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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE DIREITO GRADUAÇÃO EM DIREITO GABRIELA BARRETTO DE SÁ ENTRE MORDAÇAS E DIREITOS: AÇÕES DE LIBERDADE E RESISTÊNCIA ESCRAVA NA HISTÓRIA DO DIREITO NO BRASIL Salvador 2010 2 GABRIELA BARRETTO DE SÁ ENTRE MORDAÇAS E DIREITOS: AÇÕES DE LIBERDADE E RESISTÊNCIA ESCRAVA NA HISTÓRIA DO DIREITO NO BRASIL Monografia apresentada ao Curso de graduação em Direito, Faculdade de Direito, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito. Orientador: Prof. Samuel Santana Vida. Salvador 2010 3 TERMO DE APROVAÇÃO GABRIELA BARRETTO DE SÁ ENTRE MORDAÇAS E DIREITOS: AÇÕES DE LIBERDADE E RESISTÊNCIA ESCRAVA NA HISTÓRIA DO DIREITO NO BRASIL Monografia apresentada e aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel em Direito, Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 23 de julho de 2010. Componentes da banca examinadora: Samuel Santana Vida (Orientador)________________________________________________ Especialista em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana Universidade Federal da Bahia Elmir Duclerc Júnior__________________________________________________________ Doutor em Direito pela Universidade Estácio de Sá Universidade Federal da Bahia Jamile Silva Silveira___________________________________________________________ Mestre em História pela Universidade Federal da Bahia Faculdade de Tecnologia e Ciências 4 Isabel que história é essa Iê! Dona Isabel que história é essa De ter feito a abolição De ser princesa boazinha Que libertou a escravidão Estou cansado de conversa Estou cansado de ilusão Abolição se fez com sangue Que inundava esse país Que o negro transformou em luta Cansado de ser infeliz A abolição se fez bem antes Ainda por se fazer agora Com a verdade das favelas Não com as mentiras da escola Ôh, Isabel chegou a hora De se acabar com essa maldade De ensinar pra nossos filhos O quanto custa a liberdade Viva Zumbi nosso guerreiro Que fez-se herói lá em Palmares Viva cultura desse povo A liberdade verdadeira Que corria nos Quilombos Que já jogava capoeira Iê viva meu Deus Iê viva Zumbi Iê viva Palmares Iê a capoeira Iê o berimbau Iê jogo de angola (Mestre Toni Vargas) “Nós temos a lei e eu sei ter vontade.” (Luiz Gama) 5 A minha família. Por todo amor e esforços dedicados a minha formação. 6 AGRADECIMENTOS Fundamental é mesmo o amor É impossível ser feliz sozinho (Tom Jobim) Gratidão. Esta é a palavra. Publico aqui minha sincera gratidão aos muitos e muitas co- responsáveis por este trabalho! Das Utopias Se as coisas são inatingíveis... ora! não é motivo para não querê-las... Que tristes os caminhos, se não fora a mágica presença das estrelas! (Mario Quintana) É com muito amor e felicidade que compartilho esta conquista com toda minha família, companheiros do Serviço de Apoio Jurídico da UFBA - SAJU, companheiros do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Sem Teto da Bahia – MSTB, queridos funcionários da FDUFBA, e todas as inúmeras pessoas lindas e amigas que a vida colocou em meu caminho! Meus amigos quando me dão a mão sempre deixam outra coisa presença, olhar, lembrança, calor. Meu amigos quando me dão, deixam na minha a sua mão. (Paulo Leminski) É dispensável citar nomes... Por cada sorriso, cada abraço e por todas as demonstrações de amor, apoio, confiança, carinho e torcida que recebi ao longo da graduação e durante a produção desta monografia, MUITO OBRIGADA! Guardar Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. Em cofre não se guarda coisa alguma. Em cofre perde-se a coisa à vista. Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado. Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, isto é, estar por ela ou ser por ela. Por isso, melhor se guarda o vôo de um pássaro Do que de um pássaro sem vôos. Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, por isso se declara e declama um poema: Para guardá-lo: Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda: Guarde o que quer que guarda um poema: Por isso o lance do poema: Por guardar-se o que se quer guardar. (Antonio Cicero) Guardo vocês no meu coração! “Gracias a la vida, que me ha dado tanto...” (Violeta Parra) 7 LISTAS DE ILUSTRAÇÕES, TABELAS E DE ABREVIATURAS E SIGLAS A. Ilustrações Figura 1 Estátua de Zumbi dos Palmares localizada na Praça da Sé, Salvador-Bahia 18 Figura 2 Anúncio em jornal da época sobre fuga de cativo 21 Figura 3 Fragmento de petição inicial de ação de liberdade ajuizada em 1883, no estado de Pernambuco. 33 Figura 4 Luiz Gama 38 Figura 5 Castigo de Escravos (Mordaça) 52 Figura 6 Estátua de Esperança Garcia escrevendo a petição que enviaria ao governador do Piauí. Localizada no Centro de Artesanato Mestre Dezinho, Teresina-Piauí 59 Figura 7 Sankofa (Ideograma Adinkra) 73 B. Tabelas Tabela 1 Período das ações de liberdade de escravos no tribunal de Campinas 35 Tabela 2 Distribuição dos presos na cadeia do Aljube em 1842 (cadeia destinada a escravos) 65 C. Abreviaturas e Siglas APB Arquivo Público do Estado da Bahia 8 RESUMO Trata-se de estudo monográfico de conclusão de curso de formação jurídica, versando sobre a ocorrência das Ações Cíveis de Liberdade na História do Direito no Brasil. Como ponto de partida, é apresentada uma análise geral que considera as limitações da abordagem tradicional da História do Direito no Brasil em razão do formalismo e da dogmática jurídica. Desta forma, constata-se a existência de lacuna na historiografia jurídica nacional quanto ao estudo das possibilidades de relações existentes entre o Direito e os negros escravizados. Como alternativa para superação desta realidade, é sustentada a importância da concepção transdisciplinar do fenômeno jurídico, tendo em vista as contribuições daí decorrentes para a compreensão dos conflitos sociais. Assim, são exploradas as relações históricas entre o Direito e as diversas reações escravas frente à privação da liberdade imposta pelo sistema escravista. Neste sentido, este trabalho aborda as ações cíveis de liberdade, verificadas ao longo do século XIX, enquanto importante capítulo da História do Direito nacional. Por meio de pesquisa bibliográfica, constata-se a existência de histórias de cativos que recorreram à justiça para satisfação de direitos. No mesmo sentido, como resultado da pesquisa documental, é apresentado estudo de caso referente à ação de liberdade ajuizada por uma cativa, no ano de 1849, na cidade de Salvador/Bahia. Por fim, são apresentadas as conclusões e possibilidades de desdobramento do tema abordado pelo trabalho. Palavras-chave: Direito e Escravidão no Brasil; Ações Cíveis de Liberdade; História do Direito. RESUMEN Se trata de un estudio monográfico de conclusión de curso de formación jurídica, versando sobre la ocurrencia de las acciones civiles de libertad en la Historia del Derecho en Brasil. Como punto de partida es presentado un análisis general que constata las limitaciones del abordaje tradicional de la historia del Derecho en Brasil en virtud del formalismo y de la dogmática jurídica. De esta manera, es constatada la existencia de una laguna en la historiografía jurídica nacional enrelación al estudio de las posibilidades de relaciones existentes entre el Derecho y los negros esclavizados en Brasil. Como alternativa para la superación de esta realidad, se sustenta la importancia del abordaje interdisciplinar del fenómeno jurídico, teniendo en vista las contribuciones de ahí decurrentes para la comprensión de los conflictos sociales. En ese sentido, son analizadas las relaciones entre el derecho y las diversas reacciones esclavas frente a la privatización de la libertad impuesta por el sistema esclavista. Así, este trabajo visa abordar las acciones civiles de libertad ajuiciadas a lo largo del siglo XIX, mientras sea el capítulo integrante de la historia del derecho nacional. A través de investigación bibliográfica y documental, se constata la existencia de historias de esclavos que recurrieron a la justicia para la satisfacción de sus derechos siendo presentado un estudio de caso referente a una acción de libertad presentada por una esclava en el año de 1849, en la ciudad de Salvador/Bahia. Finalmente, son presentadas las conclusiones y posibilidades de despliegue del tema abordado en el referido trabajo. Palabras clave: Derecho y Esclavitud en Brasil; Acciones Civiles de Libertad; Historia del Derecho. 9 SUMÁRIO Introdução 09 Capítulo 1: Ações de Liberdade 15 1.1 Notas sobre Escravidão e Resistência no Brasil 15 1.2 Ações Cíveis de Liberdade na História do Direito. 23 1.2.1 Fundamentos jurídicos 27 1.2.2 Ocorrência geográfica 34 1.2.3 Luiz Gama: um representante da liberdade 38 Capítulo 2: Direito e Escravidão Negra no Brasil Imperial 40 2.1 A Constituição de 1824 e os não cidadãos brasileiros 40 2.2 A res incapaz: coisificação do escravizado face à legislação civil no Brasil Império 45 2.3 Negros e negras escravizados e a legislação penal do Império 48 Capítulo 3: Histórias de Direitos 54 3.1 Surge Esperança: a primeira cativa a peticionar 56 3.2 Eva Maria do Bonsucesso, o caso da cabra e a justiça 60 3.3 Anacleta e os caminhos da ação de liberdade: um estudo alargado de caso 61 Conclusão 71 Referências 74 9 INTRODUÇÃO A práxis sócio-política revela que o Direito nasce das lutas sociais, do desejo permanente de libertação. Manifesta-se pois ao longo da história, como liberdade conquistada em permanente transformação. É processo, em devir, no processo histórico.1 O presente trabalho tem o propósito de analisar a ocorrência das ações cíveis de liberdade na história do direito no Brasil. A partir da abordagem transdisciplinar do fenômeno jurídico, visando estabelecer o diálogo entre o Direito e a História, foi desenvolvida pesquisa bibliográfica e documental. Com o objetivo de verificar empiricamente a ocorrência e compreender o contexto em que estão inseridas estas ações, foi consultado o acervo judiciário do Arquivo Público do Estado da Bahia. A pesquisa documental é referente à análise das informações contidas nos autos de uma ação de liberdade ajuizada na comarca de Salvador/Bahia, no ano de 1849, por uma escravizada que buscava a obtenção da liberdade por meio judicial. A história denomina ações de liberdade àquelas demandas judiciais por meio das quais os cativos buscavam adquirir a condição jurídica de libertos, à revelia da vontade senhorial. Figurando como autores destas ações, as negras e negros escravizados eram representados por um curador responsável por defender o pleito relativo à alforria. No outro pólo da relação processual estava o senhor que, face à pretensão de liberdade, opunha o seu direito de propriedade sobre o escravizado. Os estudos sobre o tema, recorrentes no âmbito da ciência da história, demonstram que o período onde se verifica a ocorrência destas relações processuais está compreendido entre o final do século XVIII e o século XIX.2 No âmbito do Direito, a tradição jurídica não privilegia as investigações sobre o capítulo da História do Direito referente à resistência escrava ao cativeiro através das disputas jurídicas 1 SANT'ANNA, Alayde. Por uma teoria jurídica da libertação. pp.27-28 In: SOUZA JÚNIOR, José Geraldo de (org.). O direito achado na rua. 3.ed. Brasília: UnB, 1990, p. 27. 2 Cf.: AZEVEDO, Elciene. O direito dos escravos: lutas jurídicas e abolicionismo na província de São Paulo na segunda metade do século XIX. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2003; CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Os escravos vão à justiça: a resistência escrava através das ações de liberdade. Bahia, século XIX. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciência Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2000. 10 por libertação. Via de regra, a abordagem feita pela historiografia jurídica nacional a cerca do período da escravidão no Brasil se limita ao estudo da legislação vigente. Através desta concepção legalista do Direito não é considerada relevante a análise do papel assumido pelos escravizados3 enquanto agentes ativos frente ao ordenamento jurídico vigente. A ausência de estudos sobre o tema está relacionada à construção dogmática do nosso saber jurídico, marcada pelo apego ao formalismo e busca por pureza metodológica. Assim, as pesquisas jurídicas se restringem à investigação de fontes internas, considerando as leis e os códigos como principais fonte do direito. Desta realidade decorre o isolamento epistemológico do campo do Direito no âmbito das ciências humanas e sociais, terminando por afastar, e por vezes excluir, da análise jurídica dos conflitos sociais as contribuições de outras áreas das ciências humanas.4 Michel Miaille aponta para necessidade de superação do idealismo metodológico e da fragmentação de saberes imposta pelo positivismo jurídico. Na sua Introdução Crítica ao Direito, o autor aponta a importância da transdicisplinaridade, ou seja, a quebra de fronteiras entre as disciplinas com o intuito de abrir novas hipóteses científicas e redefinir o objeto de estudo do Direito para além das regras jurídicas. Para tanto, para a superação deste obstáculo epistemológico e conseqüente construção de uma ciência jurídica atenta à realidade social, o autor propõe a compreensão da existência de um “continente científico” do qual fariam parte todas aquelas ciências que estudam as sociedades e suas transformações ao longo da história: Ora o que eu me proponho mostrar é que direito e economia, mas também política e sociologia, pertencem a um mesmo continente, estão dependentes da mesma teoria, a da história. É que direito e economia podem ser reportados ao mesmo sistema de referências científicas. Para admitir esta nova perspectiva é necessário abandonar o mito da divisão natural do saber. Este mito não é de papel: é um obstáculo, na medida em que é preciso forçá-lo, a fim de se conseguir obter os meios de traçar um caminho científico. Resumamos as conclusões às quais chegamos agora. Para desenvolver um estudo científico do direito, temos de forçar três obstáculos tanto mais sólidos quanto mais naturais parecem: a aparente transparência 3 Neste trabalho, adotamos o termo escravizado em lugar de escravo, por considerar que a privação da liberdade não constitui condição natural e inerente a nenhum ser humano. Os homens e mulheres submetidos ao trabalho escravo no Brasil, não nasceram sob esta condição, foram submetidos a ela. De igual modo, acreditamos que o termo escravo, consagrado pelo senso comum, reproduz um estigma de passividade e sofrimento. 4 GUSTIN, Miracy Barbosa de Souza. (Re)pensando a pesquisa jurídica. Belo Horizonte:DelRey, 2006, pp. 27- 30. 11 do objeto de estudo, o idealismo tradicional da análise jurídica, a convicção, finalmente, de que uma ciência não adquire o seu estatuto senão isolando-se de todos os outros estudos.5 Fato é que, no Brasil, o campo do Direito permanece isolado das outras ciências sociais. Tal posição termina por afastar o Direito daquela realidade mesma à qual ele se propõe regular, visto que a limitada concepção jurídica tradicional desconsidera as peculiaridades histórico- sociais que conformam a sociedade. Este isolamento epistemológico revela-se ainda mais prejudicial diante da constatação de que a construção do pensamento jurídico brasileiro está diretamente vinculada às tensões sociais que marcam a história do Brasil. Ao manter os muros que o separam de outras disciplinas sociais, como a História, a ciência jurídica termina por não dialogar com a sua própria história, ocultando assim o seu caráter dinâmico e as conseqüentes possibilidades de transformação científica. Por outro lado, quando o Direito se debruça sobre a sua história, o faz a partir de abordagens legalistas, incapazes de dar conta da complexidade das relações jurídico-sociais desenvolvidas no Brasil. Antonio Carlos Wolkmer, ao analisar a História do Direito no Brasil, sintetiza algumas características da historiografia jurídica tradicional: Na trajetória da cultura jurídica moderna há consenso de que áreas de investigação, como História do Direito, História das Instituições Jurídicas e História das Idéias ou do Pensamento Jurídico, estão todas identificadas, ora com um saber formalista, abstrato e erudito, ora com uma verdade extraída de grandes textos legislativos, interpretações exegéticas de magistrados, formulações herméticas de jusfilósofos e institutos arcaicos e burocratizados.6 O isolamento epistemológico do campo jurídico em meio às outras ciências sociais contribui para a inexistência do diálogo entre o Direito e disciplinas como a história. Ao restringir a compreensão da realidade aos aspectos jurídicos, a ciência do direito termina por limitar a sua análise dos fenômenos sociais. Por não dialogar com a dimensão histórica inerente aos fatos sociais, o Direito termina por não dialogar satisfatoriamente com a sua própria história. Dessa constatação resulta ainda mais relevante o pensamento de Miaille quanto à importância da transdisciplinariedade no estudo do Direito com especial atenção à sua análise desde o ponto de vista histórico. 5 MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito. Lisboa: Editorial Estampa, 1994, pp. 61-62. 6 WOLKMER, Antonio Carlos. História do direito no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p.18. 12 Tais características do pensamento jurídico brasileiro estão relacionadas ao passado colonial do país. O caráter exploratório da relação desenvolvida por Portugal em relação a colônia brasileira determinou que as medidas e incentivos dispensados à esta última se limitassem àqueles necessários a manutenção de uma ordem política e econômica favorável aos interesses comerciais lusitanos. Os incentivos culturais necessários à formação de uma intelectualidade local somente começam a ser iniciados após a chegada da família real portuguesa ao Brasil em 1808. Desta forma, com o intuito de adequar a colônia às necessidades da corte, D. João, então Rei de Portugal, adota diversas medidas, a exemplo da inauguração da Faculdade de Medicina da Bahia e da cadeira de Artes Militares, no Rio de Janeiro. Neste contexto, por muitos anos, o acesso ao ensino superior era privilégio dos integrantes da elite colonial que viajavam à Europa, principalmente para a Universidade de Coimbra, para realização dos estudos superiores, sobretudo na área jurídica. Quanto à ordem jurídica portuguesa neste período, vale salientar que entre final do século XVIII e início do século XIX a Europa estava mergulhada nos ares iluministas e vivia a renovação das instituições jurídicas. Ao analisar a história do direito privado, R. C. van Caenegem, aponta a dificuldade de aplicação prática das críticas liberais para a superação da antiga tradição jurídico-política: “'liberdade' e 'igualdade' eram, portanto, exigências essenciais tanto nos programas políticos dos déspotas esclarecidos quanto na Revolução Francesa”. 7 No Brasil, os bacharéis passaram a desempenhar relevante papel na vida econômica e política do país na medida em que adquiriam o status necessário à ocupação dos cargos públicos, consolidando-se enquanto elite cultural e dirigente. Tal fenômeno, conhecido como bacharelismo8 irá possibilitar que os bacharéis assumam posição de protagonistas na estruturação do Estado, perpetuando sua influência ao longo dos diversos períodos históricos nacionais. O avanço do bacharelismo possibilitou a criação de um ambiente político onde os ideais iluministas eram divulgados através da atividade acadêmica que ganhava vida. Ao ocuparem espaços estratégicos, como a imprensa da época, os bacharéis disseminavam críticas liberais à ordem vigente. 7 CAENEGEM, R. C. Van. Uma introdução histórica ao direito privado. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 118. 8 WOLKMER, op. cit., pp. 378-384. 13 A instituição dos cursos jurídicos no país somente terá origem após a Proclamação da República, quando o imperador Dom Pedro I sanciona a Carta de Lei de 11.08.1827 que previa a criação dos primeiros dois cursos de ciências jurídicas e sociais, sendo um em São Paulo, e outro em Recife. Cumpre salientar que a disciplina relativa à análise histórica do Direito não foi privilegiada quando da conformação do conteúdo dos primeiros cursos jurídicos no país. Somente em 1891, com a Reforma Benjamim Constante, foi criada a cadeira de História do Direito Nacional. Ainda hoje a disciplina continua preterida no currículo de diversas universidades. Wolkmer afirma que a criação dos cursos de Direito no Brasil atendeu às exigências das elites, sucessoras da dominação colonizadora, que visavam concretizar a independência político-cultural e consolidar-se como camada burocrático-administrativa responsável por gerenciar o país.9 Neste sentido, o autor considera a peculiaridade do liberalismo brasileiro, que se apresenta como “a forma cabocla do liberalismo anglo-saxão que em vez de identificar-se com a liberação de uma ordem absolutista, preocupava-se com a necessidade de ordenação do poder nacional”10. Os contornos desta concepção paradoxa que o liberalismo assumiu no Brasil irão ser refletidos na manutenção da escravidão e no conteúdo das leis que serão editadas durante o Império. A análise do cenário apresentado aponta para a necessidade de superação do isolamento epistemológico do saber jurídico, bem como do formalismo dogmático e dos limites daí decorrentes para o Direito. A partir do estudo das ações de liberdade através da abordagem transdisciplinar defendida por Michel Miaille, ao logo deste trabalho serão apresentados pontos de aproximação entre a História e o Direito, capazes contribuir para releituras críticas da história do direito no brasil. Para tanto, a presente monografia está divida em 3 capítulos. Para a melhor compreensão do tema, o primeiro capítulo pontua aspectos sobre a escravidão no Brasil e a participação do Estado no sentido de legitimar este processo. A abordagem é pautada na demonstração das reações de resistência daqueles submetidos à condição escrava. Dentre as diversas manifestações da insurgência dos escravizados, são apresentadas notas sobre os quilombos, realidade verificada desde o século XVI, chegando à apresentação da 9 Ibidem, p.67. 10 TRINDADE, Hélgio. Bases da Democracia Brasileira: Lógica Liberal e Práxis Autoritária (1822-1945) Apud WOLKMER,2003,op cit, p.65. 14 resistência escrava através das ações de liberdade, noticiadas desde final do século XVIII. A opção por analisar as ações de liberdade, núcleo central deste trabalho, já no primeiro capítulo, decorre da necessidade de apresentar o tema ao leitor, tendo em vista que o assunto é pouco explorado pelo direito. Neste sentido, são apresentados aspectos relativos ao procedimento, ocorrência e fundamentos jurídicos destas ações. O segundo capítulo buscará traçar panorama crítico referente ao tratamento da escravidão dispensado pela legislação do Brasil Império. Neste estudo serão apresentados os contextos de surgimentos destas leis e os debates suscitados em razão do avanço das idéias abolicionistas. A abordagem feita quanto à condição jurídica do escravizado frente à legislação contribui para o melhor entendimento do cenário jurídico e das dificuldades enfrentadas por aqueles que buscavam o auxílio da justiça para obter o estatuto de liberto. No terceiro capítulo são apresentados os resultados das pesquisas documental e bibliográfica. Inicialmente, constatamos a ausência da análise das ações de liberdade na historiografia jurídica nacional. Em seguida são apresentadas histórias que demonstram as relações históricas dos cativos com a justiça. Como resultado da pesquisa documental, analisamos a ação de liberdade ajuizada em Salvador, no ano de 1849, em favor da escravizada Anacleta. Por fim, apresentamos conclusões, questionamentos e desdobramentos estimulados pela pesquisa realizada para a elaboração do trabalho. 15 CAPÍTULO 1 AÇÕES DE LIBERDADE Há sempre, direitos, além e acima das leis, até contra elas, como o direito de resistência, que nenhum constitucionalista, mesmo reacionário, poderá desconhecer […]11 As análises desenvolvidas neste capítulo são decorrentes da necessidade de contribuir com o pensamento crítico do Direito, através da superação de uma lacuna da história jurídica nacional. Aqui, nos referimos à ausência de estudos que considerem as ações de liberdade enquanto relevante manifestação da resistência escrava na História do Direito. Tradicionalmente, a abordagem da escravidão pelo direito gravita em torno de inúmeras leis, decretos e outras normas surgidas no intuito de regular o sistema escravista no Brasil. Ao longo de todo o século XIX, o Estado brasileiro atuou como representante da elite dominante e esteve envolvido na busca por mecanismos para reprimir as rebeliões escravas. Tendo em vista o arcabouço construído para a manutenção deste status quo, faz-se necessária análise cuidadosa das relações existentes entre Direito e escravidão no Brasil. Isto porque, caso o negro escravizado atuasse como mero espectador do processo, sujeito passivo no sistema escravista, não haveria necessidade de atividade legislativa tão intensa no sentido de coibir e punir a população de cativos. O rigor com que foi conduzida a repressão às insurreições de escravizados, sugere que a reação exercida em sentido contrário, aquela que ansiava por liberdade, era real e igualmente intensa, dinâmica e criativa. 1.1 Notas sobre escravidão e resistência no Brasil A primeira manifestação do escravismo no Brasil deu-se contra os povos que aqui se encontravam quando da chegada dos portugueses em 1500. No caso dos habitantes originários das terras de Santa Cruz, posteriormente denominados indígenas pelo dominante europeu, a exemplo do que ocorreu na América Espanhola, reduzi-los à escravidão foi o primeiro recurso 11 LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar direito, hoje? In: SOUZA JÚNIOR, op. cit., p. 22. 16 empregado por Portugal para garantir a mão de obra necessária à exploração do território recém conquistado. E, mais que isso, a intervenção subjugadora do branco europeu era justificada pela necessidade de salvar, através da fé católica, os que aqui habitavam. Neste sentido, esta população foi submetida à catequese desenvolvida pelas missões jesuíticas. Perdigão Malheiros dedica ao estudo da escravidão do índio o volume dois do seu ensaio jurídico social sobre a escravidão no Brasil e afirma que “o governo reconhecia e legalizava assim com a sua autoridade soberana e onipotente o fato abusivo e odioso da escravidão dos Indígenas; e, longe de reprovar e punir, quase se diria que o acoroçoava” 12. A referida prática era ainda legitimada pelas leis da época13 que, em reconhecimento ao “direito do vencedor” permitia que os índios fossem escravizados. Neste sentido, em 06 de janeiro de 1574, visando regular a escravidão indígena foi decidido. 1.° que seria legítima a escravidão do índio aprisionado em guerra manifestamente lícita; entendendo-se por tal a que fosse feita pelos Governadores segundo os seus Regimentos, ou a que ocasionalmente se vissem os Capitães forçados a fazer, precedendo resolução com voto dos Oficiais da Câmara e outras pessoas experientes, dos Padres da Companhia, do Vigário, e do Provedor da Fazenda, de que se deveria lavrar auto; 2.°, que também se reputaria legitimamente cativo o índio que, maior de 21 anos e escravo de outros índios, preferisse ser escravo de cristão; 3.°, que o resgate não era aplicável ao índio manso; o qual não podia portanto ser por tal título reduzido a cativeiro; exceto se, fugindo da aldeia para o sertão, estivesse ausente mais de um ano. [...].14 Ocorre que, a super exploração desta mão de obra na extração do pau brasil e posteriormente no trabalho nas lavouras de cana de açúcar, aliado aos maus tratos e atrocidades cometidos pelos colonos à estes trabalhadores, suscitou o acirramento dos conflitos entre portugueses e os grupos indígenas, ameaçando a estabilidade da estrutura econômica que, conforme anteriormente exposto, estava assentada sobre o labor nativo. Por outro lado, a crise de mão de obra era acentuada pelo aumento do número de fugas15 daqueles que não mais queriam se submeter às condições impostas e, para tanto, tinham a seu favor o conhecimento do território - que lhe pertencia. Some-se ainda a proliferação da varíola e de doenças venéreas trazidas 12 MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico social. v2. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1867. Fonte digital, transcrição para eBook: eBooks Brasil, 2008, p. 21. 13 COLAÇO, Thais Luzia. O direito nas missões jesuíticas da América do Sul. pp. 317-348. In: WOLKMER, Antonio Carlos (Org.). Fundamentos de história do direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. 14 MALHEIROS,v2, op cit, pp.40-41. 15 Sobre as fugas indígenas: “Um outro limite à liberdade do indígena reduzido era a proibição de andarem a cavalo, dificultando assim a sua mobilidade, impedindo que se afastassem das reduções”. COLAÇO, op cit., p. 338. 17 pelo branco europeu, que dizimou grande parte desta população nativa. Neste contexto, são formadas as condições que ensejarão que o tráfico negreiro seja a fórmula escolhida para proceder à substituição da mão de obra na recém conformada colônia portuguesa. Neste contexto, o alvará de 29 de março de 1559 oficializa a permissão para que os senhores de engenhos importassem africanos de S. Tomé, com licença do Governador Geral. Neste ponto, cumpre apresentar a contribuição de Flávia Lages de Castro ao explicar que a escravidão na África negra já era praticada antes da chegada dos portugueses, porém, apresentava feição diversa ao modelo desenvolvido pelo europeu por não apresentar cunho mercantil, sendo reservada àqueles que eram capturados em guerras e disputas entre grupos locais e passavam a ser submetidos ao trabalho forçado. Ocorre que, com a investida do tráfico negreiro patrocinado pelo Estado português, tais relações conflituosas foram acirradas,levando ao extermínio de diversos grupos que eram mais vulneráveis naquelas sociedades.16 Violentamente arrancados do seu continente, dos seus laços sociais e afetivos, os negros são embarcados em navios negreiros para serem submetidos ao trabalho escravo no Brasil, país de costumes, idioma e território até então desconhecidos. E assim, o tráfico passa a ser a fonte originária da escravidão do negro no Brasil, sendo que a outra maneira de torna-se escravizado decorria do nascimento em terras brasileiras, evento que transmitia tal condição aos filhos e filhas de mulheres escravizadas. Agostinho Perdigão M. Malheiros, ao estudar a regulamentação legal do sistema escravista no Brasil, no volume 1 do seu clássico A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social, escrito em 1866, não pôde se omitir à mencionar a ocorrência de levantes, insurreições e quilombos que marcaram a resistência escrava no Brasil. Tal fato merece relevância se considerarmos que o referido jurista, integrante do Instituto dos Advogados do Brasil, fundado em 1843, iria ser um dos opositores à Lei do Ventre Livre em 1870. Sobre as reações de resistência dos escravizados, Perdigão Malheiros irá destacar que as fugas eram recorrentes e que na busca por liberdade muitos deles abandonavam a casa dos senhores 16 CASTRO, Flávia Lages de. História do direito geral e Brasil. 8ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.387. 18 e se refugiavam nas matas, assumindo os perigos e privações que esta opção acarretava.17 Neste sentido, destaca que a reunião destes negros foragidos resultava na formação de organizações conhecidas como quilombos ou mocambos. Ressalta ainda o autor que devido à vastidão das matas, a natureza funcionou como aliada à esta estratégia de resistência. Malheiros expõe de forma sucinta como se dava a organização dos quilombos: Essas reuniões foram denominadas quilombos ou mocambos; e os escravos assim fugidos (fossem em grande ou pequeno número) quilombolas ou calhambolas — No Brasil tem sido isto fácil aos escravos em razão de sua extensão territorial e densas matas, conquanto procurem eles sempre a proximidade dos povoados para puderem prover às suas necessidades, ainda por via do latrocínio. É alheio do nosso propósito atual dar notícia mais minuciosa; é, porém, por demais notável o quilombo dos Palmares, para que deixemos de mencioná-lo.18 Figura 1: Estátua de Zumbi dos Palmares localizada na Praça da Sé, Salvador-Bahia.19 Fonte: Arquivo pessoal da autora 17 MALHEIROS, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico social. v.1. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1867. Fonte digital, transcrição para eBook: eBooks Brasil, 2008, p.27. 18 Ibidem. 19 “Apesar da reconhecida importância de Zumbi dos Palmares para a história da resistência do povo negro e, em última análise do povo brasileiro, somente no dia 30 de maio de 2008 foi inaugurado na Praça da Sé (Centro Histórico de Salvador) um monumento em homenagem à memória do guerreiro. Em contrapartida, ao longo da cidade de Salvador encontramos diversos monumentos reverenciando os ‘heróis’ da história oficial brasileira, a exemplo do monumento em homenagem aos ‘Heróis de Canudos’ que homenageia aqueles responsáveis pelo massacre de milhares de homens, mulheres, idosos e crianças que participaram do Movimento de Canudos, considerado por muitos historiadores como o último quilombo da Bahia, em razão da elevada concentração de pessoas negras e pobres.” SÁ, Gabriela Barretto de. As cores da cidade: uma análise do racismo ambiental na ocupação urbana de Salvador. Salvador, 2008. 19 A abordagem de Perdigão Malheiros nos revela a preocupação de toda a sociedade escravista frente às organizações quilombolas. Tendo em vista o caráter simbólico que revestia estes focos de resistência, por representar mau exemplo para os cativos. Os quilombos significavam ainda prejuízos econômicos aos senhores, pela perda da propriedade do negro fugido. Quanto ao Quilombo de Palmares, citado por Malheiros por ser demais notável, merece nossa atenção em virtude de ter existido durante aproximadamente um século: 1595-1695, resistindo a diversos ataques escravistas. Abdias do Nascimento defende que, com população estimada de trinta mil rebeldes africanos, entre homens e mulheres, os palmarinos estabeleceram o primeiro governo de africanos livres nas terras do Novo Mundo, constituindo a República de Palmares, um verdadeiro Estado Africano em terras brasileiras, na região onde atualmente é o estado de Alagoas.20 Cumpre salientar ainda que Zumbi, o último Rei de Palmares, de origem banto, tornou-se referência de resistência negra, sendo que no dia 20 de novembro, atribuído à sua morte, se celebra contemporaneamente o Dia da Consciência Negra. Ressaltando a importância e a organização sócio-econômica e política dos Palmares, Nascimento afirma: A República dos Palmares, com sua enorme população relativamente à época, dominou uma área territorial de mais ou menos um terço do tamanho de Portugal. Essa terra pertencia a todos os palmarinos, e o resultado do trabalho coletivo também era propriedade comum. Os autolibertos africanos plantavam e colhiam uma produção agrícola diversificada, diferente da monocultura vigente na colônia; permutavam os frutos agrícolas com seus vizinhos brancos e indígenas. Eficientemente organizados, tanto social quanto politicamente, em sua maneira africana tradicional, foram também altamente qualificados na arte da guerra. Palmares pôs em questão a estrutura colonial inteira: o exército, o sistema de posse da terra dos patriarcas portugueses, ou seja, o latifúndio, assim como desafiou o poder todo poderoso da Igreja católica. Resistiu a cerca de 27 guerras de destruição lançadas pelos portugueses e holandeses que invadiram e ocuparam por longo tempo o território pernambucano.21 Assim, configurados os mocambos como um ameaça real à estrutura escravista da sociedade, os senhores de engenho organizavam diversas buscas para reprimir e destruir estas organizações. A ameaça à paz social advinda das organizações quilombolas tornou urgente a necessidade de conter o fortalecimento dos quilombos, levando o Estado a intervir através da criação de leis que legitimavam o surgimento da figura do capitão do mato. Sobre a atuação deste personagem, Malheiros destaca que lhes era determinado que marcassem com ferro 20 NASCIMENTO, Abdias do. O Quilombismo. 2ªed. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Palmares/OR Editor Produtor Editor, 2002, p.57. 21 Ibidem. 20 quente a letra F àqueles fugitivos que pela primeira vez fossem capturados. Quando, porém, fosse a segunda apreensão do escravizado, deveria ser-lhe cortada a orelha, tão logo fosse apreendido, independente de processo judicial, por simples mandado do Juiz. O Regimento dos capitães do mato, de 1724, previa ainda que fosse atribuído o prêmio de 20 oitavas de ouro por cada negro capturado.22 Sobre a “institucionalização” dos caçadores de trabalhadores escravizados fugidos: No Brasil, a destruição de quilombos maiores exigia a organização de expedições, onerosas paras as populações que sofriam exações extraordinárias. Foi criada a categoria de homens do mato, que se regulava por regimentos especiais e tinha hierarquia própria: soldado, cabo, capitão, sargento-mor e capitão-mor do mato. A partir do posto de capitão do mato era preciso obter uma patente concedida pela autoridade pública.23 Dessa forma, buscando reprimir a resistência dos quilombos, várias foram as legislações estaduais que ressaltavam o caráter criminoso destes agrupamentos. O regimento aprovado pela Câmara de São Paulo em 1773, definia por quilombo o juntamento de 4 negros ou maisque viviam no mato e tinham como objetivo atuarem em roubos e homicídios.24 Deste modo, nos deparamos com o fenômeno da criminalização dos quilombos. Quer dizer, vítimas de uma ordem social perversa, sujeitos a excesso de trabalho, castigos e maus tratos, são considerados criminosos pelo poder público quando tentam, na medida das suas forças, transgredir a ordem vigente. Diante da existência de todo um aparato repressor para punir as tentativas de libertação, os cativos buscam novos caminhos para tentar garantir o seu direito a liberdade. Cumpre salientar que na sociedade escravocrata do Brasil independente a escravidão era regida pela norma da perpetuidade, assim, uma vez que o indivíduo encontrava-se submetido ao trabalho escravo, tal situação só teria termo, do ponto de vista jurídico, com a ocorrência de um destes eventos: a morte do trabalhador escravizado, a sua alforria ou disposição legal autorizando o fim do cativeiro.25 Arno Wehling explica que a perda da condição de escravizado em decorrência da morte obedecia à mesma regra que disciplinava a capacidade civil do homem livre, assim, retirado do mundo jurídico, suas relações deixavam de existir.26 22 MALHEIROS, op. cit, v.1, p.27. 23 GORENDER, O escravismo colonial. 6ªed. São Paulo: Ática, 2001. p. 60. 24 FIABANI, Adelmir. Mato, Palhoça e Pilão: o quilombo, da escravidão às comunidades remanescentes (1532-2004). São Paulo: Expressão Popular, 2005, p.269. 25 “A escravidão pode terminar; 1.º pela morte natural do escravo; 2.º pela manumissão ou alforria; 3.º por disposição da lei.” MALHEIROS, op. cit., v.1, p. 57. 26 WEHLING, Arno. O escravo ante a lei civil e a lei penal no império (1822-1871), pp.388-407. In WOLKMER, Antonio Carlos (org.). Fundamentos de História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, 21 No caso específico daqueles submetidos ao trabalho escravo a liberdade post mortem vigorava ainda o entendimento derivado do direito natural segundo o qual se ao escravizado lhe “se fosse possível ressuscitar, seria como livre”.27 Figura 2: Anúncio em jornal da época sobre fuga de cativo.28 Fonte: ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. FILHO, Walter Fraga. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p. 120. No que tange à liberdade concedida por alforria (manumissão) a mesma poderia ser concedida por ato inter vivos ou mortis causa, por instrumento público ou particular. Por qualquer modo, pois, que a liberdade seja conferida ao escravo, solene ou não, direta ou indiretamente, expressa ou tacitamente ou mesmo em forma conjectural ou presumida, por atos entre vivos ou de última vontade, por escrito público, particular, ou ainda sem eles, a liberdade é legitimamente adquirida; e o escravo assim liberto entra na massa geral dos cidadãos, readquirindo a sua capacidade civil em toda a plenitude, como os demais cidadãos nacionais, ou estrangeiros. — Está entendido que, quando isto dizemos, é em tese, cujo desenvolvimento daremos em outros lugares; assim como quais os direitos políticos e civis dos libertos, e suas relações com os patronos. Os modos mais comuns no Brasil são: 1.º a carta, ainda que assinada somente pelo senhor ou por outrem a seu rogo, independente de testemunhas; 2.º o testamento ou codicilo; 3.º a pia batismal.29 p.393. 27 BREMEU, Padre. Univ. Jur. Trat. l.º tit. 6.º §1.º n.º 1. Apud MALHEIROS, op. cit., v,1, p. 169. 28 Através da análise do referido anúncio observamos que a recompensa oferecida àqueles que apreendessem o cativo fugido, contribuía para que, dentre a parcela livre da sociedade, todos, em alguma medida, fizessem as vezes de capitães do mato. 29 MALHEIROS, op. cit., v,1, p. 61. 22 O jurisconsulto Perdigão Malheiro nos conta ainda que, para a validade da relação jurídica que concedia a liberdade, era exigida a capacidade daquele que praticou o ato, sendo que seria decretada sua nulidade caso apresentasse vícios tais como a falsidade, o erro substancial, a ausência de vontade, a violência ou coação, a incapacidade do autor do ato, e outras hipóteses semelhantes.30 Mas ainda aqui a lei favorece as liberdades. Assim, posto que falso o título, o testamento, por ex., se o herdeiro ou legatário libertou o escravo, não volta este ao cativeiro; há apenas lugar à indenização; se o erro não é essencial, igualmente; se o senhor é coagido, não pelo escravo, nem pelo povo, nas manumissões por modo não solene, era válida a manumissão, por Dir. Rom.; se o menor incapaz de libertar, exceto por justa causa, iludia, nem por isto deixava de ser valiosa a manumissão.31 Por outro lado, o entendimento das Ordenações Filipinas que durante largo período estiveram vigentes no Brasil, era no sentido de restringir a liberdade concedida mediante a possibilidade de revogação das alforrias concedidas pelos senhores, caso aquele que foi beneficiado incorresse em ingratidão contra o seu benevolente senhor: As doações puras e simplesmente feitas sem alguma condição, ou causa passada, presente ou futura, tanto que são feitas por consentimento dos que as fazem, e aceitação daquelles, a que são feitas, ou do Tabelião, ou pessoa, que per Direito em seu nome pode aceitar, logo são firmes e perfeitas, de maneira que em tempo algum não podem ser revogadas. Porém, aquelles, a que forem feitas, forem ingratos contra os que lhas fizeram, com razão podem per elles as ditas doações ser revogadas por causa de ingratidão.32 Adauto Damásio, ao estudar as alforrias e as ações de liberdade na primeira metade do século XIX, em Campinas, afirma que, ordinariamente, a concessão da carta de alforria era negociada entre o cativo e o proprietário. Desta constatação resulta que a carta de liberdade não era um direito formalmente assegurado ao escravizado, estando configurada como uma concessão do senhor, diretamente atrelada aos seus direitos de livre disposição sobre qualquer objeto de sua propriedade. Assim, através destas negociações os escravizados poderiam obter a alforria mediante o pagamento do valor da sua liberdade, ou seja, deveria pagar pela sua liberdade o mesmo preço que outro senhor pagaria para adquiri-lo como propriedade. Outras vezes, dos acordos entre senhor e cativos resultava a concessão de alforrias condicionadas à 30 Ibidem, p. 62. 31 Ibidem. 32 CASTRO, op. cit., p. 386. 23 ocorrência de algum evento. Nestes casos, geralmente, a condição se relacionava com a previsão de concessão da alforria nos casos de morte do proprietário.33 Neste sentido, verifica-se que aqueles libertos via testamento possuíam neste documento o registro da sua liberdade. No entanto, considerados os casos gerais, a lei da época não determinava obrigatório o registro em cartório da carta de alforria.34 Deste modo, os alforriados vivenciavam a precariedade do título obtido, já que não eram raros os casos em que a libertação destes sujeitos era questionada. Em benefício da economia escravista, era possível que ex-senhores, herdeiros do antigo senhor ou outro interessado, tentassem garantir a reescravização destes alforriados. 1.2 Ações Cíveis de Liberdade na História do Direito Desde o final do século XVIII, a resistência ao cativeiro passou a assumir outras formas além das fugas e rebeliões coletivas. No contexto nacional, a disseminação das idéias iluministas e os apelos pela Independência, apontavam a necessidade de superação das estruturas coloniais. Assim, como alternativa aos abusos cometidos pelos proprietários, a busca da liberdade avança sobre as vias legais. Esta outra possibilidade de resistência escrava é proporcionadapelo ajuizamento de ações civis que buscavam a concessão ou o reconhecimento da condição de liberdade. Desse modo, ao longo do século XIX, as ações cíveis de liberdade são utilizadas como instrumento de defesa da aquisição e manutenção da alforria. Considerados não cidadãos pela Constituição de 1824 e coisificados pela legislação civil, os cativos, representados por rábulas ou advogados, passam a recorrer à tutela judicial do direito a liberdade. Através destas demandas, a população escrava demonstrava que, ainda que intuitivamente, se reconheciam enquanto sujeitos de direitos. Em especial, do direito que mais diretamente se relaciona àqueles que se encontram escravizados, o direito a liberdade. Assim, as ações cíveis pela liberdade passam a simbolizar novo instrumento de luta por direitos, estimulando os escravizados a protagonizarem um dos capítulos mais fascinantes e menos explorados pela História do Direito no Brasil. 33 Cf: DAMÁSIO, Adauto. Alforrias e ações de liberdade em Campinas na primeira metade do século XIX. 1995. 139f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1995. 34 Ibidem. p. 13. 24 A existência das ações de liberdade demonstra como o campo jurídico serviu de palco para disputas travadas entre senhores e escravizados. A partir destas ações, os embates entre o direito à propriedade e o direito à liberdade, passaram a estar submetidos a tutela legal. Os estudiosos do tema coincidem quanto à afirmação de que a ocorrência de tais ações foi favorecida em grande medida pela ausência de uma legislação civil codificada, o que garantia as brechas necessárias para possibilitar o resultado almejado com as ações de liberdade.35 Deste modo, ao mesmo tempo em que legitima a escravidão a lei serve de terreno fértil para a contestação do sistema escravista. Além disso, diferindo do que ordinariamente ocorria nas outras ações judiciais que envolviam escravizados, nestas ações os cativos deixavam de figurar no pólo passivo da relação processual e apareciam como autores das ditas ações. Esta constatação revela a própria situação do negro escravizado no regime escravista a medida que, historicamente, não aceitaram a condição escrava de maneira passiva. Assim, através de insurreições individuais ou coletivas, lícitas ou ilícitas, assumiam os riscos e atuavam como sujeitos ativos e protagonistas dos rumos que poderiam tomar as suas próprias histórias. Flávio dos Santos Gomes, ao analisar os quilombos, mocambos e as comunidades de senzala do Rio de Janeiro ao longo do século XIX, apresenta panorama sobre as distintas correntes historiográficas que cuidam da análise das manifestações da resistência escrava. O autor destaca que até meados do século XX, predominaram as interpretações materialistas, influenciadas por idéias marxistas, que consideravam que as revoltas de cativos não representavam processo histórico em sentido próprio, capazes de intervir na realidade social, mas apenas subsídios ao processo econômico já em curso de desgaste social do escravismo.36 Gomes afirma que, apesar de reconhecer a existência das insurgências escravas, esta concepção baseada numa perspectiva subordinada aos modelos teóricos estruturais, terminava por coisificar os escravizados que agiam em sentido contrário à escravidão. Assim o cativo segue sem ser reconhecido enquanto aquele capaz de forjar no dia-a-dia sua própria história, sendo fortalecidos mitos que consideravam que “o escravo, ao invés de sujeito, aparecia apenas como um guerreiro de lógica inexorável, com um único sentido histórico. O escravo 35 Cf: AZEVEDO, op. cit.; CHALHOUB, op. cit.; SILVA, op. cit. 36 GOMES, Flávio dos S. Histórias de quilombolas. Mocambos e comunidades de senzala no Rio de Janeiro – século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. pp.24-25 25 'coisa-passivo' cedia vez ao escravo ' coisa-rebelde'.”37 João José Reis e Eduardo Silva, ao analisarem a resistência negra no Brasil escravista, negam os estudos que atribuem à escravidão uma lógica determinista na qual os papéis desempenhados pelos escravizados somente poderiam oscilar entre aquele de vítima absoluta ou o seu extremo, de rebeldes e mártires. Os escravos não foram vítimas nem heróis o tempo todo, se situando na sua maioria e a maior parte do tempo numa zona de transição entre um e outro pólo. O escravo aparentemente acomodado e até submisso de um dia podia tornar-se o rebelde do dia seguinte, a depender da oportunidade e das circunstâncias. Vencidos no campo de batalha, o rebelde retornava ao trabalho disciplinado dos campos de cana ou café e a partir dali forcejava os limites da escravidão em negociações sem fim, às vezes bem, às vezes malsucedidas. Tais negociações, por outro lado, nada tiveram a ver com a vigência de relações harmoniosas, para alguns autores até idílicas, entre escravo e senhor. Só sugerimos que, ao lado da sempre presente violência, havia um espaço social que se tecia tanto de barganhas quanto de conflitos.38 E é justamente a partir desta concepção que a resistência escrava simbolizada pelas ações de liberdade é abordada neste trabalho. Antes de querer transformar em paladinos da justiça aqueles que enfrentavam os senhores em processos judiciais, o que se pretende neste trabalho é demonstrar que apesar de todas as amarras impostas à sua liberdade, os negros a buscavam movendo-se criativamente por diversos campos, inclusive no âmbito jurídico. Outro ponto pelo qual a resistência escrava através das ações de liberdade merece destaque está relacionado ao fato de que a partir destas ações, o Estado, através do Poder Judiciário, é provocado a intervir numa seara privada, onde tradicionalmente vigorava o direito costumeiro e o direito de propriedade. Isto é, o poder de alforriar já não estava mais restrito nas mãos do senhor, e, a medida em que o Estado poderia intervir nesta relação determinando que fosse concedida a alforria à revelia dos senhores, terminava por relativizar o domínio que os senhores detinham sobre os cativos. Chalhoub pondera que as ações de liberdade alteram uma realidade na qual a concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos senhores 37 Ibidem, p.29. No mesmo sentido: “Em outras palavras, trata-se da postulação de uma espécie de exterioridade determinante dos rumos da história, demiurga de seu destino – como se houvesse um destino histórico fora das intenções e das lutas dos próprios agentes sociais”. CHALHOUB, op. cit, p. 19. 38 SILVA, Eduardo. REIS, João J. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 07. 26 fazia parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes, de transformação de ex-escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos senhores.39 Além do juiz, do senhor e do escravizado, estas ações envolviam a participação de outros atores, o que terminava por tornar ainda mais público um conflito que, a princípio, estaria restrito aos limites do direito de propriedade do senhor. Na maioria dos casos, as ações de liberdade envolvem os seguintes sujeitos: Juiz Municipal: Pelo direito antigo, era a denominação que se dava ao juiz que sucedia em grau ao Juiz de Paz. Era subordinado ao Juiz de Direito; Depositário: É a pessoa a quem se entrega ou se confia alguma coisa em depósito; Curador: Indica a pessoa que cuida, ou que trata de pessoa estranha ou seus negócios; Avaliador: Designa o perito ou a pessoa a quem se comete a missão de avaliar, isto é, dar preço justo e certo a determinada coisa ou bem; Juiz de Direito: Denominação genérica atribuída ao juiz togado, ou seja, magistradoque administra a justiça em primeira instância Senhor e escravo: Partes conflitantes.40 Quanto ao procedimento das ações de liberdade, regra geral, estas eram iniciadas com a petição inicial apresentada em cartório por pessoa livre, representante do escravizado, já que este, enquanto semovente, não poderia peticionar em juízo. Apresentada a petição inicial, o Juiz municipal deveria nomear curador para o libertando.41 Vale salientar que a nomeação do curador nestas ações obedecia à regra segundo a qual, “ainda quando o asserto escravo, ou o livre ou liberto, tenha procurador, ou curador nomeado pelo Juiz de Órfãos, deve o Juiz da causa dar-lhe curador in litem , como aos menores e demais pessoas miseráveis, isto é, dignas da proteção da lei pelo seu estado ou condição”42. A ausência de curador constituía um obstáculo enfrentado pelo cativo que recorria à justiça, tendo em vista que inviabilizava o prosseguimento da ação judicial. Desse modo, estando o escravizado legalmente assistido, era nomeado depositário43 a quem seria confiado o cativo até o final do processo. A partir daí, as partes apresentavam certidões, arrolavam testemunhas e tentam provar as suas alegações. O Juiz convocava audiência e, com 39 CHALHOUB, op cit, p. 100. 40 ABRAHÃO, Fernando Antônio. As ações de liberdade de escravos no tribunal de Campinas. Campinas: UNICAMP, Centro de memória, 1992, p.08. 41 Ibidem, p. 07. 42 MALHEIROS,op. cit.,v.I, p. 98. 43 No último capítulo deste trabalho, a partir da constatação empírica do procedimento de depósito, são apresentadas algumas considerações sobre a figura do depositário nas ações de liberdade. 27 vistas à resolução do conflito, era comum apresentar às partes a possibilidade de acordo. Não havendo acordo e em caso de dúvida ou divergência sobre o valor do cativo era designado avaliador responsável por determinar o preço justo a ser atribuído ao cativo e, por conseqüência, à sua liberdade. Após a lavratura do laudo de avaliação, o Juiz Municipal remetia os autos ao Juiz de Direito para o pronunciamento deste através de parecer ou sentença final. Em caso da sentença ser favorável ao autor, era conferida a carta de liberdade.44 Caso contrário, sendo a sentença desfavorável ao autor, existia a possibilidade de recurso para a segunda instância, o Tribunal da Relação45. A segunda instância, correspondia a uma nova fase de exposição de argumentos, sendo que eram nomeados novos advogados. Desse modo, concluída a ação, era proferido acórdão onde os desembargadores poderiam confirmar ou reformar a sentença obtida na primeira instância. Neste ponto, era possível ainda que a parte insatisfeita apresentasse embargos ao acórdão. Em caso de insatisfação da parte com a decisão do Tribunal da Relação, era possível requerer uma revista cível perante o Supremo Tribunal de Justiça. Na hipótese desta terceira instância se manifestar no sentido de conceder a revista, os autos seriam submetidos à decisão final junto ao Tribunal da Relação de outra província.46 1.2.1 Fundamentos jurídicos A vigência das Ordenações Filipinas e a ausência de legislação que regulasse a matéria de modo satisfatório, possibilitavam as brechas legais que favoreciam as ações cíveis de liberdade. Vários foram os fundamentos jurídicos utilizados para respaldar tais ações. Dentre os tipos de ações mais recorrentes, destacamos as que apresentavam os seguintes fundamentos: a) tráfico ilegal, b) liberdade mediante pecúlio, c) fundo de emancipação, d) ausência de matrícula, e) manutenção da liberdade. Importante destacar que os referidos argumentos guardavam relação com as diversas leis referentes à escravidão, editadas no 44 ABRAHÃO, op. cit, p. 07. SANTOS, Lídia Rafaela Nascimento dos. Ação de Liberdade: O escravo vai a justiça. Disponível em: <www.tjpe.jus.br/.../7_Acao_de_Liberdade_O_escravo_vai_a_Justica_Profa_Lidia_Rafaela.pdf>. Acesso em: 02 jun 2010. 45 Sobre o Tribunal da Relação, Ricardo T. C. Silva afirma: “Até 1874, quando foram criados os tribunais de Porto Alegre, Ouro Preto, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Belém e Fortaleza, só existiam quatro tribunais da Relação no Brasil: Rio de Janeiro, Maranhão, Pernambuco e Bahia. Por sinal, o tribunal baiano era o mais antigo de todos, pois havia sido criado em 1609. Após funcionar até 1626, foi dissolvido e somente em 1652 voltou a ser reaberto”. Os escravos vão à justiça... op. cit. p. 04. 46 SILVA, op. cit., pp.04 - 05. 28 século XIX, mais notadamente, a partir da década de cinqüenta, com o crescimento do número de simpatizantes à causa abolicionista. A hipótese de liberdade fundada no tráfico ilegal decorre, inicialmente, da lei de 7 de novembro de 1831, conhecida como Lei Diogo Feijó. A referida lei estabelecia a ilegalidade do tráfico negreiro para o Brasil, e no seu artigo primeiro considerava livres todos os africanos entrados no Império a partir daquela data. Ocorre que os traficantes ignoravam a lei e seguiam desembarcando ilegalmente milhares de africanos em portos brasileiros. Em virtude da sua ineficácia, a lei de 1831 entrou para a história como “a lei para inglês ver”, tal referência se deve ao fato de que a normativa decorreu de pressões britânicas para acabar com o tráfico no Brasil. No que pese a ineficácia verificada no plano fático, a existência de dita lei no ordenamento constituiu importante fundamento jurídico para ações de liberdade de cativos ilegalmente importados após o ano de 1831. Assim, através de testemunhas e documentos os libertandos buscavam provar que foram trazidos ao Brasil durante a vigência da referida lei.47 Neste sentido, apresentamos ementa de ação de liberdade, fundada na Lei Diogo Feijó, ajuizada no ano de 1875, perante o Tribunal de Campinas/São Paulo: Ação Sumária de Liberdade baseada na Lei de 07 nov. 1831 (tráfico ilegal). Autores: Laurinda, 23 anos, Laurentino, 20 anos e Laudelina, 18 anos, filhos da liberta Laura, escravos da herança de custodio José Ignacio Rodrigues. Solicitador: Firmino Ramalho. Curador: o mesmo. Sentença: julgada procedente. Campinas, 18 abr. / 14 jun. 1876.48 Diante da ineficácia da lei de 1831, foi promulgada em 1850 a lei Eusébio de Queiróz que também será utilizada nas ações de liberdade. Tal lei apresenta a mesma finalidade da anterior, qual seja, coibir o tráfico de negros africanos para o Brasil. Outrossim, diversos fatores contribuíram para que a lei de 1850 fosse recebida na sociedade de modo diverso daquela que a precedeu. A eficácia, ainda que gradual, da lei Eusébio de Queiroz no sentido de por termo ao tráfico ilegal de cativos pode ser justificada não apenas em virtude das pressões externas sofridas pelo Brasil, mas também, e principalmente, por conta de diversos fatores internos.49 Dentre os fatos ocorridos no Brasil, destacamos o aumento da insurgência escrava através de 47 SILVA, op. cit., pp. 123-125. 48 ABRAHÃO, op. cit., p.19. 49 Ibidem. 29 crimes, insurreições e levantes, notadamente a partir de meados da década de 30.50 O aumento da organização e das proporções das rebeliões promovidas pelos escravizados aterrorizavam a elite a medida em que, cada vez mais, representavam ameaça real à manutenção do domínio senhorial. Assim, pouco a pouco, os negros irão se constituir numa terrível ameaça à manutenção da sociedade escravista, ganhando eco as vozes que defendiam o fim da escravidão como solução para minimizar tal ameaça, através da diminuição do número de africanos no Brasil. Conforme demonstrado, a proibição ao tráfico negreiro prevista nas leis Diogo Feijó e Eusébio de Queiroz constituiu o fundamento jurídico de muitas ações de liberdade ajuizadas ao longo do século XIX. A Lei nº 2.040, outorgada pela PrincesaIsabel, em 28 de setembro de 1871, também irá respaldar juridicamente as ações em favor da libertação de cativos. A referida lei, conhecida como Lei do Ventre Livre, conferia a condição de liberto a todos os nascidos após aquela data. Previa ainda a possibilidade de que o cativo comprasse a sua liberdade através de pecúlio. A permissão estava prevista no art. 4º da lei: “É permittido ao escravo a formação de um peculio com o que lhe provier de doações, legados e heranças, e com o que, por consentimento do senhor, obtiver do seu trabalho e economias”.51 A partir da permissão legal para constituir pecúlio, diversos foram os escravizados que conseguiram acumular quantia suficiente para adquirir a carta de alforria mediante pagamento do valor correspondente ao preço da sua avaliação. Com o fim de exemplificar possíveis resultados destas demandas, apresentamos algumas decisões de ações de liberdade por apresentação de pecúlio, ajuizadas perante o Tribunal de Campinas: Ação de Liberdade por apresentação de pecúlio. Autora: Emília, 24 anos, escrava de Gabriel dos Santos Cruz. Solicitador: Francisco Quirino dos Santos. Curador: o mesmo. Valor de avaliação: 1:300$000 réis. Sentença: homologada a avaliação, foi realizada a indenização ao senhor. Campinas, 29 nov. 1881 / 30 jan. 1882. 42 fls. (grifo nosso)52 Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Tobias, 51 anos, escravo de Luiz Abreu Pereira Coutinho. Solicitador: Francisco Glycerio de Cerqueira Leite. Curadores: o mesmo e Vicente Ferreira da Silva (em São Paulo). Valor de avaliação: 1:800$000 réis. Sentença: homologada a avaliação. Houve recurso: negado provimento, 50 Ver: REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. 51 SANTOS, op. cit. p.14. 52 ABRAHÃO, op. cit. p. 25. 30 não foi libertado. Campinas, 02 out. 1878 / 04 jun. 1880. 71 fls. (grifo nosso)53 Ação de Arbitramento para Liberdade por apresentação de pecúlio. Autor: Guilherme, 54 anos, escravo de Pedro Rodrigues da Silva. Solicitador: Pedro Alexandrino Rangel Aranha. Curador: o mesmo.Valor de avaliação: 400$000 réis. Houve acordo para a liberdade. Campinas, 05 dez. 1878 / 22 mar. 1879. 24 fls. (Obs: liberdade concedida mediante a indenização de 50$000 réis, juntamente com a prestação de serviços durante 3 anos.) (grifo nosso)54 O texto da Lei do Ventre Livre previa ainda a criação do Fundo de Emancipação. O art. 3º dispunha que seriam “annualmente libertados em cada Provincia do Imperio tantos escravos quantos corresponderem á quota annualmente disponivel do fundo destinado para a emancipação”55. Desta forma, através do recolhimento de impostos o governo garantia as verbas que serviriam para indenizar os senhores quando o seu cativo obtivesse a liberdade por meio do Fundo de Emancipação.56 Outro dispositivo da Lei nº 2040 que passou a ser utilizado para respaldar as ações de liberdade foi a obrigatoriedade da Matrícula de Escravos, prevista no art. 8º da referida lei. A partir daí, os senhores estavam obrigados a matricular os escravizados dos quais eram proprietários, sob pena de multa. Porém, para o negro escravizado, o descumprimento pelo senhor quanto a obrigatoriedade lhe garantia a alforria. Isto porque, o parágrafo 2º do art.8º concedia a liberdade aos “escravos que, por culpa ou omissão dos interessados, não forem dados á matricula, até um anno depois do encerramento desta, serão por este facto considerados libertos.57” Desta forma, a ausência de matrícula foi utilizada como argumento legal em diversas ações de liberdade.58 53 Ibidem p. 21 Neste caso, interessante destacar que observamos a articulação de dois curadores, um curador em Campinas e outro em São Paulo, possivelmente para representar o libertando perante o Tribunal de Relação da capital, durante a fase recursal. Tal fato nos leva a questionar se era comum a incidência destes casos, já que dificilmente o cativo poderia arcar com os gastos daí decorrentes. 54 Ibidem. 55 SANTOS, op. cit. p.13. 56 ABRAHÃO, op cit, p.04. Sobre a liberdade obtida através do Fundo de Emancipação Ricardo T. C. Silva, afirma que num primeiro momento, os cativos que conseguiram a liberdade por este meio foram preferencialmente aqueles que já possuíam algum pecúlio para completar seus valores. Destaca ainda que o referido fundo possibilitou a alforria de escravizados doentes e idosos. Neste sentido, apresenta a posição de Robert Conrad, segundo a qual os resultados do fundo foram inexpressivos, não chegando a libertar muitos negros e servindo aos interesses senhoriais por possibilitar que estes recebessem valores satisfatórios em troca de cativos já improdutivos. SILVA, op. cit., p. 96. 57 SANTOS, op. cit. p.15. 58 Como exemplo de ação de liberdade movida face a ausência de registro, a história de Claudina, residente na vila de Geremoabo - Bahia que em 1876 “provavelmente instruída por um protetor, a escrava apresentou uma certidão provando que não havia sido matriculada pelo seu falecido senhor e rapidamente recebeu a carta de liberdade a que tinha direito.[...]” SILVA, op. cit. p.80. No mesmo sentido, apresentamos ementa de ação de 31 Sobre as possibilidades de alforria advindas da Lei do Ventre Livre, Chalhoub afirma: O texto final da lei de 28 de setembro foi o reconhecimento legal de uma série de direitos que os escravos haviam adquirido pelo costume e a aceitação de alguns objetivos das lutas dos negros. […] Na verdade, a lei de 28 de setembro pode ser interpretada como exemplo de uma lei cujas disposições mais importantes foram “arrancadas” dos escravos às classes proprietárias.59 A afirmação do professor Sidney Chalhoub, ressalta a posição ativa do negro escravizado na luta pelos seus direitos. Daí também resulta a constatação de que, as fugas, insurreições, ações de liberdade e todas outras formas de resistência escrava contribuíram para a consolidação dos direitos dos cativos, influenciando o direito costumeiro diariamente construído e aplicado às relações sociais. No mesmo sentido, a observação feita pelo autor quanto ao fato de que os dispositivos da Lei nº 2040 de setembro de 1871 podem ser interpretados como conquistas arrancadas pelos escravizados aos proprietários, demonstra que os cativos não eram apenas objetos, meros destinatários passivos de normas jurídicas. Merece destaque o fato de que as insurgências escravas em busca da liberdade terminavam por fomentar, ou melhor, forçar, a edição de leis que contribuíssem para o avanço da luta pela liberdade e fim da escravidão. Em 1885, a Lei nº 3270, conhecida como Lei Saraiva-Cotegipe ou Lei dos Sexagenários, complementa a Lei do Ventre Livre e, interfere na aplicação do dispositivo referente à concessão da alforria mediante pecúlio. Dentre outras disposições, a referida lei estabeleceu uma tabela com valores fixos que deveriam ser pagos nas libertações por pecúlio. Os valores variavam em razão da idade e quanto mais idade tinha o cativo, mais baixo seria o valor estimado para sua liberdade. Ocorre que, a referida tabela atribuía aos escravizados valores muito acima daqueles que comumente eram pagos como indenização ao proprietário nas ações de liberdade. Segundo Ricardo Tadeu Caires Silva, era comum que os autores das ações se valessem do artifício de alegar doenças60 ou outros fatores que servissem para diminuir o liberdade fundada na ausência de matrícula, ajuizada perante o Tribunal de Campinas: “Ação Sumária de Liberdade pela não efetuação da matrícula de escravos (Art.8, parágrafo 2º da Lei n. 2040). Autor: Casimiro José deMoura, 47 anos, escravo de Estevão José de Siqueira. Solicitador: Francisco Dias Castelo Branco. Curador: o mesmo. Sentença: julgada procedente. Campinas, 04 out. 1879 / 27 fev.1880. 31 fls. (Obs: o senhor não atendeu as citações e a sentença foi dada a revelia. Entrou com recurso posterior, porém houve desistência tácita. O autor sabia ler e escrever)”. ABRAHÃO, op. cit., p.22. 59 CHALHOUB, op. cit. pp. 159-160. 60 “É impossível saber em que medida essas doenças eram reais ou apenas uma maneira de tentar empurrar para baixo o valor da indenização: por um lado, havia pouca preocupação dos escravos ou seus curadores em 32 preço do escravizado e, conseqüentemente, o valor da indenização a ser paga ao proprietário mediante pecúlio. Assim, em vista do aumento da ocorrência de alforrias obtidas mediante apresentação de pecúlio, e dos prejuízos daí correntes para os escravocratas, a referida lei arbitrava valores altos para dificultar a possibilidade de pagamento pelos cativos e evitar o uso de recursos para baixar o valor das indenizações.61 Além dos fundamentos decorrentes de lei, vários eram os argumentos utilizados pelos escravizados na busca pela aquisição ou manutenção da liberdade outrora conquistada. Eram comuns os casos em que os cativos afirmavam possuir a condição de libertos, porém seguiam no cativeiro em virtude do extravio da carta de alforria. Eram comuns ainda os casos em que a liberdade do escravizado era prevista pelo proprietário em testamento, estando submetida à condição. Em alguns destes casos, satisfeita a condição que autoriza a concessão da alforria, os herdeiros do testador ajuizavam ações de reescravização, na tentativa de assegurar a propriedade e manter o liberto em cativeiro. Nestas situações, as ações de liberdade eram ajuizadas com o fim de reconhecer a liberdade do escravizado ameaçada face à uma ação de escravidão. Outro argumento comumente suscitado pelos libertandos era o direito à alforria frente ao abandono do cativo pelo senhor. A relativização da propriedade em função do abandono decorre do Direito Romano e desde o período colonial já era aplicada no Brasil.62 A possibilidade de alforria em função do abandono estava assegurada também no parágrafo 4º do art. 6º da Lei do Ventre Livre. Exemplificando a diversidade dos fundamentos que poderiam embasar as ações de liberdade, Sidney Chalhoub relata o caso das ações movidas no Rio de Janeiro em defesa da alforria de Josefa e outras negras escravizadas que eram forçadas pelos proprietários-cafetões à se dedicarem à prostituição. Apesar de longa a citação, transcrevo um trecho sobre o caso em virtude da singularidade da questão, pelo fato da ação partir de iniciativa das autoridades públicas, e das informações sobre as relações entre a polícia e o poder judiciário que aí podem ser constatadas: apresentar atestado médico que reforçasse a alegação de doença; de outro lado, os juízes não solicitavam que os libertandos fossem examinados por médicos.” CHALOUB, Sidney. Visões da liberdade... op. cit. p.169 61 SILVA, op. cit. p.77. 62 ALGRANTI, Leila. O feitor ausente. Estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro. 1998, p.101. Apud SILVA, op. cit. p.90. 33 A ação judicial com o objetivo de libertar Josefa foi parte de um esforço mais amplo do chefe de polícia da Corte, em articulação com o juiz municipal da segunda vara, no sentido de combater “o imoral escândalo da prostituição de escravas”. A estratégia utilizada foi a seguinte: os subdelegados elaboraram relações nominais das escravas empregadas por seus senhores na prostituição; o segundo passo foi enviar essas relações para o juiz municipal da segunda vara, que nomeou advogados como curadores das negras e determinou a apreensão e depósito imediato das mesmas; iniciaram-se assim em poucos meses cerca de duzentos processos de liberdade, baseados em disposições do direito romano segundo as quais os senhores que obrigavam suas escravas à prostituição eram obrigados a libertá-las.63 Figura 3: Fragmento de petição inicial de ação de liberdade ajuizada no ano de 1883, no estado de Pernambuco. Fonte: SANTOS, op. cit., p.02 1.2.2 Ocorrência geográfica Outro aspecto relevante sobre as ações de liberdade diz respeito à ocorrência geográfica de ditas ações. Durante a pesquisa realizada para a elaboração deste trabalho foi encontrada 63 CHALHOUB, Sidney. op. cit. p.152. 34 bibliografia referente à ocorrência de ações de liberdade ajuizadas nos estados da Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. No Arquivo Público do Estado da Bahia, na seção referente ao Judiciário, sub-seção Autos Cíveis II, consta o registro de 336 ações de liberdade em diversas localidades baianas. Este número considera os dados disponíveis no sistema digital de busca ao acervo do APB e foi obtido durante a pesquisa de campo realizada para este trabalho. Importante ressaltar que este número não equivale à existência física dos referidos autos, já que durante a pesquisa, foi possível verificar que alguns dos arquivos que apareciam no referido sistema digital não estavam disponíveis para consulta em razão de extravio ou deterioração64. Assim sendo, considerando que os limites teóricos, temporais e materiais, inerentes a pesquisa de graduação, não permitiram a análise de todos os casos disponíveis no sistema digital de buscas do APB, o número de casos aqui apresentados cumpre a função de fornecer panorama geral sobre a ocorrência das ações de liberdade na Bahia. Ricardo Tadeu Caires Silva afirma que em pesquisas realizadas durante os estudos de mestrado em história social na Universidade Federal da Bahia, constatou a incidência de 40 processos de ações de liberdade relativos ao município de Salvador65. O autor pondera que o reduzido número verificado está relacionado ao sumiço da documentação, já que casos citados por outros autores não foram localizados durante a pesquisa. Por fim, relata que foram encontrados 17 processos de manutenção, que poderiam ter como objetivo tanto a alforria como a permanência no cativeiro. 66 Ao analisar as visões da liberdade na última década da escravidão na corte, Chalhoub nos conta que debruçou-se sobre o estudo de “78 processos, referentes às décadas de 1860, 70 e 80, ações de liberdade na sua grande maioria”, disponíveis no Arquivo Nacional do Rio De Janeiro67. Neste sentido, retomando a informação fornecida pelo autor sobre as estimadas 200 ações de liberdade ajuizadas em favor das escravizadas submetidas à prostituição, é possível inferir que o arquivo da capital carioca abriga relevante volume de processos relativos à liberdade. 64 Neste sentido, durante as pesquisas, foi verificado que, apesar de constar no sistema digital, não foi encontrado para consulta o processo APB. Justificação de Liberdade. Class. 82/2928/21. 65 SILVA, Ricardo. op. cit. p.06. 66 Ibidem. 67 CHALHOUB, op. cit., p.21. 35 Em Minas Gerais, onde o trabalho escravo foi largamente utilizado para as atividades de mineração, Luiz Gustavo Cota localizou no Arquivo Histórico da Casa Setecentista da cidade de Mariana, 38 ações de liberdade compreendidas entre o período de 1871 a 1888.68 O pesquisador constata que a maioria das ações foram movidas por escravizados residentes em áreas rurais, fato que permite a conclusão de que a notícia sobre a possibilidade de conquistar a liberdade mediante ação judicial, ganhou visibilidade, alcançando até mesmo os cativos que viviam no campo.69 Já no estado de São Paulo, as informações divulgadas pelo Centro de Memória da Unicamp dão conta da ocorrência de 157 ações