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Filme A Idade da Terra de Glauber Rocha e O Evangelho Segundo Mateus de Piere Paolo Pasolini

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Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com 
AS NARRATIVAS CRÍSTICAS DA REVOLUÇÃO NO TERCEIRO MUNDO: 
Circulações e Apropriações Estéticas de O Evangelho Segundo São 
Mateus (1964) em A Idade da Terra (1980) 
 
 
Quezia Brandão** 
Wagner Pinheiro Pereira*** RESUMO: O artigo analisa, sob o viés da História Conectada e das Transferências Culturais, os profícuos diálogos entre as obras cinematográficas de Glauber Rocha e de Pier Paolo Pasolini, dois dos cineastas mais representativos dos movimentos cinema-novistas na América Latina e na Europa, que apresentaram nos filmes O Evangelho Segundo São Mateus (1964) e A Idade da Terra (1980) uma narrativa crística para a abordagem político-ideológica dos processos revolucionários no Terceiro Mundo. PALAVRAS-CHAVE: A Idade da Terra; O Evangelho Segundo São Mateus; Glauber Rocha; Pier Paolo Pasolini. 
THE CHRIST-NARRATIVES OF THE REVOLUTION IN THE THIRD WORLD: 
Circulations and aesthetics appropriations of The Gospel According St. Mathews (1964) in The Age of the Earth (1980) ABSTRACT: The article analyzes, under the bias of the Connected History and Cultural Transfers, the fruitful dialogue between the films of Glauber Rocha and Pier Paolo Pasolini, 
and Europe, who presented in the movies The Gospel According to St. Matthew (1964) and The Age of the Earth (1980) a Christ-narrative to the political-ideological approach to revolutionary processes in the Third World. KEY-WORDS: The Age of the Earth; The Gospel According to St. Mathew; Glauber Rocha; Pier Paolo Pasolini. 
*** 
 
 
 O presente artigo é resultado dos estudos desenvolvidos por Quezia Brandão em suas pesquisas: 
 (Rio de Janeiro: Monografia de Conclusão do Curso de História IH-UFRJ, Orientação: Prof. Dr. Wagner Pinheiro Pereira, 2014) e da Terra: Glauber Rocha e seu projeto (São Paulo: Pesquisa de Mestrado em Andamento PPGHS-FFLCH-USP, Orientação: Profa. Dra. Maria Helena Rolim Capelato, 2014-2015.). 
** Mestranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora no Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE), no Laboratório de Imagem, Arte e Metrópoles (IMAM) e na Cátedra José Bonifácio (CIBA-USP). E-mail: queziabrandao@usp.br 
*** Professor de História das Américas e História do Audiovisual nos cursos de Bacharelado em História e de Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PGHC UFRJ). Coordenador do Laboratório de Estudos Históricos e Midiáticos das Américas e da Europa (LEHMAE). E-mail: wagnerpphistory@gmail.com 
 
 
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com 
A investigação sobre as transferências culturais tinha que admitir que se pode apropriar um objeto cultural e se emancipar do modelo que o constitui, isto é, realizar uma transposição, que, por mais distante que seja, tem tanta legitimidade quanto o original. Michel Espagne A Noção de Transferência Cultural (2013) 
Glauber Rocha & Pier Paolo Pasolini: Diálogos & Conexões entre a 
América Latina e a Europa ntre os anos de 1950 e 1970 houve uma grande circulação de 
propostas e programas de cunho revolucionário, seja em seu viés 
estético e/ou ideológico, entre o ambiente político e cinematográfico 
da Europa e da América Latina. Na década de 1950, muitos jovens aspirantes a 
cineasta partiram rumo à Europa para estudar nas grandes escolas de cinema de onde 
importariam experiências e modelos cinematográficos para por em prática na 
América Latina, compartilhando o desenvolvimento de uma renovação 
cinematográfica que ocorria na Europa. Corolário do Neorrealismo Italiano, da 
Nouvelle Vague Francesa, do Free Cinema Inglês e das vanguardas históricas1, ocorreu 
na América Latina o autodenominado movimento do Nuevo Cine Latinoamericano. 
 Ao nos debruçarmos sobre a produção do Nuevo Cine Latinoamericano é 
possível identificar um sem número de paralelos estéticos e ideológicos com as 
produções europeias. Linguagem, recursos de montagem, movimentos de câmera, 
entre outros aspectos técnicos e estéticos, são apropriações verificáveis nos filmes de 
realizadores do Nuevo Cine Latinoamericano. Para nós, historiadores, é importante 
analisar como funcionou essa circulação de ideias, imagens e práticas 
cinematográficas produzindo o que Sanjay Subramanyam e Serge Gruzinski 
chamaram de História Conectada2.Essa história conectada se daria dentro de um 
fenômeno que Michel Espagne denominou de transferências culturais3. Para Espagne 
 
1 Cámaras en Trance. El nuevo cine latino-americano, un proyeto cinematografico subcontinental. Santiago: Ed. Cuarto Propio, 2014. p.16. 
2 Ver: SUBRAHMANYAM, Sanjay. Connected Histories: Notes towards a Reconfiguration of Early Modern Eurasia. Modern Asian Studies, Vol I, N 3, 1997.; e GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e Revista Estudos Avançados, 17/49, 2003. 
3 No caso do cinema, as Connected Histories de Sanjay Subrahmanyan e de Serge Gruzinski operam dentro daquilo que Michel Espagne denominou de Transferências Culturais, sobre as quais entende: 
ressignificação dinâmica, que não podemos reconhecer plenamente sem ter em conta os vetores históricos (Traduzido pela autora). ESPAGNE, Michal. La notion de Transfert Culturel. Revue Sciences/Lettres.Nº1. 2013. pp.2 e 5. 
 
 
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última nos conduz a pensar acerca das traduções, interpretações e ressignificações, 
que uma cultura/grupo pode realizar de determinados modelos artísticos, políticos, 
econômicos, etc. Assim, paraalém de pensar aqui uma comparação entre os dois 
filmes, ou os dois cineastas, tentará se demonstrar os resultados dos contatos e das 
transferências através da circulação de ideias políticas e estéticas cinematográficas. A 
partir dessa chave teórica, pretende-se analisar como se deram as conexões e 
apropriações do filme Il Vangelo Secondo Matteo (O Evangelho Segundo São Mateus, 
1964), do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini, no filme A Idade da Terra (1980), do 
cineasta brasileiro Glauber Rocha, procurando apontar para a existência de afinidades, 
diálogos e conexões entre a filmografia dos dois cineastas, contemporâneos entre si e 
de linguagens e estéticas semelhantes e influentes cada qual no cinema do outro. 
 Duvaldo Bamonte, em sua tese de doutorado em Ciências da Comunicação, 
-
recorda que o cineasta italiano Bernardo Bertolucci foi um dos primeiros a apontar as 
semelhanças entre Manuel, personagem de Deus e o Diabo na Terra do Sol4 (dir. 
Glauber Rocha, 1964), e Accatone, personagem de Desajuste Social5(Accatone, dir. 
 
4 O filme apresenta um retrato realista e dramático de uma família sertaneja cuja pobreza e degradação a conduzem à luta contra o latifúndio e a Igreja, simbolizando exemplarmente as rebeliões populares nos sertões brasileiros através do recurso das alegorias e alusões folclóricas regionais. Depois de matar um patrão inescrupuloso, Manoel foge com a mulher Rosa para as terras áridas do sertão. Convertidos em foras-da-lei, depois que a sociedade os julga indignos de tratamento justo e respeitabilidade, encontram primeiro Sebastião, um místico negro que prega a proximidade de um levante milenarista acaba sendo morto por Rosa e seus seguidores são assassinados por Antonio das Mortes, uma figura misteriosa, contratada por 
s ainda vivo. Após ingressarem no cangaço, sofrem a perseguição empreendida por Antonio das Mortes contra os cangaceiros. Ao final, Corisco acaba sendo assassinado por Antonio das Mortes, enquanto Manoel e Rosa são obrigados a fugir, ainda rebeldes, mas conscientes de que nem a marginalidade nem o misticismopodem resolver seus problemas. 
5 Trata-se de um filme dramático italiano ambientado na cidade de Roma na década de 1960, cenário onde Accattone, o protagonista da trama, representa a figura de um cafetão da periferia pobre romana que, acossado pela fome e decidido a não procurar um emprego, abandona a sua esposa e seus filhos, passando a roubar e a ficar a maior parte do tempo ocioso em cafés com os seus amigos, enquanto vive do dinheiro ganho pela sua nova companheira, a prostituta Maddalena. Por sua vez, quando Maddalena é presa por perjúrio, Accatone encontra-se sem a sua fonte de rendimento e, sem ninguém para sustentá-lo. Neste cenário, chega a passar fome até que conhece a bela e inocente jovem Stella. De início, pretende iniciá-la na prostituição, mas acaba se apaixonando pela jovem e decide tentar arranjar uma forma honesta ou não de sustentá-la e recuperar sua sorte financeira, apesar de acabar fazendo a única coisa que sabe: pensar em si mesmo e prosseguir tendo uma vida miserável, sobrevivendo e não vivendo. 
 
 
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com 
Pier Paolo Pasolini, 1961)6. Da mesma forma, ainda segundo Duvaldo Bamonte, o 
crítico cinematográfico italiano Lino Miccichè também apontou sutis semelhanças, 
em certos posicionamentos comuns que teriam guiado a incursão política e cultural 
dos cineastas, principalmente a partir do final da década de 19607. 
 Até mesmo o cineasta Glauber Rocha também sinalizou para os pontos de 
aproximação em comum entre os seus filmes Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e A 
Idade da Terra (1980) com o filme O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo 
Secondo Matteo, 1964), de Pier Paolo Pasolini. Em seu livro O Século do Cinema (1981), 
uma reflexão sobre as experiências cinematográficas de Hollywood, do Neorrealismo 
Italiano, da Nouvelle Vague Francesa e de suas influências no Cinema Novo Brasileiro, 
Glauber Rocha apresentou em quatro textos 
 vários comentários sobre o cinema 
italiano e o cineasta Pier Paolo Pasolini, procurando marcar tanto as suas 
aproximações e semelhanças quanto os seus distanciamentos e diferenças em relação 
aos filmes e a estética desenvolvida pelo cineasta italiano, sua crítica à apropriação 
fílmica do Terceiro Mundo feita por Pasolini segundo Glauber, Pasolini procurava no 
Terceiro Mundo um álibi para a sua perversão , assim como pontuou a relevância de 
Pasolini na representação cinematográfica da Itália e na realização de um retrato 
 
6 Homenageado do Seminário Internacional de Cinema CineFuturo em julho de 2011, o cineasta italiano Bernardo Bertolucci gravou uma saudação à Bahia em que diz que seu relacionamento com o Brasil foi intensificado com a chegada de Glauber Rocha na Europa: lembro ter visto foi Barravento. Glauber me balançou com aquele filme e depois Deus e o Diabo na Terra do . Bertolucci lembra ainda que ele e o cineasta baiano chamavam seus filmes de miúra, mosquito poderia entrar no cú deles. Nossos filmes eram tão fechados que nenhum espectador entrava para vê-http://pontocedecinema.blog.br/blog/sobre-o-blog/. Acessado em 22/05/2015, às 22:55). Francisco Luiz de Almeida Salles recorda o encontro entre Glauber Rocha e Bernardo Bertolluci: em Paris, era adido cultural da embaixada, Glauber estava comigo, e vieram me anunciar que o Bertolucci estava na portaria então o mandei entrar. Ele viu o Glauber e disse Barravento! E o Glauber respondeu Prima d . Sobre a relação entre Glauber e Pasolini, apontada por Bernardo Bertulluci, ver também: Glauber aereo. In: GIUSTI, Marco (a cura di). Prima e dopo la rivoluzione. Brasile anTurim: Lindau, 1995. p.95. 
7 MICCICHÈ, Lino. Rocha: saggi e invettive sul nuovo cinema. Turim: ERI Edizioni RAI, 1986. p.10 ;e MICCICHÈ, Lino. Un cineasta tricontinentale. In: Glauber Rocha: scritti sull cinema. Veneza: XLIII Mostra Internazionale del Cinema, 1986. p.27, nota 65, no qual Lino Miccichè afirma: . (traduzido pelos autores deste artiRocha com Pier Paolo Pasolini (1970-Comunicação (ECA-USP), Orientação: Prof. Dr. Ismail Norberto Xavier, 2002. p.09. 
 
 
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realista da decadência da sociedade italiana da época8. Em uma das passagens do 
livro, Glauber Rocha recorda os seus primeiros encontros pessoais com Pier Paolo 
Pasolini, assim como descreve a personalidade polêmica do cineasta italiano: 
Gustavo Dahl, que conhecia profundamente o cinema mundial, me disse: 
sistema, como Visconti ou De Sica, os místicos financiados pela Democracia Cristã, como Rosselini, Antonioni e Fellini... De coisa mais nova tem o filme de Francesco Rosi, Salvatore Giuliano [O bandido Giuliano, 1962] e Il Vangelo Secondo Matteo, de Pier Paolo Pasolini, que é uma porra louca genial, uma mistura de Jean-Luc God Salvatore Giuliano precedia a Deus e o Diabo..., eu conheci Pasoloni no festival de Karlov Vary, Tchecoslováquia, (ele apresentou Accattone [Desajuste Social, 1961] e eu Barravento (1961) e quando voltei de Gênova para Roma fui ver Il Vangelo.... Como tinha filmado Deus e o Diabo ...quase ao mesmo tempo, o filme de Pasolini me revelava comuns identidades tribais, bárbaras... Mas eu já pensava em Terra em Transe, no mar que sucede ao sertão, ondas além da Nouvelle Vague9. [...] ROMA 1965: os jovens cineastas italianos Gianni Amico e Bernardo Bertolucci levaram Pierre Paolo Pasolini, romancista, filólogo, poeta, cientista e cineasta para uma sessão privada de Deus e o Diabo na Terra do Sol. Esperei do lado de fora com meu amigo Arnaldo Carrillo. Quando terminou a projeção não pude falar muito tempo com Pasolini porque ele estava gripado. E o encontro esperado não veio porque ele partia no dia seguinte para o Marrocos, onde filmaria Édipo Rei [Edipo Re, 1967]. Ia tratar do lançamento de Il Vangelo secondo Matteo [O Evangelho segundo São Mateus, 1964], a vida de Cristo modernizada segundo preceitos do papa João XXIII a quem o filme é dedicado. O reencontro se deu em Veneza, 1967, onde Pasolini apresentava a sua versão de Édipo Rei. Pier Paolo, como os amigos o chamam na intimidade, tem por volta de 44 anos, é baixo, magro, usa óculos, cabelos pretos: é violento, tímido e irônico ao mesmo tempo. É personagem lendário na Itália. Começou sua vida intelectual como professor de línguas romanas numa escola de província. Foi envolvido num escândalo de corrupção sexual de menores. Expulso da escola e processado, Pasolini iniciou a vida de poeta e romancista, mas sua evidência começa por volta de 1965, dez anos depois da guerra. Amigo de Alberto Moravia, grande incentivador de valores literários. Pasolini é 
 
8 indicando a importância de cada filme: -realismo. Mamma Roma é uma ópera psicolinguística. Il Vangelo é integração do artista ao Vaticano Comunista. Uccellacci e uccellini é a primeira blasfêmia. Édipo Rei é o primeiro pecado capital. Teorema é o primeiro escândalo. Porcile é a primeira comunhão. Medea é a primeira missa. Il Decameròn é a Capela Sixtina. Il racconti di Canterbury, o dilúvio. . No entanto, no mesmo texto, não deixa de criticar o filme Il fiore dele mille e una notte [As Mil e Uma Noites, 1974], afirmando: a vira costureiro da montagem, maquiador de heróis decadentes, fotógrafo de turismo, um sonoplasta oco e poeta católico de tendência espanholizante. Pasolini não se liberta da frustração de virilidade perdida, a beleza não o erotiza, a violência é um maneirismo, universo escuro de idealista onipotente. Il fiore é exposição audiovisual de fantasmas cristãos que desfilam no Terceiro Mundo encantados com a flexibilidade sexual dos primitivos. Pasolini colonializa o sexo do pobre, o subproletariado é máquina inIn: O Século do Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.282. 
9 ROCHA, Op.cit., p.256. 
 
 
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consagrado como inovador da língua italiana no romance e, politicamente, é ligado ao Partido Comunista, que faz publicidade do jovem rebelde10. 
 Glauber faria ainda outra referência a Pasolini em 1981, quando, realizando 
quase uma homenagem póstuma tributária à memória do cineasta italiano, 
assassinado em 2 de novembro de 1975, relata a importância do filme O Evangelho 
Segundo São Mateus 
filme, A Idade da Terra: 
No dia em que Pasolini o grande poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar a Vida de Cristo no Terceiro Mundo. Pasolini filmou a Vida de Cristo na mesma época em que João XXIII quebrava o imobilismo ideológico da Igreja Católica em relação aos problemas dos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo, e também em relação à classe operária europeia. Foi o renascimento, a ressurreição de um Cristo que não era adorado na cruz, mas um Cristo que era venerado, vivido, revolucionado no êxtase da ressurreição. Sobre o cadáver de Pasolini eu pensava que o Cristo era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização muito primitiva, muito nova11. 
 Por sua vez, encontramos poucas referências feitas por Pasolini sobre o cinema 
de Glauber Rocha. A primeira delas seria feita no seu famoso texto-manifesto Il 
Cinema de Poesia (1965) no qual aponta o filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, de 
Glauber Rocha, como exemplo da poética cinematográfica que estava sendo 
desenvolvida em vários países na década de 196012. A segunda referência é realizada 
 
10 In: O Século do Cinema, pp.276-277. 
11 Esta passagem por ser encontrada em Roteiros do Terceiro Mundo. Ver: ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceiro Mundo. Organizado por Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985. p. 461. 
12 NI, Erika. Índices de um cinema de poesia: Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.) que o próprio Pasolini identificou em alguns filmes da década de 1960. Ele defendeu esta Empirismo Herege. Lisboa: Assírio & Alvim, 1982), onde propõe que certo tipo de abordagem cinematográfica pode ser compreendida a partir do mesmo ponto de vista linguístico utilizado na distinção entre a prosa e a poesia. De acordo com Pasolini, no cinema é mais difícil distinguir entre linguagem da prosa e linguagem da poesia porque não sabemos com clareza qual é a linguagem do cinema. Ele não explicita se existe uma relação correspondente entre palavra e imagem, mas afirma que a distinção que fez entre a prosa e a poesia no cinema era muito empírica; a linguagem da poesia é aquela onde se sente a câmera, assimcomo na poesia se pode sentir imediatamente os elementos gramaticais da função poética; na linguagem da prosa, não sentimos a câmera, a presença do autor e seu estilo não são aparentes. (Cf. SITI, Walter; ZABAGLI, Franco (eds.) Pier Paolo Pasolini per Il Cinema. Milão: Mondadori, 2001. Entrevista concedida ao Cahiers du Cinéma, nº 169, agosto de 1965. Vol. II, p.2891.) Para ele, o naturalismo da linguagem em prosa leva ao limite a própria vocação naturalística do cinema: com uma só imagem, o cinema pode mostrar um rosto em detalhe. Na superação do naturalismo, a linguagem da poesia, que não é natural, inundaria a imagem com metáforas: construção de um vocabulário de comunicação através de imagens; inventar as próprias imagens. Entretanto, conclui Pasolini, primeiro lugar dos poderes e da qualidade da metáfora e das abstrações do cineasta. Mas não acredito que nenhum filme tenha nunca ultrapassado este limite . (Idem, p. 
 
 
Revista Poder & Cultura, Rio de Janeiro, Vol. 2, Nº 3, pp. 107-142, Jan./Jun./2015 | www.poderecultura.com 
no texto Il Cinema impopulare (1970), onde descreve o rompimento do modelo de 
narrativa cinematográfica como uma forma de expressão de liberdade autoral, 
considerando exemplar o caso do filme O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro 
(1969): 
Também Glauber Rocha sofreu a chantagem avanguardista-gauchista 
O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro) o testemunha: os destinatários de categoria A o levaram para trás de suas barricadas, desta vez seguidos também dos pávidos comunistas tradicionais que leram neste filme a esquemática reinvindicação revolucionária de que se acontentam13. 
 
Pier Paolo Pasolini e Glauber Rocha: os cinemas europeu e latino-americano em diálogo. 
Ao refletir sobre as conexões Glauber-Pasolini, Maria Rita Nepomuceno 
considera ser preciso levar em conta que: 
Antes de tudo entre os dois autores existe um diálogo estético: se identificam na épica de Cristo, no arquétipo do deserto, dialogam os 
teorização pasoliniana de um cinema de poesia (em que Glauber Rocha é usado como exemplo do aspecto internacional) é também a base a crítica à que em torno ao escândalo linguístico e 
 
que: elmente, meus filmes não pertencem a esta corrente. Ou então só em parte: isso valeria exclusivamente para meu último filme, O Evangelho Segundo São Mateus [Il Vangelo Secondo Matteo, . (Idem, p. 2899.) Contudo, citava alguns filmes de Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni, Jean- -durante a Primeira Mostra Internacional do Novo Cinema (de 29 de maio a 6 de junho de 1965), em Pésaro (Itália), onde afirma: Bertolucci e Godard mas também poderia acrescentar Glauber Rocha, do Brasil, ou alguém da Tchecoslováquia, e naturalmente muitos outros (muitos dos autores do Festival de Pésaro, Revista Civilização Brasileira, nº.07. Maio de 1966. p.280. 
13 In: SITI, Walter (Org.). Saggi sulla letteratura e 
Ciberlegenda (UFF. Online), v. 23, p. 38/4-48, 2010. p.44, nota 21. 
 
 
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-
14 das novas vanguardas15. 
Após o período de diálogo e apropriação do Neorrealismo Italiano16, Glauber 
Rocha, em sua admiração pelo cinema de Pier Paolo Pasolini, dá continuidade a um 
intenso diálogo com o Fórum Cinema Novista italiano, que já vinha se estabelecendo 
desde os fóruns de debate do Cinema Novo Brasileiro na Itália, através da iniciativa do 
Columbianum, um instituto cultural, criado pelo padre jesuíta Angelo Arpa em julho de 
1958, que, segundo Miguel Pereira, 
[...] teve uma importância fundamental não apenas na divulgação do cinema latino-americano na Europa, mas também como espaço privilegiado de avaliação crítica da produção e de discussão sobre propostas estéticas, além de grandes retrospectivas do cinema argentino, mexicano e brasileiro. Foi também pela primeira vez que o cinema cubano pós-revolucionário, enquanto uma cinematografia nova e engajada, foi mostrado na Itália17. 
 
14 -Zdanov. 
15 NEPOMUCENO, Op.cit., p.44. 
16 O Neorrealismo Italiano foi uma corrente cinematográfica que se tornou importante após a Segunda Guerra Mundial. Pretendiam os seus autores um regresso ao realismo, que marcou a segunda metade do século XIX, e o qual procurava descrever a realidade com objetividade, sem uso do embelezamento poético, ou recurso a explicações sobrenaturais e artificiais. Uma série de filmes se caracteriza por um conjunto de traços comuns: o uso de cenários naturais em vez de filmagens em estúdios, má iluminação, por vezes o uso de atores não profissionais, forte atenção aos problemas sociais, eprincipalmente temas próximos do povo anônimo, que surgia como personagem principal, e uma temática atual, que coincidia com uma filmagem quase em estilo de documentário. Pretendia-se, assim, fugir ao cinema Hollywood, com os seus temas de heróis, aventura e romance, que era seguido por parte do cinema italiano. Cf. FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo italiano: uma leitura. São Paulo: Edusp-Fapesp, 1996, pp. 33-51. Glauber Rocha, já em A Idade da Terra, encontrava-seem rompimento (ao menos em nível teórico) com o Neorrealismo italiano. Geraldo Sarno revela em seu livro uma conversa com Glauber Rocha, em finais da década de 1970: conta Geraldo Sarno. Ver: SARNO, Geraldo. Glauber Rocha e o cinema Latino-americano. Rio de Janeiro: CIEC-UFRJ/Rio Filmes, 1995. p.11. Projeto de um filme a ser realizado em Cuba (Proyecto de una película a realizarse en Cuba de 9 de março de 1972), Glauber Rocha, claramente identificando o Neorrealismo Italiano como uma linguagem do colonizador, explica à direção do Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC): lo de fotografia, montagem e direção de atores do cinema latino-americano revela constantemente submissão aos métodos da Nouvelle-vague, do Neo-realismo e menos do cinema americano, devido às impossibilidades econômicas de imitá-lo. Um cinema não pode ser descolonizador se utiliza da linguagem colonizadora: zooms, estilo de montagem fragmentado de efeitos visuais, câmera na mão, montagem a partir de textos escritos, uso literário e sonoro que se limita às velhas práticas de Resnais e Chris Marker (o documentário) e práticas de Truffaut, Godard (com as diferenças que cada estilo apresenta), vinculação humanista ao Neo-Realismo e a consideração que se tem por cineastas recolonizados pelos americanos . Ref.: ROCHA, Glauber. Proyecto de una película a realizarse en Cuba. Apud. SARNO, Op.cit., p.14. 
17 Alceu, vo.8, nº15, pp.127-142, jul./dez. 2007. p.128. 
 
 
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O Istituto Columbianum tornou-se um importante centro difusor da cultura 
latino-americana na Europa, divulgando e discutindo, dentre outras manifestações 
artístico-culturais, a literatura18 e o cinema produzidos na América Latina. Dentre as 
várias atividades realizadas por este instituto cultural destacou-se a criação da 
Rassena del Cinema Latino-Americano, um importante festival dedicado ao cinema da 
América Latina, realizado nas cidades de Santa Margherita Ligure (I Rassegna: 7 a 15 
de junho de 1960; II Rassegna: 19 a 27 de maio de 1961), Sestri Levanti (III Rassegna: 1 
a 8 de junho de 1962; IV Rassegna:25 maio a 1º de junho de 1963) e Gênova (V 
Rassegna: 21 a 30 de janeiro de 1965). Além das competições pelas premiações do 
festival, julgadas por um júri composto de importantes nomes da cinematografia e da 
intelectualidade europeia e latino-americana, era um evento que promovia simpósios, 
mesas-redondas, exposições, cursos de cinema com análise e discussão de filmes na 
moviola, realizando, assim, um profícuo debate sobre temas da cultura latino-
americana. Gianni Amico, organizador da Prima Rassegna del Cinema Latino-
Americano, ao ser entrevistado pelo jornal Il Lovoro Nuovo (4 de junho de 1960), 
afirmou: 
Duas razões principais motivaram a nossa escolha: o interesse pela cultura latino-americana, cujo estudo o Columbianum há muito se dedica e a vontade de propor, de um modo orgânico e documentado, um discurso sobre cinematografias ainda desconhecidas, em sua maior parte, na Europa. Estaremos, por isso, associando um trabalho de estudos a uma ação informativa19. Os cinco Festivais do Cinema Latino-Americano organizados pelo Instituto 
Columbianum, indubitavelmente, representaram uma intrigante iniciativa intelectual, 
responsável pela tentativa de criar e de desenvolver provavelmente o primeiro espaço 
de interlocução de intelectuais e artistas engajados em promover uma resistência 
cultural ao processo avassalador de globalização da cultura de massas que os Estados 
Unidos da América estavam desenvolvendo desde a década de 1930 e que ganhou 
 
18 Segundo Miguel Pereira: livros que traziam para a Itália um pouco da cultura latino-americana. Em colaboração com a Editora Silva do Milão, o Columbianum criou uma coleção de livros de iniciação à cultura ibero-americana do século XX, cujos títulos principais, segundo Amos Segala foram: Ruggero Jacobbi: Lirici brasiliani dal modernismo ad oggi, 1960; Leopoldo Zea: América Latina e cultura occidentale, com introdução de Manuel Tuñón de Lara, 1961; Rómulo Gallegos: Canaima, com introdução de Juan Liscano, 1962; Octavio Paz: Il labirinto dela solitudine, com introdução de Giuseppe Bellini, 1963; Miguel León Portilla: La memoria dei vinti, 1964; e . Cf. PEREIRA, Op.cit., p.131. 
19 Apud. PEREIRA, Op.cit., p.133. 
 
 
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força maior após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Destes cinco festivais, 
certamente o de maior repercussão foi a V Rassegna del Cinema Latino-Americano 
(1965), responsável pela criação do megaevento cultural denominado Congresso Terzo 
Mondo e Comunità Mondiale
impressa italiana da época) que reuniu renomados intelectuais da América Latina, da 
Europa e da África na busca de efetivação de um projeto de estreitamento cultural 
entre a Europa, especialmente a Itália, e o Terceiro Mundo. Inserido no cenário da 
Guerra Fria, o Congresso Terzo Mondo e Comunità Mondiale representava a tentativa 
italiana de recuperação da hegemonia cultural europeia sobre os países do Terceiro 
Mundo (em especial a América Latina e a África) em detrimento do poderio cultural 
exercido pelos Estados Unidos da América (EUA) ou pela União das Repúblicas 
Socialistas Soviéticas (URSS)20. Neste sentido, o Congresso propiciou uma maior 
exposição do cinema latino-americano através de empreendimentos como a 
realização da Mesa-Redonda e da Mostra Informativa sobre o Cinema Novo Brasileiro, 
a formação de um grupo de trabalho reunido para a criação de uma revista chamada 
-manifesto do movimento 
cinema-
a ser publicado no Brasil, na Revista Civilização Brasileira, número 3, de julho de 1965, 
sob o título A Estética da Fome. 
Neste profícuo cenário artístico-cultural para a América Latina, Glauber Rocha, 
que desde a década de 1960 vinha teorizando acerca do Cinema Novo Brasileiro e 
Latino-Americano, árduo defensor de um cinema de autor, viu no Fórum Cinema 
Novista italiano postulados e perspectivas promissoras para se fazer cinema na 
filme O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo). 
 
 
 
 
20 Miguel Pereira aponta que na ata da fundação do Columbianum (1958) o padre jesuíta Angelo Arpa sublinhou as motivações de criação desta instituição cultural e fundamentou sua origem na çada pelo 
mundiais. Aos povos da Europa se coloca, de imediato, um dilema simples e grave: unir-se ou 
 
 
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Mais que um cineasta, Pier Paolo Pasolini foi um intelectual, um artista, que 
teve considerável protagonismo e influência em todos os conturbados 
acontecimentos históricos da Itália após a Segunda Guerra Mundial, tendo sido 
responsável por quebrar preconceitos e tabus, escandalizar a sociedade italiana, 
polemizar política e ideologicamente com os seus inimigos e até mesmo conseguir 
unir elementos opostos como o Comunismo, a Igreja Católica e a Homossexualidade. 
Graduado em Literatura pela Universidade de Bologna aos 20 anos, Pasolini trabalhou 
como professor, romancista e poeta, publicando poesias e romances, que o levaram a 
tornar-se um intelectual engajado. Quando resolveu se dedicar ao cinema, começou 
atuando como colaborador em vários roteiros cinematográficos dentre os quais, 
Noites de Cabíria (Le notti di Cabiria, dir. Frederico Fellini, 1957) antes de realizar a sua 
estrondosa estreia como diretor em Desajuste Social (Accatone, 1961), filme que cria 
uma mistura de esquerdismo marxista com cristianismo, aspectos que seriam 
recuperados em sua versão cinematográfica de O Evangelho Segundo São Mateus. 
Apesar de fundada no Neorrealismo Italiano, a produção cinematográfica de 
Pasolini é singular pelo fato de que ele apropriavaos princípios do realismo para 
expressar em seus filmes a sua própria realidade, permeada de ideologia, mitologia, 
metáforas e alegorias. Como em seus romances romanos, o realismo dos lugares, das 
personagens e das situações vai além dos limites de questões estilísticas, 
configurando-se em uma espécie de realismo transfigurado com elementos épicos e 
religiosos. Dessa forma, Pasolini mostrou-se particularmente interessado no 
enquadramento da cena mais do que na edição, por isso os seus filmes tendiam a 
focar na intensidade de expressão da imagem, num gesto ou olhar isolados do 
contexto, quase como se ele quisesse que esta fosse mais real do que a própria 
realidade. 
Pasolini nutria profunda rejeição pela sociedade burguesa, industrial e 
massificada, pontuando, assim, a sua inquietude frente à uniformização da sociedade 
italiana, que vinha perdendo sua cultura diversificada e ancestral. Segundo Alexandre 
A. Fernandez, doutor em Cinema pela Universidade de Paris III, Pasolini, ateu e 
marxista, profundamente incomodado com uma cultura de massa cada vez mais 
 
 
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crescente entre os anos 1950 e 1960 na Itália, traz uma contraposição com os 
elementos : 
É o caso de filmes como O Evangelho Segundo São Mateus (1964), Édipo Rei (1967) e Medéia (1969-1970), por exemplo, que apresentam mitos ligados ao sacrifício, ato indispensável à sacralização e ao renascimento. O sacrifício está intimamente relacionado com o cristianismo, que Pasolini absorveu da mãe, apesar de ter abraçado o marxismo ainda na juventude. Mesmo sendo ateu e anticlerical, o cineasta não ignorava que estava impregnado de dois mil anos de cristianismo21. Ainda para Fernandez, Pasolini recupera o mito, o irracional e o instintivo para 
lançar como dados de uma experiência coletiva ameaçada, indispensáveis para que a 
humanidade não perca suas referências22. Neste sentido, o cineasta reconhecia que a 
sua cultura histórica estava impregnada de dois mil anos de cristianismo, e que este 
ontologicamente demarcava a dinâmica sócio-histórica da Itália. Em uma entrevista, 
Pasolini discute essa questão: 
Nunca fui religioso, a menos que considere uma ridícula crise religiosa, aos 14 anos de idade, eu ainda era muito inocente. Daí, de um dia para o outro eu não acreditava mais. Nasci católico, por acaso, porque nasci na Itália, mas nunca fui particularmente católico e critiquei a Igreja como qualquer católico intelectual. Eu tive uma criação muito agnóstica. Isso me levou ao marxismo. Portanto, cheguei lá de modo mais óbvio e natural. A Igreja na Itália sempre foi um instrumento de poder. Mas não creio que um poder ideológico, em oposição ao poder prático que tenha influência sobre o camponês italiano. O italiano não é religioso. Não quero dizer pagão, o que seria uma generalização, mas ele é pré-católico, ele permaneceu no estado em que o catolicismo chegou, principalmente no sul. O catolicismo é uma crosta superficial sobre o povo italiano e acredito que basta um confronto forte para destruir estes ideais. Acho que o Evangelho é um dos livros de propaganda religiosa que foram escritos. Vai chegar o tempo em que o Evangelho vai ser linguisticamente incompreensível para a humanidade. O Evangelho cabe no seu tempo e no seu lugar histórico. A Igreja só sobreviverá se mudar continuamente em crise sua própria institucionalidade. Estou preparando agora um filme sobre São Paulo, no filme questionamos não a validade da Igreja, mas a sua existência moral. A Igreja, provavelmente, poderá continuar a séculos a vir ainda que criando assembleias clericais que continuamente se negam e se recriam. Minha crítica é contra a Igreja como poder, de como ela é hoje. Eu disse que quando era garoto, eu acreditava, eu rezava, mas não era nada sério. Acho que há algumas facetas no meu caráter que têm algo de uma qualidade mistificadora. Digo que isso faz parte do trauma que domina a minha existência. A natureza não me parece natural é um ato entre mim e a naturalidade da natureza. Filosoficamente, nada que eu já fiz foi mais 
 
21 FERNANDEZ, A Revista História Viva. Dez, 2003. 
22 Idem. 
 
 
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tendência de ver sempre algo mítico, sagrado e de uma qualidade épica, mesmo em objetos e eventos mais banais23. 
O filme O Evangelho Segundo São Mateus foi uma das primeiras produções 
cinematográficas de Pier Paolo Pasolini a ser influenciada livremente pelas tradições 
religiosas, marxistas e neorrealistas, apresentando-se como um filme épico bíblico 
bem diferente dos filmes hollywoodianos e europeus realizados até aquele momento. 
Em uma reportagem do cinejornal LUCE sobre a viagem de Pasolini a Israel para dar 
início ao seu projeto cinematográfico, o cineasta afirmou: 
extraordinária já escrita. Não será um filme para as massas, no senso comum da palavra 
porque a história não traz nada novo ao público, mas se me permite usar uma expressão 
24. 
No documentário cinematográfico Locações na Palestina para O Evangelho 
Segundo São Mateus (Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo secondo Matteo, dir. Pier 
Paolo Pasolini, 1965), sobre os preparativos para a realização do filme, o cineasta 
realiza uma viagem para a Palestina, com o Padre Don Andrea Carraro, com o objetivo 
de procurar cenários apropriados para as filmagens, na esperança de encontrar os 
lugares que lembrem o mundo bíblico arcaico. No entanto, ao longo do percurso pelos 
lugares da pregação de Cristo, reconhece neles os elementos típicos da campanha no 
sul da Itália, assim como fica surpreendido pela modernidade de algumas áreas de 
Israel, como Tel Aviv e a parte israelense de Jerusalém, em contraste com as aldeias 
arcaicas miseráveis do mundo árabe. Ele constata ainda que o mundo judaico é muito 
ocidentalizado e industrializado para servir como cenário das filmagens. Da mesma 
forma, ao entrar em contato próximo com a população local, ele percebe que seria 
impossível encontrar o elenco para atuar no filme, pois considera que os judeus 
possuem rostos muito modernos, enquanto os árabes da região apresentam rostos 
pré-cristãos. Próximo à cidade de Nazaré, Pasolini chega a entrevistar alguns 
moradores de uma Kibbutz, conhecendo a sua organização social e sistema de 
educacional. 
 
23 Entrevista do cineasta Pier Paolo Pasolini concedida para o documentário Pier Paolo Pasolini (dir. Carlo Hayman-Chaffey, Itália, 1971), vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. 
24 Entrevista do cineasta Pier Paolo Pasolini concedida para um cinejornal da LUCE na época do início das filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus, vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. 
 
 
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O cineasta Pier Paolo Pasolini e o ator Enrique Irazoqui durante as filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus. Antes de entrar em Jerusalém, o diretor afirma estar desapontado com a sua 
investigação e levanta a possibilidade de ter de recriar em outros lugares o cenário do 
seu filme, embora reconheça que a simplicidade e a pequenez dos lugares da 
pregação de Cristo eram, para ele, uma lição de vida. O documentário termina com 
uma visita a Jerusalém, cuja grandeza fascina Pasolini, e a Belém, com imagens da 
gruta onde, segundo a tradição, Cristo nasceu. 
Próximo ao final do documentário, o cineasta concede uma entrevista ao seu 
amigo e companheiro de viagem, o Padre Don Andrea Carraro, onde sintetiza a 
experiência de sua viagem à Israel e as mudanças de planos para as filmagens de O 
Evangelho Segundo São Mateus: 
PADREDON ANDREA CARRARO: Dr. Pasolini, à sua frente está a divisa entre Israel e Jordânia. Aqui você pode ver a área crucial dos últimos dias da paixão e vida de Jesus. O monte das Oliveiras, o vale Kidron, com o Getsêmani, a antiga fundação do templo, Sião. Agora que você visitou toda a Palestina e Israel, talvez vá a Jordânia. Qual é a sua impressão desta terra, destes lugares, onde Jesus andou e falou? PIER PAOLO PASOLINI: Se entendi corretamente esta cerca não apenas separa Israel da Jordânia, dividindo a nossa viagem em duas, mas ela também divide os estudos para nosso filme em dois. Vimos os lugares onde Jesus pregou e estamos prestes a ver os lugares de sua paixão. Já falamos muito sobre os lugares onde ele pregou. Não posso dizer que estou decepcionado, isto seria totalmente absurdo. Talvez de um ponto de vista prático, sim, esteja decepcionado. Não encontrei nada que possa usar no filme, nem na paisagem, nem nos personagens. A paisagem é composta por quatro colinas estéreis e os personagens são judeus com rostos muito modernos, que mostram toda a cultura moderna a partir do Romantismo. 
eu gostaria em meu filme. O que mais me intriga é esta paisagem, que Cristo tenha escolhido um lugar tão árido, tão estéril, sem nenhum conforto. Quatro colinas estéreis, a base de um lago, calor escaldante e nada mais. Tudo isto pode ser reconstruído em outro lugar. PADRE DON ANDREA CARRARO: Doutor Pasolini, você fala de decepção prática. Podemos achar que, na época de Jesus, a Galiléia era diferente, que a Palestina, antes das invasões árabes era mais enfeitada, mais rica. Quais as suas impressões espirituais da locação? 
 
 
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estética. Ao chegar aqui, quando experimentei uma decepção prática não teve importância. Mas, uma profunda revelação estética corresponde a esta decepção prática. E esta revelação estética é muito mais importante porque se desdobra num campo que pensei que fosse totalmente meu. Minha ideia de que quanto menor e mais humilde as coisas forem, mais profundas e bonitas elas são, foi abalada porque é mais verdadeira do que eu imaginava que fosse. Então, a ideia destas quatro colinas estéreis, de Cristo pregando se tornou uma ideia estética, e assim espiritual. [...] Jerusalém é um lugar como nenhum outro em Israel. É um mundo dentro de um mundo. E se antes as inspirações estilísticas do meu filme eram de uma certa natureza sobre a qual venho falando de modo confuso até agora, ver Jerusalém me sugeriu outras possibilidades graças a estes aspectos diferentes. Jerusalém é grandiosa, sem dúvida. Há algo historicamente sublime em sua aparência. E é evidente que quando Jerusalém aparece no filme, ela não pode evitar incutir no filme uma identidade estilística diferente. Jerusalém aparece na história contada por Mateus no momento em que Cristo está pregando. Até então solenemente religioso não por vontade direta de Cristo, nem pela dos apóstolos, mas devido a eventos objetivamente históricos se torna um fato político e público, assim como religioso. Obviamente, isto não vai ser dito explicitamente no filme, seria absurdo. Mas será dito implicitamente. E isto acontecerá através de uma mudança estilística na história. Onde antes tudo era puro, simples, articulado com absolutismo extremo, a chegada em Jerusalém marcará uma virada no filme. Haverá uma sensação de grandeza no filme. Foi assim que Cristo provavelmente entrou em Jerusalém25. 
As filmagens de O Evangelho Segundo São Mateus, uma produção franco-
italiana26, acabaram sendo realizadas principalmente nas ruínas de Matera, ao sul da 
Itália, em 1964. Pasolini buscou utilizar-se de cenários mínimos e de enquadramentos 
simples para criar um retrato convincente Palestina27 da Era Bíblica. Herdeiro da 
tradição do Neorrealismo Italiano, Pasolini escalou atores não-profissionais, figurantes 
escolhidos entre a população local de camponeses e alguns amigos pessoais para 
atuarem no filme. Para o papel de Jesus Cristo seria escolhido inicialmente um ator 
 
25 Entrevista do cineasta Pier Paolo Pasolini ao Padre Don Andrea Carraro concedida para o documentário Locações na Palestina para o Evangelho Segundo São Mateus (Sopralluoghi in Palestina per Il Vangelo secondo Matteo, dir. Pier Paolo Pasolini, Itália, 1965), vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. 
26 Produção: Arco Film (Roma) / Lux Compagnie Cinématographique de France (Paris). Distribuição: Titanus Distribuzione S.p.A. (Itália). 
27 Também denominada especialmente por historiadores brasileiros como Bacia do Mediterrâneo. No entanto, neste artigo prefere-se utilizar o termo Palestina para designar esta região em que viveu Jesus, por concordarmos com as observações feitas pelo historiador Reza Aslan, que afirma: Embora a Palestina fosse a designação romana não oficial para a terra que engloba o território moderno de Israel, Palestina, Jordânia, Síria e Líbano durante a vida de Jesus, não foi senão até os romanos sufocarem a revolta de Bar Kochba em meados do século II que a região foi oficialmente nomeada Síria Palestina. No -se tão comum nas discussões acadêmicas sobre a era de Jesus que não vejo nenhuma razão para não usá- . Cf. ASLAN, Reza. Zelota: a vida e a época de Jesus de Nazaré. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Notas. p.234. 
 
 
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alemão, mas o cineasta acabou selecionado Enrique Irazoqui, um estudante espanhol 
de 19 anos, enquanto que para o papel de Maria na fase idosa, o cineasta escalou a sua 
própria mãe, Susanna Pasolini. 
 
Cartazes do filme O Evangelho Segundo São Mateus (Il Vangelo Secondo Matteo, 1964) 
O filme é uma adaptação do texto bíblico de Mateus, considerado o mais 
realista de todos os Evangelhos de Cristo28. Narrando desde o nascimento de Jesus de 
 
28 -são escritos que contam a boa- distintas, muito tempo depois da crucificação de Jesus Cristo. Mas antes de ser um livro, o Evangelho foi a palavra pregada: antes de ser lido, ele foi ouvido. Como o Senhor Jesus tinha falado, assim falaram os apóstolos depois de sua morte. Mas eles não se contentaram em transmitir sua doutrina: acrescentaram-lhe um testemunho sobre sua vida e suas ações, como descreve Lucas em Atos dos Apóstolos: de Jesus, desde o princípio até o dia em que, depois de ter dado pelo Espírito Santo suas instruções aos apóstolos que escolhera, foi arrebatado (ao céu). E a eles se manifestou vivo depois de sua Paixão, com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta diase falando d (At-1:1-3.). Pericopes retiradas de: Bíblia Sagrada. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica). São Paulo: Editora Ave-Maria, 2013. p.1413.O ensinamento dos apóstolos se inseria no quadro seguinte: 1.a pregação de João Batista; 2.a missão de Jesus na Galiléia; 3.a missão de Jesus na Judeia e em Jerusalém; 4.sua paixão, sua morte e sua ressurreição. É esse o quadro em que se amolda a narrativa dos três primeiros evangelistas. Segundo os historiadores André Leonardo Chevitarese e Pedro Paulo A. Funari: mais curto, o de Marcos, escrito a partir de 70 d.C., é considerado o testemunho mais fidedigno. Marcos, Mateus e Lucas são são paralelos e seguem fontes comuns. O Evangelho de João segue caminhos próprios e foi escrito mais s primeiros seguidores de Jesus e deve ter sido escrito entre 64 e 85. As cartas ou epístolas constituem um gênero literário próprio, referente à correspondência entre os primeiros cristãos. As cartas de Paulo são os mais antigos documentos que sobreviveram. Elas foram escritas, provavelmente, entre os anos 40 e 60, sendo anteriores ao Evangelho de Marcos. A carta mais antiga é a Primeira aos Tessalonicenses,escrita entre 50 e 51, vinte anos após a morte de Jesus. Não há evidências de que Paulo tenha conhecido pessoalmente Jesus. Por isso, pouco nos fala sobre a vida do nazareno. Por fim, o livro do Apocalipse consiste em uma visão profética do futuro e 
 
 
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Nazaré até a sua morte e ressurreição, Pasolini constrói uma narrativa austera e 
desmistificada da figura de Cristo, apresentando-o não como Deus, mas como 
homem revolucionário, envolvido de corpo e alma nas questões de seu tempo e sua 
sociedade29. 
A narrativa cinematográfica pasoliniana da vida de Jesus Cristo em O 
Evangelho Segundo São Mateus é distinta da clássica visão religiosa e 
cinematográfica sobre o nazareno, que era produzida até então, pois o cineasta não 
acreditava que Jesus era o filho de Deus. Além disso, o filme reinventa a figura mítica 
do Cristo partindo da reprodução fiel de algumas passagens do texto bíblico: todos os 
diálogos foram extraídos diretamente de O Evangelho Segundo Mateus30, pois o 
cineasta considerava que Mateus era o mais mundano e revolucionário dos 
evangelistas, assim como era o mais próximo a entender os problemas da época de 
Cristo. -
, advertia Pasolini. 
 
tampouco se volta para o Jesus da Galileia. Portanto, as principais fontes sobre a vida de Jesus são os E CHEVITARESE, André Leonardo & FUNARI, Pedro Paulo. Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução. Rio de Janeiro: Kline, 2012.p.11. 
29 Como o título sugere, todo o filme foi construído a partir dos relatos do Evangelho de Mateus (primeiro Evangelho do Novo Testamento, de acordo com a ordem do Cânone bíblico). Como é possível constatar a partir da leitura, e como afirmam teólogos e historiadores da religião, o Evangelho de Mateus, dentro os quatro evangelhos (sendo os outros três: os de Marcos, Lucas e João) é o que 
do Cristo ressurreto Deus de João. Dadas essas características, o Evangelho de Mateus apresentava o conteúdo narrativo mais adequado à proposta do filme de Pasolini. Ver: CHEVITARESE, André Leonardo. Cristianismos. Questões e debates metodológicos. Rio de Janeiro: Kliné, 2011; CHEVITARESE, André Leonardo e FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma Brevíssima Introdução. Rio de Janeiro: Kliné, 2012. 
30 Se os Evangelhos Sinóticos se assemelham a ponto de apresentarem às vezes uma reprodução textual de certas narrativas, nem por isso deixam de ter entre si grandes diferenças que destacam a originalidade de seus autores. Embora fosse judeu, Mateus, conhecido como Levi nos Evangelhos de Marcos e de Lucas, foi coletor de impostos do governo romano, uma atividade lucrativa, porém desprezível entre o povo hebreu. Mateus deixou seu emprego para seguir a Jesus (Mt. 9.9-13) e foi um dos que acompanharam Jesus todo o tempo, começando desde o batismo de João até o dia em da ressurreição de Cristo (At.1:21-22). O Evangelho Segundo Mateus foi escritona Palestina em aramaico (dialeto do hebraico), provavelmente, entre 60 a 65 d.C., embora alguns tenham sugerido uma data nos anos 50 d.C. Esse texto, não conservado, foi depressa traduzido para o grego, idioma que era comum ao mundo e por meio do qual o conhecimento de Cristo seria transmitido mais efetivamente a todas as nações da Terra. Mateus escreveu especialmente aos leitores hebreus. Seu principal objetivo era provar que Jesus é o Messias, o Salvador e o Rei eterno. Ela faz isso ao mostrar como Jesus cumpriu as profecias do Antigo Testamento. Seu Evangelho inclui 53 citações e 76 referências ao Antigo Testamento mais do que qualquer outro escritor do Novo Testamento. Informações extraídas de: Bíblia Sagrada. Tradução dos originais grego, hebraico e aramaico mediante a versão dos Monges Beneditinos de Maredsous (Bélgica). São Paulo: Editora Ave-Maria, 2013. pp.43-44; e Bíblia de Estudo Matthew Henry (The Matthew Henry Bible). Rio de Janeiro: Ed. Central Gospel, 2014.p.1393. 
 
 
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 Vida e Paixão de Jesus Cristo: Cenas do filme O Evangelho Segundo São Mateus (1964) 
O Cristo pasoliniano é um intelectual num mundo de pobres revolucionários 
em potencial. Em vez do cordato pastor, Pasolini apresenta Jesus Cristo como 
um homem pequeno, grave, que vive em movimento permanente, lançando imprecações aos fariseus. Severo e inflexível, diz que não veio trazer a paz, mas a espada. A força dramática do personagem e de seu verbo é enfatizada pelos enquadramentos que destacam o rosto do ator, o desconhecido Enrique Irazoqui...31. 
 
31 FERNANDEZ, Op.cit., p.10. 
 
 
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Ao apresentar Jesus como um líder que reivindica e se enfurece, que não é 
pacífico e amoroso, e cujo discurso não é indulgente ou clemente, a intenção de 
Pasolini era mostrar Cristo como um homem de seu tempo32. Neste aspecto, o 
cineasta italiano seleciona os elementos da narrativa bíblica que corroboram o seu 
discurso político-ideológico no filme, excluindo as passagens de amor, compaixão e 
auxílio ao próximo, apenas encenando as passagens de sermões e parábolas aos 
fariseus. Da mesma forma, os discípulos de Jesus Cristo são retratados como um 
grupo de jovens com consciência social, que trabalham por uma causa revolucionária. 
A juventude e a inexperiência dos atores revela a natureza tênue dos primórdios do 
movimento cristão, cheio de incertezas e ainda por ganhar forma. É como se Pasolini 
quisesse apagar 2000 anos de dogma e tradição para examinar os Evangelhos de um 
novo ângulo. Sobre isso, no documentário A Vida de Pasolini (dir.Ivo Barnabò Micheli, 
1995), Pasolini afirmou: 
 Minha visão do mundo é sempre épico-religiosa no final. Logo, mesmo no caso dos personagens mais miseráveis, aqueles sem nenhuma consciência histórica e me refiro especificamente à consciência burguesa, estes elementos épico-religiosos têm um papel muito importante. A pobreza sempre foi intrinsecamente épica. E os elementos que existem na psicologia de um infeliz, um pobre, um subproletário, são, de certo modo, sempre puros, sem autoconsciência e logo, essenciais33. O filme é, em suma, um claro manifesto contra uma nação com uma profunda 
clivagem sócio-econômica, é um discurso contra o poder político da elite italiana. Pier 
Paolo Pasolini busca ainda inspiração em outras manifestações artístico-culturais para 
conseguir apresentar uma aura de espiritualidade para essa histórica ser contada e 
interpretada de forma a manter a simplicidade original da vida de Jesus Cristo. Para 
alcançar esse efeito, o filme possui poucos diálogos entre os personagens, que são 
retratados através dos recursos cinematográficos dos close-ups icônicos que lembram 
as pinturas religiosas medievais. A trilha sonora é composta por missas dos 
compositores de música clássica Johann Sebastian Bach e Wolfgang Amadeus 
Mozart, mescladas com blues. Além disso, a trilha sonora do filme tornou-se um 
 
32 Para compreender como essa visão de um Cristo Revolucionário se constrói nos estudos acerca do Jesus Histórico, ver: CROSSAN, J. D. Jesus. Uma Biografia Revolucionária. Rio de Janeiro: Imago, 1995; e MEIER, J. P. Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus Histórico. Rio de Janeiro: Imago, 1992. 
33 Declaração do cineasta Pier Paolo Pasolini apresentada no documentário A Vida de Pasolini (dir. Ivo Barnabò, 1995), vídeo extra presente na edição definitiva em dvd do filme O Evangelho Segundo São Mateus. Versátil Home Video, 2014. 
 
 
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inteligenteartifício cinematográfico para auxiliar a interpretação e a mise-en-scène 
realizadas por um elenco inexperiente, que, por vezes, parece ter dificuldades para 
expressar suas emoções na tela de cinema. Por tudo isso, Pasolini conseguiu realizar 
um filme marcante e inovador a partir do Evangelho Segundo Mateus, e ao mesmo 
tempo fazer sem assaltar visceral e intelectualmente o espectador uma crítica 
marxista à cristandade. 
 
 
 
O cineasta Glauber Rocha, baiano de Vitória da Conquista, passou a 
adolescência em Salvador, onde começou a fazer cinema aos 13 anos, como crítico de 
um programa da Rádio Sociedade da Bahia, Cinema em Close-up. Três anos depois, 
fundou a sociedade Cooperativa de Cultura Cinematográfica Yemanjá, e tentou, no 
ano seguinte, produzir o curta-metragem Senhor dos Navegantes. Depois de uma 
viagem ao Rio de Janeiro, onde conheceu o cineasta Nelson Pereira dos Santos, que 
então realizava Rio, Zona Norte (1957), retornou a Salvador, em 1958, para dedicar-se 
a uma intensa atividade jornalística e dirigir o seu primeiro curta-metragem O Pátio 
(1959). Pouco depois iniciou Cruz na Praça, seu segundo curta-metragem, não 
finalizado. Em seguida atuou como produtor executivo de A Grande Feira (1960), de 
Roberto Pires, e realizou as filmagens de Barravento, projeto escrito e iniciado por Luís 
Paulino dos Santos, que se afastou da realização depois de alguns dias de filmagem. 
Mudou-se para o Rio de Janeiro, tornou-se jornalista e escreveu o livro Revisão Crítica 
do Cinema Brasileiro (1963), na mesma época em que assinou o roteiro e dirigiu Deus e 
o Diabo na Terra do Sol (1964), um dos filmes mais representativos do Cinema Novo 
Brasileiro. Realizou os curtas-metragens documentários Amazonas, Amazonas (1966) 
e Maranhão 66 (1966). Repetiu o feito de produzir outra obra-prima do Cinema Novo 
brasileiro com Terra em Transe (1967) um marco poético e estético para todo o 
Cinema Novo Latino-americano e, perfeitamente integrado ao Rio de Janeiro, 
dividiu com Vinícius de Moraes, Leon Hirszhman e Eduardo Coutinho o roteiro de 
Garota de Ipanema (1967). Ainda no Rio de Janeiro, Glauber Rocha filmou as 
manifestações populares contra a ditadura militar em 1968. Em 1969, fez o roteiro, o 
argumento, a cenografia e dirigiu O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro e, no 
 
 
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ano seguinte, saiu do Brasil. Viveu um ano em Cuba, onde realizou o filme Historia do 
Brazyl (1972-1974), transferindo-se depois para a Itália, onde realizou diversos 
trabalhos, incluindo longas-metragens em Super-8 como Mossa (1971), Super Paloma 
(1972) e A Viagem (1974), com Juliet Berto. Em Brazzaville, África, filmou Der Leone 
Has Sept Cabeças/O Leão de Sete Cabeças (1970); em 1970 fez Cabeças Cortadas, na 
Espanha; em 1975 estava na Itália para dirigir Claro, levando pelo mundo suas ideias e 
câmera. Ao regressar ao Brasil produziu dois curtas-metragens documentários Di 
Cavalcanti (1977) e Jorjamado no Cinema (1977). Glauber produziu ainda entre 1979 e 
1980 um quadro semanal para o programa de televisão Abertura, e muitos textos: 
Poemas (em 1989 a editora Alhambra publicou alguns Poemas eskolhydos de Glauber 
Rocha), uma peça de teatro sobre João Goulart, uma série de romances, dos quais 
apenas um chegou a ser publicado, Riverão Sussuarana (1978), e principalmente uma 
grande quantidade de críticas e ensaios teóricos sobre cinema, dentre os quais 
-manifestos 
mais famosos e representativos, que foram publicados na coletânea Revolução do 
Cinema Novo (1981). Após ter uma série de roteiros e projetos cinematográficos não 
realizados, tais como Ciro, Lua do Oriente; Alexandre, o Sol do Ocidente; O Destino da 
Humanidade; e O Testamento da Rainha Louca, Glauber Rocha recuperou a ideia de 
seu roteiro América Nuestra para realizar o seu testamento cinematográfico em A 
Idade da Terra (1980)34. 
 O projeto cinematográfico de A Idade da Terra tem suas origens em 1965 com 
o roteiro nunca filmado de America Nuestra35. Glauber Rocha começa o projeto 
 
34 As informações biográficas foram extraídas do catálogo: Glauber Rocha: Um Leão ao Meio-Dia. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 1994. p.15. 
35 Glauber Rocha começou a redigir o roteiro de América Nuestra logo depois de terminar as filmagens de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964). Na versão original o título constante do roteiro 
-se Juan Morales. A primeira versão fora escrita entre janeiro de 1965 e abril de 1966, durante as suas estadias em Roma e no Rio de Janeiro. E foi em Roma, que, partindo de América Nuestra, Glauber Rocha acabou desenvolvendo a ideia do filme Terra em Transe (o roteiro de Terra em Transe aparece, precisamente, depois da polêmica com seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, tendo 700 páginas, que mais convergiam para uma teoria histórica, política e cinematográfica do que para a estória propriamente.). O ponto de partida dessa trajetória era a matriz reflexiva e histórica de Deus e o Diabo na terra do Sol, pois, segundo Glauber Rocha: para um mar libertador. Esse mar banhava uma nova terra, esta terra estava em crise, dividida, estraçalhada 
 
 
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logo depois de escrever o manifesto Eztétyka da Fome, e deste roteiro que pretendia 
fazer um filme épico e didático, que contasse os grandes dilemas políticos, sociais e 
culturais enfrentados pelos países latino-americanos saíram quase todos os filmes 
subsequentes, a começar por Terra em Transe, de 1967. Em uma carta a Alfredo 
Guevara, datada de 1967, Glauber falou sobre o desejo de realizar America Nuestra: 
Para os cineastas é necessário fazer filmes na América Latina. Por isto, sobretudo por causa do meu próximo filme, America Nuestra, precisarei de hile, Argentina e Uruguay. Agora já tenho a ideia do filme mais desenvolvida e devo fazê-lo em co-produção com Achugar. É um filme muito ambicioso, onde quero mostrar o processo de destruição e libertação da América Latina, desde a destruição dos Incas pelos conquistadores, a influência da igreja, a criação dos latifúndios e da opressão, a chantagem da política civil e por fim as guerrilhas como caminho de liberação. Deve ser um filme épico e violento36. 
No entanto, ao contrário da ideia inicial, a versão final de A Idade da Terra 
tornou-se um filme que não possui um enredo narrativo clássico, inclusive pelo fato de 
ter sido idealizado para ter os seus rolos exibidos sem uma sequência pré-ordenada. 
Contendo 160 minutos de duração, o filme reúne 16 sequências autônomas, sem a 
existência de qualquer vinculo narrativo entre elas. O filme é, na realidade, uma 
constante desconstrução no plano estético, poético, linguístico e, sobretudo, 
histórico37. O sentido da obra se dá a partir de associação das cores, dos sons e dos 
 
 às portas da falência, os escritores mudos, o povo . O filme que Glauber começa a filmar ainda em 1966, Terra em Transe, é na realidade uma fusão dos dois roteiros: A ideia do primeiro situar a ação num país imaginário, terceiro mundo subdesenvolvido e discutir Revista Artes, de 1967, Glauber Rocha afirma: eressava o problema geral do transe latino- .) se funde a proposta do segundo que deveria, sobretudo, se passar no Brasil, entre o mar do Rio e o sertão do Nordeste. Cf. informações extraídas de: AVELLAR, José Carlos. A Ponte Clandestina: Birri, Glauber, Solanas, Getino, García Espinosa, Sanjinés, Alea Teorias de cinema na América Latina. (Rio de Janeiro / São Paulo: Ed.34 / Edusp, 1995. p.9.); SANCHES, Pedro Alexandre. Terra em Transe e Panis et Circensis. In: Tropicalismo: decadência bonita do samba. (São Paulo: Boitempo,2000.); e PEREIRA, Wagner Pinheiro & BRANDÃO, Quezia. As memórias do transe latino-americano: os bastidores político-culturais dos filmes Terra em Transe (1967) e Memórias del Subdesarrollo (1968). In: ALVES, Gracilda et alli (Org.). A História que ensinamos e o Ensino da História. Rio de Janeiro: Ed. Autografia, 2015. pp.138-139. 
36 ROCHA, Glauber. Cartas ao Mundo (Organização: Ivana Bentes). São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 292. 
37 No Dicionário de Cinema Brasileiro, de Mauro Baladi, encontramos a seguinte tentativa de redigir uma -carnavelesco-político. No Rio de Janeiro, em Brasília e na Bahia, quatro derivações de Cristo (um negro em luta pela liberdade, um índio acaboclado, um guerrilheiro revolucionário e um político populista), cavaleiros do apocalipse da hecatombe tropical, lutam contra o poderoso Brahms, uma encarnação do estrangeiro explorador de nossas riquezas e misérias. Em . Cf. BALADI, Mauro. Dicionário de 
 
 
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cenários arquetípicos. O cineasta afirmou em 1980, numa entrevista ao jornal O 
Estado de S. Paulo, que: 
A Idade da Terra é a desintegração da sequência narrativa sem a perda do discurso infra-estrutural que vai materializar os signos mais representativos do Terceiro Mundo, ou seja: o imperialismo, as forças negras, os índios massacrados, o catolicismo popular, o militarismo revolucionário, o terrorismo urbano, a prostituição da alta burguesia, a rebelião das mulheres, as prostitutas que se transformam em santas, as santas em revolucionárias38. 
Em A Idade da Terra, Glauber Rocha procurou realizar uma adaptação livre de 
passagens do Novo Testamento, em especial do Evangelho Segundo João e do 
Apocalipse, leituras que o cineasta indicou aos seus atores para poderem personificar, 
de maneira bem improvisada, as figuras de quatro Cristos no Terceiro Mundo. 
Neste sentido, podemos perceber como a religião marcou profundamente a formação 
de Glauber Rocha, conforme nos relata a biografia sobre o cineasta produzida por 
João Carlos Teixeira Gomes: 
Glauber foi criado com rigor dentro dos princípios presbiterianos, tendo frequentado regularmente com Dona Lúcia e os irmãos a igreja Batista Sião, no Campo Grande, em Salvador, onde, cantando no coro, se fez intérprete de hinos religiosos. [...] Dos 12 aos 14 anos de idade, Glauber aprofundou conhecimentos sobre assuntos bíblicos, integrando a Sociedade Evangélica dos Moços do Brasil, onde exercia um papel de liderança, que sempre lhe foi inerente, e já demonstrava vocação política. [...] Em síntese, duas inclinações se conciliaram prematuramente na personalidade de Glauber, com projeções decisivas sobre o seu futuro: a religiosa (ou, mais propriamente, a bíblica, como adiante veremos) e a política, ambas visceralmente presentes em sua obra de cineasta. Na Bíblia, um dos capítulos que mais o comoviam era a narrativa da paixão de Cristo. E, quando menino, costumava escrever breves textos de conteúdo político, refletindo sobre as distinções entre pobreza e riqueza39. Em entrevista concedida à Tribuna da Imprensa (16 de junho de 1978) e 
posteriormente à revista Manchete, Glauber Rocha falou sobre a sua formação 
religiosa e a importância da religião em sua produção artística: 
 
Cinema Brasileiro. Filmes de longa-metragem produzidos entre 1909 e 2012. São Paulo: Martins Fontes, 2013.p.816. 
38 ROCHA, Glauber. Entrevista a Reali Júnior, O Estado de S. Paulo (1980). In: ROCHA, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2004.pp. 497-498. 
39 GOMES, João Carlos Teixeira. Glauber Rocha, esse vulcão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. pp.10 e 12. 
 
 
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Estudei para ser pastor protestante até os 13 anos de idade. Sei a Bíblia de cor. Li os Cânticos de Salomão e os Salmos de Davi, e trago a angústia da alma do judeu. Minha verdadeira origem é judaica. Sou cristão-novo40. Eu nasci lendo a Bíblia. Porque sou protestante, sou judeu, descendente direto de Davi. Judeu, cristão-novo, protestante. Nasci em Vitória da Conquista, na Bahia. Aliás, o meu livro Riverão Sussuarana trata disso. Nele eu mostro as minhas origens. É por isso que sou um sujeito diferente dentro da sociedade brasileira. Não fui criado pelos padres nem pelos catecismos. Fui criado pela Bíblia. Sobretudo pelo Velho Testamento, que considero mais forte que o Novo41. 
Em determinada sequência do filme A Idade da Terra, mais especificamente na 
cena do Cristo negro de Antônio Pitanga, que grita a plenos pulmões em direção à 
Brasília ao lado de uma mulher negra que o ajuda a 
segurar um quadro do Cristo Nazareno42 detalhe emocional, desafiador, profético 
dentro do discurso engendrado pela cena , Glauber Rocha, em voz-over, explicita a 
proposta do filme: 
No dia em que Pasolini, o grande poeta italiano, foi assassinado, eu pensei em filmar a Vida de Cristo no Terceiro Mundo. Pasolini filmou a Vida de Cristo na mesma época em que João XXIII quebrava o imobilismo ideológico da Igreja Católica em relação aos problemas dos povos subdesenvolvidos do Terceiro Mundo, e também em relação à classe operária europeia. Foi o renascimento, a ressurreição de um Cristo que não era adorado na cruz, mas um Cristo que era venerado, vivido, revolucionado no êxtase da ressurreição. Sobre o cadáver de Pasolini eu pensava que o Cristo era um fenômeno novo, primitivo, numa civilização muito primitiva, muito nova. [...] São quinhentos anos de civilização branca, portuguesa, europeia misturada com índios e negros. [...] Aqui, por exemplo, em Brasília, este palco fantástico no coração do planalto brasileiro, fonte, irradiação, luz do Terceiro Mundo, uma metáfora que não se realiza na História, mas preenche um sentimento de grandeza: A visão do paraíso43. 
 
40 TRIBUNA DA IMPRESSA, 16.06.1978. (Lurdes Gonçalves). Apud. REZENDE, Sidney (Org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986.p.112; Excerto também citado em: GOMES, Op.cit., p.12. 
41 MANCHETE, julho de 1978 (Sheila Dunaevits). Apud. REZENDE, Sidney (Org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986. p.112; Excerto também citado em: GOMES, Op.cit., p.13. 
42 A Idade da Terra. ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceiro Mundo. Organizado por Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985. p.460. 
43 Esta passagem por ser também encontrada em Roteiros do Terceiro Mundo. Ver: ROCHA, Glauber. Roteiros do Terceiro Mundo. Organizado por Orlando Senna. Rio de Janeiro: Alhambra/Embrafilme, 1985. p.461.Glauber Rocha afirmou que a escolha por Brasília era justificada pela seguinte razão: Brasília é a representação do El Dorado (País fictício onde é ambientado o filme Terra em Transe), e o El Dorado é a América Latina, é seu estigma histórico. Ainda segundo Glauber Rocha Brasília era o signo de do colonialismo. O despertar político e a consciência do subdesenvolvimento datam da construção de Brasília. Isto é bastante contraditório porque Brasília era uma espécie de Eldorado, a possibilidade que os . Cf. ROCHA, Glauber. Reflexões sobre o novo 
 
 
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Glauber Rocha parte de Pasolini. A Idade da Terra é uma resposta não direta ao 
filme O Evangelho Segundo São Mateus (1964). Não apenas interessado pela 
abordagem social e política que tem o Cristo do filme de Pasolini, mas instigado por 
usar a figura de Cristo como revolucionário, como alegoria44 escatológica da Guerra 
de Liberação latino-americana, desejando filmar sua trajetória no Terceiro Mundo. 
Toda a carga ideológica que pesa sobre a imagem crística do filmede Pasolini inspira 
Glauber Rocha a realizar um filme que recuperasse essa narrativa mítica, irracional, 
religiosa. A diferença de Glauber para Pasolini é que o Cristo de O Evangelho Segundo 
São Mateus veio para reafirmar e recuperar referências culturais, associando valores 
milenares com 
Rocha utiliza-se dessa narrativa/imagem como uma alegoria para dar aos povos do 
Terceiro Mundo, à América Latina, um marco zero, concretizando, assim, um discurso 
revolucionário e de descolonização cultural. Afinal, segundo Glauber Rocha: 
Toda a representação de Cristo foi feita pela estética medieval renascentista europeia. Meu Cristo é materializado dentro do complexo barroco brasileiro, da fusão das mitologias católicas, negras e Índias45. 
O interesse de Glauber Rocha pelo filme de Pasolini fica exposto em um de 
seus textos sobre cinema. Glauber está transpondo a alegoria crística de Pasolini pelo 
discurso deste acerca do Terceiro Mundo. A ideologia predominante na construção de 
O Evangelho Segundo São Mateus é o que motiva Glauber a apropriar elementos em A 
Idade da Terra. 
 
tempo no cinema. Revista Civilização Brasileira, nº3, Rio de Janeiro, set.1978. Apud. VENTURA, Tereza. A Poética Polytica de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Funarte, 2000.pp.382-383. 
44 Aqui entendemos por alegoria as definições dadas por Ismail Xavier em suas obras sobre arte, modernidade e cinema (sobretudo o cinema de Brasileiro). Xavier comenta: aparece muito no discurso sobre arte contemporânea e há toda uma discussão em torno de alguns momentos da produção cultural, no Brasil, onde se utiliza essa noção para caracterizar determinadas estratégias dos artistas formas de construção e de montagem e determinadas relações entre obra e . XAVIER, Ismail. Alegoria, Modernidade, Nacionalismo. Revista Novos Rumos. Instituto Astrojildo Pereira. São Paulo: Ed. Novos Rumos. Ano 5 nº16 1900. p.51; XAVIER, Ismail. Alegorias do Subdesenvolvimento: cinema novo, tropicalismo, cinema marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012. 
45 ROCHA, Glauber. Manchete. Rio de Janeiro, maio de 1978. Apud. VENTURA, Op.cit., p.385. 
 
 
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Na passagem do texto a seguir é possível ver a aproximação de Glauber com o 
ideário de Pasolini, e a disposição de elementos narrativos crísticos de O Evangelho 
Segundo São Mateus que estão presentes em A Idade da Terra: 
Pier Paolo Pasolini em 1964, filmou Il Vangelo Secondo Matteo. Versão moderna da vida de Cristo, análise histórica de fenômeno judaico e tentativa de nova moral revolucionária, o filme de Pasolini foi atacado por setores da crítica francesa. Pasolini respondeu e deu a chave do problema: ca francesa recusa admitir a existência de um subproletariado em evolução nos países subdesenvolvidos, recusa compreender os valores destas novas forças. A cultura francesa caiu num racionalismo que Sartre já denunciou como aristocrático e decadente . Passolini deixou claro que a crise da consciência do cinema moderno é o reflexo da crise da Europa Ocidental capitalista. Seu Cristo que prega a intolerância antes da piedade, que prega a violência antes da complacência, que se revolta contra o Pai quando, na Cruz, se vê desamparado é o porta-voz da nova moral: a moral do homem subdesenvolvido consciente. O Cristo de Pasolini é um estigma contra a alienação: alienação é a piedade, a complacência, a hipocrisia, o tabu sexual, o servilismo, todos comportamentos que caracterizam o homem subdesenvolvido, ou melhor, o homem colonizado. O Cristo de Pasolini é um revolucionário que sucede ao Cristo anárquico de Buñuel46. Em outro capítulo do livro O Século do Cinema, Glauber Rocha continua 
expondo a importância do filme O Evangelho Segundo São Mateus no cenário 
cinematográfico mundial da época: 
A primeira novidade desta vida de Cristo era o contexto: a Judéia era um país miserável, colônia romana. Nada do luxo visto nos filmes de Cecil B. De Mille. Cristo era o homem do povo, vestido pobremente. Os governantes hebreus a serviço do imperialismo romano. Cristo surgia subversivo, capaz de atirar o povo contra os vendilhões da pátria. Há uma trama que mistura moralismo com medo político Cristo é traído por um dos seus, crucificado e na hora da morte grita desesperado: Pai, por que me desamparastes? O Cristo de Pasolini é forte, viril, sem complacência para com os opressores e canalhas. Cristo é violentíssimo. Na pregação usa tom incisivo de agitador social. O texto de São Mateus, usado na íntegra, ganha nova dimensão: este Cristo desmitificado e revolucionário parece ter saído das encíclicas de João XXIII. A nova Igreja o premia. A esquerda ortodoxa acusa Pasolini de fazer aliança socialista-cristã. Pasolini não reza pela cartilha do Kremlin, embora se professe marxista convicto e intransigente47. 
 
46 ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2006. p.188. 
47 ROCHA, 2006, p.278. 
 
 
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 Cartaz do filme A Idade da Terra (1980) e o cineasta Glauber Rocha preparando a encenação do - 
Terceiro Mundo, que Glauber vai se inspirar para produzir A Idade da Terra: 
No meu último filme, A Idade da Terra (1978-1980), falo de Pasolini, digo que desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão dum Cristo Terceiro-Mundista que não teria nada a ver com o Cristo pasoliniano. Pasolini procurava no Terceiro Mundo um álibi para a sua perversão. Para mim, o conceito de subversão é muito diferente do conceito de perversão, porque a perversão culturalmente constituída pelos intelectuais sadianos não é a minha. Para mim a subversão é inverter verdadeiramente essa perversão por um fluxo amoroso que não exclui a homossexualidade48. 
Em entrevista para o jornalista Luís Fernando Silva Pinto, da TV Globo, no 
Festival de Veneza de 1980, Glauber Rocha faz a seguinte afirmação sobre A Idade da 
Terra: 
[...] Disseram que o filme era louco, incompreensível que eu tinha deixado de ser marxista para virar cristão. E que a minha visão do mundo já não estava mais comprometida: disseram que eu tinha traído os princípios revolucionários. Quer dizer, me atacaram ideologicamente querendo me imputar responsabilidades políticas, e foram incapazes de entender o sentido e a novidade formal do filme porque são ignorantes. [...] Essa concepção de Cristo do Terceiro Mundo já foi uma coisa que a impressa criou aqui. A jogada é a seguinte: Eu mostro no filme que o mito cristão, que é o mito solar, vem da Ásia, vem da África, vem do Oriente Médio e que a Europa sequestrou a verdadeira identidade de Cristo, entende, importando um Deus. Então, eu disse que como o filme mostra um Cristo-Negro, interpretado por Antônio Pitanga; um Cristo-Pescador e místico, interpretado pelo Jece Valadão; mostra o Cristo que é o Conquistador português, o São Sebastião, o Dom Sebastião, interpretado por Tarcísio Meira e mostra o Cristo Guerreiro-Ogum de Lampião, interpretado pelo Geraldo Del Rey. Quer dizer, os quatro Cavaleiros do 
 
48 Idem, pp.285-286. 
 
 
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Apocalipse que ressuscitam o Cristo no Terceiro Mundo, recontando o mito através dos quatro evangelistas: Mateus, Marcos, Lucas e João49 e os quatro cavaleiros do Apocalipse cuja identidade eu revelo no filme quase como se fosse um Terceiro Testamento. E o filme assume um tom profético, realmente bíblico e religioso. Não é um filme comercial, não é um filme político, não é um filme de western,

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