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Dez Dias de Maio em 1888: A Abolição da Escravidão no Brasil

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Dez Dias
de Maio
em 1888
Cristovam Buarque
Brasília, 13 de maio de 2008
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Edição: Christiana Ervilha
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MOÇÃO DO CONGRESSO, DO DIA 10-12-1890, MAS
PUBLICADA NA SESSÃO DE 20 de DEZEMBRO
“O Congresso Nacional congratula-se com o governo Provisorio por ter mandado
fazer eliminar dos archivos nacionaes os ultimos vestigios da escravidão no Brazil.
Em 10 de dezembro de 1890.
Barão de S. Marcos – General Almeida Barreto – Matta Bacellar – Annibal
Falcão – Luiz Delfino – Urbano Marcondes – Fonseca Hermes – Domingos
Rocha – D. Manhães Barreto – João Lopes – José Avelino – Barbosa Lima –
Uchôa Rodrigues – Serzedello Corrêa – Oliveira Pinto – João de Siqueira –
Espírito Santo Pereira de Lyra – J. Ouriques – Jesuino de Albuquerque – Pedro
Velho – José Bernardo – Epitácio Pessoa – Prisco Paraíso – Theodureto Souto –
Dr. Ferreira Cantão – Paes de Carvalho – Frederico Borges – Costa Rodriques
– L. Mullir – Tolentino de Carvalho – A. Milton – Santos Pires – Marciano de
Magalhães – B. Mendonça – Augusto de Freitas – Rosa Junior – M. Valladão
– A. Stockler – Amorim Garcia – José Bevilaqua – Paula Guimarães – Dionysio
Cerqueira – Francisco Argollo – A. Ornellas – Conde de Figueiredo – José
Simeão de Oliveira – Frederico Guilherme de Souza Serrano – Virgilio C. Damásio
- Juvêncio de Aguiar – A. Azeredo – Joaquim Moutinho – Lauro Sodré –
Victorino Monteiro – Índio do Brazil – Lopes Trovão – Carlos Campos – Athayde
Junior – Moniz Freire – Gil Goulart – J. Retumba – Menna Barreto – Marcolino
Moura – S. L Medrado – Artur Rios – J. J Seabra – Custodio José de Mello
– Belfort Vieira – A. Moreira da Silva – F. Mayrink – Coronel Pires Ferreira –
Antonio Justiniano Esteves Junior – Raulino Horn – Raymundo de Andrade –
José Mariano – Belarmino Carneiro – Pedro Américo – Almeida Pernambuco –
Luiz de Andrade – Zama – André Cavalcante – João Barbalho – J. Meira de
Vasconcellos”
Eliminaram dos arquivos, mas não eliminaram das ruas, nem da realidade.
Olhem ao redor e verão todos os sinais da escravidão: uma desigualdade
que aumentou, uma liberdade para sobreviver no abandono, um círculo
vicioso que mantém os filhos na mesma vida dos pais, sobretudo um discurso
político muito parecido com aquele de 180 anos atrás.
Até quando vamos esperar para completar a abolição?
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Apresentação
Foi com alegria que recebi o convite do senador Cristovam Buarque
para escrever algumas palavras sobre a sua mais nova obra “Dez dias
de maio em 1888”. O livro faz um resgate de documentos da época em
que o Parlamento brasileiro debateu e votou a Lei Áurea.
Fiquei impressionado ao saber que vários nomes de senadores,
deputados, escravocratas, gente da sociedade e, até mesmo seus
discursos, artigos e opiniões, praticamente desapareceram, a não ser
em raras exceções.
A maioria dos textos e documentos da época foram incinerados
como se isso pudesse diminuir a dor e o sofrimento de um povo e de
uma negra nação que foi seqüestrada no seu torrão natal e marcada a
ferro e fogo.
Considero o senador Cristovam o grande timoneiro da educação
em nosso país, um verdadeiro abolicionista. Com sua marca de mestre
ele demonstra nesta obra que os direitos humanos, a liberdade e a
igualdade de oportunidades são o esteio de todos os países que
perseguem a justiça social e o desenvolvimento sustentável.
 Creio que todos nós, homens e mulheres, negros, brancos e índios
carregamos essa chama que deve iluminar a humanidade: a luz eterna
da liberdade, da fraternidade e da solidariedade.
A publicação dessa obra, na data em que completamos 120 anos
da Abolição não conclusa, é essencial para todos aqueles, jovens ou
não, que querem entender a construção do nosso país e,
fundamentalmente compreender melhor o porquê de ações afirmativas
e do Estatuto da Igualdade Racial.
Senador Paulo Paim
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Segundo consta na página 339 das Obras Completas de Rui Barbosa*:
“Base juridica não havia, mas existia o problema latente. A ameaça da indemnização
sem duvida o atormentava, não obstante a ausencia de fundamento para tanto, a
ausencia de suporte juridico, mas isso não bastava, sabendo-se que no Brasil até
mesmo a posição do alfabeto se controverte, e, por vezes, vence o sofisma.”
Circular nº 29, do Ministerio dos Negocios da Fazenda. – Rio de
Janeiro, 13 de maio de 1891.
Convido, para cumprimento das instrucções expedidas por este ministerio
em 14 de dezembro de 1890, que fiquem extinctos todos os livros e papeis
referentes ao elemento servil, recommendo aos srs. Inspectores das
thesourarias da Fazenda que providenciem, com toda a urgencia, para que
sejam incinerados sem demora os livros de lançamento e as declarações
feitas para a cobrança da taxa de escravos, e os mandados devolvidos ao
juizo que os houver expedido, ex-vi do art. 5o da lei no 3396 de 24 de
novembro de 1888; desapparecendo por este modo os últimos documentos
que attestam a ex-propriedade servil.
A incineração será feita em presença da Junta da Fazenda, e disto se
lavrará uma acta minuciosa, da qual se remeterá copia a este ministerio.
E, para que a falta de taes livros não affecte á responsabilidae dos exactores,
cujos contas ainda não tenham sido tomadas, quanto á arrecadação daquelle
imposto, deverá a verificação dessa resposabilidade ser feita pela confrontação
da importancia das certidões ex-trahidas dos talões, com as partidas do
livro da receita. – T. de Alencar Araripe.
Em 20 de dezembro de 1890, foi publicada uma moção do Congresso,
apoiando o Decreto que determinava a queima de todos os papéis em
arquivo sobre a posse dos escravos.
*Obras Completas de Rui Barbosa - Atos Legislativos, Decisões Ministeriais e Circulares,
com Prefácio e Notas de José Gomes Bezerra Câmara, organizadas pela Fundação Casa
de Rui Barbosa.
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Aos taquígrafos, bibliotecários, secretários e
servidores do Senado e da Câmara dos Deputados,
sem os quais esses discursos não teriam sido
guardados, desde 1888. Esperando que as falas de
hoje sejam lembradas daqui a 120 anos, quando a
história de nossas lutas e missões for resgatada.
Brasília, 13 de maio de 2008.
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Art. 5º Ficam desde já remittidas todas as dividas provenientes dos impostos,
a que era sujeita a propriedade servil. Aos que tiverem pago a taxa de
escravos correspondentes ao exercicio corrente restituida metade da respectiva
importancia.
Art. 6º O governo expedirá o regulamento necessario para a execução
desta lei, podendo impor a pena de commissão aos que dentro do prazo de
dous annos não provarem o seu direito á indemnização.
Art. 7º Ficam revogadas as disposições em contrario.
Paço do Senado em 19 de junho de 1888.
Barão de Cotegipe.
Foi para evitar que, em nome do direito adquirido, os ex-proprietários
entrassem em juízo pedindo indenização que o regime republicano, em 14
de dezembro de 1890, determinou a incineração de todos os “livros e papéis
referentes ao elemento servil”. O documento está assinado por T. de Alencar
Araripe, e não por Rui Barbosa, que parece ter sido o autor da decisão.
Aqui, a disputa não foi entre a ética e a política, como ao longo de todo
período da escravidão, mas entre a política e a história. Esta foi sacrificada,
como meio de reduzir o poder dos escravocratas e seus descendentes.
Estivessem aqueles papéis guardados, o conceito de direito adquirido
certamente permitiria que herdeiros dos donos de escravo encontrassem
algum juiz que lhes desse ganho de causa, aplicasse juros e correção
monetária e cobrasse do governo a desapropriação feita em 13 de maio de
1888. Algum juiz provavelmente daria direito a um dono de escravo e seus
descendentes, mesmo que em nenhum momento tenha havido uma lei
autorizando a escravidão. A lei foi necessária para abolir, nunca para
escravizar. Os ricos se beneficiam dos hábitos sociais, mas para mudá-los,
são necessárias leis. Em 13 de Maio de 1888 foi aprovada uma lei, depois
de décadas de batalha política, para eliminar a escravidão que não se baseava
em lei alguma.
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Introdução
A escravidão é um fenômeno social muito antigo. A propriedadede seres
humanos aparece quase simultaneamente com o próprio conceito da
propriedade. Por um grande período da história da humanidade, era uma
instituição aceita mesmo por sociedades humanistas e progressistas.
Os gregos e os romanos mantiveram a escravidão, enquanto implantavam
suas repúblicas democráticas. A "República" de Platão, do século VI a.C.,
previa com naturalidade a escravidão, dentro dos sonhos por uma sociedade
justa.
Na "Utopia" de Sir Thomas More, que difundia o sonho da igualdade e do
funcionamento de uma sociedade perfeita, a escravidão era um instrumento
normal. A Europa atravessou todo o Renascimento convivendo com formas
de escravidão em seus territórios e suas colônias.
No exemplo de democracia que foi a república norte-americana, o grande
sonho libertário da modernidade, antes mesmo da Revolução Francesa, a
escravidão foi mantida por quase 100 anos. E para eliminar essa barbaridade,
foi preciso uma trágica Guerra Civil, com a morte de 970 mil pessoas para
libertar os 3 milhões de escravos.
O Brasil nasceu com a escravidão. O Reino de Portugal combinou
simultaneamente o solo do novo território na América e a mão-de-obra
vinda da África para produzir o açúcar, o ouro, o café que os ricos europeus
consumiam. Logo nos primeiros encontros com os indígenas, os portugueses
começaram a escravizá-los.
Foi uma escravidão diferente da antiga. Antes, os escravos eram parte
da família, do exército, da pequena produção, conviviam com as pessoas
livres e seus donos. Na América, eles foram desumanizados. Transformados
em coisa. O escravo doméstico, serviçal familiar do passado, foi transformado
em massa, e tinha a vida degradada a ponto de ser confundido com uma
ferramenta de produção.
Por isso, a escravidão tornou-se, ao mesmo tempo, mais abjeta e mais
necessária.
Ao longo de quase quatro séculos a escravidão foi aceita plenamente
pela Igreja, pelos dirigentes, pelos intelectuais. A única exceção eram os
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§ 1º Ao pagamento dos juros e amortização acima decretados serão
applicados as seguintes rendas:
1º O producto integral da taxa de 5% addicionaes aos impostos geraes, a
que se refere o art. 2º, no II, da mencionada lei no 3.270, excluídos os
relativos á propriedade servil;
2º O do sello dos bilhetes de loteria e o dos cheques ou mandados ao
portador, comprehendidos no § 5º, no I, da tabella B do regulamento no
5.946 de 19 de maio de 1883.
§ 2º Para occorrer ao serviço do pagamentos dos juros e amortização
correspondentes ao anno de 1889, bem como ás despezas da impressão e
emissão das apolices, o governo lançará mão do saldo que no fim do
corrente exercicio se verificar existir na conta dos depositos provenientes do
fundo de emancipação e dos 2/3 da taxa dos referidos 5% addicionaes,
que se destinava á libertação de escravos, na fórma do art. 2º, § 3º, da
citada lei de 1885, passando os remanescentes para a conta da indenização
de que trata esta lei.
Art. 3º Os recursos votados no § 1º do artigo precedente terão applicação
especial ao fim desta lei. Á proporção que se realizarem saldos, o governo
os empregará na amortização de maior somma das apolices emittidas.
Paragrapho único. Si, ao contrario, o producto desses recursos tornar-se
insufficiente para o serviço a que é destinado, o governo poderá supprir o
deficit com bilhetes do Thesouro até obter do Poder Legislativo os fundos
indispensaveis.
Art. 4º Si na execução do disposto no art. 1º verificar-se que o direito
creditorio dos ex-proprietarios de escravos excede da somma de
200.000:000$, alli fixada, o governo solicitará da Assembléa Geral
autorização para realizar a indemnização do que restar pelos meios que
forem então decretados.
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próprios escravos, que lutavam, como o grande Zumbi, e formavam
quilombos. A parcela livre ignorou totalmente a existência da escravidão.
 É vergonhoso como 400 anos de história se passaram ante a
insensibilidade das classes dirigentes, dos brancos pobres, dos estudantes
das faculdades criadas no século XIX, dos padres, dos escritores. Só no
século XIX, e muito lentamente, começaram a surgir pequenos movimentos
pela redução da barbaridade dentro da escravidão, mas ainda não pela
Abolição. Eram movimentos limitados a diminuir castigos corporais, a evitar
a venda de crianças separadas de suas mães.
A verdadeira luta pela Abolição começou devagar e veio de fora. O
primeiro ato de combate à escravidão - a Proibição do Tráfico - não surgiu
dentro do Brasil. Foi o resultado de pressão da Inglaterra, que forçou a
aprovação da lei de 1831. Mesmo assim, foi uma "lei para inglês ver" *. O
trafico só parou quando, anos depois, a Marinha Britânica passou a
interceptar os navios negreiros e a libertar os escravos. Fomos forçados
pelos ingleses a pôr fim ao crime hediondo de arrastar africanos através do
Atlântico e sujeitá-los ao rigor da escravidão, por toda a vida e - inacreditável
- de seus descendentes também.
Até então, os cursos superiores, a Igreja, a quase totalidade dos
parlamentares do Império ignoravam a escravidão como problema. Ela era
parte do sistema social brasileiro, um instituto normal, como são hoje a
pobreza, a desigualdade, o abandono dos serviços sociais para os pobres, o
desprezo pela educação pública. Como na literatura de hoje, que raramente
tem personagens vindos do grupo social dos excluídos, os escravos eram
invisíveis aos olhos da elite social.
Machado de Assis, que era mulato e tão bem descreveu a vida social
brasileira, nunca fez qualquer manifestação qualificada sobre a escravidão.
Em seus romances e contos, os escravos eram como mobílias. Não tivemos
nenhum romance como "A Cabana do Pai Tomás", nem enaltecemos heróis
escravos, como o romano Spartacus, ou Zumbi dos Palmares.
* A expressão “para inglês ver” surgiu da hipocrisia com que os brancos brasileiros, ricos
ou pobres, se submeteram à pressão inglesa, decididos a não cumprir a lei que proibia a
importação de escravos africanos. Uma postura que caracterizaria a alma do brasileiro:
submissão aos acordos impostos pelo exterior, maldade com os excluídos e hipocrisia
ante a maldade e os acordos.
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indemnizado do seu valor poderá o cidadão ser privado do uso e emprego
(§ 22 do citado artigo);
Considerando que a lei no 3.533 de 13 de Maio deste anno, decretando
a extincção da escravidão, não providenciou sobre a indemnização dos
respectivos proprietarios em consequencia da urgencia com que foi votada;
Considerando que o silencio da lei póde ser interpretado como revogação
das leis e da Constituição – que garantem a indemnização da propriedade:
A Assembléa Geral Legislativa decreta:
Art. 1º O governo emittirá apolices da divida publica na importancia de
200.000:000$00 para indemnização dos ex-proprietarios dos escravos
existentes até ao dia 12 de Maio do corrente anno.
§ 1º Os ditos titulos serão do valor nominal de 1:000$, 500$ e
200$; vencerão o juro annual de 3%, pago em semestres vencidos;
poderão ser transferidos do mesmo modo por que o são as demais apolices
geraes, e serão amortizadas, na razão de 1% do capital da emissão, no fim
de cada anno civil, por sorteio, quando estiverem ao par ou acima delle,
ou por compra no mercado, no caso contrario.
§ 2º A indemnização será feita pelos valores dados aos escravos no art.
1º, § 3º, da lei no 3.270 de 28 de setembro de 1855, com a deducção
que lhes couber, nos termos do § 1º do art. 3º, correspondente ao tempo
decorrido desde a data da mesma lei até áquele dia.
Aos ex-proprietarios dar-se-ão tantas apolices quantas representarem o
valor da indemnização a que mostrarem ter direito. Á vista das provas que
o governo exigir; sendo pagas o dinheiro as fracções inferiores a 200$000.
Art. 2º A emissão será feita á medida que se for liquidando o direito de
cada credor, mas o juro será contado para todos desde o dia 1º de Janeiro
do futuro anno de 1889, e a primeira amortização se effectuará em Julho
do mesmo anno.
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Foi a partir da segunda metade do século XIX que alguns começaram a
falar do assunto e a criar núcleos abolicionistas, paralutar por uma lei
simples, que emancipasse todos os escravos, sem pagamento indenizatório
aos seus donos. Nesse momento, começaram a surgir grupos, movimentos
e ações isolados contra a escravidão, por meio da alforria, graças à compra
de escravos individualmente, para libertá-los. Em Pernambuco, o Clube do
Cupim escondia escravos fugidos. No Ceará, em 01 de janeiro de 1883, o
fazendeiro Coronel Gil Ferreira Gomes libertou todos os seus escravos e
conseguiu reunir os demais vizinhos a venderem os seus, com o
compromisso de jamais voltarem a comprar mão-de-obra servil. Foi o
primeiro a abolir a escravidão no Brasil. A luta continuou paulatinamente,
com a Lei do Ventre Livre em 1871 e dos Sexagenários em 1885.
As palavras abolicionismo e abolicionistas só surgem no Brasil em 1871,
segundo consta no dicionário Houaiss. Só então, tardiamente, uma pequena
parte da intelectualidade brasileira começou a falar em abolição, o puro e
simples fim do sistema escravocrata. Ainda assim, eram palavras marginais,
usadas por contestadores, jamais pelos donos do poder. Os poucos projetos
de lei apresentados nesse sentido foram ignorados, arquivados ou rejeitados,
como os projetos de lei dos deputados Pedro Pereira da Silva Guimarães,
João Maurício Wanderley, Tavares Bastos, e pelos senadores Silveira da Mota
e Visconde de Jequitinhonha.
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Considerando que, em virtude da lei no 1.237 de 24 de Setembro de
1864, os escravos pertencentes ás propriedades agricolas – especificados
nos contratos – eram objecto de hypotheca e de penhor;
Considerando que sob a fé do legislador foram creados estabelecimentos
de credito com a faculdade de emitir letras hypothecarias até o decuplo do
capital realizado;
Considerando que a mesma lei decretou uma indemnização pelos ingenuos,
em serviços, até 21 annos, ou em titulo de divida publica equivalente a
600$, e creou um fundo de emancipação para resgate de escravos;
Considerando que para execução de taes contratos foi entregue aos mutuarios
moeda corrente ou foram emitidas letras hypothecarias, as quaes, pela
dupla garantia que offereciam, eram facilmente aceitas, e constituiram as
economias e renda de muitas familias;
Considerando que o grande numero de contratos de hypothecas ruraes
celebrados com particulares provém de emprestimos, adiantamentos para
sustentação das fabricas, e augmento das culturas, ou para creação de
novas;
Considerando que a lei no 2.040 de 28 setembro de 1871, libertando
os nascituros, manteve a propriedade sobre todos os escravos existentes;
Considerando que a mesma lei decretou uma indemnização pelos ingenuos,
em serviços, até 21 annos, ou em um titulo de divida publica equivalente a
600$, e creou um fundo de emancipação para resgate de escravos;
Considerando que a lei no 3.270 de 28 de setembro de 1885 reconheceu
igualmente o mesmo direito de propriedade, taxando o valor dos escravos
segundo suas idades e sexos, e elevando por meio de novos impostos o
fundo de emancipação, para desta fórma ainda mais apressar a extincção
da escravidão, que se realizaria em poucos annos;
Considerando que a nossa Constituição Politica (art. 179) garante a
inviolabilidade da propriedade em toda a sua plenitude, e que só previamente
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Dia 3
Há 120 anos, no dia 3 de maio de 1888, a princesa Isabel, que ocupava o
trono como Regente, enquanto seu pai estava em viagem à Europa, leu o
Discurso da Coroa, na abertura da 20ª Legislatura da Assembléia Geral.
Estavam presentes quase todos os parlamentares, os Deputados eleitos
e os 73 Senadores escolhidos pelo Imperador, com cargos vitalícios.
É surpreendente como, 120 anos depois, a Fala do Trono, feita pela
Princesa aborda problemas parecidos com os de hoje: os acordos e
desacordos internacionais, a insegurança, o funcionamento imperfeito da
justiça, a crise na saúde, a necessidade de saneamento e de reforma na
educação, especialmente no ensino técnico. Mas a novidade foi à referência
à escravidão.
Pela primeira vez, a Coroa Imperial brasileira manifestou-se oficialmente
sobre a necessidade de extinguir a escravidão no Brasil. Foi uma referência
curta, mas fez imensa diferença. Finalmente, o Brasil assumia oficialmente
a necessidade de enfrentar o problema do então chamado "elemento servil".
Foram apenas três parágrafos do longo discurso, mas que finalmente fizeram
o que parecia óbvio: eliminar a vergonha do trabalho escravo. Foi o passo
decisivo para completar uma luta e reorientar o futuro do País.
Ao final do seu discurso, as palavras da Princesa foram:
"A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das
liberalidades particulares, em honra do Brasil, adiantou-se pacificamente de
tal modo, que é hoje aspiração aclamada por todas as classes, com admiraveis
exemplos de abnegação da parte dos proprietarios.
Quando o proprio interesse privado vem espontaneamente collaborar para que
o Brazil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura haviam
mantido. Confio que não hesitareis em apagar do direito patrio a unica
excepção que nelle figura em antagonismo com o espirito christão e liberal das
nossas instituições.
Mediante providencias que acautelem a ordem na transformação do trabalho,
apressem pela immigração o povoamento do paiz, facilitem as comunicações,
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Paragrapho unico. A este fundo reverterão as quantias depositadas em
juizo, nas causas de liberdade, para indemnização dos senhores.
Art. 5º A locação dos serviços industriaes ou domesticos regulada pelas
Assembléas Legislativas, nas provincias, e na Côrte por posturas da Camara
Municipal.
Art. 6º Continuam em vigor as disposições das Leis de 28 de Setembro
de 1871 e 1885 na parte em que não foram revogadas pela de 13 de
Maio e não o são pela presente.
S.R. – Sala das Sessões, 24 de Maio de 1888.
A. Coelho Rodrigues.”
Felizmente, para a honra da Câmara de Deputados, o projeto não foi
julgado objeto de deliberação. Mas essa não foi a última tentativa de
beneficiar os ex-senhores de escravos. Em 19/06/1888, o Barão de Cotegipe
volta a apresentar outro projeto semelhante:
Projecto “C”, de 1888, do Barão de Cotigipe (antecedido de
fundamentação) autorizando “o Governo a emitir apolices da divida
publica para indemnização dos ex-proprietarios de escravos”
 Autorisa o Governo a emitir apolices da divida publica para indenimnização
dos ex-proprietarios de escravos.
Considerando que a garantia do direito de propriedade é um dos deveres
primordiaes, impostos a toda associação politica, e que sem ella nenhum
governo, qualquer que seja a sua fórma, póde subsistir;
Considerando que antes e depois da independencia e fundação do Imperio
foi reconhecida e garantida pelas leis civis, e pela lei constitucional, a
propriedade servil;
Considerando que da legalidade dessa propriedade dimanaram relações
juridicas, interesses diversos, e obrigações reciprocas por contratos de origem
e especies differentes, ainda hoje em vigor;
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utilizem as terras devolutas, desenvolvam o credito agricola e aviventem a
industria nacional, póde-se asseverar que a producção sempre crescente tomará
forte impulso e nos habilitará a chegar mais rapidamente aos nossos auspiciosos
destinos."
Assumia que a Abolição (palavra que evitou usar) era uma aspiração
generalizada no País. Na verdade, era o resultado de um longo processo de
quase 400 anos, desde que o primeiro grupo de escravos chegou ao Brasil,
vindo da África. Durante esse período, a escravidão era normal, legal, mesmo
sem uma lei que a autorizasse. Os poucos que lutaram pela libertação dos
escravos, de Zumbi a Joaquim Nabuco, foram perseguidos, assassinados,
até ridicularizados, considerados loucos.
Com aquele discurso, a vida parlamentar brasileira entrava no mais
intenso período de debate político reformista de nossa história. Desde então,
o Congresso brasileiro teve grandes momentos, debates intensos, mas ou
ficaram limitados a mudanças políticas, como nas Diretas, nos anos 80, ou
não foram conseqüentes, como na luta pelas reformas de base nos anos 60.
Naqueles dez dias demaio de 1888, o Parlamento debateu e fez uma
revolução no Brasil: a Abolição da Escravatura, mesmo que uma Abolição
até hoje incompleta.
As Atas da Assembléia Geral Legislativa descrevem a solenidade:
A 1 hora da tarde, annunciando-se a chegada de Sua Alteza e Princesa
Imperial Regente do império e de Seu Augusto Esposo Sua Alteza Real
o Sr. Conde D' Eu, foi a deputação, a convite do Sr. Presidente, recebel-
os á entrada do Paço do Senado; e, entrando Suas Altezas Imperial e
Real no salão, foram pelos Srs. Presidente e secretarios recebidos fora do
estrado do throno.
Logo que Suas Altezas Imperial e Real tomaram assento nas cadeiras de
espaldar collocadas abaixo do throno, e que assentaram-se os Srs. deputados
e senadores, Sua Alteza a Princeza Imperial Regente do Império leu a
seguinte:
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§ 3º As pessoas que, depois de terem justificado seus prejuizos, renunciarem
á indenização, gozarão dos favores concedidos pela primeira parte do art.
8º e pelo art. 9º do Decreto nº 3.371 de janeiro de 1885, além de
outros, que para o futuro lhes serão decretados; assim como aos ex-
senhores de escravos que os libertaram antes da extincção da escravidão.
Art. 2º As alforrias concedidas com a clausula de prestação de serviços,
sem salario, antes da Lei de 13 de Maio, consideram-se livres da condição
desde esta data; as concedidas com salario, desde logo, consideram-se
sujeitas á condição, até o fim deste anno, ou até ao do prazo ajustado, si
o foi; mas tanto estas como aquellas devem ter a respectivo contrato registrado
no cartorio do respectivo juiz de paz, dentro de dous mezes da publicação
desta Lei na folha official da provincia do domicillio dos contratantes.
Art. 3º Ao serviço da divida do elemento servil, além dos 5% addicionais
estabelecidos pelo art. 2º da Lei citada no 3.270, será applicada a renda
do imposto sobre os vencimentos, elevado desde já:
A 50% dos vencimentos das commissões, ou cargos accumulados,
exceptuados os dos arts. 29 e 30 Constituição:
A 25% do subsidio dos deputados e senadores;
A 10% dos empregos de qualquer ordem ou commissões que vencerem
mais de 2:000$ annualmente, exceptuadas a dotação da Famillia Imperial
e os soldos dos militares de terra e mar;
A 5% dos outros empregos, ou commissões retribuidas.
Paragrapho unico. Os empregados aposentados ou jubilados, que exercerem
outros cargos ou commissões retribuídas, perderão, durante o exercício
destes, todas as vantagens da aposentadoria ou jubilação para o serviço da
mesma divida.
Art. 4º Fica o governo autorizado a applicar á fundação de asylos de
menores e invalidos e ao estabelecimento de colonias agricolas ou fabris o
saldo existente do fundo de emancipação.
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"Augustos e Digníssimos Srs. Representantes da Nação. A vossa reunião,
que sempre desperta fundadas esperanças, causa-Me grande jubilo pelo
muito que Confio em vossas luzes e patriotismo.
Sua Magestade o Imperador, Meu muito Amado Pai, obteve na Europa
o proveito que os medicos prognosticaram. Tudo indica que brevemente
Elle regressará a Patria para lhe consagrar de novo incansavel dedicação.
A Sua Magestade a Imperatriz, Minha Prezada Mãi, Deus concedeu a
graça do conservar a saude afim de que pudesse continuar durante a
viagem nos cuidados de desvelada esposa.
Satisfaz-Me a certeza de ser compartido por todos os Brazileiros o prazer
com que vos Faço esta communicação.
Persistem as amigaveis relações do Imperio com as potencias estrangeiras.
A commisão mixta nomeada em virtude do tratado de 25 de Setembro de
1885, entre o Imperio e a Republica Argentina, adiantou quanto possivel
os respectivos trabalhos e em breve os terminará.
Está concluida a missão do arbitro nomeado por parte do Brazil para
completar as commissões mixtas internacionais reunidas em Santiago. Foram
resolvidas por transacção as reclamações que as commissões não julgaram.
Celebrou-se nesta Côrte com os Plenipotenciarios das Republicas Argentinas
e Oriental do Uruguay uma convenção sanitária que ainda não foi ratificada
A ordem e a tranquilidade publica não soffreram alteração. Alguns tumultos
locaes, de origem restricta e fortuita, foram immediatamente apaziguados.
Espero de vossa sabedoria providencias que melhorem a condição dos
juizes e tornem mais efectiva a sua responsabilidade. A organização do
Ministerio Publico é de indeclinavel urgencia, como tambem a reforma do
processo e julgamento dos delictos sujeitos a penas leves.
O governo renovará esforços para dotar a nossa Patria com o Codigo
Civil fundado nas solidas bases da justiça e equidade.
- 91 -
Depois de 13 de maio
No dia 24 de maio, mesmo depois da sanção da Lei pela Princesa, os
escravagistas não se deram por derrotados. Já que não seria possível manter
escravos, passaram a lutar por uma indenização.
Foi lido, na Camara dos Deputados, o Projecto no 10, de 1888, de
autoria do Deputado A. Coelho Rodriguez que mandava o governo
indemnizar, em titulos da divida publica, os prejuizos resultantes da extincção
do elemento servil.
PROJECTO No 10 – 1888
Providencias complementares da Lei nº 3.353 de 13 de Maio de 1888,
que exitinguiu a escravidão. Indemnização aos ex-senhores.
Art. 1º Fica o governo autorizado a indemnizar, em titulos da divida
publica, os prejuizos resultantes da extincção do elemento servil, aos ex-
senhores de escravos e aos credores hypothecarios, ou pignoraticios, em
relação aos comprehendidos nos respectivos titulos de credito, podendo
para isso fazer as operações necessarias.
§ 1º A justificação desses prejuizos terá como base os valores da tabella do
§ 3º do art. da Lei no 3.270 de 28 de Setembro de 1885, com as
deducções correspondentes ao tempo decorrido, e as demais que foram
accordadas entre os representantes do governo e as partes, ou seus
procuradores.
§ 2º São representantes do governo, para esse fim, os membros de uma
commissão nomeada por elle e composta de um ministro do Supremo
Tribunal de Justiça, um conselheiro de Estado, um empregado do Thesouro,
outro da Secretaria da Agricultura, e mais um capitalista ou proprietario.
Essa commissão poderá nomear outros delegados nas provincias, onde
existiram escravos até o dia 13 de maio de 1888.
- 11 -
A força policial da capital do Imperio carece de organização mais adaptada
ás funcções que lhe são proprias.
Muito importa á segurança publica aperfeiçoar a nossa legislação repressiva
da ociosidade, no intuito de promover pelo trabalho a educação moral.
O estado sanitário do paiz em geral é bom, e ha vastas regiões que
offerecem permanentes condicções de salubridade.
Medidas adequadas impediram ou attenuaram certas enfermidades que
periodicamente apparecem em alguns pontos do littoral, e nos preservaram
do cholera-morbus que invadira Estados vizinhos.
Convém que attendais ainda ao saneamento da capital do Imperio, para o
qual existem planos e estudos sujeitos ao vosso esclarecido exame.
A administração provincial e a municipal exigem reformas que alarguem a
respectiva esphera de acção.
Reorganizar o ensino nos seus diversos graus e ramos, diffundindo os
conhecimentos mais uteis á vida pratica e preparando com estudos serios e
bem dirigidos os aspirantes a carreiras que demandam superior cultura
intelectual, é assumpto que muito se recommenda á vossa patriotica solicitude.
As rendas publicas cresceram no ultimo exercicio, e deram sobejamente
para a despeza ordinaria. O que se despendeu de mais, por operações de
credito, representa melhoramentos que, si não promettem immediata
remuneração, asseguram bons effeitos economicos.
A nossa organização militar requer algumas reformas, entre as quaes
avultam os codigos penal e do processo, cujos projectos dependem de vossa
definitiva deliberação.
A extinção do elemento servil, pelo influxo do sentimento nacional e das
liberalidades particulares, em honra do Brazil, adiantou-se pacificamente
de tal modo, que é hoje aspiração acclamada por todas as classes, com
admiraveis exemplos de abnegação da parte dos proprietarios.
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Com a assinatura da Princesa Isabel e do Ministroda Agricultura,
Antônio da Silva Prado, mudava radicalmente a vida dos 800 mil escravos
brasileiros, que trocavam a vergonha pela esperança. Em mais de um século
de história, nenhuma outra legislatura fez qualquer outro gesto tão radical
a favor do nosso povo. É como se todos os parlamentares que o Brasil teve
desde então tenham se negado a completar o que foi feito naqueles dias de
maio.
As palavras da lei que mudou o Brasil, a partir de 13 de Maio, não
começaram naquele ano de 1888, não foram aprovadas sem manifestações
contrárias, e até hoje não trouxeram todos os benefícios esperados.
- 12 -
Quando o proprio interesse privado vem espontaneamente collaborar para
que o Brazil se desfaça da infeliz herança, que as necessidades da lavoura
haviam mantido. Confio que não hesitareis em apagar do direito patrio a
unica excepção que nelle figura em antagonismo com o espirito christão e
liberal das nossas instituições.
Mediante providencias que acautelem a ordem na transformação do trabalho,
apressem pela immigração o povoamento do paiz, facilitem as comunicações,
utilizem as terras devolutas, desenvolvam o credito agricola e aviventem a
industria nacional, pode-se asseverar que a producção sempre crescente
tomará forte impulso e nos habilitará a chegar mais rapidamente aos
nossos auspiciosos destinos.
Augustos e Digníssimos Senhores Representantes da Nação.
Muito elevada é a missão que as circumstancias actuaes vos assignalam.
Tenho fé que correspondereis ao que o Brazil espera de vós.
Está aberta a sessão.
Izabel, Princeza Imperial Regente.
Terminado este acto, retiraram-se Suas Altezas Imperial e Real com o
mesmo ceremonial com que foram recebidos e immediatamente o Sr.
Presidente levantou a sessão."
Três parágrafos indicavam de que aquela Legislatura teria o privilégio de
realizar o maior feito político de impacto social do Brasil, até hoje. De lá
para cá tivemos a Consolidação das Leis do Trabalho, a lei do Salário Mínimo,
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, sete Constituições, o voto universal,
inclusive do analfabeto. Cada lei trouxe uma evolução social, mas nenhuma
trouxe uma ruptura, como foi o caso da Lei Áurea. Mesmo assim, pela análise
dos três parágrafos, nota-se o cuidado da Princesa com a reação dos
latifundiários donos de escravos.
Até quando faz uma lei libertadora, a favor da parte excluída, o poder no
Brasil se dirige aos ricos e incluídos. A Princesa diz que os donos dos
escravos estão espontaneamente colaborando para o fim da escravidão. O
- 89 -
da escravidão, como já Lhe coube a de Confirmar o decreto que não
permittiu nascerem mais captivos no Imperio do Cruzeiro.
Sua Alteza Imperial Regente Dignou-se Responder:
“Seria o dia de hoje um dos mais bellos da minha Vida, si não fosse
Saber Meu Pai enfermo. Deus permittirá que Elle nos volte para Tornar-
se, como sempre, tão util á nossa Patria.”
Transforma-se na Lei no 3.353, de 13 de maio de 1888 (assinada pela
Princesa Imperial Regente e Rodrigo Augusto da Silva)
Evaristo de Moraes Filho descreve a comoção daquele instante: “Assinados
os autógrafos, ouviram-se estrepitosas aclamações nas janelas do Paço e na
rua. Como alucinado, José do Patrocínio atirou-se aos pés da princesa,
procurando beijá-los. De uma das janelas, Joaquim Nabuco comunicou à
multidão que não mais existiam escravos no Brasil.”
- 13 -
que, em parte, era verdade, porque a escravidão já estava exaurida, era
questão de tempo: a Proibição do Tráfico, a Lei do Ventre Livre, a Libertação
dos Sexagenários, o descontrole sobre os escravos, os movimentos
independentes de alforria, faziam o "elemento servil" agonizar como sistema
social e econômico.
Vale a pena lembrar também a insensibilidade da elite representada pela
Princesa, quando diz que a escravidão é a única exceção brasileira ao espírito
cristão. Como se a pobreza, o analfabetismo e a desigualdade não o ferissem
também.
Não é por acaso que, além da Abolição, nada mais mudou
substancialmente na busca da emancipação do povo pobre do Brasil. Em
1888, havia 800 mil escravos no Brasil. Hoje, precisam de um programa
para atender 40 milhões de pessoas com renda de R$ 20 per capita por
mês. Em vez de emancipar, a Lei Áurea apenas tornou a escravidão ilegal.
Como a Bolsa Família: sem educação de base com qualidade, reduz a fome
mas não emancipa o beneficiário. Nestes 120 anos, pelo menos 100 milhões
de brasileiros viveram e morreram em condições materiais próximas às dos
escravos de antes de 13 de maio de 1888.
Depois da fala da Princesa, o governo de João Alfredo trabalhou na
elaboração do texto do projeto de lei. Uma minuta manuscrita, que afirmam
ter sido do punho de Joaquim Nabuco, e está no arquivo da fundação que
leva seu nome, em Recife, foi a base do texto enviado ao Parlamento pela
Câmara dos Deputados, no dia 7 de maio.
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O Sr. Presidente designa a deputação que apresentará á Sereníssima
Princesa Imperial Regente do Império os autógrafos do Decreto. Foram
escolhidos os Senadores Dantas, Affonso Celso, Teixeira Junior e
Escragnolle Taunay (Membros da Comissão Especial) que deu parecer
sobre a proposta aprovada, com excepção do Visconde de Pelotas (por
motivo de doença), mais os Senadores sorteados Visconde de Paranaguá,
Ignácio Martins, de Lamare, Franco de Sá, Barros Barreto, Correia,
Pereira da Silva, Cândido de Oliveira, Ferreira da Veiga e Jaguaribe.
Mais uma bela descrição do Mestre Evaristo de Moraes Filho: “Em seguida,
participou o presidente do Conselho que a princesa regente estaria à
disposição dos representantes do Senado no Paço da Cidade, às 3 horas.
Viera ela, desde Petrópolis, recebendo manifestações. No Arsenal da Marinha
era aguardada por grande massa popular, que a acompanhou até o Paço, na
hoje Praça 15 de Novembro.
Fora o edifício invadido por pessoas de todas as classes sociais. Derredor
dele, moviam-se para mais de cinco mil pessoas, presas de transbordante
entusiasmo, numa expansão incoercível de sentimentos efusivos.
Penetrou a regente no Paço acompanhada do marido, e dos ministros da
Agricultura e do Império, dirigindo-se para a sala do trono. Entregou-lhe o
senador Dantas os autógrafos, dizendo-lhe algumas palavras.” Palavras
descritas nas Atas:
Senhora, A commissão especial do Senado, tendo cumprido o dever de
apresentar á sancção de vossa Alteza Imperial Regente a lei que extingue
desde hoje a escravidão em nossa patria, pede reverentemente vênia a
Vossa Alteza Imperial para: em primeiro logar congratular-se com Vossa
Alteza Imperial e com todos os Brazileiros, pelas auspiciosas noticias, que
o telegrapho nos transmitiu, de achar-se melhor de seus graves padecimentos
Sua Magestade o imperador, o Primeiro Representante da Nação, e
tambem o primeiro entre os mais esforçados propugnadores do grande e
jubiloso acontecimento que acaba de realizar-se;
E em segundo logar para felicitar a Vossa Alteza Imperial, por caber-lhe
a gloria de Assignar a lei que agora dos nossos codigos a nefanda macula
- 14 -
Apesar do longo processo anterior, e da surpreendente simplicidade
da lei, sua votação não foi um processo simples, nem unanimemente
favorável, embora tenha levado apenas dez dias, da Fala do Trono à sanção
da lei, e somente cinco, contando da sua apresentação na Assembléia.
Era uma lei curta, com apenas um parágrafo de 12 palavras, além
da abertura e do "Revogam-se as disposições em contrário".
- 87 -
desastres e ruinas ás alegrias do futuro, absolvido por nobre expiação o
erro de hontem, pelo qual não é originalmente responsável a nação
brazileira.”
Tem-se ainda appelado para os transtornos que desta proposta hão de
porvir. Sei bem que não se extirpa do organismo social um cancro secular
sem que pertubações se operem. Nunca mais ha de abrir-se, porem, a
cicatriz desta ferida: e sobre ella se levantara – o patriotismo e o bom senso
dos brazileiros o indica – o grande edificio da crescente prosperidade de
nossa patria. (Muitos apoiados.)
Tem-se querido ver uma questão politica no melindroso assumpto sobre que
estamos resolvendo. Ainda hapouco o meu illustre amigo senador pelo
Rio de Janeiro dizia: não compete aos conservadores presidir á extincção
da escravidão: mas ao Partido Liberal pela natureza da materia.
Divirjo do meu nobre amigo.
Trata-se de uma questão social, ou, si quizerem, de um ponto de politica
nacional: e é grande fortuna para o imperio que a lei possa ser promulgada,
revestida de força moral e do prestigio que lhe dá o accôrdo reflectido e
quase unanime de ambos as parcialidade politicas (Apoiados; muito bem,
applausos das galerias.)
Os assistentes tem o dever de não interromper-me, e eu o peço tambem
como obsequio. Concluindo direi: convém que o projecto que se discute, e
que o honrado ex-presidente do conselho, com sua autoridade e experiencia,
declarou inadiavel, saia desta casa com inteira adhesão, e sob a
responsabilidade dos partidos politicos do Brazil. (Muito bem: muito bem,
applausos das galerias.)
Chegaram a um acordo suprapartidário. A Proposta entra em votação, é
aprovada com apenas um voto contra, e vai para sanção Imperial. As Atas
descrevem o processo:
- 15 -
Dia 7
No dia 7, quatro dias depois da Fala do Trono, Joaquim Nabuco discursou,
anunciando a próxima chegada do projeto. Na sua primeira frase, ele se
refere ao Deputado que fizera um discurso contrário à aprovação da Lei
Áurea, dizendo:
"Sr. Presidente, ao contrario do meu illustre amigo, deputado pelo Rio
Grande do Sul, cuja intenção ficou mais clara do que elle nos disse e cujas
ironias cahiram sobre o ministerio e a Corôa, eu levanto-me para offerecer
ao honrado presidente do conselho, para a realização do seu grande
programma, o apoio desinteressado, si não de toda, de uma parte daquela
fracção do partido que foi sempre antes de tudo abolicionista. (Muito
bem!)"
Trata-se de uma referência à tentativa, que ele previa, de procrastinar a
votação da lei, provocando um debate regimental que adiaria, até impediria
sua aprovação. Essa era a estratégia dos escravagistas, quando já não havia
como se opor ao projeto de lei. Eles já não podiam ser abertamente contra,
mais diziam que o País não suportaria o fim do trabalho escravo. Era preciso
apoiar o fim da escravidão, mas "não já", "a economia e sociedade precisavam
de tempo" .
Quase 40 anos depois da proibição do tráfico, quase 30 anos depois da
libertação dos filhos dos escravos, e alguns anos depois da emancipação
dos sexagenários, a escravidão iria acabar quase naturalmente. Mesmo assim,
os escravagistas queriam ganhar tempo, motivados pela expectativa de
compra dos escravos feita pelo governo: a abolição indenizada. Numa
situação muito parecida com a disputa, no final do século XX, pela tardia
reforma agrária, queriam transformar a abolição em um negócio.
* Isso lembra um projeto em discussão no Senado para obrigar os eleitos pela democracia
brasileira a colocarem seus filhos nas escolas públicas, mas só a partir de 2014. Os filhos
dos políticos eleitos não poderiam, de imediato, ser colocados nas escolas juntos com os
filhos do povo.
- 86 -
que a lei possa ser promulgada, revistada da força moral e do prestigio que lhe dá o
acordo refletido e quase unanime de ambas as parcialidades politicas.”
O momento não é para discutir, é para deliberar; mas podem ser convenientes
algumas palavras opportunas da parte de um membro do Partido
Conservador, que aceita, convencido, a proposta sobre que vamos votar.
Tem-se apontado na discussão o perigo, o risco das instituições.
Senhores, si as instituições pudessem neste instante estar em questão, ellas
teriam hoje o seu dia derradeiro. Mas assim não é, assim podia ser, assim
não era justo que fosse.
Tem-se feito tambem referencia a mudanças bruscas de opinião na questão
servil. É facto previsto. E seja-me licito recordar poucas palavras que aqui
proferi na sessão de 26 de Setembro do anno passado (lê):
Ha questões que marcham. A que nos occupa é uma. Os que têm de lidar
com ella não podem perdel-a de vista. Distanciam-se, e não mais podem
consideral-a qual é.
Á proporção que a idéa caminha, os horisontes se modificam, o panorama
varia. Os obstaculos que surgem em um ponto desfazem-se adiante. O
terreno accidentado se vai aplainado pouco a pouco, e descobre-se afinal o
leito por onde as aguas, antes caudalosas, podem seguir serenamente para
o natural escoadouro.
Eis o que explica, nas questões em marcha, mudanças que parecem bruscas
na opinião. O ponto cobiçado tem de ser necessariamente attingido; á
proporção que elle se avisinha, a impaciencia cresce. E si á força da idéa
reune-se o brado da consciencia, a distancia encurta-se illuminando o
espirito, despertada a consciencia, a cujos dictames todos obedecem por lei
providencial, a resistencia cessa, as vozes confundem em um só clamor, a
politica alia-se á philantropia, o bem triumpha.
Com taes elementos, que estão em jogo, não ha negar, a escravidão será
em poucos annos apenas uma sombra no passado, sem pertubar com
- 16 -
Mas Joaquim Nabuco queria o País integrado por uma luta comum pela
decência da Abolição, como hoje deveriam estar os brasileiros unidos pela
educação de qualidade para todos.
Não, Sr. Presidente, não é este o momento de se fazer ouvir a voz dos
partidos. Nós nos achamos á beira da catadupa dos destinos nacionaes e
junto della é tão impossivel ouvir a voz dos partidos, como seria impossivel
perceber o zumbir dos insectos atordoados que atravessam as quedas do
Niagara. (Apoiados. Muito bem!)
É este incomparavelmente o maior momento de nossa patria, a geração
actual ainda não sentiu cousa semelhante e precisamos lembrar-nos do que
nossos paes que viram o 7 de Abril * ouviram aos nossos avós que viram
a Independencia, para imaginar que nesta terra brazileira houve de geração
em geração uma cadeia de emoções perecidas com esta. (Apoiados. Muito
bem!).
Dentro dos limites de nossa vida nacional é feito o desconto da marcha de
um século todo, 1888 é um maior acontecimento para o Brazil do que
1780 foi para a França. (Apoiados. Muito bem, bravos.) É litteralmente
uma nova patria que começa e assim como á mudança de uma fórma de
governo cahem automaticamente no vacuo ás instituições que a sustentavam
ou viviam della, é o caso de perguntar, Sr. presidente, si os nossos velhos
partidos, manchados com o sangue de uma raça, responsáveis pelos horrores
de uma legislação barbara, barbaramente executada, não deviam ser na
hora da libertação nacional, como o bode emissario nas festas de Israel,
expulsos para o deserto, carregados com as faltas e as maldições da nação
purificada.
A nação, neste momento, não faz distincção de partidos, ella está toda
entregue á emoção do ficar livre, ella confunde no mesmo sentimento
Dantas e João Alfredo, José Bonifacio morto e Antônio Prado vivo; ella
* 7 de Abril de 1831, o dia em que D. Pedro I abdicou do trono.
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“O estado do paiz ha de convencel-o de que é necessario acabar o quanto
antes com a escravidão, lepra que nos corroe e vulcão que nos ameaça.
Tenho profunda convicção que o maior perigo da actualidade é o escravo,
com todos os seus direitos illudidos. O captiveiro está morto e não póde
resuscitar; é preciso enterral-o. Não teremos partidos, não teremos governo,
não teremos cousa alguma, emquanto a escravidão entrar como elemento
perturbador da ordem moral e social.”
 Pois bem, senhores, a nossa tarefa, por este lado, está terminada; e como
nos annunciou ha pouco o nobre senador pela provincia do Rio de Janeiro
que do desapparecimento da escravidão outras necessidades, outras
reclamações vão apparecer, oriundas dos interesses creados por aquellas
maldita instituição de envolta com outras necessidades e outras necessidades
e outras reclamações de nossa vida politica, eu, desde agora, ponho-me á
disposição de quem quer que esteja no governo, para constinuar a servir ás
idéas liberaes, porque, parodiando um pensamento resumido em três
pequenos versos do XIII século; direi:
Ó Libertad!
Luz Del dia!
Tu me guia!
Vozes: - Muito bem, muito bem. (Bravos e repetidos applausos das
galerias.)”
Ainda nos descreve Evaristo: “Falou,também, mas com espírito de
polêmica, o senador Manuel Francisco Correia, que servira como ministro
de Estrangeiros com Rio Branco e que, saindo do ministério, sempre ligado
ao glorioso visconde, presidira a Câmara de 1847 a 1875. Parecia a ele que
não eram de temer as catástrofes anunciadas pelos adversários do projeto.
Transformando, como ia ser, em lei, só traria benefícios econômicos e
políticos para o Brasil.”
O Senador Correia, do Partido Conservador, fez um discurso declarando
que a Proposta era uma questão social e que “é grande fortuna para o Imperio
- 17 -
não pergunta si quem vai fazer a abolição é liberal ou é conservador, como
á repercussão estrondosa das victorias contra o Paraguay, para deixar
pulsar os seus corações de brazileiros, os conservadores não queriam saber
si Osorio, o vencedor de 24 de maio, era liberal, nem os liberais indagavam
si quem tinha tomado Assumpção, Caxias, era conservador. (Apoiados e
bravos nas galerias.)
Embora fosse um filiado do Partido Liberal, Nabuco era sobretudo um
militante da causa abolicionista. Por isso, defendeu a lei, mesmo tendo
chegado pelas mãos de um governo do Partido Conservador. Essa foi uma
das provas de sua grandeza de estadista, mostrando não ser um político
que pensava na próxima eleição, mas sim na causa que defendia. Hoje,
vemos políticos da oposição que defendem uma causa e mudam de lado
quando o governo passa a defendê-la. Porque não têm causa, apenas
reivindicações comprometidas com o voto da próxima eleição. Os liberais
eram, em sua maioria, favoráveis à abolição, mas o processo político e o
destino histórico fizeram com que fosse o gabinete presidido pelo
conservador João Alfredo que apresentasse a Lei Áurea, e Nabuco apoiou.
Quando a abolição estiver feita, Sr. Presidente, então sim, podem recomeçar
essas nossas lutas partidarias que se travam de facto em torno das comarcas
para juizes de direito e das patentes de guarda nacional (riso), parecendo
que se travam em torno de ficções constitucionaes; neste momento, porém, o
terreno é outro e muito diverso, porque do que se trata é nada menos do que
de fechar a cova americana, de que falla Michelet: onde, por amor do ouro,
foram atirados dous mundos, negro por sobre o índio. (Apoiados. Muito
bem!)
Hoje, 120 anos depois, seria bom se os políticos colocassem de lado
seus interesses menores e imediatos, e buscassem um grande acordo para
definir um programa - como fizeram com a Lei Áurea - para enfrentar a
exclusão social, para fazer uma Segunda Abolição: um pacto que garantisse
escola igual para todos, com o filho do empregado na mesma escola que o
filho do patrão. Acabando com a escravidão do século XXI: a desigualdade
na educação que escraviza os pobres, e a falta de qualidade na educação
que escraviza o País inteiro, no cenário global.
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tardiamente, depois de quase 50 anos no Trono, abolido a escravidão? Essa
reflexão deveria ser feita também pelos políticos de hoje, que olham o
poder sem olhar a história.
Não ha, portanto, perigo algum; e até onde a minha voz, a minha
responsabilidade, a confiança que eu possa inspirar aos meus concidadãos;
até onde a minha experiência dos negocios, o meu estudo de todos os dias,
me puderem dar alguma autoridade, eu direi desta cadeira a todo o Brazil
que nós hoje vamos constituir uma nova patria; que esta lei vale por uma
nova Constituição. (Muito bem, muito bem!)
O Sr. Jaguaribe: - É o complemento da Independencia do Brazil.
Substituam a palavra “escravidão” por “educação”, “escravo” por
“deseducado”, e essa frase pode ser dita hoje com a mesma força.
O Sr. Dantas: - Neste caso, Sr. Presidente, eu vou concluir, pedindo a
todos que nos levantemos, que façamos ala á passagem dessa lei, que
marcará para nós o maior acontecimento da nossa historia; e que todos,
ao mesmo tempo, congratulando-nos, honrando mesmo aos nossos
adversarios, á frente dos quaes se acham dous cidadões cobertos de serviços,
cheios de meritos, merecendores de toda a veneração de nossa patria,
digamos: Gloria a Deus na alturas! E, proseguindo neste caminho, o
Partido Liberal francamente tal, o Partido Liberal, que não tem medo das
idéas liberaes, nem das suas consequencias, uma vez convertidas em lei,
poderá contar que ha de ter o mesmo apoio que sempre teve de mim nesta
questão da redempção dos captivos. (Bravos! Muito bem!)
Eu devo, Sr. Presidente, como homenagem de gratidão, de amisade e de
saudade, recordar neste momento palavras que por um acaso feliz vi
hontem transcriptas na Redempção, de S. Paulo, e foram aqui proferidas
por José Bonifacio. Na sessão de 8 de Outubro de 1886, dirigindo-se
ao então ministro da Agricultura, o honrado senador Antonio Prado,
José Bonifacio disse:
- 18 -
Depois da abolição, podem voltar os velhos partidos com os seus chefes aos
quaes, si eu tivesse que pedir alguma cousa, não pediria, por certo, Sr.
Presidente, a coherencia rigorosa que o meu illustre amigo, no fim do seu
discurso, exigiu como primeira condição para um politico impôr-se ao
respeito da opinião; eu lhes pediria exactamente o contrario, isto é, uma
incoherencia tão grande que parecessem outros e a nação não os pudesse
reconhecer pelos mesmos que fizeram o nosso povo perder a fé no governo
parlamentar.
Esta parte é de fina ironia. Pede a incoerência daqueles que sempre
estiveram ao lado da manutenção da escravidão. Mostra que a coerência
impatriótica, anti-social, é um pecado maior do que a incoerência dos que
mudam de lado e se colocam a favor da Pátria e do povo.
Sim, Sr. Presidente, si é o Partido Conservador que vai declarar abolida
a escravidão no Brazil, eu digo-o sem recriminação, a culpa dessa substituição
de papeis ha de recahir toda sobre essa dissidencia liberal de 1884, que
impediu o ministerio Dantas de vencer as eleições daquelle anno, de arrastar
consigo o eleitorado todo do paiz, e de realizar uma reforma muito mais
larga do que seu projecto. (Apoiados.)
Houve, porém, sempre no Partido Liberal uma minoria de homens timidos
que fizeram com que os grandes nomes de nossa historia, na questão que
mais interessa ao Partido Liberal, a da abolição, isto é, da formação do
povo brazileiro, fossem conservadores em vez de liberaes: foram elles que
impediram Antonio Carlos de fazer o que fez Eusébio, que impediram
Zacharias de fazer o que fez Rio Branco e que impediram Dantas de
fazer o que vai fazer João Alfredo, que nunca tiveram fé nem no povo,
nem nas idéas liberais. (Muitos apoiados). Mas o escravo já tem sido por
demais explorado ...
Aqui ele faz o mea culpa dos liberais. Se a Abolição chegava pelas mãos
dos conservadores, é porque os liberais não tinham sabido aproveitar o
momento deles, quando até três anos antes tinham estado no governo.
- 83 -
Dado, porém, que surjam taes perigos e que subam tão alto que ameacem
até a primeira e a mais elevada entidade do nosso systema politico, taes
perigos se dissiparão desde que no coração do povo Brazileiro estiver
arraigado o amor das instituições que nos regem; sómente assim ellas
encontrarão em cada um quem as sustente!
Fallando deste modo, eu não faço sinão dizer a verdade ao paiz, sinão
apontar o caminho a seguir, e este deve ser o da manutenção das instituições
liberaes, o que só se conseguirá praticando-se uma politica de liberdade e
de democracia. E nem esta linguagem metta medo a ninguem, dentro e
fora deste recinto.
Não ha muitos mezes, Sr. Presidente, Sagasta (actual presidente do
conselho) e Martos, dous grandes estadistas da velha Hespanha, terra
onde imperou a inquisição e de tradições seculares, disseram da tribuna
parlamentar, e em um dia de festa nacional, á Rainha Regente que, si ella
queria ver radicada e consolidada na Hespanha a instituição de que era a
primeira representante, adoptasse fracamente a politica de expansão e de
liberdade.
As reformas liberaes não podem, portanto, ser um perigo no Brazil.
Ellas serão, sim, o complemento, o remate, a consequencia natural do
passo que estamos dando; e si nossas instituições se vissem ameaçadas pelo
que estamos fazendo, eu diria:mais vale, Sr. Presidente, cingir uma
corôa por algumas horas, por alguns dias, comtanto que se tenha a immensa
fortuna de presidir á existencia de um povo e de com elle collaborar para
uma lei como esta, que tirar da escravidão a tantas creaturas humanas, do
que possuir essa mesma coroa por longos e dilatados annos, com a condição
de conservar e sustentar a maldita instituição do captiveiro. (Apoiados.
Muito bem!)
Esta bela frase ficou profética: 18 meses depois, a República retira a
coroa da cabeça de D. Pedro II e de sua sucessora, a Princesa Isabel. De que
teria valido mais alguns anos de monarquia, no lugar da honra de terem,
- 19 -
Dá para imaginar, daqui a alguns anos, os educacionistas apoiando leis
que façam a revolução educacional num governo conservador, lembrando
que, se isso não ocorreu antes, foi porque políticos progressistas no poder
desde 1992 - Itamar, Fernando Henrique, Lula - não quiseram fazer a
revolução de que o Brasil precisa, e com a qual eles haviam se comprometido.
Muito mais culpa há agora, quando o regime é presidencialista e tem
governos liderados por políticos com trajetórias muito mais de esquerda
do que os liberais do século XIX. O governo liberal de Dantas, que havia
durado 11 meses, foi seguido de mais um gabinete liberal, de José Antonio
Saraiva, que durou só três meses. A seguir, os conservadores retornaram ao
poder, com o Barão de Cotegipe, que governou por três anos, até que viesse
o gabinete de João Alfredo, para apresentar e defender a Abolição.
Eu sei, Sr. Presidente, que os liberaes estão soffrendo em todas as provincias
do jugo conservador, mas estão soffrendo em suas garantias constitucionaes
apenas, ao passo que os escravos estão soffrendo em suas pessoas e no seu
corpo. Antes de pensar nos nossos correligionarios, temos que pensar em
nossas victimas, e os escravos o são, victimas da politica estreita até hoje de
ambos os partidos... É exactamente porque esquecemos o que estamos
soffrendo para salval-os do captiveiro em que ainda estão por nossa culpa,
mostrando assim sermos abolicionistas antes de sermos partidarios, que ha
merito no apoio que prestamos ao ministerio conservador. Nós temos muito
que nos fazer perdoar pela raça negra e eu acredito estar servindo os
interesses do Partido Liberal, que não é outra cousa sinão o povo, o qual
não é outra cousa em vastissima extensão sinão a raça negra, tomando a
attitude que tomo ao lado do gabinete no baptismo da liberdade que elle vai
agora receber...
Mais uma vez, Nabuco põe a Causa da Abolição acima do próprio partido.
Uma lição para os políticos de hoje, quando o partido ou não existe ou está
acima do País, do povo, dos escravos do século XXI.
Discutir, Sr. Presidente, si é Partido Liberal ou o Partido Conservador
que tem direito de fazer esta reforma, é cahir sob o rigor de uma etiqueta
constitucional muito peior do que essa etiqueta monarchica, que fazia um
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Uma simples consideração, porque a discussão longa virá depois, bastará
para tranquilisar os que se aterrarem com os presagios dos dous honrados
senadores que me precederam: dentro do espaço de 17 annos, 800.000
escravos têm desaparecido do Brazil. Pois bem, senhores, é justamente
neste periodo que se nota maior riqueza no paiz, grande augmento de
trabalho e com elle maior produção, e, como consequencia, consideravel
augmento na renda publica.
Si, pois, este facto se deu; si foram estas as consequencias da diminuição,
em mais de metade, do trabalho escravo, o que se deve esperar é que o
desapparecimento de 600.000 creaturas escravas não produzirá a nossa
ruina, antes augmentará a nossa prosperidade e o engrandecimento do
Brazil, graças ao trabalho livre, ao trabalho, o que não só levantará os
creditos da nossa patria, como attrahirá para nós o estrangeiro, que
encontrará no solo fecundo e uberrimo deste paiz certas e inexcediveis
vantagens.
Mesmo os abolicionistas falavam em desaparecimento, e não em
incorporação dos escravos, da vida nacional. Não é de admirar que o
preconceito racial continua até hoje. Que o Brasil tenha abolido a escravidão
sem fazer a inclusão.
Eu devo tambem dizer ao Senado e ao paiz que não vejo esses perigos de
que se fizeram écho aqueles que impugnaram o projecto que, dentro em
pouco, estará convertido em lei.
Quer me parecer que tremem diante do facto de praticar uma reforma tão
radicalmente liberal, porque isso servirá de incitamento para que outras
reformas, igualmente liberaes, se possam emprehender e realizar em nossa
patria.
Mas, senhores, que perigo haverá? Por minha parte não creio nelles.
(Apoiados.)
- 20 -
rei de Hespanha morrer suffocado por não se achar perto o camarista que
tinha direito de tocar no brazeiro. (Apoiados. Riso) Por ventura, os
escravos são liberais? (Riso. Apoiados) Fazem elles questão de serem
salvos por este ou por aquelle partido? Não, Sr. Presidente, o que elles
querem é ver-se livres do captiveiro, seja quem for o seu libertador, e eu
colloco-me no mesmo ponto de vista que elles e penso que essa é a unica
verdadeira theoria constitucional, porque é a única de accôrdo com a
urgência da salvação que elles esperam de nós...
Eu comparei em Pernambuco esta lei á uma capella dos Jesuitas perto de
Roma, onde se vêm nas paredes, como trophéus da religião, os punhaes e
as pistolas entregues pelos bandidos arrependidos, e disse que essa lei era
a verdadeira igreja nacional onde o Partido Conservador vinha depôr as
armas com que combatera a abolição e os escravos e na qual elle tinha o
mesmo direito de ajoelhar-se e rezar que os mais antigos abolicionistas... É
que, Sr. Presidente, o exemplo dado hoje pelo Partido Conservador
corresponde á noção do único verdadeiro conservatismo. Ainda recentemente
um estadista inglez, em cujo procedimento eu procuro muitas vezes inspirar-
me, o Sr. John Morley, querendo exemplificar o que elle entendia pelo
verdadeiro espirito conservador em politica, tomava o exemplo de Lincoln.
Ao subir á presidencia em 1860, Lincoln queria somente que a escravidão
não se estendesse aos novos territorios da União, que se respeitasse o
direito dos Estados de tratar exclusivamente da questão, mas que, á medida
que os acontecimentos se foram desdobrando, resolveu dar o golpe final e
decretou a abolição no dia em que as victorias de Grant puderam da força
de lei em todo o territorio americano á proclamação do governo de
Washington.
Com 120 anos de antecipação, Joaquim Nabuco mostra a diferença entre
o compromisso firme de Abraham Lincoln, que era republicano, e o
retrocesso dos partidos de esquerda no Brasil de hoje, que abandonaram
seus compromissos com o povo. Um, com patriotismo, avançou para a
abolição, os daqui regrediram para o conservadorismo.
- 81 -
mesmo fim: annunciar á nossa patria, por este acontecimento que se está
realizando e que a todos enche dos mais vivos e intensos regozijos, grandes
perigos, quer para sua vida financeira e economica, quer para a sua vida
politica.
Ao mesmo tempo as palavras destes dous illustres senadores mais de uma
vez envolvem uma condemnação do ministro 10 de Março por ter, no
entender delles, commettido a alta imprudencia de incumbir-se desta gloriosa
tarefa; mas que teve, para nós liberaes abolicionistas, alto merito de
comprehender que esta questão não podia comportar um minuto sequer de
adiamento.
Eu não venho agora apurar, diante do Senado, nem a queda do gabinete
20 de Agosto, nem a organização do 10 de Março. Tão pouco indagarei
si este ministro deixou de inspirar-se nos sentimentos do conservadorismo
partidario.
Mas devo declarar que, nesta occasião, sinto o maior desvanecimento,
estendendo-lhe mão agradecida em nome de todos os Brasileiros, em nome
particularmente daquelles que eram as victimas e que comparticipam desta
victoria, devida ao passo glorioso, que deu o gabinete para attingir com
desassombro ao desenlace final e completo deste grande problema.
(Apoiados.)
Sr. Presidente, é justo, é de toda a necessidade que partam de mim, em
nome do partido abolicionista, palavras de esperança e de animaçãoque
façam desaparecer as de desanimo e de desalento dos honrados senadores
que me precederam. (Apoiados.)
Senhores, a abolição da escravidão não marcará para o Brazil uma epoca
de miseria, de soffrimentos, uma epoca de penuria. (Apoiados.)
Isso vale para um projeto de revolução na educação, que reserve mais 7,
10, 20 bilhões de reais por ano no Orçamento Federal.
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Esse é o conservatismo nacional e politico, Sr. Presidente, por opposição ao
conservatismo doutrinario, que até hoje tem perdido todas as instituições que se
confiaram á sua obstinação e á sua cegueira e que ainda não resuscitou nenhuma com
o seu despeito".
Até aqui, salvo a abertura, Nabuco faz um discurso grande, erudito, mas
não se esquece do jogo da política no chão do Parlamento e investe contra
a tentativa em marcha, dos conservadores, para impedir a votação da lei.
Mostra-se um estadista que conhece o regimento da Casa.
O meu illustre amigo, deputado pelo Rio Grande do Sul, fallou-nos da
illegitimidade do actual gabinete. O que é que constitue tal illegimidade?
Ter a Princeza Imperial demitido um ministerio que gozara até ao ultimo
dia de sessão passada da confiança da Camara? Mas não o demitiu ella
por factos supervenientes e inspirando-se com tal segurança no pensamento
da illustre maioria que o novo gabinete veio encontrar o mais forte apoio
nesta Camara? Ha muito tempo, Sr. Presidente, que eu abandonei o
caminho das subtilezas constitucionaes que se adaptam a todas as situações
possiveis. Pelo estado do nosso povo e pela extensão do nosso territorio,
nós teremos por muito tempo, sob a monarchia ou sob a republica, que
viver sob uma dictadura de facto. Ha de haver sempre uma vontade
directora, seja do monarcha, seja do presidente. Esta é a verdade, tudo
mais são puras ficções sem nenhuma realidade a que correspondam no
paiz.
Pois bem, todo o meu esforço em politica ha bastantes annos tem consistido
em que essa dictadura de facto se inspire nas necessidades do nosso povo
até hoje privado de tecto, de educação e de garantias e que ella comprehenda
que a verdadeira nação brazileira é cousa muito diversa das classes que se
fazem representar e que tomam interesse na vida politica do paiz. E para
as necessidades moraes e materiaes da vastissima camada inferior que
formam o nosso povo, e das quaes a abolição é a primeira, sem duvida
alguma, que eu tenho trabalhado para voltar as vistas da dictadura existente.
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escravocratas. O fato é que o Brasil, antes, agora e sempre, teve seu projeto
de desenvolvimento visto do topo, nunca da base da pirâmide social. Daí
vem todo o desastre social que atravessamos.
Mas... não quero deter por mais tempo o prestito triumphal, que já se
enfileira na sua marcha festiva! Quando elle passar por mim achar-me-ha
neste logar representando a minha provincia, os meus companheiros no
trabalho agricola, coherente com os deveres, já preenchidos, da missão que
me incumbi de desempenhar em nome e em defesa de grandes interesses
nacionaes. Sejam quaes forem os sentimentos que no coração se me possam
expandir na hora em todos forem livres nesta terra do Brazil, os guardarei
commigo, silencioso, vencido, mas sem que se me possa contestar um titulo
a respeito publico – o de ter preferido até hoje, como hei de preferir
sempre, a lealdade, a integridade e honra politica a todas as glorias, a
todas as grandezas. (Muito bem! Muito bem!!)”
Evaristo de Moraes Filho nos brinda com outra bela descrição:
“O hino da vitória cumpria fosse entoado por um propulsor da idéia, e o
foi por Sousa Dantas, que com extrema delicadeza não se mostrou ressentido
com os ataques dos escravocratas, nas duas câmaras, quando, historiando
os antecedentes, se referiam ao seu Ministério. Não havia, na alma do
estadista baiano, lugar para sentimentos depressivos; toda ela, de si mesma
expansiva e exuberante, irradiava alegria.” As atas detalham o momento:
Não é para fazer um discurso que me levanto, contrariando, bem o sinto,
a impaciência geral, aliás louvável. Chegamos ao termo da viagem
emprehendida, e, mais feliz do que Moyses, não só vemos como pisamos
a Terra Promettida. (Muito bem!)
Sendo assim, Sr. Presidente, nada de recriminações, nada de retaliações!
Mas o Senado, hontem e hoje, pela voz de dous de seus mais illustres
membros, ao mesmo tempo dos mais respeitaveis e eminentes chefes
conservadores, ouviu, com o publico que nos honra com sua presença,
dous discursos, qual mais importante, ambos igualmente identificados no
- 22 -
O Parlamento estava pronto para receber o projeto de lei que abolia a
escravidão. Joaquim Nabuco percebeu a resistência que encontraria entre
alguns de seus pares, e mostrou capacidade de antecipar-se aos problemas
e atrair apoio, usando inclusive brechas do Regimento. Logo no terceiro
parágrafo do seu discurso, ele busca construir a unidade, mesmo sabendo
das dificuldades.
É possível imaginar o clima que prevalecia no Parlamento naquele dia:
euforia nas galerias, constrangimento de alguns dos parlamentares,
entusiasmo dos abolicionistas. Um Parlamento com causa. Diferente do clima
apático do Congresso vazio de causas e bandeiras dos tempos de 120 anos
depois.
Agora, porém, o que se vê, Sr. Presidente é essa dictadura de facto
assumir o caracter de governo nacional no mais largo sentido da palavra,
promovendo a abolição, e é por isto que eu entendo que, longe de merecer
as censuras, as ironias e até os ultrages que estão sendo accumulados pelo
despeito partidario sobre a sua cabeça, a Princeza Imperial merece a
maxima gratidão do nosso povo. Nos mezes em que o Imperador lhe
confiou o imperio, ella achou tempo de fazer delle uma patria, um paiz
livre, com uma lagrima do seu coração de mãi ella cimentou em um dia
essa união do throno com o povo que, com toda a sua experiencia dos
homens e das cousas, seu pae não pôde consolidar inteiramente em 47
annos de reinado. (Apoiados.) Não ha nada mais bello, Sr. Presidente.
A simples intuição de uma brazileira, que não é mais do que qualquer de
nossas irmãs, com a mesma singeleza, a mesma honestidade e o mesmo
carinho, escreve a mais bella pagina de nossa historia e illumina o reinado
inteiro do seu pae. 1887 é todo delle, mas 1888 é todo della.
Ha neste momento uma manhã mais clara em torno dos berços, uma tarde
mais serena em torno dos tumulos, uma atmosphera mais pura no interior
do lar... Os navios levarão amanhã por todos os mares a bandeira lavada
da grande nodoa que a manchava, os nossos compatriotas nos pontos mais
longiquos da terra onde se achem sentirão que é um titulo novo de orgulho
- 79 -
Dia 13
Em seu livro “A Escravidão Africana no Brasil”, Evaristo de Moraes Filho
descreve os últimos debates.
“No último dia da escravidão, ainda uma voz se ergueu no Senado para
fazer oposição platônica ao projeto vitorioso. Foi a de Paulino de Sousa.
Reeditou os argumentos de Figueira e de Cotegipe. Fez um pouco de história
política e atirou-se contra João Alfredo.” As atas descrevem esse momento:
O Sr. Paulino de Sousa: - São tantas as impaciencias, que não posso
deixar de concluir, e sem demora; tanto mais quanto é sabido, Sr. Presidente,
e os jornaes todos que li esta manhã annunciam, que Sua Alteza a
Serenissima Senhora Princeza Imperial Regente desceu de Petropolis e
está á 1 hora da tarde no paço da cidade a espera da deputação desta casa,
para sanccionar e mandar promulgar já a medida ainda ha pouco por V.
Exa sujeita á deliberação do Senado. Cumpri, como as circumstancias
permittiram, o meu dever de senador; posso cumprir o de cavalheiro, não
fazendo esperar uma dama de tão alta jerarchia; e si assignalo o facto, é
para a todo o tempo ser memorado nos annaes do nosso regimen parlamentar.
Devo, antes de terminar, dizer que illudem-se ou querem illudir-se aquelles
que acreditam remover uma grande difficuldade com esta lei da abolição
do elemento servil; pelo contrário, é agora que recrescem, com a
desorganização do trabalho e com a entrada de 700 mil individuos não
preparados pela educação e pelos habitos da liberdade anterior paravida
civil, as contingências previstas para a ordem economica e social. Si para
amparal-os, ajudal-os e defendel-os, nesta transição, inesperada e talvez
affictiva, precisarem de mim, a minha provincia e a classe da lavoura, a
que pertenço, continuarão a encontrar em mim a mesma dedicação, o
mesmo esforço e a mesma coragem.
Ele reclama que o Brasil está recebendo 700 mil novos indivíduos “não
preparados pela educação e pelos habitos da liberdade”. Como se este despreparo
fosse culpa da abolição, dos abolicionistas, e não da escravidão, dos
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e de honra o nome de Brazileiro... A quem se deve essa mutação tão
rapida si não á Princeza Imperial? Os grandes pensamentos vêm do
coração, ao dito de Vauvenargues, Sr. Presidente, pode-se accrescentar -
e tambem os grandes reinados, como esta curta regência que em tão pouco
tempo deu ao sentimento de partida outra douçura e á palavra humanidade
outro sentido... (Apoiados. Muito bem!)
O reconhecimento pelo gesto da princesa não era somente o sentimento
de um monarquista, era a realidade de que foi ela quem tomou a iniciativa.
É certo que não vieram com a reforma agrária - terra para todos -, nem a
reforma educacional - escola igual para todos -, nem o fim do preconceito
racial. Mas finalmente, foi dado o passo decisivo para abolir a escravidão.
O nobre Presidente do Conselho mostrou comprehender que o que faz o
homem de Estado é a imaginação que penetra o mais fundo do coração do
povo e lhe adevinha o segredo de que, ás vezes, elle mesmo não tem
consciencia. Leis, grande leis encommendam-se, Sr. Presidente, á sciencia
dos juristas; a eloquencia acha-se ás vezes em inspirações alheias, mas essa
chamma sagrada que a alma do povo accende de muito longe no coração
do estadista, que põe o coração de Bismarck em contacto com o coração da
Allemanha, o de um Gavour com o da Italia, o de um Gladstone com o
da Inglaterra e hoje o de um João Alfredo com o do Brazil (applausos),
inspiração do verdadeiro homem de estado, Sr. Presidente, não se
encommenda, não se aprende, não se estuda, é uma revelação divina dessa
luz que illumina o universo e que dirige a humanidade.
Eu, Sr. Presidente, tenho dez annos de vida politica e nesse tempo tenho
visto como neste paiz crescem e consolidam-se as reputações solitarias dos
homens que se inspiram somente nos principios... Eu vi com que reputação
subiu o Sr. Dantas e com que reputação baixou ao tumulo José Bonifacio,
eu vi com que reputação appareceu de repente o Sr. Antônio Prado... em
todos os casos, eu tenho visto sempre a reputação politica dos homens que
se inspiram em si mesmos e não egoisticamente, mas como instrumentos
desinteressados de uma idéa, crescer cada vez mais forte, ao passo que os
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Desejo ver a corrente da opinião, que está formada, prosseguir dentro da
lei, sem offensa dos principios fundamentaes da sociedade, como o rio,
que, embora volumoso e rapido, corre pacificamente em seu leito, sem
transbordar.
“Ninguém mais deseja do que eu” é a frase mais ouvida da boca de cada
escravocrata, “mas me preocupo com a pressa e com os riscos” é o que eles
diziam para justificar “apenas o adiamento”. Como se adiar uma situação
não fosse mantê-la.
O mesmo fazemos hoje, com o quadro de apartação que substituiu a
escravidão. Todos dizem “ninguém mais do que eu” e “apenas defendo o
adiamento das medidas para quebrar a apartação, porque não há recursos
suficientes.”
A verdade de tudo mudar, para nada mudar.
Os Srs. Fernandes da Cunha e Presidente do Conselho trocam apartes.
O Sr. João Alfredo: Eu referi-me ás grandes desgraças do sul dos
Estados-Unidos. Si aquella grande nação pôde resistir á extincção brusca
e violenta do elemento servil, é porque tinha grandes condições de
prosperidade, e a parte importante do Norte não dependia do trabalho
escravo.
O Sr. Dantas (presidente do conselho): A questão lá foi resolvida de
modo differente.
O Sr. João Alfredo: Mas as desgraças que pesam sobre o Sul são tantas
e tamanhas, que em meio seculo talvez não possam ser reparados.
O nobre presidente do conselho é hoje, com grave injustiça feita a S. Exa,
collocado entre os vencedores; não posso, conhecendo suas opiniões,
proclamando a sinceridade dellas, deixar de assignalar-lhe, neste momento,
o seu logar, para que venha tomal-o aqui ao lado vencidos.
O Sr. João Alfredo (presidente do conselho): Nunca estivemos juntos
nesta questão: ella nos separou desde 1871.
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outros, para ficar de pé, precisam encostar-se uns aos outros, apoiar
mutuamente as suas ambições contrarias, e ainda assim um sopro da
opinião os abateria, si o meu verdadeiro ponto de apoio não fosse essa
grande e mentirosa ficção do Senado Vitalicio. (Muito bem!)
É uma lição de humanismo, porque fala da sintonia da alma do estadista
com a alma do seu povo. Faz um enfático reconhecimento ao seu adversário
João Alfredo, chefe de governo naquele momento, que não só era de outro
partido, mas também seu duro opositor em Pernambuco, contra o qual se
batera especialmente nas eleições de 1884, quando, por manipulação e
abuso de poder, tentaram impedir a eleição. O Senado publicou um lúcido
livro com os discursos de Joaquim Nabuco nessa campanha. Uma campanha,
pelo que se observa em seus discursos, de uma nota só: a escravidão.
Sim, Sr. Presidente, ao pensar na sessão de hoje do Senado, eu lastimava
que o tumulo da escravidão não fosse largo bastante para conter tudo o que
devera desapparecer com ella. Quando morre o rei de certos paizes africanos,
o seu cavallo, o seu cão, os seus escravos favoritos são sacrificados sobre o
seu tumulo e os herdeiros obrigados a matar-se alli mesmo para que nada
reste delle. Pois bem, eu quizera que no tumulo da escravidão se fizesse
pelo menos o sacrificio da vitaliciedade do Senado para que elle não venha
a herdar-lhe o espirito e, abrigado por traz de uma irresponsabilidade
absoluta, tornar-se o foco da conspiração que deve resuscitar o escravismo
politico.
Ele não fala só da escravidão. Critica a própria instituição do Senado e
seus privilégios.
É duro para o Partido Liberal, Sr. Presidente, eclypsar-se neste momento
em que se passa uma verdadeira apotheose nacional. Mas, como eu disse,
a culpa é sómente delle, a culpa é sómente nossa. Fomos nós que não
acreditamos que a abolição immediata pudesse ser feita, embora hoje todos
a achem facil. Não o acreditavamos ainda o anno passado! Faltou-nos fé
na idéa e as idéas querem que se tenha fé nellas. Hoje, que a abolição
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uma engrenagem forçada, eu pergunto: durante esse annos affilictivos de
transição onde iremos buscar meios que bastem para todos os encargos do
Estado, para toda a nossa vida e serviços da administração?
O Sr. Fernandes da Cunha: - Deus permitia que a crise se estenda
apenas a um período decennal.
O Sr. João Alfredo: - Senhores, muito infeliz foi o Brazil, herdando esta
instituição; porém, mais infeliz será si a sua extincção não for conseguida
mediante sabias cautelas e previsões, de modo que não acarrete graves
perturbações. Como quer que seja, eu applico a esta questão o que dizia
Thiers, da Turquia:”A Turquia vive, porque é dificil supprimil-a, e quando
a matarem, o seu cadaver ha de emprestar a Europa por mais de 50
annos.”
Nós temos o duro engargo desta liquidação; procedamos, não como homens
que se deixam levar pelas ameaças e vivorios, mas como homens que se
compenetraram do seu dever, e que, em vez dessas glorias da praça publica,
querem uma gloria real e verdadeira, que propocione dias tranqüilos e
felizes á sua patria.
O Sr. Fernandes da Cunha: - Um estadista não se deixa levar pela
popularidade.
O Sr. João Alfredo: - Podem ser muito seductoras as glorias de Lincoln
e seu partido, inundando de sangue o solo da patria, accumulando ruinas,
destruindo, brusca e violentamente, a propriedade servil, de que o Estado
tinha maior culpa que os particulares, não admittindo indemnização, nem
permittindo ente os antigos senhores e os libertos nenhuma condição de
serviços temporarios, e até confiscando as demais propriedades daquelles...

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