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Revista Filosofia ano XIII - número 153

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ciência&vida
VIOLÊNCIA
URBANA
o rnecanlsmo
ideológico P.9rdetrás 00
arrnarnentlsrno social
AQUECIMENjrO
GLOBAL EM
NÚMEROS
Para refletir sobre
desenvolvimento, ética
e justiça ambiental
EDITORIAL
A essência da vida
O(polêmico) ator e autor Pedro Cardoso fez recente-mente uma observação interessante a jornalistas domeio radiofônico, a partir de sua experiência em redessociais. Para o artista, a virtualização da vida tem a
ver com o nosso desejo de eternidade, a fuga da morte e de nosso
corpo físico por meio de uma existência virtual. E também no inten-
to de evitá-Ia (a morte), não só com o advento da tecnologia, mas
desde o início da humanidade, o homem se faz a pergunta essencial:
Para que viver? Talvez a resposta precisa a essa dúvida fundamen-
tal humana torne mais fácil prolongar o tempo vivido na Terra. Ou,
mesmo, facilite encarar a nossa finitude. Quem sabe?
Não só conhecer o sentido da vida, mas também a melhor
forma de vivê-Ia relacionam-se aos sentimentos conflitantes e perguntas sobre nascer e morrer
nesse mundo, como nos mostra a acadêmica e docente da Universidade Mackenzie, Angela Cilento
Zamora, em artigo de capa de Filosofia Ciência&Vida. A autora lança mão de ninguém menos que
o filósofo Martin Heidegger, além de outros pensadores como Nietzsche e Platão, para conceituar
a vida, também refletindo sobre a importância da Filosofia para a compreensão de elementos tão
importantes do viver - o tempo, a celebração, a amizade, o amor e o prazer.
Outro artigo, esse de Monica Aiub, também destaca a importância da Filosofia para a formação
do pensamento crítico e enfrentamento do cotidiano. Isso a partir de sua experiência inicial como
filósofa clínica, que se desdobrou tão somente no exercício coletivo do filosofar para melhor viver.
Afinal, para a autora, na estrutura do pensamento filosófico já se encontrariam os pilares para tal feito,
de modo que bastaria levar a disciplina, com o seu devido rigor, às periferias, às ruas, ao público em
geral, ampliar a divulgação do conhecimento filosófico e científico para aprimorar nossa consciência
e entendimento de lugar no mundo. Reflexão que considera crucial hoje e que é parte de seu traba-
lho junto a uma editora e espaço cultural.
Esta publicação partilha do mesmo esforço das autoras acima: desde seu início vê como neces-
sário reforçar a importância da Filosofia no dia a dia, o que o faz ao abordar, de forma acessível, os
temas que dão conta dessa relação. Também o caderno central, que hoje abrange, além da temática
educacional, as Ciências Sociais, está empenhado nisso, sendo referência para professores do ensino
médio e superior.
Esperamos que a leitora ou o leitor, ao folhear as próximas páginas, se engajem nessa causa - da
divulgação filosófica (e também pedagógica, sociológica ... ) - pelos mesmos motivos que este projeto
editorial tem nos cativado: impactar positivamente, por meio do conhecimento, a vida de milhares
de pessoas leitoras e falantes da língua portuguesa. Eis a nossa essência.
Boa leitura,
Da Redação
www.portalespacodosaber.com.br ." filosofia ciêr:tcia&vida' 3
i ---------------------------------------------------- __ ------------------------------------~------~~--
SUMÁRIO
•
número 153
IMAGENS:
SHUTTERSTOCK
6ENTREVISTAAnastácio Borges deAraújo lúnior comenta
obra de Platão e importância
do pensamento antigo
60
CORRENTE
A Filosofia Clínica versus o
filosofar no cotidiano e a
importância desse ato nos dias de hoje
12SOCIEDADEViolênciaurbana e o
armamentismo social
6 8 FILO ORIENTALComo punir a discordância e proibira diferença, por André Bueno
7020
EXISTÊNCIA/CAPA
Heidegger, Nietzsche e
Platão, entre outros, são
chamados a responder à pergunta
essencial: Para que viver?
MEIO AMBIENTE
Números do aquecimento
global para refletir sobre
questões éticas e ambie,ntais e uma
proposta de desenvolvimento econômico
no aproveitamento da terra
78ENSAIO~~ternativas
pensamento ocidental
para conceber e apreender
o divino
3 O FILO CLíNICAA Filosofia e os costumesno divã, na coluna de Lúcio Packter
53PARA REFLETIRLiteratura, Artes Visu.ais, Filosofiada Mente e tecnologia nos espaços
comandados por Ana Haddad, Walter Cezar Addeo
e João de Fernandes Teixeira 8 2 OLHO GREGOObrigações éticas na política,por Renato Janine Ribeiro
MOMENTO DO LIVRO
A RELÍQUIA
"Ele é o Proust da língua portuguesa', afirmou
Lafonte o jornal 'lhe New York Times ao se referir a Eça de
Queirós. Assim corno o escritor francês, o mais
A RELÍQUIA
importante romancista português do século XIX
trabalha sua narrativa a partir da observação das
vidas interior e exterior de seus personagens, sem
perder o olhar crítico dos valores e costumes, da
política e da religião. Com a obra A Relíquia, ele
concorreu ao prêmio D. Luis da Academia Real de
Ciências. Em 1887, época da publicação do livro,
Eça já entendia que seu tempo era consumido
pelas incertezas da inteligência e angustiado pelos
tormentos do dinheiro. Corno um verdadeiro
clássico, ele continua atual.
À venda nas bancas e na loja Escala: www.escala.com.br
livro: A Relíquia
Número de páginas: 180
Editora: Lafonte
ENTREVISTA Anastácio Borges de Araújo Júnior
o reto
nos cláss'cos
Psicólogo mestre em Filosofia e estudioso de Platão comenta
obra do filósofo e importância do pensamento antigo
Por Fábio Antonio Gabriel
entrevistado é psicólogo pela Pontifí-
cia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP, em 1990), mestre em Filosofia
pela Universidade Federal de Pernam-
buco (UFPE, em 1999), com dissertação
sobre Platão e Freud, e doutor em Filosofia Antiga
pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp,
em 2005) com tese sobre Platão. Depois de um
breve período em que trabalhou como psicólogo,
seguiu então a carreira de professor universitário na
área de Filosofia, trabalhou em diversas instituições
como Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
Faculdade de Filosofia do Recife (Fafire), Faculdades
Integradas do Recife (FIR), Universidade Católica de
Pernambuco (Unicap), Instituto Salesiano de Filoso-
fia (Insaf) e Universidade Federal do Rio Grande do
Norte (UFRN). Pesquisa temas em Filosofia Antiga,
com ênfase em Platão e Aristóteles. Atualmente é
professor adjunto 3 do Departamento de Filosofia
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
membro da International Plato Society - IPS e sócio
da Sociedade Brasileira de Platonistas - SBP. É líder
do Grupo de Pesquisa Dynamis: Filosofia Antiga e
seus Desdobramentos (CNPq) e faz parte do Núcleo
de Sustentação do GT Platão e Platonismo. Fez está-
gio pós-doutoral entre setembro de 2012 e julho
Doutorando em Educação com bolsa de doutorado concedida no
ãmbito Capes/Fundação Araucária, organizador de diversos livros
na área de Filosofia & Educação: www.fabioantoniogabriel.com
6 • fílosofía ciência&vida
de 2013 na Università Degli Studi di Milano, com
supervisão do prof. Franco Trabattoni e com apoio
de bolsa Capes. Conversa com os leitores de Filo-
sofia Ciência&Vida sobre filosofia antiga e sobre as
relações entre Filosofia e Psicanálise, além de apre-
sentar as riquezas da filosofia antiga, finalizando
com uma reflexão sobre a depressão.
FILOSOFIA • Como você entende a relevância
da filosofia antiga para pensarmos problemas da
sociedade contemporânea?
ANASTÁClOB. DE A. JÚNIOR• A noção de conhecimento
na antiguidade, epistéme, surge, inicialmente, como
algo que se sabe, daí, aquilo de que se está ciente,
isto é, o que se tem ciência e, por isso, aquilo em
que se pode confiar. Desse modo, podemos dizer
que a epistéme de Sócrates era o famoso "só sei que
nada sei", convicção fundamental, ainda que nega-
tiva, uma espécie de eixo interior, a partir do qual
todas as outras coisas derivariam. No caso de Sócra-
tes, por exemplo, esse saber que nada sabe se des-
dobra em exame à opinião dos outros, investigação
dialogada e na averiguação de suas próprias opini-
ões. Em Aristóteles, essa noção de saber transforma-
-se numa concepção mais estruturada que pode ser
resumida na busca dos princípios, causas e elemen-
tos que constituíamalguma área específica do co-
nhecimento. Se transportarmos para a Filosofia essa
noção aristotélica de saber, que me parece vigente
na ciência em geral, encontraremos na filosofia an-
tiga em especial na filosofia grega, tematizados os
problemas fundamentais vivenciados pelos gregos,
resultando que a própria filosofia antiga tomar-se-a,
de um só golpe, princípio, causa e elemento fun-
dacionais que estão presentes em nossa civilização
ocidental. Claro que existem outros componentes
que vão compor a cultura ocidental, por exemplo,
as tradições semíticas, através do judaísmo, cristia-
nismo e até islamismo. Entretanto, se a filosofia anti-
ga é um elemento fundamental da cultura ocidental,
isso, para mim, significa que a sociedade contempo-
rânea só pode ser compreendida como desdobra-
mento desse movimento que se iniciou na Grécia,
logo após os escritos de Homero e Hesíodo. Assim,
parece que sempre estamos retornando ao princí-
pio de um movimento para compreender a traje-
tória planejada inicialmente, isto é, a finalidade de
termos nos afastado da palavra mítico-poética para
tentar, através de nossa inteligência, dar respostas às
questões essenciais. Retornar aos gregos, para mim,
é buscar, ali, todas as vozes que compunham essa
cena inicial da Filosofia, que eram muitas e disso-
nantes, para reexaminar em que podemos melhorar
nossa própria vida junto aos outros, humanos e não
humanos.
Retornar aos gregos é
buscar todas as vozes
que compunham
essa cena inicial da
Filosofia, que eram
muitas e dissonantes,
para reexammar
em que podemos
melhorar nossa
própria vida
FILOSOFIA • Quais são os maiores expoentes
considerados por você como relevantes para a
filosofia antiga?
ANASTÁclOB. DE A. JÚNIOR• Essaé uma questão difícil,
até porque muitos escritos foram perdidos, de outros
só restaram fragmentos e podemos, sempre, estar sen-
do injustos com alguns filósofos. Entretanto, no estado
de coisas que conhecemos, para mim, entre os pré-
filosofia ciência&vida· 7
ENTREVISTA Anastácio Borges de Araújo Júnior
-socráticos são fundamentais Parmênides e Heráclito.
Sócrates é excepcional, um sábio, muito embora nada
tenha escrito e só tenhamos notícias dele por tercei-
ros. Por último, Platão e Aristóteles são incontorná-
veis, gênios da humanidade que não deixaram nem
mesmo um assunto no esquecimento. Claro que hoje
em dia, depois de 2.500 anos que fizeram de Platão
e Aristóteles espécies clássicos, surgem outros nomes
e escolas que ganham evidência, mas esses nomes
que citei, para mim, são pensamentos de rara beleza
e profundidade. Esempre se pode rever os clássicos e
redescobri-Ios. Tudo isso é impressionante!
FILOSOFIA • Platão tematiza o mundo das ideias
em contraposição ao mundo sensível. No que
a teoria do conhecimento de Platão pode nos
auxiliar a pensar problemas contemporâneos?
ANASTÁCIOB. DE A. JÚNIOR• Vou aproveitar essa ques-
tão para fazer uma observação que, para os que
estudam Platão, é muito importante. Todos falam
nessa teoria dos dois mundos, mas nos diálogos eu
nunca encontrei a expressão mundo inteligível, nós
encontramos a expressão tópos noetos, notadamen-
te na República 509 d, que significa lugar inteligível.
Ora, lugar inteligível e lugar sensível significam que
existem duas maneiras básicas do ser de todas as
coisas e que nós, humanos, estamos misturados com
estes dois modos. Para tentar ser mais claro, vou dar
um exemplo: sem ponto central não há círculo, en-
tretanto vemos muitos círculos no mundo, mas não
conseguimos ver um ponto, pois o ponto por defi-
nição é inextenso e, assim, o ponto é condição de
existência do círculo mas ele não é sensível. Logo
vemos o círculo na pupila de um olho, mas não po-
demos ver o ponto que lhe deu origem, só podemos
compreender a necessidade dele, o ponto é uma
realidade inteligível, sem o qual não existem círcu-
los. O que Platão diz é que o sensível é uma imagem
do inteligível e enquanto imagem é necessariamente
imperfeito. Claro, no meu exemplo, para ser mais
preciso, deveríamos completar e dizer que todos
os círculos sensíveis são cópias do círculo inteligível
que é o único perfeito. Entretanto, ao dizer que é
inteligível não é preciso concebê-Io em um outro
mundo, mas compreender que estamos sempre di-
vididos entre realidades da inteligência e realidades
que vemos e tocamos e que, por isso, pertencem
8 • fílosofía ciência&vida
As investigações
contemporâneas
sobre a linguagem
parecem ainda estar
envoltas em questões
que foram abertas
por diálogos como
o Crátilo e o Sofista
à nossa sensibilidade. Qual a atualidade dessa hi-
pótese inteligível? Bem, acho que grande parte dos
matemáticos contemporâneos ainda são platônicos
e as investigações contemporâneas sobre a lingua-
gem parecem ainda estar envoltas em questões que
foram abertas por diálogos como o Crátilo e o Sofis-
ta. Desse modo, as questões filosóficas abertas na
antiguidade, diferentemente de em algumas outras
áreas do saber, continuam vigentes e nos desafiando.
FILOSOFIA • Quais são os principais desdo-
bramentos do platonismo? Quais os principais
expoentes que seguiram a filosofia platônica?
Como diz o professor Mauro Bonazzi, no início de
sua obra sobre o platonismo (11Platonismo. Turim:
Einaudi, 2015), a grande dificuldade de tratar do
tema é bastante simples: não é claro saber o que
significa ser platônico. Pode parecer estranho, mas até
hoje não sabemos com exatidão o que pensava Platão.
Avançamos muito, por exemplo, hoje respeitamos o
diálogo como forma essencial de Platão transmitir
aquilo que ele julga ser a Filosofia. Por outro lado,
como me mostrou em nosso último encontro o pro-
fessor Roberto Bolzani (USP), temos, cada vez mais,
a consciência de que Platão escreveu não para nós,
mas para o grego ateniense, e isso significa que seus
diálogos são tentativas de sensibilizar os jovens ta-
lentos filosóficos e afastá-Ios dos rivais da Filosofia
que eram, principalmente, a poesia e a retórica.
A hipótese de que haja duas realidades básicas, a
inteligível e a sensível, também permanece central
em Platão. Entretanto, para não deixar sem respos-
ta acerca dos desdobramentos do platonismo e, ao
mesmo tempo, corroborar essa dificuldade de sa-
ber o que é ser platônico, devemos pensar em duas
correntes dominantes na Academia, após a morte
de Platão, que foram o ceticismo e o dogmatismo
acadêmicos. Correntes de pensamento quase opos-
tas que sucederam Platão na Academia e que têm
nomes, pouco conhecidos entre nós, como Espeusipo,
Xenócrates, Arcesilao. Depois, teríamos que falar,
claro, do neoplatonismo de Plotino e Proclo. E, ob-
viamente, o próprio Aristóteles que se diz, explici-
tamente, platônico na sua Metafísica. Entretanto,
devo confessar que me sinto despreparado para dis-
correr sobre os desdobramentos do platonismo ao
longo da história, é uma área de estudo a que não
me dediquei suficientemente, mas sei que é uma
área de conhecimento hoje em franca expansão.
FILOSOFIA • Quais relações podemos estabelecer
entre a filosofia de Platão e a psicanálise de Freud?
Essefoi tema de minha dissertação de mestrado que·
finalizei em 1999, realizado na Federal de Pernam-
buco, e tenho orgulho de ter sido um dos pioneiros
nessaárea de pesquisa. Tinha estudado Psicologia na
PUC de São Paulo e desde a graduação estranhei que
no curso não se mencionavam os autores da Filosofia
que tivessem tratado do tema da alma humana. Co-
mecei a estudar Platão com a professora Rachei Ga-
zola, em seguida, procurei filósofos que abordassem
temas psicanalíticos, como o grupo do Centro de Ló-
gica e Epistemologia da Unicamp, nas figuras de Ze-
Ijko Loparic, Luiz Roberto Monzani e Osmyr Gabby,
além de leituras mais filosóficas da Psicanálise, como
Renato Mezan e Luís Cláudio Figueiredo, que me
ajudaram a ir compondo um cenário de aproximação
entre Platão e Freud. Na verdade, Freud conhecia
trabalhos que aproximavam a sua noção de libido do
eras tal qual foi desenvolvida por Platão no diálogo O
banquete. Freud se interessava por estudos que legiti-
massem suas descobertas acerca da sexualidade,pois
ele enfrentava resistência. Entretanto, ao ler Platão,
em especial a tripartição da psique desenvolvida na
República, fiquei encantado com esse grande tratado
sobre a alma humana que meus próprios colegas da
Psicologia desconheciam. Assim, ainda na graduação
comecei a tecer analogias e aproximações entre os
modelos de homem que aparecem nos diálogos de
Platão, aquilo que depois chamei de metáforas da
alma, e os modelos metapsicológicos da psicanálise
freudiana. Dessa forma fui mostrando que os mode-
los descritivos da alma humana são aproximativos,
pois não poderia haver ciência de alma humana já
que ela é lugar de incidência de realidades de pe-
sos ontológicos bem diferentes, no caso de Platão,
inteligível e sensível e, no de Freud, da alma e do
corpo. Mas, deixando de lado o estatuto epistemoló-
gico das representações da alma humana, que é um
tema complexo, podemos dizer que existem muitas
convergências entre Platão e Freud, a principal é que
somos dilacerados por movimentos conflitantes que
são intensos e que são mediados por uma frágil in-
teligência que tenta equilibrar todas as forças para
manter a saúde desse organismo complexo. Acreditar
na capacidade dessa inteligência parece-me que é a
nossa única esperança.
FILOSOFIA • Aristóteles é entendido também como
grande expoente da filosofia antiga. Qual seria no
seu ver a maior contribuição de Aristóteles na histó-
ria da Filosofia?
www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida' 9
ENTREVISTA Anastácio Borges de Araújo Júnior
ANASTÁCIOB. DE A. jÚNIOR• Aristóteles tem muitascon-
tribuições na tentativa de pensar nossa experiência
múltipla, em movimento e dividida em várias áreas
do saber. Eolhe que só temos uma parte de sua obra,
jonathan Barnes calcula que só um quinto de seus
escritos sobreviveu. Acredito que sua principal con-
tribuição esteja em perceber que o instrumento que
temos para investigar as coisas é uma inteligência que
se estrutura e se expressa em linguagem e que sem
investigar o lógos, e o que lhe pertence, o logikos,
não era possível avançar e afastar as ambiguidades
do pensamento/linguagem que pode dizer e mostrar
o mundo tal como é. Ou seja, a verdade, em Aristóte-
les, se atrela definitivamente ao discurso e examinar
os princípios, causas e elementos da linguagem faz
parte da Filosofia. Aristóteles inaugura aquilo que será
denominado de filosofia analítica. Entretanto, como
em tudo, aquilo que é novo é a maior contribuição,
mas, também, seu ponto de maior vulnerabilidade.
Digo isso, pois, ao dividir e fracionar a linguagem e o
mundo, Aristóteles perderá a unidade do todo que tí-
nhamos com Parmênides e Heráclito e que, de certo
modo, já tinha sido mitigada por Platão.
FILOSOFIA • Pensando na Filosofia enquanto amor
ao saber, como você percebe a contribuição da Filo-
sofia para possibilitar sentido para a existência das
pessoas no seu cotidiano?
ANASTÁCIOB. DE A. jÚNIOR• A Filosofia, enquanto amor
ao saber, põe à prova todos os nossosvalores e coisas
que desejamos, amamos e admiramos. Nesse senti-
do, a Filosofia como que vira o mundo de cabeça
para baixo, pois ao pensarmos a questão fundamen-
tal se coloca: afinal, o que é a vida, o que estamos
fazendo aqui e como devemos viver nessetempo que
dispomos. Digamos, retomando Aristóteles no livro I
da Metafísica, que a Filosofia surge, para os gregos,
quando não se tem mais necessidade nem desejo de
nenhuma ordem. A Filosofia é um questionar radical
que nunca pode ser totalmente respondido, Assim,
ela pode fornecer um sentido aos humanos, mas, em
geral, é um sentido que não satisfaz a maioria, pois
a maioria prefere viver nas ilusões do mundo do tra-
balho, das riquezas, das belezas efêmeras, o mun-
do como todos nós conhecemos. Entretanto, para as
almas mais singelas e sensíveis, aquelas que já des-
confiam da ilusão do mundo, a Filosofia pode dar
10 • filosofia ciência&vida
um sentido, não como uma resposta definitiva, mas
como um indagar constante e inconcluso, no qual
sempre podemos ter algum prazer.
FILOSOFIA • Como estão organizadas no Brasil as
pesquisas sobre filosofia antiga?
ANASTÁCIOB. DE A. jÚNIOR• Em filosofia antiga acho
que hoje avançamos muito. Temos bons grupos de
pesquisa, alguns associados com as Letras Clássicas
e isso é muito positivo. Os três que conheço mais e
que são centros de excelência são a Federal de Minas
(UFMG), estaduais de Campinas e de São Paulo (Uni-
camp e USP). Mas existem outros como a PUC e a
Federal do Rio de janeiro e outros surgem pulveriza-
dos no Rio Grande do Sul, Bahia, Paraíba, Rio Gran-
de do Norte e Pará. Em Pernambuco, trabalhamos eu
e a professora Loraine Oliveira, que estuda Plotino, e
temos apoio das Letras, com o professor David Lira.
Avançamos muito e temos que replicar isso em todo
. o Brasil. Esperamos ter mais apoio, sempre. [Risos.]
FILOSOFIA • Quais as sugestões de leitura que
você indicaria para quem deseja conhecer mais
profundamente a filosofia antiga?
ANASTÁClOB. DE A. jÚNIOR• Depois que passar pelos ma-
nuais conhecidos e os comentadores como William
Guthrie, David Ross,Brehier, Mondolfo, jaeger, Hadot,
Aubenque, jonathan Barnes, Monique Dixsaut, Mario
Vegetti, Martha Nussbaum, entre outros, ir direto aos
textos dos filósofos, estudar grego e latim e aprofun-
dar a leitura e interpretação dos fragmentos, diálo-
gos e tratados. Claro que é importante, sempre, ler
Não troco o tratado
de Aristóteles por
nenhum comentador,
muito embora eles
sejam importantes
para apontar o que
foram capazes
de ver no filósofo
também a literatura, história, medicina e, em geral,
todas as produções culturais do período antigo. Hoje,
não troco o tratado de Aristóteles por nenhum co-
mentador, muito embora eles sejam importantes para
apontar o que foram capazes de ver no filósofo. Mas
sempre há mais, pois nas produções dos gênios sem-
pre há mais para ser compreendido e recolhido por
nossa compreensão, por nosso lógos.
FILOSOFIA • Como você analisa a contribuição de
Sócrates para a filosofia de Platão?
ANASTÁClOB. DE A. JÚNIOR• Sócrates foi fundamental
para não só Platão mas para toda uma série de dis-
cípulos que vão interpretar a verdade do sábio ao
seu modo, de maneira que temos uma miríade de
interpretações, algumas mais conhecidas, outras per-
didas e outras mais triviais. Para Platão, a convivência
com o mestre foi basilar e isso pode ser constatado
pela presença do personagem Sócrates nos diálogos.
Platão aprendeu com o mestre que a verdade é uma
descoberta feita a partir de cada um, mas que pode
ser compartilhada na vivência com os outros hurna-
nos, através do diálogo, de modo que ela possa se
tornar intersubjetiva e, desse modo, ganhar um ní-
vel maior do que a medida de um só humano. Com
Sócrates, Platão aprendeu a superar o relativismo
sofístico e a valorizar o outro como pedra de toque
das minhas verdades. A minha concepção, para ga-
nhar consistência, precisa abrir-se ao outro que deve
acompanhar, passo a passo, em discursos curtos, con-
cordando e discordando com as colocações e aquilo
que decorre delas. Essediálogo filosófico, conforme
Platão apresenta na sua obra Córgias 487 a2 - a3, só
é possível numa atmosfera amigável (eunoia) e franca
(parrusia), na qual cada humano possa expor aquilo
em que acredita (epistéme), para que o outro diga o
que pensa dessa exposição.
/
FILOSOFIA • A depressão é uma doença que
está marcando a vida de boa parte da popula-
ção. Como psicólogo você acredita que o ritmo
de vida acelerado contribui para tantas pessoas
estarem depressivas?
ANASTÁCIOB. DE _A.JÚNIOR• A depressão é uma pos-
sibilidade humana de esvaziamento de sentido. Ela
poderá ocorrer em função de uma perda, de uma
insatisfação com a vida, ou até sem motivo algum.
a excesso de informação, o ritmo' de processadores,
nos computadores, smartphones e tablets, aos quais
estamos submetidos, podem levar a um cansaço, a
uma percepção de que por mais que nos esforcemos,
não iremos dar conta da tarefa da vida. Entretanto,
nos momentos emergenciais é sempre bom manter
a calma e a serenidade. Assim, acreditoque mesmo
que não compreendamos totalmente a vida, deve-
mos nos manter tranquilos e sem pressa alguma. Para
encerrar, uma breve citação de Platão, de um trecho
da República 604 b9-c5:
a costume diz que o que há de mais belo é con-
servar a calma o mais possível nas desgraças e não se
indignar, uma vez que não se sabe o mal e o bem que
há em tais acontecimentos, nem se adianta nada, posi-
tivamente, em os suportar com dificuldade; nem tudo
que é humano merece que se lhe dê muita importância
[. ..] e, tal como quando se lançam os dados, assim de-
vemos endireitar as nossas próprias posições, de acor-
do com o que saiu, pelo caminho que a razão escolher
como melhor [...J. Ifilo
www.portalespacodosaber.com.br·filosofiaciência&vida·11
----------------------------==-==-==================~========================================~==~~==.~
SOCIEDADE
O reacionarismo so-cial, em nossa grande.crise institucional,ganhou coragem de
se exibir desavergonhadamente
e impor sua pauta virulenta na
ordem do dia. As conquistas de-
mocráticas de outrora, ainda que
incompletas, são incômodos ter-
ríveis para segmentos sociais que
somente prosperam com a perpe-
tuação das desigualdades. Políti-
cas públicas ineficientes contribu-
íram para manter historicamente
a cisão social, e o enfrentamento
da criminalidade usualmente se
pautou pela repressão e não pela
prevenção e, sobretudo, pela cor-
reção dos problemas estruturais
que acirram tais desigualdades.
Com efeito, os grupos elitistas ja-
mais renunciaram aos seus bene-
fícios e privilégios, considerados
como méritos e não como abusos,
arbitrariedades e atos de rapina
contra o bem comum. As elites são
as forças criminosas que roubam e
mandam executar. Segundo Octa-
vio Ianni,
As classes dominantes pouco ou
nada se preocupam com a conquis-
ta da democracia. Em geral, os seus
membros dispõem de prerrogati-
vas, recursos, técnicas, poder pro-
priamente dito, direitos de fato que
lhes garantem o que o povo poderia
conquistar - parcialmente - por
meio do jogo democrático (Ianni,
2004, p. 156).
A ascensão da truculência ao
poder traz em seu bojo o projeto
de militarização absoluta da socie-
dade, associada ao espírito obscu-
rantista que faz da ignorância sua
virtude fundamental. Esses seg-
mentos sociais despejam seu ódio
contra todas as instituições que
supostamente não satisfazem os
seus desejos necrófilos, exigindo
intervenção militar, fechamento
dó Congresso Nacional, do STF e
outras sandices injustificáveis. A
arma" grande fetiche do espírito
agressivo, é elevada ao patamar da
adoração mercadológica, daí a im-
portância da flexibilização da pos-
se e do porte de armas em nossa
era do reacionarismo ultraliberal,
atendendo, assim, os interesses 10-
bistas da indústria bélica, que, na
verdade, depende da instabilidade
A CRISE SOCIAL É FUNDAMENTAL
PARA O AQUECIMENTO DO MERCADO,
O DEVORADOR DA VIDA, PERANTE O
QUAL TODOS SE CURVAM E SE CALAM
14 • filosofia ciência&vida
jI.
social, do medo e do espectro da
violência, para navegar sobre essas
ondas turbulentas para impor essa
agenda militarista à opinião pú-
blica e assim promover ampliação
das suas vendas.
A crise social é fundamental
para o aquecimento do mercado,
o devorador da vida, perante o
qual todos se curvam e se calam.
A instabilidade política exige,
conforme o ideário ultraliberal,
flexibilidade, dedicação incon-
dicional ao trabalho, adesão ao
modo de vida precário, perda das
garantias trabalhistas, o que, pela
mão invisível do mercado, apenas
faz prosperar o topo da pirâmi-
de econômica. Nada de mútuos
benefícios para empresários e
trabalhadores. Ética e responsa-
bilidade empresarial só são úteis
quando promovem a celebração
das marcas. Quando se tornam
inconvenientes para os propósi-
tos mercadológicos, são deixadas
de lado e imputadas como valores
arcaicos e inconvenientes. Segun-
do Byung-Chul Han,
CONFORM[A IDEOLOGIA DO FASCISMO DE
MERCADO, CADA "CIDADAO DE BEM" TEM
O DIREITO INALlENÁVEL DE SE ARMAR E SE
PROTEGER CONTRA AS AMEAÇAS DO CRIME
A técnica do poder do regime
neoliberal assume uma forma su-
til. Não se apodera do indivíduo de
forma direta. Em vez disso, garante
que o indivíduo, por si só, aja sobre
si mesmo de forma que reproduza
o contexto de dominação dentro
de si e o interprete como liberdade.
Aqui coincidem a otimização de si
e a submissão, a liberdade e a ex-
ploração (Han, 2018, p. 44).
A força destrutiva que defen-
de o armamentismo social (para
quem pode arcar com os custos,
diga-se de passagem) é a mesma
que defende a liberação indiscri-
minada de agrotóxicos, a inter-
nação compulsória de drogados,
a privatização das penitenciárias,
a desqualificação dos direitos hu-
manos, a extinção da fiscalização
sobre as condições laborais. Tudo
em nome do "progresso do merca-
do", ratificando assim os imperati-
vos autoritários de um capitalismo
avassalador, desregulado e corro-
sivo. Para Franz Hinkelammert,
o ser humano é inútil e até" des-
cartável", a não ser que seja trans-
formado em capital humano a ser
explorado em função de sua uti-
lidade, seja a utilidade a partir do
interesse próprio calculada por ele
mesmo, que considera a si mesmo
capital humano, ou por outros, que
querem explorá-lo em virtude de
suas respectivas utilidades próprias
(Hinkelammert, 2014,p. 201).
É usual que um jovem, ao
completar 18 anos, ganhe dos
seus progenitores um automóvel,
corno um rito de passagem para
a vida adulta. A tendência agora
é que o jovem ganhe um revólver
para exibir sua masculinidade
(para os fascistas, um revólver é
pouco, poderia ser um fuzil, urna
metralhadora). Quanto mais po-
tente a arma, maior a dignidade
social do seu portador. Apenas
se modificam os instrumentos da
lógica da ostentação social, mas
a base estrutural é a mesma. ·A
grande prova de amor do pai do
futuro será dar ao seu filho ama-
do urna arma de fogo, paga no
débito ou no crédito. Mais do que
nunca se tornam atuais as bên-
çãos das armas.
Conforme a ideologia do fas-
cismo de mercado, cada "cidadão
de bem" tem o direito inalienável
de se armar e se proteger contra
as ameaças do crime para pro-
teger sua vida, sua família e seu
patrimônio, não necessariamente
nessa ordem. Há inclusive alguns
animais políticos que apregoam
a absurdidade de que não é papel
das forças policiais proteger o ci-
dadão, mas sim este, devidamente
armado, enfrentar a marginali-
dade social. Esse mesmo tipo de
discurso defende que professores
estejam armados nas salas de aula
para que evitem eventuais atenta-
dos. Vemos assim a inversão do
projeto de formação do Estado
Moderno corno o detentor do mo-
nopólio da força e da segurança
pública. A confiança republicana
e constitucional nas instituições
cede lugar para a descrença ir-
racionalista na sua legitimidade,
minando assim as bases da orde-
nação democrática. Por isso os
ultraliberais defensores do Estado
mínimo são ávidos apologistas do
armamentismo social, não apenas
pela lucratividade que tal prática
proporciona para tal segmento do
mercado, mas também para que o
indivíduo possa, ao fim e ao cabo,
se proteger sozinho. Percebemos
assim a formação de urna perspec-
tiva extremamente individualista,
autocentrada, em urna sociedade
www.portale~pacodosaber.com.br • filosofia ciênciaâvida " 15
SOCIEDADE
A IDEOLOGIA LIBERAL TRADICIONAL DEFENDIA
O PAPEL DO ESTADO COMO VIGILANTE SOCIAL.
A PROMISCUIDADE COM OUTRAS IDEOLOGIAS
~
CONSEGUIU CRIAR UMA ABERRAÇAO
desprovida de solidariedade de-
mocrática. Para Marcos Rolim,
o medo do crime tem sido
construído socialmente por mui-
tos fatores. A cobertura exagerada
de crimes violentos, por exemplo,
acompanhada quase sempre de
apelos em favor de respostas "du-
ras" e "urgentes". Os interesses das
empresas de segurança na amplia-
ção de seus mercados e a exploração
demagógica da criminalidade e da
violência pelo discurso político têm
desempenhado papel importante
nesse processo (Rolim, 2006, p. 270).
Outro ponto que devemos des-
tacar nessa sanha armamentista
consiste na perpetuação do hiato
social entre ricos e pobres. Com
efeito, qualclasse social poderá
efetivamente comprar armas sem
afetar o seu orçamento? Com ar-
mas na mão, o imbecil truculento
se considerará ainda mais acima
do bem e do mal, como o rei que
não pode ser questionado. Ima-
ginemos as intensificações das
brigas de trânsito, as confusões
nas ruas, os ataques racistas, ho-
mofóbicos e misóginos que se am-
plificarão com essa flexibilidade
irresponsável do armamentismo.
Não podemos também esquecer
da eliminação física dos indese-
jáveis, dos mendigos, dos sem-
-teto, cuja vida precária expressa
o processo máximo de desuma-
nização. A inconveniência social
16 • filosofia ciência&vida
dessas pessoas pode facilmente
ser resolvida através de assassina-
tos totalmente convenientes para
o urbanismo asséptico dos gran-
des polos comerciais. Armai-vos
uns aos outros, eis o imperativo
belicista da nossa distopia social.
Aqueles que defendem a difusão
dos livros, das artes, da ciência,
do conhecimento, são chama-.
dos de drogados. Contudo, são
os ânimos agressivos que vivem
sob o entorpecimento mortal do
veneno fascista e sua ideologia da
déstruição niilista de tudo aquilo
que existe. O ódio ao existir exige
a cultura do vazio, do nada. A des-
truição pela destruição. Para Ru-
bens R. R. Casara, "o fascista age
em nome da realização do desejo
da audiência enquanto, ao mesmo
tempo, o manipula. O discurso
fascista é, sobretudo, um discurso
publicitário que visa um receptor
despreparado e embrutecido" (Ca-
sara, 2018, p. 142).
A privatização do modo de
vida, encarnado no shopping cen-
ter e nos condomínios (cidades em
miniatura funcionais e integra-
das), expressa esse modo de exis-
tência idiota, asséptico e excluden-
te. A ideologia liberal tradicional
defendia o papel do Estado como
o vigilante social mantenedor da
ordem pública. Contudo, a pro-
miscuidade entre o ultraliberalis-
mo econômico e o reacionarismo
social conseguiu criar a grande
aberração que visa a completa
disfuncionalidade do Estado; no
entanto, esse ainda se faz neces-
sário no processo de repressão
das elites plutocráticas sobre as
massas, desprovidas do direito de
existir e de construir uma história
de vida emancipada, ratificando
assim o seu propósito de defen-
sor incondicional dos interesses
da classe dominante. A pretensa
neutralidade do Estado é formal,
assim como do poder Judiciário.
Precisaríamos de muitos anos de
democracia substantiva para re-
verter esse quadro distorcido. Para
Boaventura de Sousa Santos, "sem
direitos de cidadania efetivos, a
democracia é uma ditadura mal
disfarçada" (Santos, 2011,p. 125).
A hegemonia de uma agenda
política autoritária, repressiva,
ignorante e mistificadora permi-
te a naturalização da barbárie no
cotidiano social. Essa barbárie se
expressa visivelmente de diver-
sas maneiras, tal como através
de governadores fanfarrões que
se divertem metralhando alvos
aleatórios em voos de helicóptero
ou em ações assassinas de tropas
do exército que fuzilam cidadãos
destituídos unilateralmente do
direito de viver e cujos soldados
sequer são julgados por tribunais
isentos e transparentes. Eis a li-
cença para matar escancarada.
Conforme argumenta Stephen
Graham, "aqueles que não con-
seguem se sustentar em sistemas
cada vez mais privatizados e auto-
ritários se tornam mais. e mais de-
monizados, e sua vida, mais e mais
precária" (Graham, 2016, p. 164).
São as populações das favelas e das
zonas periféricas as que verdadei-
ramente sofrem dos efeitos da po-
lítica de extermínio desse regime
opressivo que se apropriou do po-
der, inclusive mancomunada com
as milícias, elas também parte do
dito crime organizado. Conforme
os mandamentos do fascismo de
mercado, as massas faveladas de-
vem permanecer como coadjuvan-
tes do sistema capitalista, como su-
A HEGEMONIA DE UMA AGENDA
POLíTICA AUTORITÁRIA, REPRESSIVA,
IGNORANTE E MISTIFICADORA PERMITE
A NATURALIZAÇÃO DA BARBÁRIE NO
COTIDIANO SOCIAL. ESSA BARBÁRIE SE
EXPRESSAVISIVELMENTE DE DIVERSAS
MANEIRAS NA VIOLÊNCIA COTIDIANA
balternas, devem apenas viver para
servir docilmente os seus patrões,
menos direitos e mais empregos,
ou, melhor dizendo, menos direi-
tos sem garantias de que haverá de
fato mais empregos. Tal como ar-
gumenta [essé Souza,
preto. Obviamente, não é a polícia
a fonte da violência, mas as clas-
ses média e alta que apoiam esse
tipo de política pública informal
para higienizar as cidades e calar
o medo do oprimido e do excluí-
do que construiu com as próprias
mãos. E essa continuação da escra-
vidão por outros meios se utilizou
e se utiliza da mesma perseguição
e da mesma opressão cotidiana e
selvagem para quebrar a resistên-
cia e a dignidade dos excluídos
(Souza, 2019,p. 88).
O excluído, majoritariamente
negro e mestiço, é estigmatizado
como perigoso e inferior epersegui-
do não mais pelo capitão do mato,
mas, sim, pelas viaturas -de polícia
com licença para matar pobre e
www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 17
SOCIEDADE
•
Bom trabalhador é aquele
que é despojado dos seus direitos
constitucionais, mas ainda assim
se empenha no serviço, de modo a
satisfazer os caprichos do patrão.
Contudo, para que estejam sempre
sob as rédeas do poder senhoril,
as forças policiais colaboram de
maneira exemplar nesse processo
repressivo, realizando operações
frequentes nas favelas através da
aplicação da lógica do extermí-
nio. Para Marildo Menegat, "a
engenharia da indústria da mor-
te é a derrota da política, ou seja,
a crise da legitimação da ordem
e a impossibilidade de se manter
a ordem burguesa sem superá-Ia
em se~ fundamentos" (Menegat,
2012, p. 127).
Uma tal política do medo impe-
de qualquer possibilidade de inte-
gração cidadã desses habitantes na
constitucionalidade democrática,
pois tais pessoas foram relegadas
apenas ao silêncio. A única voz
possível é a do choro para celebrar
os seus mortos, ainda assim até
apenas no dia do sepultamento,
pois após a cerimônia a vida deve
retomar ao normal. Vida nua,
vida crua, cuja história é apagada.
Para essa gestão necrófila, o gran-
de imperativo político é enfrentar
o inimigo, seja ele externo ou in-
terno. O inimigo é o vermelho, o
esquerdista, o comunista, o sindi-
calista, o intelectual, a feminista, o
defensor dos direitos humanos, o
pobre, o imigrante, o subversivo,
o favelado. Em suma, uma diver-
sidade de tipos sociais misturados
em um amálgama de indistinção.
Contudo, os demagogos truculen-
tos vociferam tanto contra os seus
inimigos e não percebem que na
sua própria vizinhança há também
criminosos, milicianos, traficantes
de armas, assassinos. José Augusto
Líndgren Alves salienta que:
A criminalidade comum real-
mente não tem estereótipos de loca-
lização privilegiada. Mas tanto nas
sociedades ricas, como nas emer-
gentes, é vista deforma reducionista
como "coisa de pobres", desconside-
rando-se como irrelevante o fato de
serem eles também as vítimas mais
numerosas. Desconsideram-se tam-
bém como menos ameaçadores os
crimes de "colarinho branco': não
obstante o raio incomparavelmente
maior de seu alcance (Alves, 2005,
p. 27,nota 10).
A logística repressiva das ope-
rações policiais parte sempre do
centro do poder para as favelas e
periferias, e poupa os condomí-
nios de luxo e as grandes empre-
sas dessas atuações espetaculares
de explosões, tiros e mortes sa~-
grentas. O crime que existe infil-
trado em favelas é apenas reflexo
dessa disfunção social que esta-
belece as regras monocráticas da
política de extermínio do aparato
destrutivo do sistema. Sempre são
os pretos e pobres os humilhados
pelo regime necrófilo do fascismo
do mercado, jamais a elite rapi-
nante que manipula a opinião
pública e a lógica econômica para
legitimar sua própria proeminên-
cia. As ordens do crime não par-
tem das favelas, mas dos gabine-
tes. Segundo David Garland,
o aproveitamento continuado
de liberdades pessoais baseadas
no mercado depende dos aperta-
dos controles de grupos excluídos,
aos quais não se pode confiar tais
liberdades. Enquanto os crimino-
sos e beneficiá rios forem retratados
como o "outro" e como responsá-
ENQUANTO CRIMINOSOS FOREMRETRATADOS
COMO O "OUTRO'" E COMO RESPONSÁVEIS
POR SEU PRÓPRIO INFORTÚNIO, CLASSES
DOMINANTES PODEM IMPOR SEUS CONTROLES
18 • filosofia ciência&vida
A CONSTRUÇÃO DE
UMA DEMOCRACIA
EFETIVA NA
SOCIEDADE
BRASILEIRA
EXIGE ESFORÇO
CONTíNUO PARA
QUE SUAS
ESTRUTU RAS SE
MANTENHAM
SÓLIDAS. O
AUTORITARISMO
SEMPRE SE
PERPETUA PELA
LEGITIMIDADE
IDEOLÓGICA
DA IGNORÂNCIA
veis por seu próprio infortúnio,
oferecem-se oportunidades para
que as classes dominantes impo-
nham controles rígidos sem abrir
mão das suas próprias liberdades.
Em contraste com um controle so-
cial solidário, no qual todos abrem
mão de certa parcela de liberdade
pessoal para a finalidade de pro-
mover o bem-estar coletivo, o in-
dividualismo de mercado consiste
na liberdade de alguns amparada
na exclusão e no rígido controle de
outros (Garland, 2008, p. 420).
A construção de uma demo-
cracia efetiva na sociedade brasi-
leira exige esforço contínuo para
que suas estruturas se mantenham
sólidas. O autoritarismo sem-
pre se perpetua pela legitimidade
ideológica da ignorância. A gran-
de balbúrdia contra a democracia
é efetivada constantemente pelos
espoliadores da sociedade brasi-
leira que, em nome do sucesso do
mercado financeiro, do agrone-
gócio, da indústria e do comércio
não hesitam em impor uma agenda
política retrógrada que se configu-
ra como um grande ódio à razão
e aos interesses sociais. Por isso a
importância da mobilização popu-
lar permanente nas ruas, nas uni-
versidades, a associação coletiva na
luta pelos direitos sociais e o apoio
aos políticos comprometidos com
as agendas progressistas. Acima
de tudo lutar contra a política do
medo que estimula o esvaziamen-
to social, tão conveniente para os
arbítrios antidemocráticos. Daí
a importância de levarmos esse
debate para os setores estratégi-
cos da formação profissional, pois
necessitamos, mais do que nunca,
desenvolver lideranças comprome-
tidas com as pautas democráticas
proponentes do bem-estar comum,
do respeito pela diversidade e pela
inclusão social. Ifilo
Vl ALVES,José Augusto Lindgren.Os direitos humanos na pós-modemidade. São Paulo: Perspectiva, 2005.-c
O CASARA,Rubens R. R. Sociedade sem lei: pós-democracia, personalidade autoritária, idiotização e
,&:; barbárie. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,2018.
oe:
~ GARLAND,David. A cultura do controle: crime e ordem social na sociedade contemporânea. Trad. de
oe: André Nascimento. Riode Janeiro: Revan, 2008.
GRAHAM, Stephen. Cidades sitiadas: o novo urbanismo militar.Trad. de Alyne Azuma. São Paulo:
Boitempo, 2016.
HAN, Byung-Chul. Psicopolítica: o neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Trad. de Maurício
Liesen. Belo Horizonte: Àyiné, 2018.
HINKELAMMERT,Franz. Mercado versus direitos humanos. Trad. de Euclides LuizCalloni. São Paulo:
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IANNI,Octávio. A ideia de Brasil moderno. São Paulo: Brasiliense, 2004.
MENEGAT,Marildo. Estudos sobre ruínas. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
ROLlM, Marcos. A síndrome da Rainha Vermelha: policiamento e segurança pública no século XXI.Rio
de Janeiro: Jorge Zahar/ Oxford: Universityof Oxford, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: Cortez, 2011.
SOUZA, lessé, A elite do atraso: da escravidão a Bolsonaro. Riode Janeiro: Estação Brasil,2019.
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www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 19
Antes de mais nada, gostariade me pronunciar em pri-meira pessoa, não porquenão pudesse tratar desse
tema com todo o rigor acadêmico que
ele merece, antes porque aquilo que te-
nho a dizer se parece mais com uma
confissão pública de alguém que se
apaixonou pela Filosofia aos 16 anos e
segue desta maneira até hoje. Alguém
que fez da Filosofia o seu ofício e que,
ffirerem ou
sinto prazer em verificãr que minhas
opiniões têm a honra de ir ao encontro
das deles, às vezes, e, embora de longe,
sigo-Ihes as pegadas. E também tenho
esta vantagem que nem todos têm, que é
conhecer a profunda diferença que há en-
tre mim e eles (Montaigne, 1984,p. 73).
EXISTÊNCIA
que procurasse por mais vida - por
mais vontade de vida, que estivesse
em busca de novos ares, já sufoca-
do pelos da cidade. E, quem sabe,
estimulá-lo a viver a vida com mais
alegria e intensidade.
1. APESAR DESSE
CONTEXTO,
CELEBREMOS A VIDA!
Esses tempos sombrios mar-
cam nossa alma com um desalento
sem par como se estivéssemos em
um labirinto longe de intuirmos a
saída, pelo contrário, nos sentimos
como se fôssemos ser tragados pelo
Minotauro que o habita a qualquer
instante. Os motivos pelos quais
fomos lançados nele são perfeita-
mente numeráveis: a corrosão dos
valores morais, a corrupção, a ba-
nalização do mal, a precarização
do trabalho, depredação maciça
do meio ambiente, altos índices
22 • filosofia ciência&vida
de depressão, suicídio e violência,
entre outros. Nosso ritmo de vida
se modela às exigências do capital
que, sempre nômade, busca a todo
instante novas áreas para explo-
ração. Tempo que se destaca pela
liberdade - se, por um lado, assis-
timos com entusiasmo às manifes-
tações individuais ou de pessoas
unidas por uma causa comum, por
outro, "pessoas que prejudicam a
comunidade ou que a relegam ao
abandono acabam prejudicando a
si mesmas, entrando elas próprias
em um processo de deteriorização"
(Negt, 2002, p. 25).
Para o autor, esse processo se
deve em grande parte à falta de
concorrência na atualidade com o
sistema capitalista, que servia como
barreira de proteção e de "domesti-
cação do capitalismo" (Negt, 2002,
p. 20). Chegamos, então, ao "capi-
talismo predatório". O momento
que vivemos (não que a vida tivesse
sido mais fácil ou confortável an-
teriormente na história) nos aflige
em grande proporção e intensidade
por conta das incertezas e volatili-
dade das últimas décadas. Talvez,
por isso mesmo, a Filosofia seja de
imprescindível relevância para a
existência, não por erudição, mas
porque, antes de tudo, devamos
encarar a Filosofia como um modo
de vida. Nesse contexto, facilmente
podemos adoecer: somos tomados
pela tristeza que nos impede de
agir, diminuindo nossa potência.
Afinal, para que Filosofia? O
trágico da nossa existência consis-
te justamente na clareza de nossa
própria finitude, embora nossos
pés sempre se dirijam em dire-
ção à melhor "rota de fuga", não
há como escaparmos ao doloroso
encontro que temos com a gen-
te mesmo. Sem ele, não há como
repensar o modo como levamos a
vida e a Filosofia serve como um
farol para os marinheiros envoltos
nas escuras tempestades.
Como marinheiros lançados ao
mar revolto da vida, desde muito
cedo sentimos na pele (no corpo) o
que ela é e rechaçamos tudo aquilo
que não nos apetece - a dor, a doen-
ça, a morte ou até mesmo os desen-
contros como se essas coisas não
devessem existir ou como se fôs-
semos culpados por vivenciá-las.
Não fomos instruídos devidamente
sobre essas questões. Tornamo-nos
fracos para a garoa, para a chuva,
e não suportamos as tempestades.
Fomos educados para a vida útil
e confortável do sofá, estamos, de
fato, bem despreparados para o que
pode vir a acontecer conosco. À
primeira vista, portanto, podemos
estranhar a citação de Nietzsche
~----~~---------------------------------
NA FILOSOFIA NIETZSCHIANA,
O FATO DE ESTARMOS VIVOS É
MOTIVO DE CELEBRAÇÃO,
AINDA QUE EM PLENO SOFRIMENTO
em Ecce homo: "Devo estar despre-
parado para estar senhor de mim"
(Nietzsche, 1985,p. 50).
Por mais estranho que nos pos-
sa parecer, estar despreparado não
é de todo mal. Se entendermos a
valiosa lição herdada dos antigos e
seguida à risca pelo pensador ale-
mão, a vida é um presente. Com-
preender que estarmos vivos é que
é o maior presente - implica em
aceitarmos a vida como ela é. Es-
tamos aqui para sentirmos tudo
- desde a tristeza mais triste até a
alegria mais profunda. O que im-
porta é estarmos vivos! O que im-
porta é amar a vida como ela é em
sua totalidade caótica e imprevisí-
vel. Essa concepção nos espanta,
porque desaprendemos a conceber
a vida enquanto devir - nada dura
para sempre. O saborda vida con-
siste, para Nietzsche, na possibili-
dade de experimentarmos tudo o
que ela tem a oferecer. Mas, dife-
rentemente do que ele nos apresen-
ta, queremos a eternidade de todas
as coisas boas.
Qual de nós, se pudesse, não
congelaria o tempo em determina-
dos momentos? Às vezes, nos pa-
rece ser impossível vivenciarmos
outros momentos tão felizes quan-
to aqueles. Mas o fato é que eles
passam e não sabemos o que virá
depois - no geral, nos ressentimos
com a vida, acusando-a pelo fato
dela ser o que é. Gostaríamos que
ela fosse exatamente como deseja-
mos. Isso tem nos enfraquecido e o
que fazemos com maior frequência
é amaldiçoá-Ia e nos tornamos in-
gratos para com tudo o que temos
de bom.
Assim, na filosofianietzschiana
o fato de estarmos vivos é motivo
de celebração, ainda que em pleno
sofrimento. Mas para celebrarmos
a vida, além de nos tornarmos ma-
rinheiros fortes e capazes de apre-
ciar as gotas de chuva sobre nossos
corpos, bem como as sacudidas de
ciclones, devemos primeiramente
saber como vamos gastar o tempo
que nos resta. Por isso, me lembrei
de Heidegger.
2. O QUE FAZER
COM O TEMPO
QUE NOS RESTA?
Complicado falar de Heidegger
em tão poucas linhas, mas pode-
mos delimitar o que se relaciona
diretamente com nossa reflexão.
Heidegger entende que o homem
é abertura e correspondência aos
apelos de ser. Esses apelos de ser
são efetuados desde o seu nasci-
mento ao mesmo tempo em que já
nasce "envolto em panos": habita
um mundo no qual é convidado
a participar, é banhado pela "cul-
tura". Assim, se por um lado ele é
convidado a ser como todos os ou-
tros homens são, já que elepertence
a uma certa cultura, por outro lado
é apelado pelo ser a seguir de modo
próprio sua existência. O homem
é um ser mundano, é um ser-no-
-mundo, o que implica considerar
que na sua estrutura ontológica há
a impropriedade como condição
de ser e os apelos para tornar-se
si mesmo próprio. Não há como
viver no mundo sem se relacionar
com os outros. Estar-aí, presente
no mundo, é sua facticidade. Sua
tarefa é cuidar de sua existência,
quer queira ou não.
Esse "fato de ser", caráter on-
tológico da pré-sença, encoberto
em sua proveniência e destino,
mas tanto mais aberto em si quan-
to mais encoberto (...), chamamos
de estar-lançado (...). A expressão
estar-lançado deve indicar a factici-
dade de ser entregue à responsabili-
dade (...) Facticidade não é a fatua-
lida de do factum brutum de um ser
simplesmente dado, mas um caráter
ontológico da pré-sença assumido
na existência, embora desde o iní-
cio reprimido. O fato da facticida-
de já não pode mais ser encontrado ~
em uma intuição (Heidegger, Ser e
tempo, 1989,p. 189).
Em outros termos, Heidegger
nos conta que o homem não está
presente no mundo como um ob-
jeto ou outra coisa qualquer, senão
seria apenas um ser simplesmente
dado, um factum brutum. O ho-
mem não escolheu ser, mas está
aqui num tempo que se esgota,
sem saber de sua proveniência -
de onde veio, e nem para onde vai,
e o que vai lhe acontecer. Cabe ao
homem a tarefa de aprontar-se a
www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 23
j------------------------------------------------------------------------~
EXISTÊNCIA
•
PARA SÊNECA, DIANTE DA RODA IMPREVISíVEL
DA FORTUNA, SÁBIO É AQUELE QUE SE
COLOCA ACIMA DAS INJÚRIAS E NÃO SE ALTERA
COM O íMPETO DAS ONDAS DA ADVERSIDADE
si mesmo a fim de si mesmo pró- na existência num determinado
prio, é sua responsabilidade. Esse momento. O homem, portanto, é a
aprontamento de si também não possibilidade dada, efetivada (ônti-
significa que tudo já esteja prede- ca), mas também as possibilidades
terminado ou destinado, não se não manifestas, que continuam
trata de um juízo ou de um con- existindo porém como possibilida-
ceito, mas de algo que se tece no des no tempo (passado, presente e
tempo. Aprontar-se, podemos di- futuro). Em outras palavras, o ho-
zer, é realizar-se. m~m também é aquilo que não foi.
Segundo Heidegger, o homem é É preciso ressaltar que a possibili-
um ente que se faz ao projetar-se, dade, o possível, enquanto poder
ao lançar-se, que pode lançar-se existe e sempre no tempo, só que
em mil possibilidades de ser que o na existência, no tapete da existên-
seu modo de ser lhe permite. Isto é, cia, geralmente o que sevê é apenas
cada um tem a sua própria maneira a possibilidade efetivada. Pensar
de viver e de ser feliz. Só que nesse também no que não foi, naquilo
projeto o homem emprega tempo, que não se realizou, permite ao ho-
tempo que elepróprio é, tempo que mem uma dimensão muito maior
se esgota, se esvai e o engole para da sua própria existência.
sua última possibilidade de ser: seu A grande contribuição da fi-
morrer. É devido a esse caráter de losofia heideggeriana para nossa
finitude que o tempo para o ho- questão, em primeiro lugar, é a de
mem se apresenta como um "ho- ressaltar que não sabemos nem
rizonte de sentido do Ser" (Critelli, de onde viemos nem para onde
1985, p. 97). Somente percebendo vamos e é por isso mesmo que
sua temporalidade, sua finitude é buscamos um sentido para a vida.
que se instala uma percepção de Essa apreensão sobre o sentido do
suas possibilidades de ser, como ser, em caráter individual, só pode
projeto, conferindo à sua existência ocorrer quando nos damos conta
um sentido. Esse sentido é revelado da nossa dimensão temporal, esta-
pela maneira como o homem cuida mos sujeitos a essa condição - não
de seu ser. O projetar-se significa há nada pronto, mas a se fazer, e
possuir mil possibilidades de ser embora se contemplem as mil pos-
(caráter ontológico) e se realiza na sibilidades de ser, o que de fato é
manifestação, na configuração de muito bonito, porque· alimenta
uma possibilidade dada na existên- nossa alma, por outro lado nos
cia (caráter ôntico). deixa entrever que o que de fato
A cada momento há o possí- existe é considerar como, com
vel, mas esse possível se dá numa quem e fazendo o que vamos gas-
possibilidade configurada, dada tar o tempo que nos resta.
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2.1. Como? Fazendo o quê?
Algumas linhas acima lemos que o
homem pode lançar-se em mil pos-
sibilidades de ser que o seu modo de
ser lhe permite. Sepudermos trazer
à luz algumas poucas ideias sobre
esse assunto, poderíamos começar
respeitando os diferentes modos de
ser que leva cada ser humano a bus-
car de modo próprio sua felicidade,
ainda que seja de modo impróprio
- ou seja, pautado na opinião dos
outros, da tradição. Mesmo que
nos pareça que alguém que conhe-
cemos escolheu levar uma vida que
mais se parece com a escolha que
os outros fizeram para ele, todos
os dias, pela manhã, este alguém é
sempre livre para mudar de dire-
ção, para mudar a rota de seu navio.
O modo de ser de cada um
também nos leva a questionar, in-
clusive, aquilo que escrevi acima
sobre a celebração da vida. Alguns
acreditarão que a felicidade consis-
te justamente na ausência de dor,
como os estoicos, por exemplo.
Para o tutor de Nero, Sêneca, dian-
te da roda imprevisível da fortuna,
o sábio é aquele que se coloca aci-
ma das injúrias, nem se altera com
o ímpeto das ondas da adversidade,
é imperturbável, prepara-se para a
vida, antecipando as possibilidades
que podem efetivar-se no porvir,
esquivando-se do apego demasiado
às coisas e pessoas.
O estoico exercita a ataraxia
- o que, no final das contas, é um
modo de estar preparado para os
acontecimentos da vida, suportando
tudo com dignidade e comedimen-
to, assim, está longe de ser levado
pelos arroubos temerários das pai-
xões. Devemos nos valer das lições
do estoicismo? Em Sobre verdade e
mentira no sentido extra-moral há
uma passagem que nos faz refletir:
enquanto ele deseja livrar-se o
mais possível dos sofrimentos, o ho-
mem intuitivo, ao contrário, colo-
cado no coração de uma cultura, já
desfruta, a partir de suas intuições,
de um esplendor que se irradia con-
tinuamente, de um desabrochar, de
uma redenção. É verdade que sofre
mais intensamente quando sofre:
com muitafrequência sofre porque
não consegue tirar lições da expe-
riência, torna a cair naquele ponto
rotineiro, onde já havia caído. É tão
pouco razoável na dor quanto na
felicidade: grita forte e fica descon-
solado. Em meio à mesma desgraça
como é diferente o estoico, instruído
pela experiência e dominando-se
através dos conceitos! Ele que costu-
meiramente não procura mais que a
sinceridade, a verdade e a liberdade
diante das ilusões e proteção contra
as surpresas enganosas, agora na
infelicidade monta a obra-prima da
dissimulação, do mesmo modo que
o outro na infelicidade; ele não tem
um semblante humano mutável e
animado, ostenta de certo modo,
uma máscara de traços dignamen-
te proporcionados, não grita nem
altera o som de sua voz: quando
uma tempestade se abate sobre ele,
protege-se com seu casaco e afasta-
-se sob o aguaceiro, com um passo
lento (Nietzsche, 1987,p. 77).
extremos - tanto na dor quanto
na felicidade. Ele está preparado,
veste-se com um casaco que o pro-
tege da chuva forte, e então pode
caminhar, ele não se detém nem se
deixa destruir com certos eventos.
Entretanto, apesar dessa filosofia
nos indicar uma maneira de como
viver, o estoico não conseguirá sen-
tir o que é de fato uma felicidade,
vivida em toda sua plenitude ein-
tensidade, ou seja, a ele lhe será ne-
gada a oportunidade de viver "fora
da história".
Esse tipo de homem não se pre-
para, não está advertido para os fa-
tos da vida, mas certamente, dessa
forma, sua existência é preenchi-
da de nuances coloridas e refina-
das, ele consegue viver o presente,
como se nada mais existisse além
daquele momento, seu rosto é ex-
pressivo e revela as emoções de seu
coração. Todavia, viver oscilando
entre constantes extremos abri-
ga grandes perigos. Nem todos os
homens são fortes o suficiente para
suportar determinadas situações.
Para alguns, a mesma circunstân-
cia pode ser catastrófica.(...) Para me expressar em ter-
mos mais eruditos, a capacidade
de nos sentirmos fora-da-história.
Quem não é capaz de repousar, es-
quecendo todo o passado no umbral
do momento, quem não pode pôr-se
de pé um instante; sem vertigem e
nem temor como uma deusa da
vitória, não saberá que coisa é a
felicidade e o pior ainda, não fará
nada para dar felicidade aos outros
(Nietzsche, 1970,p. 107).
(...) é necessário saber com exati-
dão quanto há de força plástica em
um indivíduo, um povo, uma cultu-
ra. Me refiro a esta força de crescer
por si mesma, de uma força que lhe
éprópria, de transformar e incorpo-
rar as coisas do passado, e o hetero-
gêneo, de gerir e de cicatrizar as fe-
ridas, de recolocar o que foi perdido,
de refazer por si mesmo as formas
o estoico precisa reduzir as
expectativas, nunca é levado aos
www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida· 25
EXISTÊNCIA
quebradas. Há homens que pos-
suem um grau tão escasso desta for-
ça que só uma experiência, uma só
dor, até mesmo uma só ligeira injus-
tiça é irremediavelmente perigosa,
como se todo o seu sangue se esvaísse
por uma pequena arranhadura. Há,
de outra parte, aqueles que são tão
invulneráveis que os acidentes mais
selvagens e as mais horríveis desgra-
ças da vida e mesmo atos de sua pró-
pria maldade são como doses peque-
nas em meio às crises mais violentas
(Nietzsche, 1970, p. 108).
Essa força plástica de que nos
fala Nietzsche na 2a Extemporânea
reside na nossa capacidade de es-
quecer, de esquecer certos aconteci-
mentos do passado. Talvez fosse de
fato para nós muito mais aprazível
se pudéssemos viver felizes como o
animal, já que ele vive com intensi-
dade o presente sem se recordar do
passado ou criar expectativas em
relação ao futuro. E aqui Nietzsche
e Heidegger se encontram - em
ambos, há a observância de mo-
dos de ser diferentes e de como
os homens encaram a sua própria
temporalidade. Vale atentarmos
que muitas vezes nos prendemos
ao passado, como se lá tivéssemos
sido felizes, lá estão cristalizados os
melhores momentos de modo que
muitas vezes impedimos de que es-
ses bons momentos sejam vivencia-
dos também no presente, ou, pelo
contrário, temos tantas expectati-
vas em relação ao futuro que mal
conseguimos suportar o presente.
2.2. Com quem? Nosso segun-
do item, a partir das considerações
heideggerianas, é o "com que" ou
"com quem". Item talvez bem mais
problemático do que parece ser. Se-
gundo Heidegger, gastamos nosso
tempo com coisas e pessoas. Já fa-
lamos sobre o como - não há como
modificar determinados fatos da
vida, mas podemos modificar a
maneira de os olharmos e de lidar-
mos com eles. A atitude estoica nos
reporta praticamente à ideia de nos
tornarmos heróis para nós mes-
mos. Implica serenidade e cons-
26 • filosofia ciência&vida
tância da nossa razão, prevenindo
e antecipando os acontecimentos e
adversidades enquanto que outros,
de acordo com seu modo de ser,
podem perfeitamente estar mais
próximos da filosofia nietzschiana:
preferem viver intempestivamente,
vivenciando tudo o que a vida tem
a oferecer, como aquele marinheiro
que ama o mar, e quando chega a
tormenta e a chuva forte balan-
ça o pequeno navio, sente o frio e
a chuva que molha o seu rosto e
sente prazer em querer mais. Que-
rem mais é viver, não se importam
tanto com aquilo que virá a seguir,
gostam de correr riscos e, por isso,
desejam sentir o frio e a tempesta-
de; isso fortalece suas veias e os-
sos - temem, mas enfrentam, não
se esquivam da dor nem do medo,
nem da tempestade. Essa atitude os
torna mais fortes. Sua força plástica
sempre os regenera, apesar dos di-
laceramentos.
Nesses dias tão difíceis e com
demandas crescentes, nos parece
que dois ingredientes são essen-
ciais - o amor e a amizade. Podem
se considerar felizes todos aqueles
que podem contar com pessoas
especiais que se tornam cúmplices
e referências da nossa existência.
Não se trata aqui de complemen-
tos - não é algo que nos falte, pois
nascemos e morremos sozinhos e
devemos nos tornar nossa melhor
companhia, mas são essas pesso-
as que dão cor e "apimentam" ou
"adoçam" nossos dias.
Mesmo correndo o risco de pa-
recermos piegas, sentimos a neces-
sidade de retomar o valor do amor
e da amizade entoados desde a fi-
losofia clássica. Tradicionalmente,
dividimos o amor em dois sujei-
tos: o amante, aquele que ama - o
CO~RENDO o RISCO DE PARECERMOS PIEGAS,
SENTIMOS A-NECESSIDADE DE RETOMAR O
VALOR DO AMOR E DA AMIZADE ENTOADOS
DESDE A FILOSOFIA CLÁSSICA
apaixonado e o objeto de seu desejo
- o amado. Este é sempre um mis-
tério, um enigma a ser decifrado.
Mas quem fala, escreve poemas e
chora é sempre o amante que oscila
entre a alegria, o transbordamento
e o coração partido que lamenta e
se entristece. O amor deveria pro-
vocar um sentimento constante
de felicidade, entretanto o amante
sabe de sua condição trágica - sen-
te e não pode impedir-se de sentir,
quer que o amado seja seu, e sofre
por supor que isso não se realize ou
se prolongue.
O amante então vale-se de to-
das as artimanhas e estratégias
para conquistá-lo definitivamente,
sente-se sempre carente, porque
sempre acha pouco o que recebe.
Essa é a verdadeira natureza do
amor: filho de Engenho e Penúria,
segundo a sacerdotisa Diotima, n'Q
banquete de Platão:
A história é um tanto longa -
respondeu; contudo vou contá-la.
No "dia que Afrodite nasceu, os
deuses davam um banquete. Acha-
va-se entre eles o filho de Astucia,
que é Engenho. Acabado o banque-
te, chegou Penúria, para mendigar,
visto que havia mesa farta, e parou
à porta. Entretanto, Engenho, ébrio
de néctar - o vinho não existia -,
saiu para o jardim de Zeus e caiu
num sono pesado. Penúria, eterna-
mente em dificuldades, entendeu de
ter um filho de Engenho, deitou-se
com ele e concebeu o Amor. (...) fi-
lho, pois, de Engenho e Penúria, o
Amor teve esta sina: primeiro é um
eterno mendigo, longe de ser um
ente mimoso e bonito, como pensa
a maioria; ao contrário, é aturado,
poento, descalço, sem teto, sempre
deitado no chão, sobre a terra nua,
dormindo ao relento nas soleiras
e nos caminhos, porque herdou a
natureza da mãe e passa a vida na
indigência. Mas, puxando pelo pai,vive espreitando o que é belo e bom,
porque é viril, acometedor, teso, um
caçador exímio, sempre a urdir suas
malhas, ávido de inventivas e talen-
toso, passando a vida afilosofar (...).
Todavia, a renda se seus talentos
sempre se lhe esvai, de sorte que o
amor nunca está na miséria e nunca
na opulência (Platão, 1978,p. 75).
O amante é um prisioneiro ca-
tivo de seu próprio sentimento,
mas é claro, repleto de estratégias
para alcançar as benesses do ama-
do. Referendamos com a fala de
Pausânias, ainda n'Q banquete: "Se
aventurasse alguém aos mesmos
propósitos no assédio a seu amado,
formulando súplicas, implorando,
proferindo juras, deitando-se nas
soleiras, prontificando-se a gêneros
de escravidão que escravo algum
suportaria" (Platão, 1978, p. 51).
Tudo o que o amante fizer, por es-
tar inspirado pelos deuses, é para
além de bem e mal. Tudo suporta:
o frio, a distância, a indiferença, o
assédio e a convivência de outras
pessoas, os desejos mais insensatos
e descabidos do amado. O que ele
quer, enfim, é estar enlaçado em
seus braços. Ora, qual seria a graça
da vida sem um grande amor? Seja
ele correspondido ou não, o mundo
tem um outro colorido quando nos
apaixonamos.
O segundo sentido para o amor
diz respeito à palavra philos. Este
significa amor de amigo, ou seja, o
amor verdadeiro - há amigos que
são mais queridos do que um ir-
mão, porque, na verdade, a Philia
não tem a ver com laços de sangue.
Éuma amizade verdadeira, sem in-
teresse, que completa a alma. Uma
boa ilustração desse sentimento
encontramos em Montaigne, no
seu lindo texto Da amizade.
Para o autor, a amizade en-
tre pais e filhos não pode perder
de vista a hierarquia, pois não há
como educar sem a imposição
de regras e censuras. As relações
fraternais também são avaliadas
- nelas, a amizade nem sempre se
exerce, pois podem não existir afi-
nidades entre os irmãos. Percorre
também sobre as relações entre
homem e mulher, e percebe que o
vínculo de amizade definha o sen-
timento de amor. "O amor é antes
de mais nada um desejo violento
do que nos escapa: 'como o caçador
perseguindo a lebre; desdenha-a ao
alcançá-Ia e só a deseja enquanto
a persegue na fuga'" (Montaigne,
1984, p. 90). No caso, estão à al-
tura de participar de conversas e
troca de ideias e não se recorda de
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EXISTÊNCIA
nenhum exemplo feminino para
objetar nessa questão. O verdadei-
ro amor de amigo, diz Montaigne,
é aquele que sentiu por La Boétie:
Na amizade a que me refiro, as
almas entrosam-se e se confundem
em uma única alma, tão unidas
uma à outra que não se distinguem,
não se lhes percebendo sequer a li-
nha de demarcação. (...) nós nos
procurávamos antes de nos termos
visto, pelo que ouvíamos um do
outro e nascia em nós uma afei-
ção em verdade fora de proporções
(Montaigne, 1984, p. 92).
O amigo verdadeiro, tão raro
hoje como outrora, não mede es-
forços para proporcionar felicidade
ao outro, o consola e o completa.
Sem amigos, não há felicidade.
Montaigne continua seu texto,
após a morte de La Boétie:
Os próprios prazeres que se me
oferecem, em vez de me consolar,
28 • filosofia ciência&vida
ampliam a tristeza que sinto da
perda, pois éramos metade em tudo
e parece hoje, que lhe sonego a sua
parte (...) Contigo pereceram de um
só golpe todas as nossas alegrias e
esse encanto que tua suave amizade
deitava em minha vida. Ao morrer,
irmão, despedaçaste toda a minha
felicidade; minha alma desceu ao
túmulo com a tua (Montaigne,
1984, p. 95).
Certamente, tal grau de amiza-
de sempre foi raro, mas podemos
observar que esse tipo de amor - o
de amigo - se mantém graças a al-
gumas características: a comuni-
cação, o diálogo, a convivência, a
troca de ideias, as afinidades perpe-
tuam o laço de amizade. Esses vín-
culos são fruto de uma escolha que
pode começar por acaso. O início
se dá naturalmente, mas a sua per-
manência exige dedicação. Exige
encontrarmos tempo para o outro.
Ainda aqui cabe lembrar que,
etimologicamente, a palavra fi-
losofia significa amor/amigo da
sabedoria. O filósofo é aquele que
deseja a sabedoria, pretende andar
de mãos dadas com ela, mas como
todo amante ou amigo sabe que
não é detentor da sabedoria, ape-
nas anseia por ela. Na juventude ou
na velhice, a Filosofia se torna uma
grande companheira nessa viagem
da nossa existência.
3. DEVEMOS SER
POETAS E AUTORES DA
NOSSA EXISTENCIA
Sem dúvida, o espaço dedicado
para esse tema sempre será insu-
ficiente. Com Nietzsche, aprende-
mos que é inevitável a consciência
de nossa trágica condição. Mas o
que é interessante é que ele nos
convida a nos tornarmos poetas
e atores da nossa própria existên-
cia - o que implica na tomada de
um caminho individual, único,
que cria e recria incessantemente
a si mesmo, como um artista que
treina, se exercita para entrar no
"O QUE FAZER COM O TEMPO QUE ME RESTA?"
HEIDEGGER NOS RESPONDE, DEPOIS DE NIETZSCHE,
QUE DEVE GASTAR SEU TEMPO NO CULTIVO DE SI
MESMO, TORNANDO A VIDA UMA OBRA DE ARTE
palco. Para ele, assim como o ator
procura a cada dia se aprimorar,
assim também devemos fazê-lo.
Devemos tornar nossa existên-
cia uma obra de arte. No esteio
de Nietzsche, Foucault se reporta
também aos antigos para enfatizar
a ideia desse cultivo pessoal en-
quanto uma estética da existência.
Trata-se de (...) uma arte da
existência que gravita em torno da
questão de si mesmo, de sua pró-
pria dependência e independência,
de sua forma universal e do vínculo
que se pode e deve estabelecer com
os outros, dos procedimentos pelos
quais se exerce seu controle sobre si
próprio e da maneira pela qual se
pode estabelecer a plena soberania
sobre si (Foucault, 1985,p. 234).
Na contemporaneidade, en-
contramos um aluno de Foucault,
Hadot, que retoma a filosofia an-
tiga enquanto psicagogia, que se
destina a "formar almas". Nesse
sentido, a Filosofia nos permite a
instauração de um modo de vida
que se pretende "justa, sábia e
feliz, ensinando-nos o domínio
sobre nós mesmos, sobre nos-
sos impulsos, desejos e paixões"
(Chaui, 2000, p. l4). Tal retomada
empreende o esforço na busca dos
rastros deixados pelos antigos no
que concerne ao cuidado de si -
que envolve, para Hadot, a prática
de exercícios espirituais, compar-
tilhamento dos momentos essen-
ciais da vida com os outros. Esse
embelezamento de si é praticado
no coletivo. "De maneira geral,
eles consistem, sobretudo, no con-
trole de si e na meditação" (Hadot,
2012, p. 23-24).
Assim, temos a retomada da Fi-
losofia enquanto uma terapêutica
do cuidado de si. Em outras pala-
vras, retomando as ideias de Niet-
zsche, em certa medida, de condu-
zirmos nossa vida enquanto obra
de arte, refinando e embelezando
os instintos. Diante da caoticidade
da vida, esses pensadores procu-
ram nos ensinar a viver.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Nossa proposta residiu em
propiciar ao nosso leitor, em tom
confessional, alguns pensadores
que podem nos ajudar a ressigni-
ficar nossa existência. Apesar dos
tempos sombrios, a vida deve ser
celebrada - ainda que em meio a
tormentos. A consciência de nossa
finitude nos remete diretamente à
indagação: "o que fazer com o tem-
po que me resta?"
Heidegger nos responde, depois
de Nietzsche, ao tratar da ideia de
um aprontamento de si - gastar seu
tempo no cultivo de si mesmo, a
fim de transformarmos nossa exis-
tência em uma obra de arte: uma
vida digna de ser vivida. Para tan-
to, também podemos contar com
os arroubos da paixão que deixam
a vida mais colorida e intensa, com
os amigos e com a espiritualidade.
A arte também nos ajuda a expres-
sar nossa subjetividade e manifes-
tarmos nossas potencialidades.
A vida deve ser vivida com ale-
gria, pois somos seres únicos e irre-
petíveis no mundo, e isso deve ser
apreciado. Nesse sentido, ao tratar-
mos da importância da Filosofia
para a existência, nos parece sem-
pre insuficiente pretender transpor,
em qualquer espaço que seja, o de-
leite e a doação de sentido que ela
oferece, não por erudição apenas,
mas nos apropriando dos antigos,
enquanto um modo de vida. Ifilo
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Paulo: Ed. Cultrix, 1978.
www.portalespacodosaber.com.br • filosofia ciência&vida' 29
FILOSOFIA ClÍNICA por lúcio packter
Ontem depois
de amanhã
Minta para mim ontem
[ames Hillman escreveu: "A
sofisticada 'classe terapêuti-
ca' que chega à terapia privada
possui suas histórias moldadas
no gênero terapêutico, isto é, a
história é autorreflexiva e focada
nos 'problemas' do personagem
principal".
Hillman entendia que desen-
volvimentos peculiares estariam
então presentes: "Pacientes usam
suas histórias de formas dife-
rentes. Alguns contam histórias
como forma de entretenimento
para passar, ou enganar, o tempo;
outros são repórteres; outros são
advogados de acusação elaboran-
do uma queixa. Ocasionalmente,
uma história se torna totalmente
metafórica.jjja qual todos os as-
pectos do-que-eu-vi-ontem - a
grande construção de um prédio,
o mestre de obras de capacete na
cabine de controle, a garotinha
numa poça prateada de água da
chuva em perigo diante de uma
escavadeira, o transeunte que
interfere - se referem também a
figuras na psique do paciente e à
30 • filosofia ciência&vida
JAMES HILLMAN EXPRESSOU EM
SUA OBRA QUE ESTAMOS DIANTE
DE UM ERRO: "O ERRO DE MECANISMO
CENTRAL EM PSICOLOGIA É QUE
ELA LlTERALlZA FUNÇÕES E AÇÕES
COMO PEÇAS MÓVEIS DISTINTAS,
SEPARADAS UMAS DAS OUTRAS"
interação entre elas. Um clínico
deve notar a forma como as his-
tórias são contadas".
Em sua obra Ficções que
curam ele também afirma que
na terapia ocorre a seguinte dis-
posição: "Dois autores agora es-
tão colaborando em uma ficção
mútua de terapia, embora con-
vencionalmente apenas um irá
escrevê-Ia".
[ames Hillman expressou em
sua obra que estamos diante de
um erro: "O erro de mecanismo
central em psicologia é que ela
literaliza funções e ações como
peças móveis distintas, separa-
das umas das outras".
Citando o caso Dora como
exemplo, Hillman coloca Freud
no epicentro do fenômeno
quando indica que o médico
abandonou a narrativa dos casos
clínicos como seriam descritos
por um patologista e a associou
à ficção, ao romance, construin-
do um modelo que se dissemi-
naria amplamente. Histórias
inventadas em terapia geraram
entendimentos sem alma, coisi-
ficados, reducionistas.
Esse problema às vezes se
reproduz em Filosofia Clínica
e desafia o filósofo a pesquisas
complexas na busca de dimen-
sionar, endereçar, compreender
o que ocorre. Exemplo: quando uma
pessoa discorre sobre algo em sua
vida ela está editando um trecho?
Quais os critérios que ela utiliza
nessa editoração existencial? Como
ela sabe se a maneira como selecio-
na, narra, expõe o que entende ter
acontecido de fato se traduzirá em
uma aproximação razoável daquilo
que de fato procura representar, se
é esse o intuito dela?
Observe como algoritmos po-
dem auxiliar, em um futuro hipoté-
tico próximo a uma questão como
essa, com softwares específicos que
funcionarão como inteligências ar-
tificiais linguísticas para propósitos
existenciais:
John (conversando com seu compu-
tador de bordo enquanto se dirige para
casa em seu automóvel) - Olá, Lexikó.
Eu contei a ela o que sentia, mas ela
me disse que eu estava mentindo.
Lexikó - Você não mentiu, John,
apenas esteve enganado.
John - Você poderia me explicar
isso, por favor?
Lexikó - Você não gostaria de ir
ao casamento de seus amigos, não
havia um argumento para isso, então
criou um engano de datas. Outras
vezes fez isso. Costuma funcionar
bem para você.
John - Quando foi que aconteceu
outra vez, Lexikó?
Lexikó - Tenho seis datas e con-
textos nos quais estes enganos ocor-
reram. Gostaria que os mencionasse
e explicasse, um a um, a você?
John - Sim, por favor. E em segui-
da mostre-me como posso resolver
isso de um modo mais promissor nas
próximas ocasiões, está bem?
A clínica verbal, tal qual a conhe-
cemos, provavelmente prosseguirá
de outros modos, mais breves, exa-
tos, pontuais. Ferramentas como o
Lexikó poderão aprofundar pesqui-
sas semânticas e sintáticas no âmbito
da clínica. Muito, muito em breve.
Como é o meu tempo?
Gianni Vattimo escreveu como
isso era para ele na obra Não ser
Deus: "Há mais uma coisa que me
emociona e me faz sentir próximo a
Martin Heidegger. Começava a ler
Michel Foucault (mas, como se sabe,
quando lemos Foucault, o que mais
fazemos é inventar o que imaginamos
LÚCIO PACKTER
É SISTEMATIZADOR
DA FILOSOFIA CLÍNICA
NO BRASIL. GRADUADO
EM FILOSOFIA PELA
PUC-FAFIMC, PORTO
ALEGRE. COORDENADOR
DO INSTITUTO
PACKTER. E-MAIL:
LUCIOPACKTER@UOL.COM.BR
www.portalespacodosaber.com.br • fílosofía ciência&vida· 31
que ele quis dizer, pois pouco ou
nada entendemos), mas, em todo
caso, leio Foucault e penso nas
"épocas" de Theodor Adorno, no
fato de que ele fala frequente-
mente em "constelações". Heide-
gger também imagina a história
como Iam pejos.
Iluminações súbitas. Acon-
tecimentos. Nesses lampejos
articulam-se tempos. Épocas
históricas. Mas em Heidegger a
época é uma suspensão do tem-
po, uma fratura instantânea.
O tempo não é contínuo.
Como em Santo Agostinho, de
certo modo, "o tempo está liga-
do à existência e à existência do
homem. E o Ser se ilumina de
maneiras diferentes em épocas
diferentes, épocas que não têm
continuidade entre elas. O Ser
nada é senão a iluminação de
horizontes históricos determ i-
nados, um a um, sem nenhuma
continuidade visível entre uma
época e a outra".
Sabe como o tempo se tor-
nou desse jeito para Vattimo? Os
olhos do trompetista da Ópera de
Viena sorriam para ele enquanto
o músico contava sua história. mas elas percebem claramente
que as estou fotografando e taci-
tamente me autorizam a fazê-Io.
Nenhuma foto, sozinha, pode
mudar, o que quer que seja na
pobreza do mundo. No entan-
to, somadas a textos, a filmes e
a toda a ação das organizações
A face em face
Em um trecho da obra Da
minha terra à Terra, Sebastião
Salgado comentou: "Sempre fico
de frente para as pessoas que
fotografo. Não peço que posem,
o TEMPO NÃO É CONTíNUO.
COMO EM SANTO AGOSTINHO,
DE CERTO MODO, "O TEMPO ESTÁ
LIGADO À EXISTÊNCIA E À EXISTÊNCIA
DO HOMEM. E O SER SE ILUMINA
DE MANEIRAS DIFERENTES
EM ÉPOCAS DIFERENTES"
32 • fílosofía ciência&vida
,
"
humanitárias e ambientais, mi-
nhas imagens fazem parte de um
movimento mais amplo de de-
núncia da violência, da exclusão
ou da problemática ecológica.
Esses meios de informação con-
tribuem para sensibilizar aqueles
que as contemplam a respeito da
capacidade que temos de mudar
o destino da humanidade".
Essaparte me ocorreu enquan-
to eu estava em atendimento hos-
pitalar, os olhos rasos, observando
o inchaço no rosto da mulher a
quem atendiam, que há pouco ha-
via passado por um grave momen-
to de agressão pelo companheiro
dela. Ela percebeu que minha
alma claramente a fotografava e
acolhia seu coração. lfilo
Oministro Ricardo Sallesteria mentido em seu currí-culo? O titular do Meio
Ambiente era considerado

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