o, em contrapartida, a um
trabalho prévio sobre a organização das séries de dados e sobre a sua
significação em relação àquilo que procura. Como todas as ciências
sociais, mas talvez com um pouco de atraso, a história de hoje passa do
implícito ao explícito. A codificação dos dados supõe a sua definição;
a sua definição implica um certo número de escolhas de hipóteses tanto
mais conscientes quanto é necessário pensá-Ias em função da lógica
de um programa. Assim cai definitivamente a máscara de uma objec-
tividade histórica que se encontraria escondida nos «factos» e desco-
berta ao mesmo tempo que eles; o historiador já não pode escapar à
consciéncia de que construiu os seus «factos» e de que a objectividade
da investigação depende não só do uso de processos correctos na ela-
boração e no tratamento destes «factos», mas também da sua perti-
nência em relação com as hipóteses da investigação.
A história serial não é portanto apenas, nem sobretudo, uma trans-
formação do material histórico. É uma revolução da consciência his-
toriográfica.
o historiador e os seus «factos»
Trabalhando sistematicamente com senes cronológicas de dados
homogéneos, o historiador transforma o objecto específico do seu
saber: o tempo ou, melhor, a concepção que tem dele e a representa-
ção que dele constrói.
1. A história «evenemencial» não é definida pela preponderância
dada aos factos de ordem política; não é constituída tão-pouco pela
simples narração de certos «acontecimentos» seleccionados no eixo
71
A OFICINA DA HISTóRIA
do tempo; é antes de mais fundada na ideia de que os acontecimentos
são singulares e impossíveis de integrar numa distribuição estática, e
que os acontecimentos singulares são por excelência o material da
história. É por isso que este tipo de história é medido, ao mesmo tempo
e contraditoriamente, pelo curto prazo e por uma ideologia finalista;
como o acontecimento, irrupção súbita do singular e do novo na cadeia
do tempo, não pode ser comparado com qualquer antecedente, o único
meio de o integrar na história é dar-lhe um sentido teleológico: se não
possui passado, terá um futuro. E como a história se desenvolveu,
desde o século XIX, como um modo de interiorização e de conceptua-
lização do sentimento do progresso, o «acontecimento» indica a maior
parte das vezes a etapa de um advento político ou filosófico: República,
liberdade, democracia, razão. Esta consciência ideológica do historiador
pode tomar formas mais requintadas: pode reagrupar o saber adqui-
rido num dado período à volta de esquemas unificadores menos direc-
tamente ligados a escolhas políticas ou a valores (como o «espírito»
de uma época, a sua «visão do mundo»); mas traduz no fundo o mesmo
mecanismo compensador: para ser inteligível, o acontecimento tem
necessidade de uma história global definida fora e independentemente
dele. Daí esta concepção clássica do tempo histórico como uma série
de descontinuidades descritas no modo do contínuo, que é natural-
mente a narração.
A história serial descreve, pelo contrário, continuidades sobre
o modo do descontínuo: é uma história-problema(s), em vez de ser
uma história-narração. Distinguindo por necessidade os níveis da rea-
lidade histórica, decompõe por definição qualquer concepção prévia
de uma história «global» pondo precisamente em questão o postulado
de uma evolução supostamente homogénea e idêntica de todos os ele-
mentos de uma sociedade. A análise das séries só tem sentido se for con-
duzida no longo prazo, a fim de poder distinguir as variações curtas
ou cíclicas das tendências; a série descobre um tempo que já não é
o crescimento periódico e misterioso do acontecimento, mas um ritmo
de evolução doravante mensurável, comparável e duplamente dife-
rencial, consoante for examinado no interior de uma mesma série ou
se se comparar uma determinada série com outra.
72
1
A HIST6RIA, HOJE
Assim, a história serial deslocou o velho império cuidadosamente
fechado da historiografia clássica graças a duas operações distintas
e ligadas. Pela decomposição analítica da realidade em níveis de des-
crição, abriu-se à importação dos conceitos e dos métodos das ciências
sociais mais especificamente constituídas como a economia política,
que foi sem dúvida o elemento motor da sua renovação. Pela análise
quantitativa dos diferentes ritmos de evolução destes níveis, constituiu
finalmente em objecto científico mensurável a dimensão da actividade
humana que é a sua razão de ser, o tempo.
2. Se a hipótese da história se deslocou desde então do nível da
filosofia da história para o de uma série de dados ao mesmo tempo par-
ticulares e homogéneos, só ganha na maior parte das vezes em tornar-
-se explícita e formulável; mas atomiza a realidade histórica em frag-
mentos tão distintos que compromete ao mesmo tempo a pretensão
clássica da história à compreensão do global. Será necessário aban-
donar esta pretensão?
Responderei que provavelmente é preciso conservá-Ia como o
horizonte da história, mas que é necessário, para avançar, renunciar
a tomá-Ia como ponto de partida da investigação, sob pena de cair
de novo na ilusão teleológica acima descrita. A historiografia contem-
porânea só progride na medidaem que delimita o seu objecto, define
as suas hipóteses, constitui e descreve as suas fontes tão cuidadosamente
quanto possível. Isto não quer dizer que se deva limitar à análise micros-
cópica de uma única série cronológica; pode reagrupar várias destas
séries e propor então a interpretação de um sistema, ou de um sub-
sistema. Mas a análise global do «sistema dos sistemas» está prova-
velmente hoje em dia fora dos seus meios.
Tomarei o exemplo da história demográfica e da história econó-
mica, que são os sectores mais avançados da historiografia francesa
(e sem dúvida internacional) contemporânea. Sucede que, desde há
vinte anos, o período «moderno» tem sido, em França, objecto do
maior número de investigações de história serial (demográfica e econó-
mica) e que é assim, deste ponto de vista, o menos mal conhecido.
Saída das mercuriais e da reconstituição dos preços, a historiografia
73
74
A OFICINA DA HISTóRIA
francesa 7 comparou-lhes em seguida a evolução do número dos homens,
a partir das séries demográficas. Foi assim que o conceito de «antigo
regime econômico» se constituiu progressivamente, fundado na prepon-
derância de uma produção de cereais vulnerável aos caprichos meteoro-
lógicos e na «purga» periódica do sistema pela crise cíclica, que assi-
nalam ao mesmo tempo o levantamento súbito da curva dos preços e
o desmoronamento da do número dos homens.
Mas as séries de preços, de significações ambíguas e muito diver-
sas, foram completadas por indicadores mais pertinentes no tocante
ao volume da produção e pela utilização de séries que dizem respeito
à evolução da oferta e da procura, ela própria constitutiva da evolução
dos preços. Do lado da produção, as fontes decimais que, afectando
em cada ano a mesma percentagem da colheita, não nos ensinam nada
sobre o valor absoluto da produção, mas valem pela sua compara-
bilidade relativa; ou então, ao nível macroeconómico, as fontes proto-
-estatísticas recolhidas pela administração do antigo regime e reor-
ganizadas em termos de contabilidade nacional. Do lado da procura,
fora dos movimentos demográficos globais, há a reconstituição das
grandes massas monetárias dispcnívcis: tesourarias comunais, senho-
riais, decimais, renda predial, lucro de empresas, salários.
É esta combinação de séries demográficas e económicas múltiplas
que permitiu a Le Roy Ladurie retomar a análise da antiga economia
agrária numa base mais amplas. Trata-se, com efeito, de uma amos-
tragem de dados correspondentes ao conjunto do Languedoc, de uma
cronologia de longa duração (séculos XV-XVIII) e de uma documentação
quantitativa diversa e rica, que permite, sobretudo graças ao cadastro,
o estudo da propriedade rural. Séculosxv-xvnt: é a história de um
muito longo ciclo agrário, caracterizado simultaneamente por um equi-
líbrio geral e por sucessivos desequilíbrios. O equilíbrio geral é, grosso
7 A dimensão da bibliografia desencoraja qualquer tentativa, mesmo sumária.
S E. Le Roy Ladurie, Les Paysans de Languedoc, S. E. V. P. E. N., 1966.
Retomo aqui, abreviando-a, uma análise que fiz num artigo de Social Science Infor-
mation em 1968: «Sur que1ques problêmes posés par le développement de l'histoire
quantitative»,
A HISTóRIA, HOJE
~~
modo, conforme ao modelo malthusiano, esse modelo que Malthus
descobre e eterniza quando precisamente deixa de ser verdadeiro, no
momento do take-off inglês: a economia do antigo Languedoc rural
é dominada a longo prazo pela relação da produção agrícola com o
número dos homens; a incapacidade da sociedade para elevar a produ-
tividade agrária, o impasse fundiário, isto é, a ausência de uma reserva
indefinida de boas terras, constituem, pela mesma razão que a famosa
«escassez monetária» cara aos historiadores dos preços, outros tantos
bloqueios estruturais a um crescimento decisivo. Ao perder o seu papel
central, a explicação monetária é assim integrada num sistema múlti-
plo e unificado de interpretação.
Esta estrutura da economia antiga age a longo prazo como uma
regra de funcionamento interno. No entanto, não impede que no inte-
rior do sistema as diferentes variáveis descritas - número dos homens,
evolução da propriedade, repartição da renda fundiária, movimento
da produtividade e dos preços, etc. - permitam referenciar períodos,
segundo o lugar que cada uma delas ocupa em relação ao conjunto,
segundo os ritmos anuais e os ciclos que cada curva particular traduz.
Assim, a estrutura inclui cronologicamente "Váriostipos de combinações
de séries, quer dizer, diversas conjunturas. E é até a partir do exame
atento destas sucessivas conjunturas e dos seus traços diferentes e
comuns que esta estrutura é revelada. Isto, seja dito de passagem,
talvez permita esclarecer o debate entre sincronia e diacronia que separa
muitas vezes antropólogos e historiadores e que está neste momento no
cerne da evolução das ciências sociais. O movimento periódico, a curto
e a médio prazo, que constitui o «acontecimento» na ordem econó-
mica, não é necessariamente contraditório com uma teoria do equilí-
brio geral. A sua descrição empírica pode permitir, pelo contrário,
determinar as condições teóricas deste equilíbrio: a elasticidade que
manifesta indica os limites em que se inscreve.
3. Mas o exemplo precedente - o Languedoc de Le Roy Ladurie
- é um exemplo privilegiado na medida em que a correlação entre as
diferentes séries demográficas e económicas é feita no interior de um
espaço regional relativamente homogéneo e de um sector delimitado da
actividade humana que é a economia agrária. Na realidade, a história
serial «sectorial», mas estendida a espaços diferentes, leva à análise
75
A OFIOINA DA HIST6RIA
dos desequilíbrios regionais ou nacionais. E a história serial «global»
(ou de vocação global), mesmo limitada a uma zona geográfica defi-
nida, arrisca-se a conduzir a uma análise dos desequilíbrios temporais
entre os diferentes ritmos de evolução dos níveis de actividade humana.
O primeiro ponto é agora bem conhecido graças à multiplicação
dos trabalhos de história económica regional. O especialista de his-
tória económica está habituado por excelência à ideia dos desníveis
mensuráveis entre nações, e entre zonas desigualmente sensíveis a
uma mesma conjuntura, ou respondendo diversamente a conjuntu-
ras afastadas no tempo. Os exemplos são numerosos e alguns levan-
tam problemas doravante clássicos da história europeia: a questão,
recentemente retomada 9, dos crescimentos comparados da França e
da Inglaterra no século XVIII; a oposição entre a descolagem agrícola
catalã no século XVIII e a decadência castelhana, realçada por P. Vilar !";
ou o contraste, na França do século XVII, entre o Beauvaisis de P. Gou-
bert! t, miserável, profundamente atingido desde os meados do século
pela regressão económica e demográfica, e a Provence de Baehrel t ê,
relativamente mais afortunada, ou pelo menos aflorada sensivelmente
mais tarde pelo retorno da conjuntura de expansão. De maneira mais
geral, a data deste retorno, deste mergulho no «trágico» século XVII,
é muito diversa consoante as regiões e os países, mas também consoante
a natureza das economias. É também cada vez menos provável que
haja apenas uma única e mesma conjuntura 1 3 para a economia urbana
e para a economia rural.
A história económica serial desemboca assim na análise de conjun-
turas diferenciais ou simplesmente afastadas no espaço; poder-se-ia
9 F. Crouzet, art. citado.
10 P. Vilar, La Catalogne dans l'Espagne moderne, S. E. V. P. E. N., 1962.
Cf. particularmente o tomo IT.
11 P. Goubert, Beauvais et le Beauvaisis de 1600 à 1730, S. E. V. P. E. ~
1960.
12 R. Baeherl, Une croissance: Ia basse Provence rurale.fin du Xl/I" s/ecle-1789,
Paris, 1961.
13 D. Richet, «Croissances et blocages en France du XVe au xvm- siêcle»,
Annales E. S. C., 1968, n." 4.
76
A HISTóRIA, HOJE
dizer: numa geografia da sua cronologia e no exame das diferenças
estruturais assinaláveis por contradições cronológicas. Com efeito,
ciclos afastados no tempo de uma região ou de um país para outro,
mas fundamentalmente

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