Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ciência&vida VIOLÊNCIA URBANA o rnecanlsmo ideológico P.9rdetrás 00 arrnarnentlsrno social AQUECIMENjrO GLOBAL EM NÚMEROS Para refletir sobre desenvolvimento, ética e justiça ambiental EDITORIAL A essência da vida O(polêmico) ator e autor Pedro Cardoso fez recente-mente uma observação interessante a jornalistas domeio radiofônico, a partir de sua experiência em redessociais. Para o artista, a virtualização da vida tem a ver com o nosso desejo de eternidade, a fuga da morte e de nosso corpo físico por meio de uma existência virtual. E também no inten- to de evitá-Ia (a morte), não só com o advento da tecnologia, mas desde o início da humanidade, o homem se faz a pergunta essencial: Para que viver? Talvez a resposta precisa a essa dúvida fundamen- tal humana torne mais fácil prolongar o tempo vivido na Terra. Ou, mesmo, facilite encarar a nossa finitude. Quem sabe? Não só conhecer o sentido da vida, mas também a melhor forma de vivê-Ia relacionam-se aos sentimentos conflitantes e perguntas sobre nascer e morrer nesse mundo, como nos mostra a acadêmica e docente da Universidade Mackenzie, Angela Cilento Zamora, em artigo de capa de Filosofia Ciência&Vida. A autora lança mão de ninguém menos que o filósofo Martin Heidegger, além de outros pensadores como Nietzsche e Platão, para conceituar a vida, também refletindo sobre a importância da Filosofia para a compreensão de elementos tão importantes do viver - o tempo, a celebração, a amizade, o amor e o prazer. Outro artigo, esse de Monica Aiub, também destaca a importância da Filosofia para a formação do pensamento crítico e enfrentamento do cotidiano. Isso a partir de sua experiência inicial como filósofa clínica, que se desdobrou tão somente no exercício coletivo do filosofar para melhor viver. Afinal, para a autora, na estrutura do pensamento filosófico já se encontrariam os pilares para tal feito, de modo que bastaria levar a disciplina, com o seu devido rigor, às periferias, às ruas, ao público em geral, ampliar a divulgação do conhecimento filosófico e científico para aprimorar nossa consciência e entendimento de lugar no mundo. Reflexão que considera crucial hoje e que é parte de seu traba- lho junto a uma editora e espaço cultural. Esta publicação partilha do mesmo esforço das autoras acima: desde seu início vê como neces- sário reforçar a importância da Filosofia no dia a dia, o que o faz ao abordar, de forma acessível, os temas que dão conta dessa relação. Também o caderno central, que hoje abrange, além da temática educacional, as Ciências Sociais, está empenhado nisso, sendo referência para professores do ensino médio e superior. Esperamos que a leitora ou o leitor, ao folhear as próximas páginas, se engajem nessa causa - da divulgação filosófica (e também pedagógica, sociológica ... ) - pelos mesmos motivos que este projeto editorial tem nos cativado: impactar positivamente, por meio do conhecimento, a vida de milhares de pessoas leitoras e falantes da língua portuguesa. Eis a nossa essência. Boa leitura, Da Redação www.portalespacodosaber.com.br ." filosofia ciêr:tcia&vida' 3 i ---------------------------------------------------- __ ------------------------------------~------~~-- SUMÁRIO • número 153 IMAGENS: SHUTTERSTOCK 6ENTREVISTAAnastácio Borges deAraújo lúnior comenta obra de Platão e importância do pensamento antigo 60 CORRENTE A Filosofia Clínica versus o filosofar no cotidiano e a importância desse ato nos dias de hoje 12SOCIEDADEViolênciaurbana e o armamentismo social 6 8 FILO ORIENTALComo punir a discordância e proibira diferença, por André Bueno 7020 EXISTÊNCIA/CAPA Heidegger, Nietzsche e Platão, entre outros, são chamados a responder à pergunta essencial: Para que viver? MEIO AMBIENTE Números do aquecimento global para refletir sobre questões éticas e ambie,ntais e uma proposta de desenvolvimento econômico no aproveitamento da terra 78ENSAIO~~ternativas pensamento ocidental para conceber e apreender o divino 3 O FILO CLíNICAA Filosofia e os costumesno divã, na coluna de Lúcio Packter 53PARA REFLETIRLiteratura, Artes Visu.ais, Filosofiada Mente e tecnologia nos espaços comandados por Ana Haddad, Walter Cezar Addeo e João de Fernandes Teixeira 8 2 OLHO GREGOObrigações éticas na política,por Renato Janine Ribeiro MOMENTO DO LIVRO A RELÍQUIA "Ele é o Proust da língua portuguesa', afirmou Lafonte o jornal 'lhe New York Times ao se referir a Eça de Queirós. Assim corno o escritor francês, o mais A RELÍQUIA importante romancista português do século XIX trabalha sua narrativa a partir da observação das vidas interior e exterior de seus personagens, sem perder o olhar crítico dos valores e costumes, da política e da religião. Com a obra A Relíquia, ele concorreu ao prêmio D. Luis da Academia Real de Ciências. Em 1887, época da publicação do livro, Eça já entendia que seu tempo era consumido pelas incertezas da inteligência e angustiado pelos tormentos do dinheiro. Corno um verdadeiro clássico, ele continua atual. À venda nas bancas e na loja Escala: www.escala.com.br livro: A Relíquia Número de páginas: 180 Editora: Lafonte ENTREVISTA Anastácio Borges de Araújo Júnior o reto nos cláss'cos Psicólogo mestre em Filosofia e estudioso de Platão comenta obra do filósofo e importância do pensamento antigo Por Fábio Antonio Gabriel entrevistado é psicólogo pela Pontifí- cia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP, em 1990), mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Pernam- buco (UFPE, em 1999), com dissertação sobre Platão e Freud, e doutor em Filosofia Antiga pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, em 2005) com tese sobre Platão. Depois de um breve período em que trabalhou como psicólogo, seguiu então a carreira de professor universitário na área de Filosofia, trabalhou em diversas instituições como Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Faculdade de Filosofia do Recife (Fafire), Faculdades Integradas do Recife (FIR), Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), Instituto Salesiano de Filoso- fia (Insaf) e Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Pesquisa temas em Filosofia Antiga, com ênfase em Platão e Aristóteles. Atualmente é professor adjunto 3 do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), membro da International Plato Society - IPS e sócio da Sociedade Brasileira de Platonistas - SBP. É líder do Grupo de Pesquisa Dynamis: Filosofia Antiga e seus Desdobramentos (CNPq) e faz parte do Núcleo de Sustentação do GT Platão e Platonismo. Fez está- gio pós-doutoral entre setembro de 2012 e julho Doutorando em Educação com bolsa de doutorado concedida no ãmbito Capes/Fundação Araucária, organizador de diversos livros na área de Filosofia & Educação: www.fabioantoniogabriel.com 6 • fílosofía ciência&vida de 2013 na Università Degli Studi di Milano, com supervisão do prof. Franco Trabattoni e com apoio de bolsa Capes. Conversa com os leitores de Filo- sofia Ciência&Vida sobre filosofia antiga e sobre as relações entre Filosofia e Psicanálise, além de apre- sentar as riquezas da filosofia antiga, finalizando com uma reflexão sobre a depressão. FILOSOFIA • Como você entende a relevância da filosofia antiga para pensarmos problemas da sociedade contemporânea? ANASTÁClOB. DE A. JÚNIOR• A noção de conhecimento na antiguidade, epistéme, surge, inicialmente, como algo que se sabe, daí, aquilo de que se está ciente, isto é, o que se tem ciência e, por isso, aquilo em que se pode confiar. Desse modo, podemos dizer que a epistéme de Sócrates era o famoso "só sei que nada sei", convicção fundamental, ainda que nega- tiva, uma espécie de eixo interior, a partir do qual todas as outras coisas derivariam. No caso de Sócra- tes, por exemplo, esse saber que nada sabe se des- dobra em exame à opinião dos outros, investigação dialogada e na averiguação de suas próprias opini- ões. Em Aristóteles, essa noção de saber transforma- -se numa concepção mais estruturada que pode ser resumida na busca dos princípios, causas e elemen- tos que constituíamalguma área específica do co- nhecimento. Se transportarmos para a Filosofia essa noção aristotélica de saber, que me parece vigente na ciência em geral, encontraremos na filosofia an- tiga em especial na filosofia grega, tematizados os problemas fundamentais vivenciados pelos gregos, resultando que a própria filosofia antiga tomar-se-a, de um só golpe, princípio, causa e elemento fun- dacionais que estão presentes em nossa civilização ocidental. Claro que existem outros componentes que vão compor a cultura ocidental, por exemplo, as tradições semíticas, através do judaísmo, cristia- nismo e até islamismo. Entretanto, se a filosofia anti- ga é um elemento fundamental da cultura ocidental, isso, para mim, significa que a sociedade contempo- rânea só pode ser compreendida como desdobra- mento desse movimento que se iniciou na Grécia, logo após os escritos de Homero e Hesíodo. Assim, parece que sempre estamos retornando ao princí- pio de um movimento para compreender a traje- tória planejada inicialmente, isto é, a finalidade de termos nos afastado da palavra mítico-poética para tentar, através de nossa inteligência, dar respostas às questões essenciais. Retornar aos gregos, para mim, é buscar, ali, todas as vozes que compunham essa cena inicial da Filosofia, que eram muitas e disso- nantes, para reexaminar em que podemos melhorar nossa própria vida junto aos outros, humanos e não humanos. Retornar aos gregos é buscar todas as vozes que compunham essa cena inicial da Filosofia, que eram muitas e dissonantes, para reexammar em que podemos melhorar nossa própria vida FILOSOFIA • Quais são os maiores expoentes considerados por você como relevantes para a filosofia antiga? ANASTÁclOB. DE A. JÚNIOR• Essaé uma questão difícil, até porque muitos escritos foram perdidos, de outros só restaram fragmentos e podemos, sempre, estar sen- do injustos com alguns filósofos. Entretanto, no estado de coisas que conhecemos, para mim, entre os pré- filosofia ciência&vida· 7 ENTREVISTA Anastácio Borges de Araújo Júnior -socráticos são fundamentais Parmênides e Heráclito. Sócrates é excepcional, um sábio, muito embora nada tenha escrito e só tenhamos notícias dele por tercei- ros. Por último, Platão e Aristóteles são incontorná- veis, gênios da humanidade que não deixaram nem mesmo um assunto no esquecimento. Claro que hoje em dia, depois de 2.500 anos que fizeram de Platão e Aristóteles espécies clássicos, surgem outros nomes e escolas que ganham evidência, mas esses nomes que citei, para mim, são pensamentos de rara beleza e profundidade. Esempre se pode rever os clássicos e redescobri-Ios. Tudo isso é impressionante! FILOSOFIA • Platão tematiza o mundo das ideias em contraposição ao mundo sensível. No que a teoria do conhecimento de Platão pode nos auxiliar a pensar problemas contemporâneos? ANASTÁCIOB. DE A. JÚNIOR• Vou aproveitar essa ques- tão para fazer uma observação que, para os que estudam Platão, é muito importante. Todos falam nessa teoria dos dois mundos, mas nos diálogos eu nunca encontrei a expressão mundo inteligível, nós encontramos a expressão tópos noetos, notadamen- te na República 509 d, que significa lugar inteligível. Ora, lugar inteligível e lugar sensível significam que existem duas maneiras básicas do ser de todas as coisas e que nós, humanos, estamos misturados com estes dois modos. Para tentar ser mais claro, vou dar um exemplo: sem ponto central não há círculo, en- tretanto vemos muitos círculos no mundo, mas não conseguimos ver um ponto, pois o ponto por defi- nição é inextenso e, assim, o ponto é condição de existência do círculo mas ele não é sensível. Logo vemos o círculo na pupila de um olho, mas não po- demos ver o ponto que lhe deu origem, só podemos compreender a necessidade dele, o ponto é uma realidade inteligível, sem o qual não existem círcu- los. O que Platão diz é que o sensível é uma imagem do inteligível e enquanto imagem é necessariamente imperfeito. Claro, no meu exemplo, para ser mais preciso, deveríamos completar e dizer que todos os círculos sensíveis são cópias do círculo inteligível que é o único perfeito. Entretanto, ao dizer que é inteligível não é preciso concebê-Io em um outro mundo, mas compreender que estamos sempre di- vididos entre realidades da inteligência e realidades que vemos e tocamos e que, por isso, pertencem 8 • fílosofía ciência&vida As investigações contemporâneas sobre a linguagem parecem ainda estar envoltas em questões que foram abertas por diálogos como o Crátilo e o Sofista à nossa sensibilidade. Qual a atualidade dessa hi- pótese inteligível? Bem, acho que grande parte dos matemáticos contemporâneos ainda são platônicos e as investigações contemporâneas sobre a lingua- gem parecem ainda estar envoltas em questões que foram abertas por diálogos como o Crátilo e o Sofis- ta. Desse modo, as questões filosóficas abertas na antiguidade, diferentemente de em algumas outras áreas do saber, continuam vigentes e nos desafiando. FILOSOFIA • Quais são os principais desdo- bramentos do platonismo? Quais os principais expoentes que seguiram a filosofia platônica? Como diz o professor Mauro Bonazzi, no início de sua obra sobre o platonismo (11Platonismo. Turim: Einaudi, 2015), a grande dificuldade de tratar do tema é bastante simples: não é claro saber o que significa ser platônico. Pode parecer estranho, mas até hoje não sabemos com exatidão o que pensava Platão. Avançamos muito, por exemplo, hoje respeitamos o diálogo como forma essencial de Platão transmitir aquilo que ele julga ser a Filosofia. Por outro lado, como me mostrou em nosso último encontro o pro- fessor Roberto Bolzani (USP), temos, cada vez mais, a consciência de que Platão escreveu não para nós, mas para o grego ateniense, e isso significa que seus diálogos são tentativas de sensibilizar os jovens ta- lentos filosóficos e afastá-Ios dos rivais da Filosofia que eram, principalmente, a poesia e a retórica. A hipótese de que haja duas realidades básicas, a inteligível e a sensível, também permanece central em Platão. Entretanto, para não deixar sem respos- ta acerca dos desdobramentos do platonismo e, ao mesmo tempo, corroborar essa dificuldade de sa- ber o que é ser platônico, devemos pensar em duas correntes dominantes na Academia, após a morte de Platão, que foram o ceticismo e o dogmatismo acadêmicos. Correntes de pensamento quase opos- tas que sucederam Platão na Academia e que têm nomes, pouco conhecidos entre nós, como Espeusipo, Xenócrates, Arcesilao. Depois, teríamos que falar, claro, do neoplatonismo de Plotino e Proclo. E, ob- viamente, o próprio Aristóteles que se diz, explici- tamente, platônico na sua Metafísica. Entretanto, devo confessar que me sinto despreparado para dis- correr sobre os desdobramentos do platonismo ao longo da história, é uma área de estudo a que não me dediquei suficientemente, mas sei que é uma área de conhecimento hoje em franca expansão. FILOSOFIA • Quais relações podemos estabelecer entre a filosofia de Platão e a psicanálise de Freud? Essefoi tema de minha dissertação de mestrado que· finalizei em 1999, realizado na Federal de Pernam- buco, e tenho orgulho de ter sido um dos pioneiros nessaárea de pesquisa. Tinha estudado Psicologia na PUC de São Paulo e desde a graduação estranhei que no curso não se mencionavam os autores da Filosofia que tivessem tratado do tema da alma humana. Co- mecei a estudar Platão com a professora Rachei Ga- zola, em seguida, procurei filósofos que abordassem temas psicanalíticos, como o grupo do Centro de Ló- gica e Epistemologia da Unicamp, nas figuras de Ze- Ijko Loparic, Luiz Roberto Monzani e Osmyr Gabby, além de leituras mais filosóficas da Psicanálise, como Renato Mezan e Luís Cláudio Figueiredo, que me ajudaram a ir compondo um cenário de aproximação entre Platão e Freud. Na verdade, Freud conhecia trabalhos que aproximavam a sua noção de libido do eras tal qual foi desenvolvida por Platão no diálogo O banquete. Freud se interessava por estudos que legiti- massem suas descobertas acerca da sexualidade,pois ele enfrentava resistência. Entretanto, ao ler Platão, em especial a tripartição da psique desenvolvida na República, fiquei encantado com esse grande tratado sobre a alma humana que meus próprios colegas da Psicologia desconheciam. Assim, ainda na graduação comecei a tecer analogias e aproximações entre os modelos de homem que aparecem nos diálogos de Platão, aquilo que depois chamei de metáforas da alma, e os modelos metapsicológicos da psicanálise freudiana. Dessa forma fui mostrando que os mode- los descritivos da alma humana são aproximativos, pois não poderia haver ciência de alma humana já que ela é lugar de incidência de realidades de pe- sos ontológicos bem diferentes, no caso de Platão, inteligível e sensível e, no de Freud, da alma e do corpo. Mas, deixando de lado o estatuto epistemoló- gico das representações da alma humana, que é um tema complexo, podemos dizer que existem muitas convergências entre Platão e Freud, a principal é que somos dilacerados por movimentos conflitantes que são intensos e que são mediados por uma frágil in- teligência que tenta equilibrar todas as forças para manter a saúde desse organismo complexo. Acreditar na capacidade dessa inteligência parece-me que é a nossa única esperança. FILOSOFIA • Aristóteles é entendido também como grande expoente da filosofia antiga. Qual seria no seu ver a maior contribuição de Aristóteles na histó- ria da Filosofia? www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida' 9 ENTREVISTA Anastácio Borges de Araújo Júnior ANASTÁCIOB. DE A. jÚNIOR• Aristóteles tem muitascon- tribuições na tentativa de pensar nossa experiência múltipla, em movimento e dividida em várias áreas do saber. Eolhe que só temos uma parte de sua obra, jonathan Barnes calcula que só um quinto de seus escritos sobreviveu. Acredito que sua principal con- tribuição esteja em perceber que o instrumento que temos para investigar as coisas é uma inteligência que se estrutura e se expressa em linguagem e que sem investigar o lógos, e o que lhe pertence, o logikos, não era possível avançar e afastar as ambiguidades do pensamento/linguagem que pode dizer e mostrar o mundo tal como é. Ou seja, a verdade, em Aristóte- les, se atrela definitivamente ao discurso e examinar os princípios, causas e elementos da linguagem faz parte da Filosofia. Aristóteles inaugura aquilo que será denominado de filosofia analítica. Entretanto, como em tudo, aquilo que é novo é a maior contribuição, mas, também, seu ponto de maior vulnerabilidade. Digo isso, pois, ao dividir e fracionar a linguagem e o mundo, Aristóteles perderá a unidade do todo que tí- nhamos com Parmênides e Heráclito e que, de certo modo, já tinha sido mitigada por Platão. FILOSOFIA • Pensando na Filosofia enquanto amor ao saber, como você percebe a contribuição da Filo- sofia para possibilitar sentido para a existência das pessoas no seu cotidiano? ANASTÁCIOB. DE A. jÚNIOR• A Filosofia, enquanto amor ao saber, põe à prova todos os nossosvalores e coisas que desejamos, amamos e admiramos. Nesse senti- do, a Filosofia como que vira o mundo de cabeça para baixo, pois ao pensarmos a questão fundamen- tal se coloca: afinal, o que é a vida, o que estamos fazendo aqui e como devemos viver nessetempo que dispomos. Digamos, retomando Aristóteles no livro I da Metafísica, que a Filosofia surge, para os gregos, quando não se tem mais necessidade nem desejo de nenhuma ordem. A Filosofia é um questionar radical que nunca pode ser totalmente respondido, Assim, ela pode fornecer um sentido aos humanos, mas, em geral, é um sentido que não satisfaz a maioria, pois a maioria prefere viver nas ilusões do mundo do tra- balho, das riquezas, das belezas efêmeras, o mun- do como todos nós conhecemos. Entretanto, para as almas mais singelas e sensíveis, aquelas que já des- confiam da ilusão do mundo, a Filosofia pode dar 10 • filosofia ciência&vida um sentido, não como uma resposta definitiva, mas como um indagar constante e inconcluso, no qual sempre podemos ter algum prazer. FILOSOFIA • Como estão organizadas no Brasil as pesquisas sobre filosofia antiga? ANASTÁCIOB. DE A. jÚNIOR• Em filosofia antiga acho que hoje avançamos muito. Temos bons grupos de pesquisa, alguns associados com as Letras Clássicas e isso é muito positivo. Os três que conheço mais e que são centros de excelência são a Federal de Minas (UFMG), estaduais de Campinas e de São Paulo (Uni- camp e USP). Mas existem outros como a PUC e a Federal do Rio de janeiro e outros surgem pulveriza- dos no Rio Grande do Sul, Bahia, Paraíba, Rio Gran- de do Norte e Pará. Em Pernambuco, trabalhamos eu e a professora Loraine Oliveira, que estuda Plotino, e temos apoio das Letras, com o professor David Lira. Avançamos muito e temos que replicar isso em todo . o Brasil. Esperamos ter mais apoio, sempre. [Risos.] FILOSOFIA • Quais as sugestões de leitura que você indicaria para quem deseja conhecer mais profundamente a filosofia antiga? ANASTÁClOB. DE A. jÚNIOR• Depois que passar pelos ma- nuais conhecidos e os comentadores como William Guthrie, David Ross,Brehier, Mondolfo, jaeger, Hadot, Aubenque, jonathan Barnes, Monique Dixsaut, Mario Vegetti, Martha Nussbaum, entre outros, ir direto aos textos dos filósofos, estudar grego e latim e aprofun- dar a leitura e interpretação dos fragmentos, diálo- gos e tratados. Claro que é importante, sempre, ler Não troco o tratado de Aristóteles por nenhum comentador, muito embora eles sejam importantes para apontar o que foram capazes de ver no filósofo também a literatura, história, medicina e, em geral, todas as produções culturais do período antigo. Hoje, não troco o tratado de Aristóteles por nenhum co- mentador, muito embora eles sejam importantes para apontar o que foram capazes de ver no filósofo. Mas sempre há mais, pois nas produções dos gênios sem- pre há mais para ser compreendido e recolhido por nossa compreensão, por nosso lógos. FILOSOFIA • Como você analisa a contribuição de Sócrates para a filosofia de Platão? ANASTÁClOB. DE A. JÚNIOR• Sócrates foi fundamental para não só Platão mas para toda uma série de dis- cípulos que vão interpretar a verdade do sábio ao seu modo, de maneira que temos uma miríade de interpretações, algumas mais conhecidas, outras per- didas e outras mais triviais. Para Platão, a convivência com o mestre foi basilar e isso pode ser constatado pela presença do personagem Sócrates nos diálogos. Platão aprendeu com o mestre que a verdade é uma descoberta feita a partir de cada um, mas que pode ser compartilhada na vivência com os outros hurna- nos, através do diálogo, de modo que ela possa se tornar intersubjetiva e, desse modo, ganhar um ní- vel maior do que a medida de um só humano. Com Sócrates, Platão aprendeu a superar o relativismo sofístico e a valorizar o outro como pedra de toque das minhas verdades. A minha concepção, para ga- nhar consistência, precisa abrir-se ao outro que deve acompanhar, passo a passo, em discursos curtos, con- cordando e discordando com as colocações e aquilo que decorre delas. Essediálogo filosófico, conforme Platão apresenta na sua obra Córgias 487 a2 - a3, só é possível numa atmosfera amigável (eunoia) e franca (parrusia), na qual cada humano possa expor aquilo em que acredita (epistéme), para que o outro diga o que pensa dessa exposição. / FILOSOFIA • A depressão é uma doença que está marcando a vida de boa parte da popula- ção. Como psicólogo você acredita que o ritmo de vida acelerado contribui para tantas pessoas estarem depressivas? ANASTÁCIOB. DE _A.JÚNIOR• A depressão é uma pos- sibilidade humana de esvaziamento de sentido. Ela poderá ocorrer em função de uma perda, de uma insatisfação com a vida, ou até sem motivo algum. a excesso de informação, o ritmo' de processadores, nos computadores, smartphones e tablets, aos quais estamos submetidos, podem levar a um cansaço, a uma percepção de que por mais que nos esforcemos, não iremos dar conta da tarefa da vida. Entretanto, nos momentos emergenciais é sempre bom manter a calma e a serenidade. Assim, acreditoque mesmo que não compreendamos totalmente a vida, deve- mos nos manter tranquilos e sem pressa alguma. Para encerrar, uma breve citação de Platão, de um trecho da República 604 b9-c5: a costume diz que o que há de mais belo é con- servar a calma o mais possível nas desgraças e não se indignar, uma vez que não se sabe o mal e o bem que há em tais acontecimentos, nem se adianta nada, posi- tivamente, em os suportar com dificuldade; nem tudo que é humano merece que se lhe dê muita importância [. ..] e, tal como quando se lançam os dados, assim de- vemos endireitar as nossas próprias posições, de acor- do com o que saiu, pelo caminho que a razão escolher como melhor [...J. Ifilo www.portalespacodosaber.com.br·filosofiaciência&vida·11 ----------------------------==-==-==================~========================================~==~~==.~ SOCIEDADE O reacionarismo so-cial, em nossa grande.crise institucional,ganhou coragem de se exibir desavergonhadamente e impor sua pauta virulenta na ordem do dia. As conquistas de- mocráticas de outrora, ainda que incompletas, são incômodos ter- ríveis para segmentos sociais que somente prosperam com a perpe- tuação das desigualdades. Políti- cas públicas ineficientes contribu- íram para manter historicamente a cisão social, e o enfrentamento da criminalidade usualmente se pautou pela repressão e não pela prevenção e, sobretudo, pela cor- reção dos problemas estruturais que acirram tais desigualdades. Com efeito, os grupos elitistas ja- mais renunciaram aos seus bene- fícios e privilégios, considerados como méritos e não como abusos, arbitrariedades e atos de rapina contra o bem comum. As elites são as forças criminosas que roubam e mandam executar. Segundo Octa- vio Ianni, As classes dominantes pouco ou nada se preocupam com a conquis- ta da democracia. Em geral, os seus membros dispõem de prerrogati- vas, recursos, técnicas, poder pro- priamente dito, direitos de fato que lhes garantem o que o povo poderia conquistar - parcialmente - por meio do jogo democrático (Ianni, 2004, p. 156). A ascensão da truculência ao poder traz em seu bojo o projeto de militarização absoluta da socie- dade, associada ao espírito obscu- rantista que faz da ignorância sua virtude fundamental. Esses seg- mentos sociais despejam seu ódio contra todas as instituições que supostamente não satisfazem os seus desejos necrófilos, exigindo intervenção militar, fechamento dó Congresso Nacional, do STF e outras sandices injustificáveis. A arma" grande fetiche do espírito agressivo, é elevada ao patamar da adoração mercadológica, daí a im- portância da flexibilização da pos- se e do porte de armas em nossa era do reacionarismo ultraliberal, atendendo, assim, os interesses 10- bistas da indústria bélica, que, na verdade, depende da instabilidade A CRISE SOCIAL É FUNDAMENTAL PARA O AQUECIMENTO DO MERCADO, O DEVORADOR DA VIDA, PERANTE O QUAL TODOS SE CURVAM E SE CALAM 14 • filosofia ciência&vida jI. social, do medo e do espectro da violência, para navegar sobre essas ondas turbulentas para impor essa agenda militarista à opinião pú- blica e assim promover ampliação das suas vendas. A crise social é fundamental para o aquecimento do mercado, o devorador da vida, perante o qual todos se curvam e se calam. A instabilidade política exige, conforme o ideário ultraliberal, flexibilidade, dedicação incon- dicional ao trabalho, adesão ao modo de vida precário, perda das garantias trabalhistas, o que, pela mão invisível do mercado, apenas faz prosperar o topo da pirâmi- de econômica. Nada de mútuos benefícios para empresários e trabalhadores. Ética e responsa- bilidade empresarial só são úteis quando promovem a celebração das marcas. Quando se tornam inconvenientes para os propósi- tos mercadológicos, são deixadas de lado e imputadas como valores arcaicos e inconvenientes. Segun- do Byung-Chul Han, CONFORM[A IDEOLOGIA DO FASCISMO DE MERCADO, CADA "CIDADAO DE BEM" TEM O DIREITO INALlENÁVEL DE SE ARMAR E SE PROTEGER CONTRA AS AMEAÇAS DO CRIME A técnica do poder do regime neoliberal assume uma forma su- til. Não se apodera do indivíduo de forma direta. Em vez disso, garante que o indivíduo, por si só, aja sobre si mesmo de forma que reproduza o contexto de dominação dentro de si e o interprete como liberdade. Aqui coincidem a otimização de si e a submissão, a liberdade e a ex- ploração (Han, 2018, p. 44). A força destrutiva que defen- de o armamentismo social (para quem pode arcar com os custos, diga-se de passagem) é a mesma que defende a liberação indiscri- minada de agrotóxicos, a inter- nação compulsória de drogados, a privatização das penitenciárias, a desqualificação dos direitos hu- manos, a extinção da fiscalização sobre as condições laborais. Tudo em nome do "progresso do merca- do", ratificando assim os imperati- vos autoritários de um capitalismo avassalador, desregulado e corro- sivo. Para Franz Hinkelammert, o ser humano é inútil e até" des- cartável", a não ser que seja trans- formado em capital humano a ser explorado em função de sua uti- lidade, seja a utilidade a partir do interesse próprio calculada por ele mesmo, que considera a si mesmo capital humano, ou por outros, que querem explorá-lo em virtude de suas respectivas utilidades próprias (Hinkelammert, 2014,p. 201). É usual que um jovem, ao completar 18 anos, ganhe dos seus progenitores um automóvel, corno um rito de passagem para a vida adulta. A tendência agora é que o jovem ganhe um revólver para exibir sua masculinidade (para os fascistas, um revólver é pouco, poderia ser um fuzil, urna metralhadora). Quanto mais po- tente a arma, maior a dignidade social do seu portador. Apenas se modificam os instrumentos da lógica da ostentação social, mas a base estrutural é a mesma. ·A grande prova de amor do pai do futuro será dar ao seu filho ama- do urna arma de fogo, paga no débito ou no crédito. Mais do que nunca se tornam atuais as bên- çãos das armas. Conforme a ideologia do fas- cismo de mercado, cada "cidadão de bem" tem o direito inalienável de se armar e se proteger contra as ameaças do crime para pro- teger sua vida, sua família e seu patrimônio, não necessariamente nessa ordem. Há inclusive alguns animais políticos que apregoam a absurdidade de que não é papel das forças policiais proteger o ci- dadão, mas sim este, devidamente armado, enfrentar a marginali- dade social. Esse mesmo tipo de discurso defende que professores estejam armados nas salas de aula para que evitem eventuais atenta- dos. Vemos assim a inversão do projeto de formação do Estado Moderno corno o detentor do mo- nopólio da força e da segurança pública. A confiança republicana e constitucional nas instituições cede lugar para a descrença ir- racionalista na sua legitimidade, minando assim as bases da orde- nação democrática. Por isso os ultraliberais defensores do Estado mínimo são ávidos apologistas do armamentismo social, não apenas pela lucratividade que tal prática proporciona para tal segmento do mercado, mas também para que o indivíduo possa, ao fim e ao cabo, se proteger sozinho. Percebemos assim a formação de urna perspec- tiva extremamente individualista, autocentrada, em urna sociedade www.portale~pacodosaber.com.br • filosofia ciênciaâvida " 15 SOCIEDADE A IDEOLOGIA LIBERAL TRADICIONAL DEFENDIA O PAPEL DO ESTADO COMO VIGILANTE SOCIAL. A PROMISCUIDADE COM OUTRAS IDEOLOGIAS ~ CONSEGUIU CRIAR UMA ABERRAÇAO desprovida de solidariedade de- mocrática. Para Marcos Rolim, o medo do crime tem sido construído socialmente por mui- tos fatores. A cobertura exagerada de crimes violentos, por exemplo, acompanhada quase sempre de apelos em favor de respostas "du- ras" e "urgentes". Os interesses das empresas de segurança na amplia- ção de seus mercados e a exploração demagógica da criminalidade e da violência pelo discurso político têm desempenhado papel importante nesse processo (Rolim, 2006, p. 270). Outro ponto que devemos des- tacar nessa sanha armamentista consiste na perpetuação do hiato social entre ricos e pobres. Com efeito, qualclasse social poderá efetivamente comprar armas sem afetar o seu orçamento? Com ar- mas na mão, o imbecil truculento se considerará ainda mais acima do bem e do mal, como o rei que não pode ser questionado. Ima- ginemos as intensificações das brigas de trânsito, as confusões nas ruas, os ataques racistas, ho- mofóbicos e misóginos que se am- plificarão com essa flexibilidade irresponsável do armamentismo. Não podemos também esquecer da eliminação física dos indese- jáveis, dos mendigos, dos sem- -teto, cuja vida precária expressa o processo máximo de desuma- nização. A inconveniência social 16 • filosofia ciência&vida dessas pessoas pode facilmente ser resolvida através de assassina- tos totalmente convenientes para o urbanismo asséptico dos gran- des polos comerciais. Armai-vos uns aos outros, eis o imperativo belicista da nossa distopia social. Aqueles que defendem a difusão dos livros, das artes, da ciência, do conhecimento, são chama-. dos de drogados. Contudo, são os ânimos agressivos que vivem sob o entorpecimento mortal do veneno fascista e sua ideologia da déstruição niilista de tudo aquilo que existe. O ódio ao existir exige a cultura do vazio, do nada. A des- truição pela destruição. Para Ru- bens R. R. Casara, "o fascista age em nome da realização do desejo da audiência enquanto, ao mesmo tempo, o manipula. O discurso fascista é, sobretudo, um discurso publicitário que visa um receptor despreparado e embrutecido" (Ca- sara, 2018, p. 142). A privatização do modo de vida, encarnado no shopping cen- ter e nos condomínios (cidades em miniatura funcionais e integra- das), expressa esse modo de exis- tência idiota, asséptico e excluden- te. A ideologia liberal tradicional defendia o papel do Estado como o vigilante social mantenedor da ordem pública. Contudo, a pro- miscuidade entre o ultraliberalis- mo econômico e o reacionarismo social conseguiu criar a grande aberração que visa a completa disfuncionalidade do Estado; no entanto, esse ainda se faz neces- sário no processo de repressão das elites plutocráticas sobre as massas, desprovidas do direito de existir e de construir uma história de vida emancipada, ratificando assim o seu propósito de defen- sor incondicional dos interesses da classe dominante. A pretensa neutralidade do Estado é formal, assim como do poder Judiciário. Precisaríamos de muitos anos de democracia substantiva para re- verter esse quadro distorcido. Para Boaventura de Sousa Santos, "sem direitos de cidadania efetivos, a democracia é uma ditadura mal disfarçada" (Santos, 2011,p. 125). A hegemonia de uma agenda política autoritária, repressiva, ignorante e mistificadora permi- te a naturalização da barbárie no cotidiano social. Essa barbárie se expressa visivelmente de diver- sas maneiras, tal como através de governadores fanfarrões que se divertem metralhando alvos aleatórios em voos de helicóptero ou em ações assassinas de tropas do exército que fuzilam cidadãos destituídos unilateralmente do direito de viver e cujos soldados sequer são julgados por tribunais isentos e transparentes. Eis a li- cença para matar escancarada. Conforme argumenta Stephen Graham, "aqueles que não con- seguem se sustentar em sistemas cada vez mais privatizados e auto- ritários se tornam mais. e mais de- monizados, e sua vida, mais e mais precária" (Graham, 2016, p. 164). São as populações das favelas e das zonas periféricas as que verdadei- ramente sofrem dos efeitos da po- lítica de extermínio desse regime opressivo que se apropriou do po- der, inclusive mancomunada com as milícias, elas também parte do dito crime organizado. Conforme os mandamentos do fascismo de mercado, as massas faveladas de- vem permanecer como coadjuvan- tes do sistema capitalista, como su- A HEGEMONIA DE UMA AGENDA POLíTICA AUTORITÁRIA, REPRESSIVA, IGNORANTE E MISTIFICADORA PERMITE A NATURALIZAÇÃO DA BARBÁRIE NO COTIDIANO SOCIAL. ESSA BARBÁRIE SE EXPRESSAVISIVELMENTE DE DIVERSAS MANEIRAS NA VIOLÊNCIA COTIDIANA balternas, devem apenas viver para servir docilmente os seus patrões, menos direitos e mais empregos, ou, melhor dizendo, menos direi- tos sem garantias de que haverá de fato mais empregos. Tal como ar- gumenta [essé Souza, preto. Obviamente, não é a polícia a fonte da violência, mas as clas- ses média e alta que apoiam esse tipo de política pública informal para higienizar as cidades e calar o medo do oprimido e do excluí- do que construiu com as próprias mãos. E essa continuação da escra- vidão por outros meios se utilizou e se utiliza da mesma perseguição e da mesma opressão cotidiana e selvagem para quebrar a resistên- cia e a dignidade dos excluídos (Souza, 2019,p. 88). O excluído, majoritariamente negro e mestiço, é estigmatizado como perigoso e inferior epersegui- do não mais pelo capitão do mato, mas, sim, pelas viaturas -de polícia com licença para matar pobre e www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 17 SOCIEDADE • Bom trabalhador é aquele que é despojado dos seus direitos constitucionais, mas ainda assim se empenha no serviço, de modo a satisfazer os caprichos do patrão. Contudo, para que estejam sempre sob as rédeas do poder senhoril, as forças policiais colaboram de maneira exemplar nesse processo repressivo, realizando operações frequentes nas favelas através da aplicação da lógica do extermí- nio. Para Marildo Menegat, "a engenharia da indústria da mor- te é a derrota da política, ou seja, a crise da legitimação da ordem e a impossibilidade de se manter a ordem burguesa sem superá-Ia em se~ fundamentos" (Menegat, 2012, p. 127). Uma tal política do medo impe- de qualquer possibilidade de inte- gração cidadã desses habitantes na constitucionalidade democrática, pois tais pessoas foram relegadas apenas ao silêncio. A única voz possível é a do choro para celebrar os seus mortos, ainda assim até apenas no dia do sepultamento, pois após a cerimônia a vida deve retomar ao normal. Vida nua, vida crua, cuja história é apagada. Para essa gestão necrófila, o gran- de imperativo político é enfrentar o inimigo, seja ele externo ou in- terno. O inimigo é o vermelho, o esquerdista, o comunista, o sindi- calista, o intelectual, a feminista, o defensor dos direitos humanos, o pobre, o imigrante, o subversivo, o favelado. Em suma, uma diver- sidade de tipos sociais misturados em um amálgama de indistinção. Contudo, os demagogos truculen- tos vociferam tanto contra os seus inimigos e não percebem que na sua própria vizinhança há também criminosos, milicianos, traficantes de armas, assassinos. José Augusto Líndgren Alves salienta que: A criminalidade comum real- mente não tem estereótipos de loca- lização privilegiada. Mas tanto nas sociedades ricas, como nas emer- gentes, é vista deforma reducionista como "coisa de pobres", desconside- rando-se como irrelevante o fato de serem eles também as vítimas mais numerosas. Desconsideram-se tam- bém como menos ameaçadores os crimes de "colarinho branco': não obstante o raio incomparavelmente maior de seu alcance (Alves, 2005, p. 27,nota 10). A logística repressiva das ope- rações policiais parte sempre do centro do poder para as favelas e periferias, e poupa os condomí- nios de luxo e as grandes empre- sas dessas atuações espetaculares de explosões, tiros e mortes sa~- grentas. O crime que existe infil- trado em favelas é apenas reflexo dessa disfunção social que esta- belece as regras monocráticas da política de extermínio do aparato destrutivo do sistema. Sempre são os pretos e pobres os humilhados pelo regime necrófilo do fascismo do mercado, jamais a elite rapi- nante que manipula a opinião pública e a lógica econômica para legitimar sua própria proeminên- cia. As ordens do crime não par- tem das favelas, mas dos gabine- tes. Segundo David Garland, o aproveitamento continuado de liberdades pessoais baseadas no mercado depende dos aperta- dos controles de grupos excluídos, aos quais não se pode confiar tais liberdades. Enquanto os crimino- sos e beneficiá rios forem retratados como o "outro" e como responsá- ENQUANTO CRIMINOSOS FOREMRETRATADOS COMO O "OUTRO'" E COMO RESPONSÁVEIS POR SEU PRÓPRIO INFORTÚNIO, CLASSES DOMINANTES PODEM IMPOR SEUS CONTROLES 18 • filosofia ciência&vida A CONSTRUÇÃO DE UMA DEMOCRACIA EFETIVA NA SOCIEDADE BRASILEIRA EXIGE ESFORÇO CONTíNUO PARA QUE SUAS ESTRUTU RAS SE MANTENHAM SÓLIDAS. O AUTORITARISMO SEMPRE SE PERPETUA PELA LEGITIMIDADE IDEOLÓGICA DA IGNORÂNCIA veis por seu próprio infortúnio, oferecem-se oportunidades para que as classes dominantes impo- nham controles rígidos sem abrir mão das suas próprias liberdades. Em contraste com um controle so- cial solidário, no qual todos abrem mão de certa parcela de liberdade pessoal para a finalidade de pro- mover o bem-estar coletivo, o in- dividualismo de mercado consiste na liberdade de alguns amparada na exclusão e no rígido controle de outros (Garland, 2008, p. 420). A construção de uma demo- cracia efetiva na sociedade brasi- leira exige esforço contínuo para que suas estruturas se mantenham sólidas. O autoritarismo sem- pre se perpetua pela legitimidade ideológica da ignorância. A gran- de balbúrdia contra a democracia é efetivada constantemente pelos espoliadores da sociedade brasi- leira que, em nome do sucesso do mercado financeiro, do agrone- gócio, da indústria e do comércio não hesitam em impor uma agenda política retrógrada que se configu- ra como um grande ódio à razão e aos interesses sociais. Por isso a importância da mobilização popu- lar permanente nas ruas, nas uni- versidades, a associação coletiva na luta pelos direitos sociais e o apoio aos políticos comprometidos com as agendas progressistas. Acima de tudo lutar contra a política do medo que estimula o esvaziamen- to social, tão conveniente para os arbítrios antidemocráticos. Daí a importância de levarmos esse debate para os setores estratégi- cos da formação profissional, pois necessitamos, mais do que nunca, desenvolver lideranças comprome- tidas com as pautas democráticas proponentes do bem-estar comum, do respeito pela diversidade e pela inclusão social. Ifilo Vl ALVES,José Augusto Lindgren.Os direitos humanos na pós-modemidade. São Paulo: Perspectiva, 2005.-c O CASARA,Rubens R. R. Sociedade sem lei: pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e ,&:; barbárie. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2018. oe: ~ GARLAND,David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Trad. de oe: André Nascimento. Riode Janeiro: Revan, 2008. GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar.Trad. de Alyne Azuma. São Paulo: Boitempo, 2016. HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. de Maurício Liesen. Belo Horizonte: Àyiné, 2018. HINKELAMMERT,Franz. Mercado versus direitos humanos. Trad. de Euclides LuizCalloni. São Paulo: Paulus, 2014. IANNI,Octávio. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004. MENEGAT,Marildo. Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan, 2012. ROLlM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI.Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ Oxford: Universityof Oxford, 2006. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2011. SOUZA, lessé, A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Riode Janeiro: Estação Brasil,2019. --------------------------------------~------------------------~~f www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 19 Antes de mais nada, gostariade me pronunciar em pri-meira pessoa, não porquenão pudesse tratar desse tema com todo o rigor acadêmico que ele merece, antes porque aquilo que te- nho a dizer se parece mais com uma confissão pública de alguém que se apaixonou pela Filosofia aos 16 anos e segue desta maneira até hoje. Alguém que fez da Filosofia o seu ofício e que, ffirerem ou sinto prazer em verificãr que minhas opiniões têm a honra de ir ao encontro das deles, às vezes, e, embora de longe, sigo-Ihes as pegadas. E também tenho esta vantagem que nem todos têm, que é conhecer a profunda diferença que há en- tre mim e eles (Montaigne, 1984,p. 73). EXISTÊNCIA que procurasse por mais vida - por mais vontade de vida, que estivesse em busca de novos ares, já sufoca- do pelos da cidade. E, quem sabe, estimulá-lo a viver a vida com mais alegria e intensidade. 1. APESAR DESSE CONTEXTO, CELEBREMOS A VIDA! Esses tempos sombrios mar- cam nossa alma com um desalento sem par como se estivéssemos em um labirinto longe de intuirmos a saída, pelo contrário, nos sentimos como se fôssemos ser tragados pelo Minotauro que o habita a qualquer instante. Os motivos pelos quais fomos lançados nele são perfeita- mente numeráveis: a corrosão dos valores morais, a corrupção, a ba- nalização do mal, a precarização do trabalho, depredação maciça do meio ambiente, altos índices 22 • filosofia ciência&vida de depressão, suicídio e violência, entre outros. Nosso ritmo de vida se modela às exigências do capital que, sempre nômade, busca a todo instante novas áreas para explo- ração. Tempo que se destaca pela liberdade - se, por um lado, assis- timos com entusiasmo às manifes- tações individuais ou de pessoas unidas por uma causa comum, por outro, "pessoas que prejudicam a comunidade ou que a relegam ao abandono acabam prejudicando a si mesmas, entrando elas próprias em um processo de deteriorização" (Negt, 2002, p. 25). Para o autor, esse processo se deve em grande parte à falta de concorrência na atualidade com o sistema capitalista, que servia como barreira de proteção e de "domesti- cação do capitalismo" (Negt, 2002, p. 20). Chegamos, então, ao "capi- talismo predatório". O momento que vivemos (não que a vida tivesse sido mais fácil ou confortável an- teriormente na história) nos aflige em grande proporção e intensidade por conta das incertezas e volatili- dade das últimas décadas. Talvez, por isso mesmo, a Filosofia seja de imprescindível relevância para a existência, não por erudição, mas porque, antes de tudo, devamos encarar a Filosofia como um modo de vida. Nesse contexto, facilmente podemos adoecer: somos tomados pela tristeza que nos impede de agir, diminuindo nossa potência. Afinal, para que Filosofia? O trágico da nossa existência consis- te justamente na clareza de nossa própria finitude, embora nossos pés sempre se dirijam em dire- ção à melhor "rota de fuga", não há como escaparmos ao doloroso encontro que temos com a gen- te mesmo. Sem ele, não há como repensar o modo como levamos a vida e a Filosofia serve como um farol para os marinheiros envoltos nas escuras tempestades. Como marinheiros lançados ao mar revolto da vida, desde muito cedo sentimos na pele (no corpo) o que ela é e rechaçamos tudo aquilo que não nos apetece - a dor, a doen- ça, a morte ou até mesmo os desen- contros como se essas coisas não devessem existir ou como se fôs- semos culpados por vivenciá-las. Não fomos instruídos devidamente sobre essas questões. Tornamo-nos fracos para a garoa, para a chuva, e não suportamos as tempestades. Fomos educados para a vida útil e confortável do sofá, estamos, de fato, bem despreparados para o que pode vir a acontecer conosco. À primeira vista, portanto, podemos estranhar a citação de Nietzsche ~----~~--------------------------------- NA FILOSOFIA NIETZSCHIANA, O FATO DE ESTARMOS VIVOS É MOTIVO DE CELEBRAÇÃO, AINDA QUE EM PLENO SOFRIMENTO em Ecce homo: "Devo estar despre- parado para estar senhor de mim" (Nietzsche, 1985,p. 50). Por mais estranho que nos pos- sa parecer, estar despreparado não é de todo mal. Se entendermos a valiosa lição herdada dos antigos e seguida à risca pelo pensador ale- mão, a vida é um presente. Com- preender que estarmos vivos é que é o maior presente - implica em aceitarmos a vida como ela é. Es- tamos aqui para sentirmos tudo - desde a tristeza mais triste até a alegria mais profunda. O que im- porta é estarmos vivos! O que im- porta é amar a vida como ela é em sua totalidade caótica e imprevisí- vel. Essa concepção nos espanta, porque desaprendemos a conceber a vida enquanto devir - nada dura para sempre. O saborda vida con- siste, para Nietzsche, na possibili- dade de experimentarmos tudo o que ela tem a oferecer. Mas, dife- rentemente do que ele nos apresen- ta, queremos a eternidade de todas as coisas boas. Qual de nós, se pudesse, não congelaria o tempo em determina- dos momentos? Às vezes, nos pa- rece ser impossível vivenciarmos outros momentos tão felizes quan- to aqueles. Mas o fato é que eles passam e não sabemos o que virá depois - no geral, nos ressentimos com a vida, acusando-a pelo fato dela ser o que é. Gostaríamos que ela fosse exatamente como deseja- mos. Isso tem nos enfraquecido e o que fazemos com maior frequência é amaldiçoá-Ia e nos tornamos in- gratos para com tudo o que temos de bom. Assim, na filosofianietzschiana o fato de estarmos vivos é motivo de celebração, ainda que em pleno sofrimento. Mas para celebrarmos a vida, além de nos tornarmos ma- rinheiros fortes e capazes de apre- ciar as gotas de chuva sobre nossos corpos, bem como as sacudidas de ciclones, devemos primeiramente saber como vamos gastar o tempo que nos resta. Por isso, me lembrei de Heidegger. 2. O QUE FAZER COM O TEMPO QUE NOS RESTA? Complicado falar de Heidegger em tão poucas linhas, mas pode- mos delimitar o que se relaciona diretamente com nossa reflexão. Heidegger entende que o homem é abertura e correspondência aos apelos de ser. Esses apelos de ser são efetuados desde o seu nasci- mento ao mesmo tempo em que já nasce "envolto em panos": habita um mundo no qual é convidado a participar, é banhado pela "cul- tura". Assim, se por um lado ele é convidado a ser como todos os ou- tros homens são, já que elepertence a uma certa cultura, por outro lado é apelado pelo ser a seguir de modo próprio sua existência. O homem é um ser mundano, é um ser-no- -mundo, o que implica considerar que na sua estrutura ontológica há a impropriedade como condição de ser e os apelos para tornar-se si mesmo próprio. Não há como viver no mundo sem se relacionar com os outros. Estar-aí, presente no mundo, é sua facticidade. Sua tarefa é cuidar de sua existência, quer queira ou não. Esse "fato de ser", caráter on- tológico da pré-sença, encoberto em sua proveniência e destino, mas tanto mais aberto em si quan- to mais encoberto (...), chamamos de estar-lançado (...). A expressão estar-lançado deve indicar a factici- dade de ser entregue à responsabili- dade (...) Facticidade não é a fatua- lida de do factum brutum de um ser simplesmente dado, mas um caráter ontológico da pré-sença assumido na existência, embora desde o iní- cio reprimido. O fato da facticida- de já não pode mais ser encontrado ~ em uma intuição (Heidegger, Ser e tempo, 1989,p. 189). Em outros termos, Heidegger nos conta que o homem não está presente no mundo como um ob- jeto ou outra coisa qualquer, senão seria apenas um ser simplesmente dado, um factum brutum. O ho- mem não escolheu ser, mas está aqui num tempo que se esgota, sem saber de sua proveniência - de onde veio, e nem para onde vai, e o que vai lhe acontecer. Cabe ao homem a tarefa de aprontar-se a www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 23 j------------------------------------------------------------------------~ EXISTÊNCIA • PARA SÊNECA, DIANTE DA RODA IMPREVISíVEL DA FORTUNA, SÁBIO É AQUELE QUE SE COLOCA ACIMA DAS INJÚRIAS E NÃO SE ALTERA COM O íMPETO DAS ONDAS DA ADVERSIDADE si mesmo a fim de si mesmo pró- na existência num determinado prio, é sua responsabilidade. Esse momento. O homem, portanto, é a aprontamento de si também não possibilidade dada, efetivada (ônti- significa que tudo já esteja prede- ca), mas também as possibilidades terminado ou destinado, não se não manifestas, que continuam trata de um juízo ou de um con- existindo porém como possibilida- ceito, mas de algo que se tece no des no tempo (passado, presente e tempo. Aprontar-se, podemos di- futuro). Em outras palavras, o ho- zer, é realizar-se. m~m também é aquilo que não foi. Segundo Heidegger, o homem é É preciso ressaltar que a possibili- um ente que se faz ao projetar-se, dade, o possível, enquanto poder ao lançar-se, que pode lançar-se existe e sempre no tempo, só que em mil possibilidades de ser que o na existência, no tapete da existên- seu modo de ser lhe permite. Isto é, cia, geralmente o que sevê é apenas cada um tem a sua própria maneira a possibilidade efetivada. Pensar de viver e de ser feliz. Só que nesse também no que não foi, naquilo projeto o homem emprega tempo, que não se realizou, permite ao ho- tempo que elepróprio é, tempo que mem uma dimensão muito maior se esgota, se esvai e o engole para da sua própria existência. sua última possibilidade de ser: seu A grande contribuição da fi- morrer. É devido a esse caráter de losofia heideggeriana para nossa finitude que o tempo para o ho- questão, em primeiro lugar, é a de mem se apresenta como um "ho- ressaltar que não sabemos nem rizonte de sentido do Ser" (Critelli, de onde viemos nem para onde 1985, p. 97). Somente percebendo vamos e é por isso mesmo que sua temporalidade, sua finitude é buscamos um sentido para a vida. que se instala uma percepção de Essa apreensão sobre o sentido do suas possibilidades de ser, como ser, em caráter individual, só pode projeto, conferindo à sua existência ocorrer quando nos damos conta um sentido. Esse sentido é revelado da nossa dimensão temporal, esta- pela maneira como o homem cuida mos sujeitos a essa condição - não de seu ser. O projetar-se significa há nada pronto, mas a se fazer, e possuir mil possibilidades de ser embora se contemplem as mil pos- (caráter ontológico) e se realiza na sibilidades de ser, o que de fato é manifestação, na configuração de muito bonito, porque· alimenta uma possibilidade dada na existên- nossa alma, por outro lado nos cia (caráter ôntico). deixa entrever que o que de fato A cada momento há o possí- existe é considerar como, com vel, mas esse possível se dá numa quem e fazendo o que vamos gas- possibilidade configurada, dada tar o tempo que nos resta. ~~ ilitx ~~r~. ~ ~ À\JS)., ~ f . ,,~t....~2~~ot~~osMlãdência&vida.0m ~"".J \0 ",tL_' "<I'~ ~6 ~ tU'Sb ~ ~ U;frrnb G~ 2.1. Como? Fazendo o quê? Algumas linhas acima lemos que o homem pode lançar-se em mil pos- sibilidades de ser que o seu modo de ser lhe permite. Sepudermos trazer à luz algumas poucas ideias sobre esse assunto, poderíamos começar respeitando os diferentes modos de ser que leva cada ser humano a bus- car de modo próprio sua felicidade, ainda que seja de modo impróprio - ou seja, pautado na opinião dos outros, da tradição. Mesmo que nos pareça que alguém que conhe- cemos escolheu levar uma vida que mais se parece com a escolha que os outros fizeram para ele, todos os dias, pela manhã, este alguém é sempre livre para mudar de dire- ção, para mudar a rota de seu navio. O modo de ser de cada um também nos leva a questionar, in- clusive, aquilo que escrevi acima sobre a celebração da vida. Alguns acreditarão que a felicidade consis- te justamente na ausência de dor, como os estoicos, por exemplo. Para o tutor de Nero, Sêneca, dian- te da roda imprevisível da fortuna, o sábio é aquele que se coloca aci- ma das injúrias, nem se altera com o ímpeto das ondas da adversidade, é imperturbável, prepara-se para a vida, antecipando as possibilidades que podem efetivar-se no porvir, esquivando-se do apego demasiado às coisas e pessoas. O estoico exercita a ataraxia - o que, no final das contas, é um modo de estar preparado para os acontecimentos da vida, suportando tudo com dignidade e comedimen- to, assim, está longe de ser levado pelos arroubos temerários das pai- xões. Devemos nos valer das lições do estoicismo? Em Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral há uma passagem que nos faz refletir: enquanto ele deseja livrar-se o mais possível dos sofrimentos, o ho- mem intuitivo, ao contrário, colo- cado no coração de uma cultura, já desfruta, a partir de suas intuições, de um esplendor que se irradia con- tinuamente, de um desabrochar, de uma redenção. É verdade que sofre mais intensamente quando sofre: com muitafrequência sofre porque não consegue tirar lições da expe- riência, torna a cair naquele ponto rotineiro, onde já havia caído. É tão pouco razoável na dor quanto na felicidade: grita forte e fica descon- solado. Em meio à mesma desgraça como é diferente o estoico, instruído pela experiência e dominando-se através dos conceitos! Ele que costu- meiramente não procura mais que a sinceridade, a verdade e a liberdade diante das ilusões e proteção contra as surpresas enganosas, agora na infelicidade monta a obra-prima da dissimulação, do mesmo modo que o outro na infelicidade; ele não tem um semblante humano mutável e animado, ostenta de certo modo, uma máscara de traços dignamen- te proporcionados, não grita nem altera o som de sua voz: quando uma tempestade se abate sobre ele, protege-se com seu casaco e afasta- -se sob o aguaceiro, com um passo lento (Nietzsche, 1987,p. 77). extremos - tanto na dor quanto na felicidade. Ele está preparado, veste-se com um casaco que o pro- tege da chuva forte, e então pode caminhar, ele não se detém nem se deixa destruir com certos eventos. Entretanto, apesar dessa filosofia nos indicar uma maneira de como viver, o estoico não conseguirá sen- tir o que é de fato uma felicidade, vivida em toda sua plenitude ein- tensidade, ou seja, a ele lhe será ne- gada a oportunidade de viver "fora da história". Esse tipo de homem não se pre- para, não está advertido para os fa- tos da vida, mas certamente, dessa forma, sua existência é preenchi- da de nuances coloridas e refina- das, ele consegue viver o presente, como se nada mais existisse além daquele momento, seu rosto é ex- pressivo e revela as emoções de seu coração. Todavia, viver oscilando entre constantes extremos abri- ga grandes perigos. Nem todos os homens são fortes o suficiente para suportar determinadas situações. Para alguns, a mesma circunstân- cia pode ser catastrófica.(...) Para me expressar em ter- mos mais eruditos, a capacidade de nos sentirmos fora-da-história. Quem não é capaz de repousar, es- quecendo todo o passado no umbral do momento, quem não pode pôr-se de pé um instante; sem vertigem e nem temor como uma deusa da vitória, não saberá que coisa é a felicidade e o pior ainda, não fará nada para dar felicidade aos outros (Nietzsche, 1970,p. 107). (...) é necessário saber com exati- dão quanto há de força plástica em um indivíduo, um povo, uma cultu- ra. Me refiro a esta força de crescer por si mesma, de uma força que lhe éprópria, de transformar e incorpo- rar as coisas do passado, e o hetero- gêneo, de gerir e de cicatrizar as fe- ridas, de recolocar o que foi perdido, de refazer por si mesmo as formas o estoico precisa reduzir as expectativas, nunca é levado aos www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 25 EXISTÊNCIA quebradas. Há homens que pos- suem um grau tão escasso desta for- ça que só uma experiência, uma só dor, até mesmo uma só ligeira injus- tiça é irremediavelmente perigosa, como se todo o seu sangue se esvaísse por uma pequena arranhadura. Há, de outra parte, aqueles que são tão invulneráveis que os acidentes mais selvagens e as mais horríveis desgra- ças da vida e mesmo atos de sua pró- pria maldade são como doses peque- nas em meio às crises mais violentas (Nietzsche, 1970, p. 108). Essa força plástica de que nos fala Nietzsche na 2a Extemporânea reside na nossa capacidade de es- quecer, de esquecer certos aconteci- mentos do passado. Talvez fosse de fato para nós muito mais aprazível se pudéssemos viver felizes como o animal, já que ele vive com intensi- dade o presente sem se recordar do passado ou criar expectativas em relação ao futuro. E aqui Nietzsche e Heidegger se encontram - em ambos, há a observância de mo- dos de ser diferentes e de como os homens encaram a sua própria temporalidade. Vale atentarmos que muitas vezes nos prendemos ao passado, como se lá tivéssemos sido felizes, lá estão cristalizados os melhores momentos de modo que muitas vezes impedimos de que es- ses bons momentos sejam vivencia- dos também no presente, ou, pelo contrário, temos tantas expectati- vas em relação ao futuro que mal conseguimos suportar o presente. 2.2. Com quem? Nosso segun- do item, a partir das considerações heideggerianas, é o "com que" ou "com quem". Item talvez bem mais problemático do que parece ser. Se- gundo Heidegger, gastamos nosso tempo com coisas e pessoas. Já fa- lamos sobre o como - não há como modificar determinados fatos da vida, mas podemos modificar a maneira de os olharmos e de lidar- mos com eles. A atitude estoica nos reporta praticamente à ideia de nos tornarmos heróis para nós mes- mos. Implica serenidade e cons- 26 • filosofia ciência&vida tância da nossa razão, prevenindo e antecipando os acontecimentos e adversidades enquanto que outros, de acordo com seu modo de ser, podem perfeitamente estar mais próximos da filosofia nietzschiana: preferem viver intempestivamente, vivenciando tudo o que a vida tem a oferecer, como aquele marinheiro que ama o mar, e quando chega a tormenta e a chuva forte balan- ça o pequeno navio, sente o frio e a chuva que molha o seu rosto e sente prazer em querer mais. Que- rem mais é viver, não se importam tanto com aquilo que virá a seguir, gostam de correr riscos e, por isso, desejam sentir o frio e a tempesta- de; isso fortalece suas veias e os- sos - temem, mas enfrentam, não se esquivam da dor nem do medo, nem da tempestade. Essa atitude os torna mais fortes. Sua força plástica sempre os regenera, apesar dos di- laceramentos. Nesses dias tão difíceis e com demandas crescentes, nos parece que dois ingredientes são essen- ciais - o amor e a amizade. Podem se considerar felizes todos aqueles que podem contar com pessoas especiais que se tornam cúmplices e referências da nossa existência. Não se trata aqui de complemen- tos - não é algo que nos falte, pois nascemos e morremos sozinhos e devemos nos tornar nossa melhor companhia, mas são essas pesso- as que dão cor e "apimentam" ou "adoçam" nossos dias. Mesmo correndo o risco de pa- recermos piegas, sentimos a neces- sidade de retomar o valor do amor e da amizade entoados desde a fi- losofia clássica. Tradicionalmente, dividimos o amor em dois sujei- tos: o amante, aquele que ama - o CO~RENDO o RISCO DE PARECERMOS PIEGAS, SENTIMOS A-NECESSIDADE DE RETOMAR O VALOR DO AMOR E DA AMIZADE ENTOADOS DESDE A FILOSOFIA CLÁSSICA apaixonado e o objeto de seu desejo - o amado. Este é sempre um mis- tério, um enigma a ser decifrado. Mas quem fala, escreve poemas e chora é sempre o amante que oscila entre a alegria, o transbordamento e o coração partido que lamenta e se entristece. O amor deveria pro- vocar um sentimento constante de felicidade, entretanto o amante sabe de sua condição trágica - sen- te e não pode impedir-se de sentir, quer que o amado seja seu, e sofre por supor que isso não se realize ou se prolongue. O amante então vale-se de to- das as artimanhas e estratégias para conquistá-lo definitivamente, sente-se sempre carente, porque sempre acha pouco o que recebe. Essa é a verdadeira natureza do amor: filho de Engenho e Penúria, segundo a sacerdotisa Diotima, n'Q banquete de Platão: A história é um tanto longa - respondeu; contudo vou contá-la. No "dia que Afrodite nasceu, os deuses davam um banquete. Acha- va-se entre eles o filho de Astucia, que é Engenho. Acabado o banque- te, chegou Penúria, para mendigar, visto que havia mesa farta, e parou à porta. Entretanto, Engenho, ébrio de néctar - o vinho não existia -, saiu para o jardim de Zeus e caiu num sono pesado. Penúria, eterna- mente em dificuldades, entendeu de ter um filho de Engenho, deitou-se com ele e concebeu o Amor. (...) fi- lho, pois, de Engenho e Penúria, o Amor teve esta sina: primeiro é um eterno mendigo, longe de ser um ente mimoso e bonito, como pensa a maioria; ao contrário, é aturado, poento, descalço, sem teto, sempre deitado no chão, sobre a terra nua, dormindo ao relento nas soleiras e nos caminhos, porque herdou a natureza da mãe e passa a vida na indigência. Mas, puxando pelo pai,vive espreitando o que é belo e bom, porque é viril, acometedor, teso, um caçador exímio, sempre a urdir suas malhas, ávido de inventivas e talen- toso, passando a vida afilosofar (...). Todavia, a renda se seus talentos sempre se lhe esvai, de sorte que o amor nunca está na miséria e nunca na opulência (Platão, 1978,p. 75). O amante é um prisioneiro ca- tivo de seu próprio sentimento, mas é claro, repleto de estratégias para alcançar as benesses do ama- do. Referendamos com a fala de Pausânias, ainda n'Q banquete: "Se aventurasse alguém aos mesmos propósitos no assédio a seu amado, formulando súplicas, implorando, proferindo juras, deitando-se nas soleiras, prontificando-se a gêneros de escravidão que escravo algum suportaria" (Platão, 1978, p. 51). Tudo o que o amante fizer, por es- tar inspirado pelos deuses, é para além de bem e mal. Tudo suporta: o frio, a distância, a indiferença, o assédio e a convivência de outras pessoas, os desejos mais insensatos e descabidos do amado. O que ele quer, enfim, é estar enlaçado em seus braços. Ora, qual seria a graça da vida sem um grande amor? Seja ele correspondido ou não, o mundo tem um outro colorido quando nos apaixonamos. O segundo sentido para o amor diz respeito à palavra philos. Este significa amor de amigo, ou seja, o amor verdadeiro - há amigos que são mais queridos do que um ir- mão, porque, na verdade, a Philia não tem a ver com laços de sangue. Éuma amizade verdadeira, sem in- teresse, que completa a alma. Uma boa ilustração desse sentimento encontramos em Montaigne, no seu lindo texto Da amizade. Para o autor, a amizade en- tre pais e filhos não pode perder de vista a hierarquia, pois não há como educar sem a imposição de regras e censuras. As relações fraternais também são avaliadas - nelas, a amizade nem sempre se exerce, pois podem não existir afi- nidades entre os irmãos. Percorre também sobre as relações entre homem e mulher, e percebe que o vínculo de amizade definha o sen- timento de amor. "O amor é antes de mais nada um desejo violento do que nos escapa: 'como o caçador perseguindo a lebre; desdenha-a ao alcançá-Ia e só a deseja enquanto a persegue na fuga'" (Montaigne, 1984, p. 90). No caso, estão à al- tura de participar de conversas e troca de ideias e não se recorda de www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 27 EXISTÊNCIA nenhum exemplo feminino para objetar nessa questão. O verdadei- ro amor de amigo, diz Montaigne, é aquele que sentiu por La Boétie: Na amizade a que me refiro, as almas entrosam-se e se confundem em uma única alma, tão unidas uma à outra que não se distinguem, não se lhes percebendo sequer a li- nha de demarcação. (...) nós nos procurávamos antes de nos termos visto, pelo que ouvíamos um do outro e nascia em nós uma afei- ção em verdade fora de proporções (Montaigne, 1984, p. 92). O amigo verdadeiro, tão raro hoje como outrora, não mede es- forços para proporcionar felicidade ao outro, o consola e o completa. Sem amigos, não há felicidade. Montaigne continua seu texto, após a morte de La Boétie: Os próprios prazeres que se me oferecem, em vez de me consolar, 28 • filosofia ciência&vida ampliam a tristeza que sinto da perda, pois éramos metade em tudo e parece hoje, que lhe sonego a sua parte (...) Contigo pereceram de um só golpe todas as nossas alegrias e esse encanto que tua suave amizade deitava em minha vida. Ao morrer, irmão, despedaçaste toda a minha felicidade; minha alma desceu ao túmulo com a tua (Montaigne, 1984, p. 95). Certamente, tal grau de amiza- de sempre foi raro, mas podemos observar que esse tipo de amor - o de amigo - se mantém graças a al- gumas características: a comuni- cação, o diálogo, a convivência, a troca de ideias, as afinidades perpe- tuam o laço de amizade. Esses vín- culos são fruto de uma escolha que pode começar por acaso. O início se dá naturalmente, mas a sua per- manência exige dedicação. Exige encontrarmos tempo para o outro. Ainda aqui cabe lembrar que, etimologicamente, a palavra fi- losofia significa amor/amigo da sabedoria. O filósofo é aquele que deseja a sabedoria, pretende andar de mãos dadas com ela, mas como todo amante ou amigo sabe que não é detentor da sabedoria, ape- nas anseia por ela. Na juventude ou na velhice, a Filosofia se torna uma grande companheira nessa viagem da nossa existência. 3. DEVEMOS SER POETAS E AUTORES DA NOSSA EXISTENCIA Sem dúvida, o espaço dedicado para esse tema sempre será insu- ficiente. Com Nietzsche, aprende- mos que é inevitável a consciência de nossa trágica condição. Mas o que é interessante é que ele nos convida a nos tornarmos poetas e atores da nossa própria existên- cia - o que implica na tomada de um caminho individual, único, que cria e recria incessantemente a si mesmo, como um artista que treina, se exercita para entrar no "O QUE FAZER COM O TEMPO QUE ME RESTA?" HEIDEGGER NOS RESPONDE, DEPOIS DE NIETZSCHE, QUE DEVE GASTAR SEU TEMPO NO CULTIVO DE SI MESMO, TORNANDO A VIDA UMA OBRA DE ARTE palco. Para ele, assim como o ator procura a cada dia se aprimorar, assim também devemos fazê-lo. Devemos tornar nossa existên- cia uma obra de arte. No esteio de Nietzsche, Foucault se reporta também aos antigos para enfatizar a ideia desse cultivo pessoal en- quanto uma estética da existência. Trata-se de (...) uma arte da existência que gravita em torno da questão de si mesmo, de sua pró- pria dependência e independência, de sua forma universal e do vínculo que se pode e deve estabelecer com os outros, dos procedimentos pelos quais se exerce seu controle sobre si próprio e da maneira pela qual se pode estabelecer a plena soberania sobre si (Foucault, 1985,p. 234). Na contemporaneidade, en- contramos um aluno de Foucault, Hadot, que retoma a filosofia an- tiga enquanto psicagogia, que se destina a "formar almas". Nesse sentido, a Filosofia nos permite a instauração de um modo de vida que se pretende "justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nos- sos impulsos, desejos e paixões" (Chaui, 2000, p. l4). Tal retomada empreende o esforço na busca dos rastros deixados pelos antigos no que concerne ao cuidado de si - que envolve, para Hadot, a prática de exercícios espirituais, compar- tilhamento dos momentos essen- ciais da vida com os outros. Esse embelezamento de si é praticado no coletivo. "De maneira geral, eles consistem, sobretudo, no con- trole de si e na meditação" (Hadot, 2012, p. 23-24). Assim, temos a retomada da Fi- losofia enquanto uma terapêutica do cuidado de si. Em outras pala- vras, retomando as ideias de Niet- zsche, em certa medida, de condu- zirmos nossa vida enquanto obra de arte, refinando e embelezando os instintos. Diante da caoticidade da vida, esses pensadores procu- ram nos ensinar a viver. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossa proposta residiu em propiciar ao nosso leitor, em tom confessional, alguns pensadores que podem nos ajudar a ressigni- ficar nossa existência. Apesar dos tempos sombrios, a vida deve ser celebrada - ainda que em meio a tormentos. A consciência de nossa finitude nos remete diretamente à indagação: "o que fazer com o tem- po que me resta?" Heidegger nos responde, depois de Nietzsche, ao tratar da ideia de um aprontamento de si - gastar seu tempo no cultivo de si mesmo, a fim de transformarmos nossa exis- tência em uma obra de arte: uma vida digna de ser vivida. Para tan- to, também podemos contar com os arroubos da paixão que deixam a vida mais colorida e intensa, com os amigos e com a espiritualidade. A arte também nos ajuda a expres- sar nossa subjetividade e manifes- tarmos nossas potencialidades. A vida deve ser vivida com ale- gria, pois somos seres únicos e irre- petíveis no mundo, e isso deve ser apreciado. Nesse sentido, ao tratar- mos da importância da Filosofia para a existência, nos parece sem- pre insuficiente pretender transpor, em qualquer espaço que seja, o de- leite e a doação de sentido que ela oferece, não por erudição apenas, mas nos apropriando dos antigos, enquanto um modo de vida. Ifilo V) CHAUI, Marilena.Convite à Filosofia. SãoG Paulo: Ed. Ática, 2000. Disponível em: https:// <~ edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1936981/ f6 mod resource/content/3/aula%201 ti; CHAU%C3o/08D%2C%20Marilena:%20 '" Convite%20%C3o/oAO"Io20filosofia.pdf CRITELLI,Dulce. Existência fascinada. Tese de doutorado em Psicologia da Educação. PUC-Sp, 1995. FOUCAUL, Michel. História da sexualidade. Vol. 111. Rio de Janeiro: Graal, 1985. HADOT, Pierre. Elogio da filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2012. __ o O que é a filosofia antiga? São Paulo: Edições Loyola, 2014. HEIDEGGER,Marlin. Ser e tempo 11. Petropólis: Ed. Vozes, 1989. MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. Vol. 11. São Paulo: Ed. Mestre [ou, 1973. MONTAIGNE, Michel. Ensaios. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1984. NEGT,Oskar. Espaço público e experiência. Cidade e cultura. Esfera pública e transformação urbana. São Paulo:tStação Liberdade, 2002. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. In: O livro do filósofo. São Paulo: Ed. Moraes, 1987. __ o Ecce homo. São Paulo: Ed. Max Limonad,1985. __ o Da utilidade e dos inconvenientes da história para a vida. Lisboa: Ed. Presença, 1970. PLATÃO.O banquete.ln: Diálogos. São Paulo: Ed. Cultrix, 1978. www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida' 29 FILOSOFIA ClÍNICA por lúcio packter Ontem depois de amanhã Minta para mim ontem [ames Hillman escreveu: "A sofisticada 'classe terapêuti- ca' que chega à terapia privada possui suas histórias moldadas no gênero terapêutico, isto é, a história é autorreflexiva e focada nos 'problemas' do personagem principal". Hillman entendia que desen- volvimentos peculiares estariam então presentes: "Pacientes usam suas histórias de formas dife- rentes. Alguns contam histórias como forma de entretenimento para passar, ou enganar, o tempo; outros são repórteres; outros são advogados de acusação elaboran- do uma queixa. Ocasionalmente, uma história se torna totalmente metafórica.jjja qual todos os as- pectos do-que-eu-vi-ontem - a grande construção de um prédio, o mestre de obras de capacete na cabine de controle, a garotinha numa poça prateada de água da chuva em perigo diante de uma escavadeira, o transeunte que interfere - se referem também a figuras na psique do paciente e à 30 • filosofia ciência&vida JAMES HILLMAN EXPRESSOU EM SUA OBRA QUE ESTAMOS DIANTE DE UM ERRO: "O ERRO DE MECANISMO CENTRAL EM PSICOLOGIA É QUE ELA LlTERALlZA FUNÇÕES E AÇÕES COMO PEÇAS MÓVEIS DISTINTAS, SEPARADAS UMAS DAS OUTRAS" interação entre elas. Um clínico deve notar a forma como as his- tórias são contadas". Em sua obra Ficções que curam ele também afirma que na terapia ocorre a seguinte dis- posição: "Dois autores agora es- tão colaborando em uma ficção mútua de terapia, embora con- vencionalmente apenas um irá escrevê-Ia". [ames Hillman expressou em sua obra que estamos diante de um erro: "O erro de mecanismo central em psicologia é que ela literaliza funções e ações como peças móveis distintas, separa- das umas das outras". Citando o caso Dora como exemplo, Hillman coloca Freud no epicentro do fenômeno quando indica que o médico abandonou a narrativa dos casos clínicos como seriam descritos por um patologista e a associou à ficção, ao romance, construin- do um modelo que se dissemi- naria amplamente. Histórias inventadas em terapia geraram entendimentos sem alma, coisi- ficados, reducionistas. Esse problema às vezes se reproduz em Filosofia Clínica e desafia o filósofo a pesquisas complexas na busca de dimen- sionar, endereçar, compreender o que ocorre. Exemplo: quando uma pessoa discorre sobre algo em sua vida ela está editando um trecho? Quais os critérios que ela utiliza nessa editoração existencial? Como ela sabe se a maneira como selecio- na, narra, expõe o que entende ter acontecido de fato se traduzirá em uma aproximação razoável daquilo que de fato procura representar, se é esse o intuito dela? Observe como algoritmos po- dem auxiliar, em um futuro hipoté- tico próximo a uma questão como essa, com softwares específicos que funcionarão como inteligências ar- tificiais linguísticas para propósitos existenciais: John (conversando com seu compu- tador de bordo enquanto se dirige para casa em seu automóvel) - Olá, Lexikó. Eu contei a ela o que sentia, mas ela me disse que eu estava mentindo. Lexikó - Você não mentiu, John, apenas esteve enganado. John - Você poderia me explicar isso, por favor? Lexikó - Você não gostaria de ir ao casamento de seus amigos, não havia um argumento para isso, então criou um engano de datas. Outras vezes fez isso. Costuma funcionar bem para você. John - Quando foi que aconteceu outra vez, Lexikó? Lexikó - Tenho seis datas e con- textos nos quais estes enganos ocor- reram. Gostaria que os mencionasse e explicasse, um a um, a você? John - Sim, por favor. E em segui- da mostre-me como posso resolver isso de um modo mais promissor nas próximas ocasiões, está bem? A clínica verbal, tal qual a conhe- cemos, provavelmente prosseguirá de outros modos, mais breves, exa- tos, pontuais. Ferramentas como o Lexikó poderão aprofundar pesqui- sas semânticas e sintáticas no âmbito da clínica. Muito, muito em breve. Como é o meu tempo? Gianni Vattimo escreveu como isso era para ele na obra Não ser Deus: "Há mais uma coisa que me emociona e me faz sentir próximo a Martin Heidegger. Começava a ler Michel Foucault (mas, como se sabe, quando lemos Foucault, o que mais fazemos é inventar o que imaginamos LÚCIO PACKTER É SISTEMATIZADOR DA FILOSOFIA CLÍNICA NO BRASIL. GRADUADO EM FILOSOFIA PELA PUC-FAFIMC, PORTO ALEGRE. COORDENADOR DO INSTITUTO PACKTER. E-MAIL: LUCIOPACKTER@UOL.COM.BR www.portalespacodosaber.com.br • fílosofía ciência&vida· 31 que ele quis dizer, pois pouco ou nada entendemos), mas, em todo caso, leio Foucault e penso nas "épocas" de Theodor Adorno, no fato de que ele fala frequente- mente em "constelações". Heide- gger também imagina a história como Iam pejos. Iluminações súbitas. Acon- tecimentos. Nesses lampejos articulam-se tempos. Épocas históricas. Mas em Heidegger a época é uma suspensão do tem- po, uma fratura instantânea. O tempo não é contínuo. Como em Santo Agostinho, de certo modo, "o tempo está liga- do à existência e à existência do homem. E o Ser se ilumina de maneiras diferentes em épocas diferentes, épocas que não têm continuidade entre elas. O Ser nada é senão a iluminação de horizontes históricos determ i- nados, um a um, sem nenhuma continuidade visível entre uma época e a outra". Sabe como o tempo se tor- nou desse jeito para Vattimo? Os olhos do trompetista da Ópera de Viena sorriam para ele enquanto o músico contava sua história. mas elas percebem claramente que as estou fotografando e taci- tamente me autorizam a fazê-Io. Nenhuma foto, sozinha, pode mudar, o que quer que seja na pobreza do mundo. No entan- to, somadas a textos, a filmes e a toda a ação das organizações A face em face Em um trecho da obra Da minha terra à Terra, Sebastião Salgado comentou: "Sempre fico de frente para as pessoas que fotografo. Não peço que posem, o TEMPO NÃO É CONTíNUO. COMO EM SANTO AGOSTINHO, DE CERTO MODO, "O TEMPO ESTÁ LIGADO À EXISTÊNCIA E À EXISTÊNCIA DO HOMEM. E O SER SE ILUMINA DE MANEIRAS DIFERENTES EM ÉPOCAS DIFERENTES" 32 • fílosofía ciência&vida , " humanitárias e ambientais, mi- nhas imagens fazem parte de um movimento mais amplo de de- núncia da violência, da exclusão ou da problemática ecológica. Esses meios de informação con- tribuem para sensibilizar aqueles que as contemplam a respeito da capacidade que temos de mudar o destino da humanidade". Essaparte me ocorreu enquan- to eu estava em atendimento hos- pitalar, os olhos rasos, observando o inchaço no rosto da mulher a quem atendiam, que há pouco ha- via passado por um grave momen- to de agressão pelo companheiro dela. Ela percebeu que minha alma claramente a fotografava e acolhia seu coração. lfilo Oministro Ricardo Sallesteria mentido em seu currí-culo? O titular do Meio Ambiente era considerado
Compartilhar