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44.1 O que é a não violência “– Pode atirar, ele gritava, me mate pelas costas. Dei o primeiro tiro, Suel voou no chão, deve ter morrido na hora. A namorada berrava e tentava arrastar o negro para o carro. Dei outro tiro sem mirar e acertei na cabeça de Suel. Foi assim, as coisas aconteceram desse jeito. Ele foi a primeira pessoa que matei. Até isso acontecer, eu era apenas um garoto que vendia carros usados e torcia para o São Paulo Futebol Clube.1 (...) Nascimento revelou que assassinou o garoto com dois golpes, além de pisar o pescoço dele. Depois enterrou a criança num canavial. Nascimento disse que estava bêbado.”2 Qual o elemento comum destas duas ações? A ocorrência do dano, da des- truição. Um outro elemento comum às ações: são voluntárias, existe a intenção de destruir. Estes dois elementos, ocorrência de dano e intencionalidade da ação, são os elementos característicos da violência. Bobbio dá mais amplitude a essa definição quando, em vez de utilizar o substantivo dano, fala em modificação prejudicial no estado físico do indivíduo: “A violência pode ser direta ou indireta. É direta quando atinge de ma- neira imediata o corpo de quem a sofre. É indireta quando opera através 1 Melo, O Matador, 1999, p. 16. 2 O Estado de S. Paulo 20 de maio de 2000. p. C7. Homicídio Violento. 44 DIREITO E NÃO VIOLÊNCIA: MINIMUM DOS POVOS Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 705 de uma alteração do ambiente físico no qual a vítima se encontra (por exemplo, o fechamento de todas as saídas de um determinado espaço) ou através da destruição, da danificação ou da subtração dos recursos materiais. Em ambos os casos, o resultado é o mesmo: uma modificação prejudicial do estado físico do indivíduo ou grupo que é o alvo da ação violenta.”3 Violência é um conceito que possibilita um número infindável de aborda- gens: antropológica, psicológica, cultural, política, etnológica etc. E cada novo contexto permite uma definição diferente. Dispõe o preâmbulo da Convenção de Belém do Pará.4 “Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.” Nesta definição, novamente os dois elementos anteriormente indicados: ocorrência de dano e ação intencional.5 De forma básica, violência será definida como: “ação intencional (de um indivíduo ou grupo) que provoca uma modi- ficação prejudicial no estado psicofísico da vítima (pessoa ou grupo de pessoas)”. Feita essa definição, é necessário dar um segundo passo e definir não violência. Tal como em diversas outras dicotomias, luz/trevas, masculino/feminino, yin/yang, não violência, por ser o termo fraco da dicotomia, é definida pela ausência de violência. Desta feita, não violência fica definida como: “ação intencional que não provoca uma modificação prejudicial na pessoa ou grupo de pessoas destina- tários da ação”. Para o Direito, essa compreensão é vital, pois toda ação violenta é violadora de um direito (direito à vida, direito à integridade física, direito à integridade psíquica, direito à liberdade sexual); consequentemente, proteger um direito, 3 Bobbio, Pasquino, Matteuci, Dicionário de política, 7. ed., p. 1291-1292. 4 Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 6-6-1994. 5 Ação ou conduta baseada no gênero é sempre intencional, já que essas ações só se realizam porque está colocada uma oposição entre masculino e feminino (músculos e lágrimas), onde o feminino é o lado mais frágil. 706 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida impedir sua violação requer um ordenamento jurídico voltado para formas de ação que impeçam, preventivamente, a ocorrência dessas ações e que, repara- doramente, minimizem seus efeitos. Violência e não violência são qualificadoras do agir humano. Existem duas, não mais, formas de agir. Uma violenta e a outra não violenta. Não há caminhos intermediários. Podem variar os graus na escala da violência. No entanto, ela ou está presente, ou não está. Na literatura, existem passagens emblemáticas de ações não violentas. Jo- seph Brodsky, em conferência pronunciada sobre o tema, comenta a passagem bíblica do Sermão da Montanha, na qual Jesus “dá a outra face”: “O filho do homem tinha o hábito de falar em tríades, e o jovem pode ter-se lembrado que aquele importante versículo não acaba em: mas se alguém te ferir na tua face direita, oferece-lhe também a outra mas continua, sem ponto e nem vírgula: e ao que quer demandar-te em juízo, e tirar-te a tua túnica, larga-lhe também a capa. E se qualquer te obrigar a ir carregado mil passos, vai com ele ainda mais outros 2 mil. Citados na íntegra, estes versículos têm na verdade muito pouco a ver com a resistência não violenta ou passiva, com os princípios de não responder na mesma moeda e de retribuir ao mal com o bem. O sig- nificado dessas linhas é tudo menos passivo, porque sugere que o mal pode ficar acabando absurdo pelo excesso; sugere que devemos tornar o mal absurdo, fazendo com que suas exigências se tornem minúsculas diante do volume de nossa obediência a elas, depreciando o sofrimento que nos causam.”6 A não violência não é uma resistência passiva, mas uma outra forma de agir. A ação não violenta parte de um conhecimento da ação violenta e cria uma alternativa a ela, superando-a. Sabedora de sua existência e ciente de seus ma- lefícios, exercita uma forma de ação negadora da violência. A não violência é também uma resposta eficaz contra a violência, tendo em vista a preservação da integridade psicofísica do ser humano. A seguir, analisaremos uma das mais marcantes influências teóricas da não violência, qual seja: À paz perpétua, de Immanuel Kant. Esse texto influenciou, de forma decisiva, a criação da ONU, no final da Segunda Guerra Mundial, em 1945. 6 Brodsky, J. Menos que Um, 1994, p. 150. Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 707 44.2 Kant: à paz perpétua – uma ordem internacional não violenta “Não é de esperar que reis filosofem ou filósofos tornem-se reis, mas também não é de se desejar, porque a posse do poder inevitavelmente corrompe o livre julgamento da razão. Porém, que reis ou povos reais (que governam a si mesmos segundo leis de igualdade) não minguem ou emudeçam a classe dos filósofos, mas deixem falar publicamente, é a ambos indispensável para iluminar sua ocupação, porque essa classe é incapaz, segundo sua natureza, de ajuntamentos e alianças de clubes, insuspeitos de uma propaganda por meio de boato.”7 Essa frase de Kant é o artigo secreto de sua obra filosófica escrita em forma de um instrumento jurídico (um tratado) e dá-nos ideia do propósito para o qual foi escrita. Não foi um trabalho encomendado por algum rei ou príncipe, mas a obra de um filósofo que manifesta suas ideias por meio de um documento jurídico, de caráter ficcional, com objetivo filosófico.8 Kant tem plena consciên- cia de que faz uma obra de sabedoria para esclarecer um assunto pertinente àqueles que detém o poder e não estão habituados ao exercício da filosofia e ao cultivo da sabedoria. “A sofia é o mais perfeito dos saberes. Quem o detém deve saber não só o que deriva dos princípios, mas também conhecer os princípios. Assim, a sofia pode ser chamada ao mesmo tempo de intelecto e ciência, e, en- cabeçando todas as ciências, será a ciência das coisas mais excelentes.”9 Na obra À paz perpétua, Kant não cria uma tecnologia capaz de solucionar os conflitos internacionais, mas elabora uma obra de reflexão filosófica sobre as relações internacionais de sua época, propondo uma superação desse status quo. À paz perpétua é, na realidade, a meta a ser atingida por meio do respeito e do exercício dos princípios e normas estabelecidos nesse fictício tratado de paz. O adjetivo perpétua diferencia o tratado em questão, dos tratados de paz habi- tualmente firmados, quenão passam de meros armistícios cuidando de regular a melhor forma jurídica para a cessação das hostilidades entre os inimigos. “O estado de paz entre os homens que vivem lado a lado não é um estado de natureza (status naturalis), que antes é um estado de guerra, 7 Kant, À paz perpétua, 1989, p. 57. 8 O subtítulo da obra não deixa dúvidas quanto a isso: À paz perpétua: um projeto filosófico de Immanuel Kant. 9 Aristóteles. Verbete A Sabedoria. In: Abbagnamo, N. Dicionário de filosofia, 1999, p. 864. 708 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida isto é, posto que nem sempre uma eclosão de hostilidades, contudo (é) uma ameaça permanente destas. Ele tem de ser, portanto, instituído, pois a cessação das hostilidades não é ainda segurança para ele e, sem que ela seja obtida de um vizinho a outro (o que, porém, pode ocorrer somente num estado legal), pode aquele tratar como um inimigo este a quem exortara para tal (cessação).10 Nessa passagem, Kant esclarece dois pontos essenciais do estado de paz almejado por ele: 1. o estado de paz não corresponde ao estado natural, este é um estado de guerra; 2. o estado de paz é algo a ser instituído por meio do Direito. Ou seja, a meta é a paz e o meio a atingi-la é o Direito. Conforme a classificação proposta por Martin Wight, Kant pertence à ten- dência revolucionária. “The Revolutionists can be defined more precisely as those who believe so passionately in the moral unity of the society of states or, international society, that they identify themselves with it, and therefore they both claim to speak in the name of this unity, and experience on overriding obligation to give effect to it, as the first aim of their international policies. For them, the whole of international society transcends its parts; they are cosmopolitan rather than ‘internationalist’, and their international theory and policy has ‘a missionary character’”.11 Todavia, Kant não é um revolucionário para o qual todos os meios são válidos para atingir-se o fim, fato este que ocorre quando a diversidade do mundo é negada e erige-se uma única crença como a verdadeira, fenômeno característico dos regimes totalitários. Kant aponta o direito como mecanismo propiciador da mudança; podemos classificá-lo como um revolucionário jurídico. 10 Kant, Op. cit. p. 32-33. 11 Wight, M. International theory the three traditions. WIGHT, Gabriele, PORTER, Brian. Leicester/ Londres: Leicester University Press, 1991, p. 8: “Os revolucionários podem ser definidos mais precisamente como aqueles que acreditam tão apaixonadamente na unidade moral da sociedade de Estados, ou Sociedade Internacional, que eles identificam-se com esta proposta, e portanto eles reivindicam o direito de falar em nome desta unidade, e experienciam a suprema obrigação de concretizar este escopo, como o primeiro objetivo de suas políticas internacionais. Para eles, a sociedade internacional como um todo transcende suas diversas partes; eles são cosmopolitas mais do que “internacionalistas” e a teoria e política internacional dela possui um caráter necessário”. Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 709 Na concepção kantiana, a transformação do estado de guerra das relações internacionais em um estado de paz dar-se-á por meio do Direito. De acordo com a classificação de Bobbio, essa proposta kantiana deve ser enquadrada como pacifismo jurídico.12 A seguir, apresentaremos um breve comentário dos artigos preliminares da paz perpétua e, logo após, uma análise dos artigos definitivos. 1. “Não se deve considerar como válido nenhum tratado de paz que se tenha celebrado com a reserva secreta sobre alguma causa de guerra no futuro”. Nesse artigo, Kant, essencialmente, faz a diferença entre um mero armis- tício e um verdadeiro tratado de paz. O armistício vem a ser um documento jurídico que tem por finalidade pôr fim a determinada guerra. “Le passage est obligé du champ de bataille au traité.”13 O armistício, por visar tão somente ao final das hostilidades bélicas, sem fazer uma análise prospectiva, não leva em consideração a existência de tensões latentes que podem levar a futuras guerras. A lição da história mostra-nos: Angola, ex-Iugoslávia, Serra Leoa... 2. “Nenhum Estado independente (grande ou pequeno) poderá ser adquirido por outro mediante herança, permuta, compra ou doação.” Os Estados nacionais, não importando seu tamanho, não devem ser vis- tos como uma propriedade a ser adquirida, já que isso poderia ser motivo de grande descontentamento no futuro, gerando tensões que poderiam culminar num conflito bélico. 3. “Os exércitos permanentes devem desaparecer totalmente com o tempo.” Este artigo é autoevidente, fala por si próprio. O desaparecimento dos exér- citos permanentes dificultaria sobremaneira a prática da guerra. Atentemos para o fato de que Kant escreveu esse artigo antes do surgimento do alistamento militar obrigatório, o que iria ocorrer no século XIX 14 e antes também do clássico de Clausewitz, Da guerra, que cunhou a famosa frase: “A guerra é a continuação da política por outros meios.” 12 Para um estudo completo da classificação “bobbiana”, ver: L ’ idea della pace e il pacifismo, em Il problema della guerra e le vie della pace. Bolonha: Il Mulino, 1984. p. 119-146. 13 Legohérel, Histoire du droit international public. Que sais je? Paris: Presses Universitaires de France, 1996. p. 39. A passagem é obrigatória do campo de batalha ao tratado. 14 Para um completo estudo da guerra, ver: Keegan, J. Uma história da guerra, 1999. 710 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida 4. “Não se deve emitir dívida pública em relação com os assuntos de política exterior.” Neste artigo, Kant tenta impedir a criação de dívidas entre dois Estados. O não pagamento da dívida poderia implicar uma guerra de invasão ao Estado devedor como forma de ressarcimento da dívida. 5. “Nenhum Estado deve imiscuir-se pela força na Constituição e no Governo de outro.” Este artigo liga-se ao segundo artigo definitivo, que fala da criação de uma Federação de Estados livres. A ideia é a preservação da autonomia de cada membro. A intervenção pela força é, enfaticamente, não recomendada. 6. “Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir que tais hos- tilidades tornem impossível a confiança mútua na paz futura, como o emprego de assassinos, envenenadores, quebramento de capitulação, indução a traição.” A ideia deste artigo é resumir as hostilidades ao campo de batalha. A ma- nutenção da confiança mútua, que se dá pelo comportamento minimamente ético dos Estados em conflito e pelo respeito da função jurídica da guerra de resolução de conflitos, é condição essencial para o estabelecimento futuro da paz. Com este artigo, ao propor a continuidade de algumas atitudes de civilidade, mesmo no transcurso de uma guerra, Kant antecipa, de certa maneira, o Direito Internacional Humanitário, definido da seguinte maneira: “O Direito Internacional Humanitário tem a função organizadora de outra qualquer normativa internacional, ou seja, organiza as relações entre os Estados, (ou dentro de um Estado, entre as partes em conflito) na situação de conflito armado.”15 Como atitude preliminar para obtenção da paz, Kant elenca seis obrigações de não fazer, prestações negativas, normas proibitivas. Antes de esclarecer as ações positivas, Kant tem o cuidado de interditar as ações que poderiam colocar em risco uma situação de paz, ou dificultar o término de uma guerra. Aduz Bobbio: “Ces six articles, Qui contiennent des interdits adressés aux souve- rains, et Qui s’appliquent à des comportement voués soit à faciliter 15 Swinarski, As convenções de Genebra como sistema de proteção internacional da pessoa humana. In: Direito Internacional Humanitário. Col. Relações Internacionais. 6 Ipri. p. 55. Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 711 l’éclatement de nouvelles guerres soit à entraver l’établissement de la paix, s’inspirent tous de l’idée que les souverains doiventse comporter moralement, c’est-à-dire conformément à la maxime selon laquelle la personne humaine ne doit jamais être considérée comme moyen.”16 Os seis artigos que acabamos de examinar dizem respeito às atitudes in- terditadas aos Estados; já os artigos definitivos, relacionam-se à forma que o Direito deve assumir em direção à paz perpétua. É o que veremos a seguir. Na obra À paz perpétua, Kant apresenta uma tecnologia para instituição de um estado de paz no âmbito das relações internacionais. A tecnologia proposta por Kant usa o direito, entendido enquanto disciplina da convivência humana,17 como instrumento. Durante a apresentação dos seis artigos preliminares para a Paz Perpétua, Kant oferece uma explanação das três dimensões do fenômeno do Direito, necessárias para a instituição da paz perpétua: “Toda constituição jurídica é, porém, no que concerne às pessoas que estão sob ela: 1. a constituição segundo o direito civil [de Estado] dos homens em um povo (ius civitatis); 2. segundo o direito das gentes dos Estados em relação uns com os outros (ius gentium), 3. segundo o direito cosmopolita, enquanto homens e Estados que estão em relação exterior de influência mútua têm de ser considerados como cidadãos de um Estado dos homens universal (ius cosmopoliticum). Esta divisão não é arbitrária, mas necessária em relação a ideia de paz per- pétua. Pois se somente um destes, na relação da influência física sobre o outro, estivesse, contudo, no estado de natureza, então estaria ligado a ele o estado de guerra, tornar-se liberto, do qual é justamente a in- tenção aqui.”18 16 Bobbio, Op. cit. p. 155. “Estes seis artigos que contêm os interditos dirigidos aos soberanos e que se aplicam aos comportamentos consagrados seja a facilitar o início de novas guerras, seja a dificultar o estabelecimento da paz, se inspiram todos na ideia que os soberanos devem se comportar moralmente, quer dizer conforme a máxima segundo a qual a pessoa humana não deve jamais ser considerada como meio.” 17 Belas, sábias e precisas palavras de Goffredo Telles Júnior. 18 Kant. Op. cit. p. 33. 712 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida Na segunda parte de sua obra, na qual são apresentados os três artigos definitivos para a Paz Perpétua, Kant detalha a forma que cada uma dessas dimensões do direito deve revestir para a instituição da paz.19 Sinteticamente, Kant diz que: 1. o Direito interno de um Estado deve ser da forma republicana, pois isto dificultaria uma declaração da guerra, já que numa República a vontade pública prevalece sobre a vontade do soberano e, neste caso, a declaração da guerra estaria condicionada à aprovação da vontade pública, o que seria um fator complicador para declaração da guerra; 2. o Direito Internacional deve ser baseado numa federação de Estados livres. Esta federação não corresponde ao formato federativo de um Estado nacional, a ideia é um pacto federativo entre os diversos Esta- dos Nacionais que mantêm sua soberania, mas que estão vinculados por um objetivo comum, qual seja, a manutenção da paz. 3. o Direito Cosmopolita deve limitar-se ao Direito à Hospitalidade Universal. O que compreende, de um lado, o direito de todo estran- geiro, que se encontra num Estado do qual não é nacional, não ser tratado hostilmente. E, de outro lado, o dever de todo Estado não usurpar da hospitalidade que lhe é oferecida pela população de um determinado Estado ou território e transformar o seu direito de visita num violento ato de conquista.” Essas três dimensões jurídicas devem ser vistas de forma interdependente e inseparável, uma interpenetrando a outra. O art. 2o (o pacto federativo entre os Estados Livres) é base jurídica constitutiva de um novo status quo nas relações internacionais; o art. 1o e o art. 3o são seus alicerces. Esclarece Bobbio: “En d’autres termes, ceci signifie que la formation de l’alliance des peuples, pour réaliser son propre but, doit respecter deux limites juri- diques: celle découlant du droit public interne Qui prescrit la constitu- tion républicaine et celle découlant du droit cosmopolitique Qui dénie le droit de conquête. C’est seulement en tenant compte de l’ensemble de trois articles définitifs, dont le second est constitutif, le premier et le troisième complémentaires, que l’on prend conscience de l’extraordi- naire force suggestive que la théorie kantienne de la paix perpétuelle a 19 Repare que os três artigos definitivos correspondem à forma que as três dimensões do Di- reito devem apresentar. Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 713 exercée en tous temps et exerce encore à notre époque. Une théorie où la complexité de l’articulation interne s’allie à la simplicité essentielle de la construction entière.”20 Kant, divergindo dos realistas (Hobbes e Maquiavel) e dos racionalistas (Grotius), propõe um modelo de ordem internacional onde a guerra perde sua utilidade como forma jurídica (necessária ou contingente) de resolução dos conflitos e a paz surge como principal objetivo, a ser conquistado por meio do direito. Essa paz kantiana não deve ser vista como uma mera ausência de guerra, mas com um sentido positivo de uma forma diferente de convivência interna- cional, forma na qual a violência está eliminada como atitude legítima e a não violência impera. “Il faut concevoir la paix elle-même comme un processus se déroulant sans intervention de la force, mais Qui ne vise pas seulement à empêcher l’emploi de la force, mais à réaliser les conditions réeles d’une coexistence sans tension entre les groupes et entre les peuples.”21 Kant tem plena noção de que a instituição, por meio do Direito, de um estado de paz não violento entre as nações é uma tarefa de suma importância e, ao mesmo tempo, dificílima de ser atingida. O próprio Kant, na 5a e na 6a proposições de Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmo- polita, afirma: “5a O maior problema para espécie humana, a cuja solução a natureza a obriga, é alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito. 20 Bobbio. La paix perpétuelle et la conception kantienne de la Fédération Internationale. In: L’état et la démocratie internationale de l’histoire des idées à la science politique, 1999, p. 152. Grato a Celso Lafer pela preciosa dica. “Em outros termos, isto significa que a formação da aliança dos povos, para realizar seu próprio objetivo, deve respeitar dois limites jurídicos: um haurido do direito público interno que prescreve a constituição republicana e o outro haurido do direito cosmopolítico que proíbe o direito de conquista. É somente tendo em conta o conjunto dos três artigos definitivos, dentre os quais o segundo é constitutivo, e o primeiro e o terceiro comple- mentares, que tomamos consciência da extraordinária força sugestiva que a teoria Kantiana da PAZ PERPÉTUA exerceu em todos os tempos e exerce ainda em nossa época. Uma retórica na qual a complexidade da articulação interna alia-se a simplicidade essencial da construção inteira.” 21 Habermas, J. La paix perpétuelle: bicentenáire d’une idée kantienne. Paris: Les Editions du Cerf, 1996. p. 71. “É necessário conceber a paz como um processo desenvolvendo-se sem a intervenção da força, mas que não visa somente impedir o emprego da força, mas a realizar as condições reais de uma coexistência sem tensão entre os grupos e entre os povos.” 714 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida 6a Este problema é, ao mesmo tempo, o mais difícil e o que será resolvido por último pela espécie humana.”22 À paz perpétua deve ser tomada como uma obra de filosofia do direito cujo propósito é oferecer um arsenal teórico que estruture a comunidade internacional de modo que a ação violenta não seja utilizada como forma de relacionamento entre as nações; a consequência lógica deste estado de coisas é o advento da paz. Esclarece Celso Lafer: “No estudo das relações internacionais, é válido distinguir, para efeitos de análise, três campos:(i)o campo estratégico-militar (...); (ii) o campo das relações econômicas (....); (iii) finalmente, cabe mencionar o campo dos valores, que alude às afinidades e discrepâncias quanto a forma de conceber a vida em sociedade.”23 A presente análise é do campo dos valores. Valor aqui entendido enquanto possibilidade de escolha.24 A escolha feita pela Comunidade Internacional no pós-guerra, mais do que a preservação da dignidade humana, é pela preservação da própria vida; a forma cosmopolítica do direito será o instrumento concreti- zador desse valor. Esse estudo dedica-se, essencialmente, à análise desse novo direito, que visa proteger a vida. No século XX, este direito tem um nome: Direito Internacional dos Direitos Humanos. Esclarece René Cassin, um dos pais da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, num texto histórico produzido logo após a aprovação da Declaração: “Nous devons donc agir. D’une manière plus précise, nous devons re- chercher ici comment, en s’appuyant à la fois sur des principes et sur la technique, le droit international et, plus haut encore, le droit de la Société universelle des hommes, la communauté juridique du genre hu- main peuvent fournir protection et garantie aux libertés fondamentales des individus que la composent.”25 22 Kant, I. Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo: Brasiliense. 1986. p. 14-15. 23 Lafer, C. Comércio, Desarmamento e direitos humanos: reflexões sobre uma Experiência Diplo- mática. São Paulo: Paz e Terra e Funag – Fundação Alexandre de Gusmão, 1999. p. 184. 24 “A melhor definição de VALOR é a que o considera como possibilidade de escolha, isto é, como uma disciplina inteligente das escolhas, que pode conduzir a eliminar algumas delas ou a declará-las irracionais ou nocivas”... Abbagnano, N. Op. cit. p. 993. 25 Cassin, R. La declaration universelle et la mise en oeuvre des droits de l’homme 79. Recueil des Cours de L’Academie de Droit International, p. 243, 1951. “Nós devemos então agir. De uma ma- Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 715 Analisar esse direito, reconhecer sua fonte e mostrá-lo como minimum dos povos é o objetivo deste texto. 44.3 Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) como minimum dos povos O primeiro documento do DIDH é a Carta de São Francisco, de 1945, docu- mento que fundou a Organização das Nações Unidas (ONU). Logo no preâmbulo dessa Carta, coloca-se, de forma indubitável, o horror que as duas guerras mundiais causaram, bem como a necessidade de uma reafirmação dos direitos humanos: “Nós, os Povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis a humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações grandes e pequenas...” A Carta de São Francisco (ou Carta da ONU), juntamente com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e os Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos Sociais e Culturais, de 1966, formam a Carta de Direitos Humanos da ONU A Carta de São Francisco concretiza a criação da norma proibitiva da guerra. A guerra, durante muito tempo, foi considerada como forma jurídica e lícita para impor o Direito. A Carta da ONU coloca a guerra como instrumento não jurídico, fora, portanto, do rol dos instrumentos legais para decisão de conflitos. A colocação da guerra na ilegalidade é um claro sinal de que está sendo inaugurada uma nova fase na história do Direito, que tem como ideia-guia a paz e o reconhecimento da dignidade inerente a todo ser humano e como princípio organizacional e diretivo, a não violência. A concretização, no âmbito do Direito Positivo, dessa nova fase, ocorre com a elaboração do Direito Internacional dos Direitos Humanos. neira mais precisa, nós devemos pesquisar aqui como, nos baseando nos princípios e na técnica do Direito Internacional, e mais amplo ainda, no direito da sociedade Universal dos homens, a comunidade jurídica do gênero humano pode fornecer proteção e garantia às liberdades funda- mentais dos indivíduos que a compõe.” 716 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida Com o intuito de deixar clara a mudança que significou, em termos teóricos, o banimento do Direito da Guerra como prática legal, farei um breve relato das relações entre guerra e Direito. 44.4 Gênese da norma proibitiva de guerra De forma sintética, podemos definir a Guerra Justa como aquela guerra que se combate para impor o direito. Durante séculos, a doutrina da Guerra Justa foi aceita pelo Direito Internacional.26 A guerra, na célebre obra de Grócio, Da guerra e da paz, era vista como um instrumento legítimo e necessário nas relações internacionais. Como esclarece Hermes Marcelo Huck: “A legitimidade da guerra deriva do serviço que ela deve prestar à so- ciedade internacional e não apenas ao beligerante injustiçado que a ela recorre. Um povo, ao declarar uma guerra justa contra o inimigo agres- sor, transforma a violência que legalmente emprega em instrumento de utilidade para a sociedade internacional. Nesse sentido, a guerra deixa de ser tão só um elemento de busca do direito do beligerante; torna-se também uma arma de composição da ordem jurídica internacional.”27 A doutrina da guerra justa só passa a ser contestada, no campo da dogmática do Direito Internacional Público, após o surgimento da Sociedade das Nações. A Sociedade das Nações (SDN) surge, em 1919, como primeira tentativa de se criar um Organismo Internacional que fosse capaz de solucionar os litígios, entre os diversos Estados, sem que fosse necessário recorrer ao uso da força. Assim, no Pacto da Sociedade das Nações, está estabelecido: “Art. 11 1. Fica expressamente declarado que toda guerra ou ameaça de guerra, atinja diretamente, ou não, algum dos membros da sociedade, interessa a toda sociedade, e esta deve adotar as medidas apropriadas para salva- guardar eficazmente a paz das nações. 26 Para um estudo detalhado da Guerra Justa, ver Guimarães, H. C. Da guerra justa: um estudo jurídico-filosófico da teoria do bellum justum nas concepções decisionista e intelectualista e na síntese grociana. Dissertação (Mestrado) Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), São Paulo: Universidade de São Paulo, mimeo. s.d. 27 Huck, Da guerra justa à guerra econômica: uma revisão sobre o uso da força em direito inter- nacional, 1997, p. 58. Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 717 2. Fica, igualmente, declarado que todo membro da sociedade tem o direito de chamar a atenção da Assembleia ou do Conselho, a título amistoso, para toda circunstância suscetível de atingir as relações in- ternacionais e que ameace perturbar a paz ou a boa harmonia entre as nações, da qual a paz depende.” Segundo Celso Lafer, o artigo 11 do Pacto da Sociedade das Nações instaura o primeiro tema global na agenda internacional. A guerra, ou sua ameaça, passa a interessar à sociedade internacional em sua totalidade e não mais apenas às partes beligerantes. No artigo transcrito, nota-se uma atitude cuidadosa com o intuito de pre- venir a ocorrência de uma guerra. No artigo seguinte (12), a guerra é colocada como último recurso na solução das controvérsias entre as nações: “Art. 12 1. Todos os membros da sociedade concordam em que, se entre eles surgir uma controvérsia suscetível de produzir uma ruptura, submete- rão o caso, seja ao processo da arbitragem ou a uma solução judiciária, seja ao exame do Conselho. Concordam, também, em que não deverão, em caso algum, recorrer à guerra, antes da expiração do prazo de três meses após a decisão arbitral ou judiciária, ou o relatório do Conselho. 2. Em todas as hipóteses previstas neste artigo, a decisão deverá ser proferida dentro em prazo razoável, e o relatório deverá ser apresentado dentroem seis meses a datar do dia em que a controvérsia lhe tenha sido submetida.” Assim, a guerra, que era tida como prática regular da resolução de conflitos para o Direito Internacional, começa a ser posta no terreno da anormalidade pelo Direito. Já que o normal é a solução pacífica das controvérsias, a guerra é o último recurso. Em 1928, no Pacto Briand-Kellog,28 as partes contratantes renunciam à guerra como instrumento de política nacional em suas relações mútuas. “As altas partes contratantes declaram solenemente condenar o recurso à guerra como meio de solucionar conflitos internacionais, e renunciam a ela como instrumento de política nacional nas suas relações mútuas. As altas partes contratantes reconhecem que a solução das disputas ou 28 Ficou conhecido dessa forma, pois foi firmado entre o Ministro do Exterior da França e dos Estados Unidos: Aristide Briand e Frank Kellog. 718 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida conflitos de qualquer natureza ou origem que possam surgir entre elas deverá ser buscada somente por meios pacíficos.” E, finalmente, em 1945, na Carta de São Francisco há a proibição formal e extensiva do uso da força como forma de resolução dos conflitos: “Art. 2o (…) Parágrafo 4o Os membros da Organização, em suas relações interna- cionais, abster-se-ão de recorrer à ameaça ou ao uso da força contra a integridade territorial ou a independência política de qualquer Estado, ou de qualquer outra forma incompatível com o propósito das Nações Unidas.”29 44.5 Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 como Documento Matriz do Direito Internacional dos Direitos Humanos “Si la première guerre mondiale a été idéologiquement livrée pour l’in- dépendance des nationalités ainsi que pour l’établissement de la sécurité collective et l’organisation de la paix internationale, la seconde guerre mondiale a revêtu essentiellement le caractère d’une croisade pour les droits de l’homme.”30 A Carta da ONU, de 1945, já faz menção aos direitos humanos e, logo em seguida, este tema será objeto de um documento jurídico autônomo: a Decla- ração Universal de Direitos Humanos, de 1948. A Declaração de 1948 foi a forma jurídica encontrada pela comunidade in- ternacional de eleger os direitos essenciais para a preservação da dignidade do ser humano. Trata-se de um libelo contra o totalitarismo. Seus 30 artigos têm como objetivo principal evitar que o homem e a mulher sejam tratados como objetos descartáveis. 29 Observo que o tema da legitimidade do uso da força não será abordado neste trabalho, já que este não é um tema atinente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos (campo teórico desta tese), mas um ramo autônomo do Direito Internacional Público. 30 Cassin, La declaration universelle et la mise en oeuvre des droits de l’homme, Recueil de Cours de L’Academie Internationalle de Haie, v. 79, p. 41, 1947. Nessa época, Renée Cassin era o vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da ONU, organismo responsável pela redação da Declaração. “Se a Primeira Guerra Mundial foi ideologicamente lutada pela independência das nacionalidades e também pelo estabelecimento da segurança coletiva e pela organização da paz internacional, a Segunda Guerra Mundial revestiu essencialmente o caráter de uma cruzada pelos direitos humanos.” Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 719 Assim a definiu Eleanor Roosevelt, durante os trabalhos preparatórios de elaboração da Declaração: “Ce n’est pas un traité, ce n‘est pas un accord international. Il n’a pas et ne vise pas à avoir force de loi. C’est une déclaration de principes sur les droits et libertés fondamentales de l’homme destinée à être approuvée par vote formel des membres de l’Assemblée générale.”31 De acordo com Celso Lafer, a Declaração de 1948 pode ser considerada um evento matriz que dá origem a uma nova política de Direito, política esta vol- tada para a proteção do ser humano. O DIDH transformará em Direito Positivo esse escopo inicial. Tanto é, que uma das características principais do DIDH é ser um direito protetivo: “Trata-se essencialmente de um direito de proteção, marcado por uma lógica própria, e voltado à salvaguarda dos direitos dos seres humanos e não dos Estados.”32 Ora, esse Direito, nunca é demais lembrar, surge como reação à violência inimaginável advinda dos eventos históricos constitutivos da Segunda Guerra Mundial. Para uma melhor compreensão da Declaração de 1948, será feita uma análise de seus principais artigos, na qual se mostrará como o corpus juris do DIDH tem como base a Declaração. René Cassin compara a Declaração de 1948 ao pórtico de um templo: “La Déclaration Universelle a été comparée par nous au vaste portique d’un temple, dont le parvis est formé par le Préambule affirmant l’unité de la famille humaine et dont le soubassement, les assises, sont constitués par les principes généraux de liberté, d’égalité, de non-discrimination et de fraternité proclamés dans les articles 1 et 2.”33 31 Cassin, Op. cit. p. 289. “Isso não é um tratado, isso não é um acordo internacional. Ele não tem e não visa a ter força de lei. Isso é uma declaração de princípios sobre os direitos e liberda- des fundamentais do homem destinados a serem aprovados pelo voto formal dos membros da Assembléia Geral.” 32 Cançado A. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor. 1997. v. 1, p. 20. 33 Cassin, R. Op. cit. p. 277-278. “A Declaração Universal foi comparada por nós ao vasto pór- tico de um templo, no qual o terreno é formado pelo preâmbulo afirmando a unidade da família humana e as bases e os sustentáculos são constituídos pelos princípios gerais de liberdade, igualdade, não discriminação e fraternidade proclamado nos artigos 1 e 2.” 720 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida Posteriormente, numa entrevista concedida a Austregésilo de Athayde, complementa sua descrição: “A Declaração Universal pode ser considerada um pórtico de quatro co- lunas, a primeira das quais sustenta o direito à vida, à liberdade física e à segurança jurídica da pessoa; a segunda forma a base dos laços do indivíduo com os grupos (família, nações), com os lugares (domicílio, circulação) e com os bens (propriedade); a terceira se refere às faculdades espirituais, às liberdades públicas e aos direitos políticos; e a quarta, finalmente, simétrica com a primeira, é a dos direitos econômicos, sociais e culturais, notadamente os que concernem ao trabalho, à segurança social, à educação, à vida cultural, à proteção dos criadores de obras artísticas, literárias e científicas.”34 Para análise da Declaração de 1948, serão utilizados os arts. I e II, considera- dos como fundamentais por Cassin, e o artigo III, que protege o direito à vida. “Art. I Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.” Liberté, egalité, fraternité, as palavras símbolo da Revolução Francesa que deram origem à Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), estão presentes também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. O que há de comum entre a Declaração de 1789 e a Declaração de 1948? A vontade manifesta de instaurar outra ordem, radicalmente diferente daquela até então vigente. É com a Revolução Francesa, de 1789, que surge o moderno significado da palavra revolução,35 que passa a significar a instauração do novo. A Revolução Francesa derruba o Estado Absoluto e instaura o Estado de Direito ou Constitucional; para fazer essa transformação, muda a significação de uma palavra: soberania. “O Estado Absoluto coloca-se como a encarnação mais perfeita da soberania entendida como poder que não reconhece ninguém superior.”36 34 Sandroni, C., Sandroni, L. C. A. de A. O século de um liberal. Rio de Janeiro: Agir, 1998. p. 469. 35 Em seu sentido original, até então vigente, significavavoltar para trás. Sentido este que ainda é encontrado na Revolução Americana de 1776, na qual buscava-se a restauração das antigas prerrogativas dos súditos norte-americanos da Coroa Britânica. 36 Bobbio, N. Direito e estado no pensamento de Emmanuel Kant, 1995. p. 11. Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 721 Depois de 1789, a soberania, até então exercida por uma única pessoa, o rei (o soberano), passa a ser exercida pelo povo: a Soberania Popular. Com o surgimento do conceito de soberania popular, desaparece a figura do súdito (aquele que só tem deveres) e surge a figura do cidadão (aquele que tem o direito a ter direitos). O Estado Constitucional, ao limitar o poder soberano,37 garante os direitos naturais do indivíduo. As duas transformações são simultâneas e são a própria razão de ser do novo Estado Constitucional ou Estado de Direito.38 Estabelece a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789): “Art. 16. A sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos di- reitos fundamentais nem estabelecida a separação dos poderes39 não tem Constituição.” A Declaração de 1948, ao reafirmar o direito à liberdade, à igualdade e à fraternidade de todas as pessoas, busca, acima de tudo, evitar a repetição dos horrores causados pelo regime totalitário de Hitler. René Cassin afirma: “A Declaração de 1948 retirou da Declaração dos Direitos do Homem e do Cida- dão, de 1789, o que continha de universal, a saber, os grandes princípios de liberdade, igualdade e fraternidade. Foi mais longe ao proscrever todas as discriminações entre os membros da família humana, no que concerne ao gozo das liberdades fundamentais, quer seja por motivo de sexo, raça, língua ou religião, opiniões, origem nacional ou social, fortuna, nascimento e situação, ou por motivo do estatuto político, ju- rídico ou internacional do país ou território de que sejam habitantes. E proclama o direito de todo indivíduo a uma nacionalidade e o de todo perseguido a um asilo.”40 Com a intenção de evitar a perpetuação do antigo, forçosamente, cria-se o novo. Como a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, que 37 A Soberania do Estado Absoluto pode ser definida como o poder de decidir em última ins- tância. Quem tem esse poder é o Soberano, o Rei. Já a Soberania Popular define-se como o poder de decidir em última instância, de acordo com a lei. A decisão final já não é absoluta, encontra limites. Qual seja, a Lei. 38 A expressão Estado de Direito surge, pela primeira vez, em 1813. 39 Forma de Montesquieu para garantir a limitação do poder Soberano a ser exercido pelo Poder Executivo. 40 Sandroni, Constância, Op. cit. p. 471. 722 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida criou o moderno conceito de cidadão, a Declaração Universal de Direitos Humanos, de 1948, ao declarar que todas as pessoas nascem livres e iguais, mantém este antigo conceito e cria outro, novo. Esse novo conceito é a inerência da dignida- de ao ser humano. Isso significa que a liberdade e a igualdade em dignidade e direitos surgem com o nascimento do ser humano e o acompanham, de modo inseparável e incondicional, no decorrer de sua existência. Não dependendo, em absoluto, de qualquer outro título ou condição. “Art. II 1. Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra nature- za, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição. 2. Não será tampouco feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania.” A Alemanha Nazista, antes de ser um Estado Totalitário, é um Estado Ra- cista, que coloca a raça como forma de diferenciação entre os seres humanos. “In a speech he gave in November 1927 Hitler said that he saw ‘the value of a man determined in the first place by his inner racial virtues’ and that the Aryan race was at ‘the top of the list’. Aryans, he wrote in Mein Kampf, were the ‘highest race’ and ‘the master people’ (p. 384). He therefore declared war ‘on the marxist idea that men are equal ... and was willing to draw the ultimate consequence of recognizing the importance of blood’.”41 Com essa ideia em mente, Hitler diferencia as pessoas entre aquelas que valem mais e as que valem menos; de acordo com essa tese, a raça ariana era a depositária do progresso da civilização e qualquer cruzamento entre as diferentes raças só produziria degenerados, física e mentalmente. Assim, era necessário 41 Morsink, The universal declaration of human rights: origins, drafting and intent, Pennsylvania: University of Pennsylvania Press, 1999, p. 39: “Num discurso que Hitler pronunciou em novem- bro de 1927 ele disse que via ‘o valor de um homem determinado em primeiro lugar pelas suas virtudes sociais internas’ e que a raça ariana estava no ‘topo da luta’. Os arianos, ele escreveu em ‘Mein Kampf’, eram a ‘raça mais elevada’ e o ‘povo mestre’. Ele portanto declarou guerra ‘a ideia marxista de que os homens são iguais… e estava disposto a salientar, até a última consequência, o reconhecimento da importância do sangue’.” Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 723 dominar e subjugar as ditas “raças inferiores” (principalmente a judia), pois a raça ariana deveria permanecer pura. Essa ideia, aos poucos, radicaliza-se e da expulsão dos judeus, passa para a concentração deles, até atingir a solução final, segundo a qual só o completo extermínio da raça judia seria capaz de garantir a pureza da raça ariana.42 De um Estado Racista, a Alemanha Nazista transforma-se em um Estado Genocida. O primeiro passo para garantir o direito a vida é, portanto, esta- belecer a igualdade entre os seres humanos, impedindo qualquer espécie de discriminação. É isto que faz a Declaração de 1948 e os instrumentos legais da declaração do DIDH. O artigo II está ligado ao artigo VII43 a proibição da discriminação diz res- peito aos seres humanos entre si, a eles e a elas perante o Estado e a homens e mulheres perante a lei. A partir de 1948, foram criados outros tratados internacionais que disciplinam a proibição de toda e qualquer espécie de discriminação. O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, de 1966, estabelece em seu art. 2o: “Art. 2o 1. Os Estados-partes no presente Pacto comprometem-se a garantir a todos os indivíduos que se encontrem em seu território e que estejam sujeitos à sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, língua, reli- gião, opinião política ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.” O mesmo Pacto, nos arts. 26 e 27: “Art. 26. Todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação. 42 Para um detalhado relato dessa questão, consultar: Arendt, H. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal, 1999. 43 Art. VII. Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação. 724 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida Art. 27. Nos Estados em que haja minorias étnicas, religiosas ou linguís- ticas, as pessoas pertencentes a essas minoriasnão poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, sua própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.” A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) define, no art. 1o, a expressão discriminação racial. Da genérica de- finição da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, chega-se à precisa e tipificada definição da Convenção de 1968: “Art. 1o Para os fins da presente Convenção, a expressão discriminação racial significará toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto ou resultado anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício em um mesmo plano (em igualdade de condição) de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública.” No art. 2o, a Convenção de 1968 exorta os Estados a tomarem medidas para eliminar a discriminação; são as chamadas ações afirmativas: “Art. 2o Os Estados-partes condenam a discriminação racial e compro- metem-se a adotar, por todos os meios apropriados e sem dilações, uma política destinada a eliminar a discriminação racial em todas as suas formas e a encorajar a promoção de entendimento entre todas as raças...” A grande diferença entre a Convenção, indicada anteriormente e a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, além do fato de especificar o sujeito de direito violado, é a definição do conceito de discriminação, o que permite sua incorporação pela Dogmática Jurídica, possibilitando sua aplicação no caso concreto. “Sua função social, neste sentido, está na limitação das possibilidades de variação na relação de aplicação, quando seus dois pólos se tornaram contingentes. Observa-se, assim, que a Dogmática não é um simples eixo de mediação entre normas e fatos nem se resume no desenvolvimento de técnicas de subsunção do fato à norma, como chegaram a dizer os representantes da Jurisprudência dos Conceitos e da Escola da Exegese. Sua função repousa, outrossim, no controle de consistência de decisões tendo em vista outras decisões; em outras palavras, no controle de Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 725 consistência da decidibilidade, sendo, então, a partir dela que se torna viável definir as condições do juridicamente possível.”44 Dentro da normativa do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do Direito Internacional Público, existem outras Convenções contra a discrimi- nação: Convenção Internacional para a Eliminação e Punição do Crime de Apartheid (1973), Convenção Internacional contra o Apartheid nos Esportes (1985), Convenção número 100 da OIT, concernente a igual remuneração de homens e mulheres para trabalhos do mesmo valor (1951), Convenção número 111 da OIT, contra a Discriminação no Trabalho e Emprego (1958), Convenção da Unesco contra a Discriminação na Educação (1960). Estabelece o art. III da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Art. III. Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.” A Alemanha Nazista dava muito pouco valor ao direito à vida. É o próprio Hitler quem afirma em Mein Kampf: “if the power to fight for one’s own health is no longer present, the right to live in this world of struggle ends” (p. 257). Um relatório preparado pela Comissão de Direitos Humanos da ONU afirma: “The policy which was in existence in Germany by the summer of 1940, under which all aged, insane, and incurable people, useless eaters, were transferred to special institutions where they were killed.” Most of the 275.000 people who were killed in this way in nursing homes, asylums, and hospitals had been German citizens.”45 No ano de 1937, 32 pessoas receberam a pena de morte na Alemanha. Esse número cresceu para 5.191 em 1944. Observe-se o encaminhamento dos artigos da Declaração. No art. I, fica estabelecido que a liberdade e a igualdade entre os seres humanos é adquirida no nascimento. O art. II proíbe toda e qualquer espécie de discriminação. E, finalmente, o artigo III estabelece o primeiro Direito: o Direito à vida. O Direito à vida foi estabelecido para os cidadãos do mundo, já que o Estado Nazista, além de ser assassino, era genocida. Reprimir o genocídio foi uma das primeiras tarefas do DIDH. 44 Ferraz Jr., Função social da dogmática jurídica, 1998, p. 100. 45 Morsink, Op. cit. p. 40. “A política que estava em vigência, na Alemanha, no verão de 1940, de acordo com a qual as pessoas insanas e incuráveis de qualquer idade, ‘famintos inúteis’ foram transferidos para instituições especiais onde foram mortos. A maior parte das 275.000 pessoas que foram mortas desta forma nas casas de repouso, manicômios e hospitais eram cidadãos alemães.” 726 CURSO DE FILOSOFIA DO DIREITO • Bittar / Almeida Antes da aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, quase simultaneamente, no dia 9 de dezembro de 1948, foi aprovada a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio.46 O extermínio de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial não foi o primeiro massacre da história humana,47 nem tampouco o primeiro genocídio. Esse termo, de forma coloquial, será usado pelo próprio Hitler em 22 de agosto de 1939, véspera da invasão da Polônia. O primeiro genocídio do século XX é de um milhão e meio de armênios pelos turcos, em 1915. Todavia, o genocídio de Hitler é parte de uma política de governo; aos olhos do Estado Nazista, trata-se de uma atividade legal. Para que a comunidade internacional pudesse punir o crime de genocídio, era preciso tipificá-lo. É o que faz a Con- venção de 1948: “Art. II. Na presente Convenção, entende-se por genocídio qualquer dos seguintes atos, cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, tal como: a) assassinato de membros do grupo; b) dano grave à integridade física ou mental de membros do grupo; c) submissão intencional de membros do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e) transferência forçada de menores do grupo para outro grupo.” No art. 6o do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (1966), lê-se: “Art. 6o 1. O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei. Ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida.” O art. 9o especifica o direito à liberdade e à segurança pessoal: “Art. 9o 46 Alerte-se que, pelo fato de não contar com mecanismo próprio de implementação, a Convenção contra o Genocídio nunca chegou a ser aplicada. 47 De acordo com o arqueólogo Jean Courtin, o primeiro massacre data de 2.090 a.C.; cerca de uma centena de corpos no hipogeu de Raix. Ver Richard, G. Op. cit. p. 22. Direito e Não Violência: Minimum dos Povos 727 1. Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoal. Ninguém poderá ser preso ou encarcerado arbitrariamente. Ninguém poderá ser privado de sua liberdade, salvo pelos motivos previstos em lei e em conformidade com os procedimentos nela estabelecidos.” 44.6 Histórico da proteção internacional dos direitos humanos A Proteção Internacional dos Direitos Humanos apresenta dois mecanismos de proteção: o global e os regionais. O global é o sistema da Organização das Nações Unidas (ONU); os sistemas regionais são: O Sistema Africano (Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Direitos dos Povos – 1981), O Sistema Árabe (Carta Árabe dos Direitos Humanos – 1994, até o momento só ratificada pelo Iraque), O Sistema Europeu (Convenção Europeia para Proteção dos Direitos Hu- manos e Liberdades Fundamentais – 1950) e o Sistema Interamericano (Convenção Americana de Direitos Humanos – 1969). A seguir, apresenta-se uma síntese histórica do Sistema Global. 44.7 Sistema global de proteçãodos direitos humanos A Carta de São Francisco, de 1945, foi o documento jurídico que fundou a ONU. Esta foi criada com a perspectiva de instaurar uma nova ordem mundial, diferente daquela que ocasionou a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais. Conforme já analisado no item 2.2.1, é na Carta da ONU que aparece, pela primeira vez na história do Direito, a proibição da guerra como forma legítima de resolução de conflitos. Daí se conclui que um dos principais objetivos da ONU é a criação de uma nova ordem internacional, fundada nas relações pacíficas entre as nações. Lê-se na Carta de São Francisco: “Art. 1o Os propósitos das Nações Unidas são: (...) Desenvolver relações entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal.” Ora, neste novo estado de coisas, o respeito aos direitos humanos ganha uma importância significativa no ordenamento jurídico internacional:
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