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FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 309 Resistências Desde os primórdios da psicanálise, o fenôme- no resistência tem sido exaustivamente estudado em sua teoria e técnica, mas nem por isso, na atua- lidade, perdeu em significação e relevância. Pelo contrário, ele continua sendo considerado a pedra angular da prática analítica e, cada vez mais, os autores prosseguem estudando-o sob renovados vértices de abordagem e conceitualização. Na qualidade de conceito clínico, a concepção de resistência surgiu quando Freud discutiu as suas primeiras tentativas de fazer vir à tona as lembran- ças “esquecidas” de suas pacientes histéricas. Isto data de antes do desenvolvimento da técnica da associação livre, quando ele ainda empregava a hipnose, e a sua recomendação técnica era no sen- tido de insistência (por parte do psicanalista) como o contrário da resistência (por parte do paciente). Este método de coerção associativa empregado por Freud incluía uma pressão de ordem física que ele próprio procedia e recomendava como “colocan- do a mão na testa do paciente, ou lhe tomando a cabeça entre minhas duas mãos...”(1893-v. 5, pp. 137; 327) a fim de conseguir a recordação e verba- lização dos conflitos passados. Freud empregou o termo resistência, pela pri- meira vez, ao se referir a Elisabeth Von R. (1893), com a palavra original widerstand, sendo que em alemão “wider” significa “contra”, como uma opo- sição ativa. Até então a resistência era considerada exclusivamente como um obstáculo à análise, correspondendo sua força à quantidade de energia com que as idéias tinham sido reprimidas e expul- sas de suas associações. O termo “resistência”, por longo tempo, foi empregado com uma conotação de juízo pejorati- vo. A própria terminologia utilizada para caracte- rizá-la, em épocas passadas (de certa forma, ainda persistindo no presente), era impregnada de expres- sões típicas de ações militares, como se o trabalho analítico fosse uma beligerância do paciente con- tra o analista e vice-versa. Um exemplo disso é uma antiga referência de Freud, comumente muito cita- da: “o inimigo não pode ser vencido in absentia ou effigie” (1912, p. 199). Em A interpretação dos sonhos (1900), os con- ceitos de resistência e de censura estão intimamente relacionados: a “censura” é para os sonhos aquilo que a “resistência” é para a associação livre. Neste trabalho, em suas considerações sobre o esqueci- mento dos sonhos, Freud deixou postulado que uma das regras da psicanálise é que tudo o que inter- rompe o progresso do trabalho psicanalítico é uma resistência” (p. 551). Aos poucos, com a tática de ir da periferia em direção à profundidade, Freud foi entendendo que o reprimido, mais do que um corpo estranho, era algo como um “infiltrado”. Assim, ele começa a deixar claro que a resistência não era dirigida so- mente à recordação das lembranças penosas, mas também contra a percepção de impulsos inaceitá- veis, de natureza sexual, que surgem distorcidos. Com isso, Freud conclui que o fenômeno resis- tencial não era algo que surgia de tempos em tem- pos na análise, mas sim que ele está permanente- mente presente. Freud aprofundou bastante o estudo sobre as Resistências em Inibição, sintoma e angústia (1926), quando, utilizando a hipótese estrutural, descreveu cinco tipos e três fontes das mesmas. Os tipos derivados da fonte do ego eram: 1) Resistên- cia de repressão (consiste na repressão que o ego faz, de toda percepção que cause algum sofrimen- to). 2) De transferência (o paciente manifesta uma resistência contra a emergência de uma transferên- cia “negativa”, ou “sexual”, com o seu analista). 3) De Ganho secundário (pelo fato de que a própria doença concede um benefício a certos pacientes, como os histéricos, personalidades imaturas,e aque- les que estão pleiteando alguma forma de aposen- tadoria por motivo de doença, essas resistências são muito difíceis de abordar, eis que egossin- tônicas). 4) As resistências provindas do id (Freud as considerava como ligadas à “compulsão à repe- tição” e que, juntamente com uma “adesividade da libido”, promovem uma resistência contra mudan- ças. 5) Por fim, a resistência oriunda do superego, a mais difícil de ser trabalhada, segundo Freud, por causa dos sentimentos de culpa que exigem puni- ção. No clássico análise terminável e interminável (1937), Freud introduz alguns novos postulados teórico-técnicos, e creio que se pode dizer que aí ele formula um sexto tipo de resistência: a que é provinda do ego contra o próprio ego: “...em cer- C A P Í T U L O 28 310 DAVID E. ZIMERMAN tos casos, o ego considera a própria cura como um novo perigo” (p. 271). A meu juízo, Freud está aqui intuindo e prenunciando aquilo que Rosenfeld (1965) veio a chamar de “gangue narcisista” e Steiner (1981) de “organização patológica”. Neste mesmo trabalho de 1937, Freud aporta outras importantes contribuições sobre resistências, como são as seguintes: o conceito de reação rerapêutica negativa (RTN) como sendo aderido ao instinto de morte; a valorização do papel da contratransferência, sendo que ele aponta que a resistência do analisando pode ser causada pelos erros do analista, a observação de que a resistên- cia no homem se devem ao medo dos desejos pas- sivo-femininos em relação a outros homens, en- quanto a resistência das mulheres deve-se em gran- de parte à “inveja do pênis”; e Freud também alu- de ao surgimento de uma “resistência contra a re- velação das resistências” (p. 272). Muitos outros autores, contemporâneos de/ou posteriores a ele, trouxeram importantes contribui- ções ao estudo das resistências, como são, entre tantos outros: Ferenczi (1918) apontou para o fato de que a própria regra fundamental da livre asso- ciação de idéias podia ser usada para fins resis- tenciais; Abraham (1919) descreveu com maestria aspectos ainda vigentes das resistências crônicas de natureza narcisística; W. Reich (1933) insistia no fato de que o trabalho primordial do psicanalis- ta, de início, deveria ser a remoção da “couraça caracterológica” formadora do tipo de resistência que ele denominou “resistência de caráter”; J.Rivière (1936) fez um importante estudo sobre as defesas maníacas na gênese da RTN, como uma forma resistencial de negação das ansiedades depressivas; Anna Freud (1936), seguindo os es- boços do pai, foi a primeira a fazer uma clara siste- matização das defesas que o ego utiliza como re- sistências, demonstrando que essas não são apenas obstáculos ao tratamento, mas são também impor- tantes fontes de informação sobre as funções do ego em geral.; M. Klein, desde 1920, com os seus conhecidos estudos sobre o psiquismo primitivo e a análise com crianças, propiciou uma compreen- são bastante mais clara acerca dos arcaicos recur- sos defensivos que o ego utiliza como movimentos resistenciais; Rosenfeld (1965) aprofundou o estu- do das resistências em pacientes de personalidade narcisística, não-psicóticos, nos quais um “self idea- lizado”, patológico e de gênese precoce obriga o indivíduo a um boicote e a uma permanente resis- tência contra o aparecimento de genuinas necessi- dades da parte infantil dependente; Bion, embora não tenha produzido nenhum artigo explicitamen- te sobre resistências, deixou um importante legado sobre este tema, notadamente pelo seu enfoque da vincularidade analítica, como será descrito mais adiante. Entrementes, as sementes de Freud continuam frutificando. Um exemplo disto pode ser dado a partir de seus estudos sobre o ideal do ego. Assim, em Introdução ao Narcisimo (1914, p. 105) apare- ce o seguinte trecho “... deverá realizar (a crian- ça) os desejos, não-cumpridos, de seus pais”. Ba- seados em afirmativas desta essência, um signifi- cativo contingente de analistas, inspirados em Lacan, que advoga um “retorno a Freud”, tem ex- traído uma significação especial para a compreen- são de algumas formas de resistência nas terapias psicanalíticas. Sua formulação básica fica baseada no fato de que o desejo da criança (paciente) é o de ser desejado pelo Outro (pais no passado; terapeu-ta, no presente). Em outras palavras, a criança, para garantir o amor dos pais, pode ter aprendido, desde sempre, a adivinhar e a cumprir as expectativas ideais dos mesmos; logo, o seu desejo confunde-se como sen- do o “desejo do outro”. A não ser assim, a criança de ontem – nosso analisando de hoje – correria o grave risco de perder o amor do superego e do ob- jeto externo, sendo que, sempre que isso acontece, sobrevém uma reação do tipo de protesto, deses- perança e retraimento, nos mesmos moldes que as crianças, estudadas por Spitz (1945), que tiveram abandonos prematuros. É evidente que a reprodu- ção disso tudo no campo analítico configura-se sob a forma de poderosas resistências inconscientes, como, por exemplo, a de um estado mental de de- sistência. Em resumo, o que de mais importante pode ser dito é o que a evolução do conceito de resistência, na prática analítica, sofreu uma profunda transfor- mação, desde os tempos pioneiros em que ela era considerada unicamente como um obstáculo de surgimento incoveniente, até os dias de hoje, quan- do, embora se reconheça a existência de resistên- cias que obstruem totalmente o curso exitoso de uma análise, na grande maioria das vezes o apare- cimento das resistências no processo analítico é muito bem-vindo, porquanto elas representam, com fidelidade, a forma de como o indivíduo defende- se e resiste no cotidiano de sua vida. Assim, de modo genérico, a resistência no ana- lisando é conceituada como a resultante de forças, dentro dele, que se opõem ao analista, ou aos pro- cessos e procedimentos à análise, isto é, que obstaculizam as funções de recordar, associar, ela- borar, bem como o desejo de mudar. Nessa pers- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 311 pectiva, continua vigente o postulado de Anna Freud (1936) de que a análise das resistências não se distingue da análise das defesas do ego, ou seja, da “permanente blindagem do caráter” (p. 46). TIPOS DE RESISTÊNCIAS Não é possível uma clara classificação ou sis- tematização das resistências, por três razões: as diferenças semânticas entre os autores, os múlti- plos vértices de abordagem e a sua multidetermi- nação. O que pode ser dito é que a resistência tanto pode ser inconsciente quanto consciente, mas sem- pre provém do ego, ainda que possa vir orquestra- da pelas outras instâncias psíquicas. Ela pode ex- pressar-se por meio de emoções, atitudes, idéias, impulsos, fantasias, linguagem, somatizações ou ações. Ou seja, todos os aspectos da vida mental podem ter uma função de resistência; daí a sua ex- trema complexidade. Clinicamente, elas aparecem em uma variedade de maneiras: claras, ocultas ou sutis; simples ou complexas; pelo que está aconte- cendo e pelo que está deixando de acontecer. Além disso, cada indivíduo tem uma pletora de recursos resistenciais, os quais variam com os distintos mo- mentos do processo analítico. 1. As resistências poderiam ser sistematiza- das a partir da teoria estrutural, como fez Freud (1926), no qual ele postulou os cin- co tipos clássicos atrás referidos. Sob essa ótica, hoje, o importante consiste em esta- belecer as inter-relações dentro das das res- pectivas instâncias psíquicas de onde se ori- ginam as resistências inconscientes (id, ego, superego, ego ideal, ideal do ego, contra- ego); entre essas instâncias; e delas com a realidade exterior. Da mesma forma, se partirmos da primeira tópica de Freud, o importante seria a compreensão do surgi- mento das resistências a partir não da sim- ples localização topográfica, mas, sim, de como se processa o trânsito comunicativo entre os sistemas consciente-préconsciente- inconsciente. 2. Alguns autores, como Greenson (1967) ten- tam uma classificação baseada em mani- festações clínicas, tais como: faltas, atra- sos, intelectualizações, silêncio ou prolixi- dade, segredos, sonolência, ataque às fun- ções do ego em si próprio ou no analista (de perceber, sentir, pensar e discriminar), fuga para a extratransferência, etc. A partir deste enfoque clínico, o importante é que, em um dos passos cruciais da análise, pos- sa-se transformar as resistências egossin- tônicas em egodistônicas, para que o pa- ciente alie-se ao terapeuta, no objetivo co- mum de analisar e superá-las. 3. Uma forma também muito simplificada de sistematizar as resistências é pelo critério de suas finalidades. Assim, além daquelas descritas por Freud (1926, 1937), vale acres- centar: resistência contra a regressão (medo da psicose); contra a renúncia às ilusões simbióticas; contra as mudanças verdadei- ras (pavor de uma catástrofe, caso o paci- ente abandone as suas familiarizadas solu- ções adaptativas); contra vergonha, culpa e humilhação do colapso narcísico; contra a elaboração da dor da elaboração da posi- ção depressiva; contra os temores perse- cutórios próprios da posição esquizopara- nóide e contra os progressos analíticos (o grau extremo é a RTN). Também deve ser incluída a resistência que se manifesta como um sadio movimento do paciente contra as possíveis inadequações do seu analista. 4. Uma outra tentativa de sistematização se- ria a de baseá-la no tipo, grau e função das defesas mobilizadas. Assim, as organiza- ções defensivas podem se constituir como: inibições; sintomas; angústia; estereotipias; traços caracterológicos; falsa identidade; formas obstrutivas de comunicação e lin- guagem; actings excessivos, etc., etc. 5. Poderíamos classificar as resistências re- lacionando-as aos pontos de fixação pato- lógicos que lhes deram origem. Assim te- ríamos, por exemplo, resistências de natu- reza narcisística, esquizoparanóide, manía- ca, fóbica, obsessiva, histérica, etc. É claro que se isso fosse tomado de modo absolu- to, geraria grande imprecisão, tão óbvio nos é, por exemplo, que subjacente a toda fixa- ção edípica pode estar perfilada a criança avara da fase anal, a criancinha ávida da fase oral, ou o bebê mágico da fase narci- sista. 312 DAVID E. ZIMERMAN 6. É útil considerar as resistências em relação às etapas evolutivas do desenvolvimento emocional primitivo. Dessas, a narcisista é particularmente importante por se cons- tituir no crisol da formação da personali- dade e da identidade. Assim, a maioria das pessoas que hoje procura análise apresen- ta importantes problemas caracterológicos, de baixa auto-estima e de prejuízo do sen- timento de identidade, derivados da perma- nência de um estado depressivo subjacente, muitas vezes resultante das primitivas feri- das narcisísticas. Tais pacientes muito regressivos, para garantir a sua sobrevivência psíquica, podem buscar refú- gio dentro do outro, ou fugindo do outro. No pri- meiro caso, na situação analítica, na busca por uma aliança simbiótica com o seu terapeuta, o paciente recorre a um excessivo emprego de identificações projetivas, de modo a enfiar-se dentro do analista, tanto que, segundo Meltzer (1967, p. 13), essas últimas se constituem “na única defesa infalível contra a separação”, o que determina, nestes pa- cientes, uma ansiedade confusional e um pavor de perder a sua identidade. Quando o refúgio consiste em fugir do outro, este analisando o faz por meio de evitações fóbicas, actings malignos (perversões, psicopatias) ou pela criação de uma, sua, autarquia narcisística (borderline, por exemplo). Estas últi- mas representam organizações defensivas, rigida- mente estruturadas, porquanto a necessidade de sobrevivência ocupa um espaço psíquico muito maior do que o dos desejos edípicos. Dessa forma, na análise resulta que quanto mais frágil for o ego do paciente, mais forte ele o é para resistir ao ana- lista RESISTÊNCIA – EXISTÊNCIA – DESISTÊNCIA Estes pacientes mais regressivos opõem sérias resistências às mudanças e desejam manter as coi- sas como elas estão, não porque não desejem cu- rar-se, mas é que não acreditam nas melhoras, ou que as mereçam, ou que correm o sério risco de voltar a sentir as dolorosas experiências passadas de traição e humilhação; seu objetivo de vida é parasobreviver e não para viver! Etimologia Vou me socorrer da etimologia para clarear a última afirmativa. Entendo como muito ilustrativo e importante o fato de que esse significado de so- brevivência sintoniza com o que está contido na morfologia do vocábulo “resistência” (“re” + “siste- ncia”). O prefixo “re” costuma emprestar quatro significados às palavras que ele compõe, e coinci- de que cada um deles, separadamente, conecta com um aspecto parcial do conceito de fenômeno resistencial. Assim, “re” tanto indica: 1) A noção básica de “voltar atrás” – no caso, aos primitivos pontos de fixação – (como em: regredir, revogar...). 2) A noção de “oposição” (como em: revoltar, re- provar...). 3) O significado de “repetição” (como em: reiterar, ressentir...). 4) O sentido de uma “busca de algo novo”(como em: reforma, re(e)evolução...). Por sua vez, o étimo “sistência” deriva de “sistere, sistens” que, em latim, entre outros, tem o signifi- cado de “continuar a existir”. A partir desta pers- pectiva etimológica, o conceito de resistência, es- pecialmente com pacientes bastante regressivos, pode ser entendido como sendo (1) uma volta à utilização de (2) recursos defensivos e ofensivos (contra o que, ou quem, lhes representa alguma ameaça), (3) de um modo repetitivo e tenaz, em uma busca ativa, do direito de (4) continuar a ex- istir (vem do prefixo “ex” que designa “para o mundo de fora”). O contrário de re-sistir, ou seja, de-sistir (o prefixo “de” significa privação) é que seria funesto. A propósito, penso que a forma resistencial mais grave é justamente a de um estado mental do anali- sando de Desistência, em cujo caso ele procede unicamente de maneira formal e mecânica, sendo que o “seu único desejo pode ficar reduzido ao extremo de não ter desejos”, assim esterilizando a eficácia analítica. Isto se deve ao fato de que nos pacientes seria- mente regredidos, antes do que desejos, existe um estado de profundas necessidades, que se não fo- rem intuídas e satisfeitas pelo analista reforçarão um estado anterior de sua vida, pelo qual, muito mais do que ódio, eles geram um sentimento de decepção pelo novo fracasso do meio ambiente. Isso interrompe o crescimento do self e prejudica a capacidade de desejar, o que conduz a uma sensa- ção de futilidade e a uma desistência de desejar e de ser. Assim, a desistência vem acompanhada de um estado afetivo de indiferença, provavelmente nos mesmos moldes da indiferença que o sujeito acre- dita que tenha sofrido por parte de todas as pesso- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 313 as mais significativas de sua vida. A indiferença dessas pessoas consiste em aparentemente não de- sejar ver e nem ser visto, notado e reconhecido, sendo que nos casos mais graves forma-se um in- vestimento aditivo ao “nada”, e o exagero de uma “onipotência do masoquismo” torna-os suicidas em potencial. Em resumo, na situação psicanalitica enquanto houver resistências que pugnam pela existência, ainda persiste a chama da esperança, sendo que a pior forma de resistência é a de um estado mental de desistência, a qual cronifica a des-esperança (ou seja, o paciente nada mais espera da análise e da vida). Um conhecido conto, à moda de fábula, talvez possa melhor ilustrar as diferenças entre resistên- cia, desistência e existência. Trata-se da história dos dois ratinhos que cairam no fundo de uma gar- rafa que estava cheia de leite e sentiram a ameaça de uma iminente morte por afogamento. Um deles decidiu que seria inútil lutar contra a fatalidade e, passivamente deixou-se morrer afogado (equivale ao estado de desistência). O outro ratinho decidiu lutar e, às custas de um intenso, ativo e decidido agitar do corpo (equivale à resistência), ele mante- ve-se à tona durante um tempo prolongado, até que de tanto leite ser batido transformou-se em queijo, o qual então foi devorado pelo ratinho, assim abrin- do um acesso ao gargalo da garrafa e daí para a liberdade do mundo externo, assim garantindo o seu direito de continuar a viver (correspondente ao existir). RESISTÊNCIAS NA PRÁTICA ANALÍTICA Dentro da concepção da contemporânea psica- nálise vincular, não é possível dissociar a resistên- cia da contra-resistência; unicamente com um pro- pósito didático é que eles serão abordados separa- damente, em capítulos específicos. As resistências do paciente na situação analíti- ca manifestam-se de múltiplas formas e em diver- sas dimensões, como as seguintes. Em Relação ao Setting A criação do setting constitui-se na principal tarefa do analista para assegurar o estabelecimento e a manutenção do processo analítico. É o setting que garante a indispensável colocação de limites e de hierarquia, a abertura de um novo espaço onde podem ser reproduzidas antigas experiências emo- cionais mal resolvidas, com um indispensável cli- ma de verdade e neutralidade. Por tudo isso, sem rigidez ou tolerância exces- sivas por parte do analista, o setting deve ser pre- servado ao máximo em suas combinações essen- ciais, tendo em vista que o paciente pode desferir ataques – que na verdade são defesas resistenciais – contra a sua manutenção. Embora tais ataques possam ser desferidos, de uma forma ou outra, con- tra todas as “regras técnicas” legadas por Freud que, devidamente transformadas, continuam vigentes na atualidade, quero me alongar mais detidamente nas resistências do analisando contra a regra que po- demos chamar de “amor às verdades”. O conceito de verdade na relação analítica é fundamental em todos os aspectos teóricos e técni- cos, e a sua importância tendo sido exaltada pelos mais notáveis estudiosos da psicanálise, sendo jus- to dar uma relevância especial às inestimáveis contribuições de Bion acerca desta temática. Assim, Bion (1963, p. 1967) considerou impor- tante considerar que nas terapias psicanalíticas todo paciente e todo analista é portador, em algum grau, de uma parte que prefere as não-verdades (é o que ele denomina como “-K”) e isso está longe de ser sinônimo de mentira ou falsidade, ainda que ocasi- onalmente possa sê-lo. Essa resistência ao conhecimento da verdade tem uma ampla gama de variações no cotidiano clínico, desde a mentira com intencionalidade cons- ciente até as falsificações de natureza totalmente inconsciente, passando por situações intermediá- rias, como as meio-verdades, sonegações, reticên- cias, enigmas, mensagens ambíguas, etc. A ideali- zação inicial, ou o denegrimento, que o analisando faz do seu analista, pode representar uma distorção resistencial necessária e útil, desde que fique claro que isso não vá se constituir num clima perma- nente da análise. Um fator importante para um clima eficaz do setting é a motivação, tanto a consciente quanto a inconsciente, quanto aos objetivos relativos a que ambos, analista e analisando, esperam da análise. É bastante freqüente que na motivação inicial do paciente para o tratamento analítico a busca pela manutenção do status quo seja bem maior do que a de mudanças verdadeiras. Neste tipo de resistên- cia, a procura do objeto externo analista pode ser- vir como forma de eludir o contato com os amea- çadores objetos internos. Para clarear as reflexões aqui apresentadas, vou referir uma situação clínica do início da minha ati- vidade psicanalítica, Trata-se do paciente A., cuja análise prolongou-se por muitos anos, com signifi- 314 DAVID E. ZIMERMAN cativas melhoras nos planos de esbatimento de sin- tomas e nos aspectos adaptativos, porém com com pobres resultados no tocante às modificações dos seus núcleos caracterológicos mais regressivos (correspondia ao que Bion chama de “parte psicó- tica da personalidade”). Na entrevista inicial, ela disse que viera de uma interrompida psicoterapia anterior, que resolvera “trocar por análise” para “aprofundar-se mais” e que escolhera a minha pes- soa por me achar “muito humano”. Mais adiante, ela refere que resolvera fazer o vestibular para a faculdade X, ao invés da Y, que era muito melhor, porque na primeira “era muito mais fácil para pas- sar”. O curso da análise foi muito penoso einci- dentado, sempre que eu insistia em trabalhar mais incisivamente o nível da dimensão psicotizada de sua personalidade. Hoje entendo que a paciente estava coerente com a sua forte resistência a um trabalho analítico mais sério, já que em nosso con- trato ficara implícito que ela me escolhera, por acre- ditar que comigo seria “muito mais fácil”, que ela poderia aprofundar um vínculo que ela chamara de “humano” e que muito cedo mostrara que ela o queria de natureza simbiótica. A paciente se rebe- lara porque eu é que não estava cumprindo nosso acordo latente, paralelo ao manifesto, de que a con- fiança que ela depositara em mim o fora nas mi- nhas prováveis limitações e incapacidades. Em Relação à Interpretação A eficácia de toda interpretação do analista, além da importância do seu conteúdo, forma, opor- tunidade, finalidade e estilo de como ela é comuni- cada ao paciente, depende fundamentalmente do destino que as mesmas tomam na mente deste últi- mo. Isto nos remete a um problema muito sério re- lativo à resistência na prática analítica, qual seja, o de que as interpretações do analista, apesar de es- tarem certas do ponto de vista de compreensão da conflitiva inconsciente, possam ser ineficazes. A transmissão do conteúdo verbal do paciente para o analista, e vice-versa, implica tantas variá- veis, de tantos vértices teóricos, que se torna im- praticável fazer, aqui, um estudo minucioso. Vou me limitar à observação de algumas costumeiras formas de resistências no ato interpretativo, como são, entre outros tantos, os seguintes asinalados por Bion: os distúrbios da comunicação, os ataques aos vínculos perceptivos, e o fenômeno da “rever- são da perspectiva”. Assim, uma primeira observação que se impõe é que nem sempre a comunicação verbal do pa- ciente tem a finalidade de realmente comunicar algo para o psicanalista; pelo contrário, muitas vezes, tal como nos ensinou Bion, o propósito inconsciente visa confundir o terapeuta e atacar os seus víncu- los perceptivos. O mesmo autor enfatiza que o dom da fala pode ter o propósito de elucidar e comuni- car pensamentos, assim como também o de escon- dê-los na dissimulaçao e na mentira. Todos nós conhecemos aqueles indivíduos fortemente narci- sistas para os quais é muito gratificante usar uma linguagem onde o “bien dire” prevalece sobre o “dire vrai”, e isso na situação analítica se coloca a serviço da resistência. Da mesma maneira, pacientes em condições regressivas podem resistir a verbalizar claramente suas necessidades e desejos, movidos pela ilusão simbiótica de que o terapeuta tem a obrigação de adivinhá-los e, da mesma forma como ocorre com as criancinhas, ser obrigado a falar se constitui, para eles, em uma ferida narcísica profunda. De forma análoga, como assinala Ferrão (1974, p. 80), “há o tipo de paciente que se dá o papel de “supervisor” do analista: fala por subentendidos, estimulando a curiosidade de seu analista para decifrá-los, elogiam quando este consegue acer- tar e criticam-no quando supõem que ele erra;...e há pacientes que procuram transformar a sessão numa verdadeira polêmica, como se a análise fos- se um jogo de opiniões”. Com o termo “Ataque aos vínculos” – título de um trabalho seu (1967) considerado um dos mais originais e criativos da literatura psicanalítica, Bion refere-se aos ataques que “a parte psicótica da per- sonalidade” do paciente dirige contra qualquer coi- sa que ele sente como tendo a função de vinculação, que tanto pode ser de um objeto ao outro, um pen- samento com outro, um pensamento com o senti- mento e assim por diante. Segundo Bion, tais ataques ao analista devem- se não tanto ao conteúdo das interpretacões, mas, sim, ao fato de que este analista está compreen- dendo e revelando o íntimo do paciente na tarefa de interpretar, porquanto a interpretação exitosa representa um elo, uma ligação entre dois pensa- mentos, assim caracterizando uma ligação huma- na. Os pacientes que priorizam os ataques aos vín- culos das interpretações são justamente aqueles que se mostram empenhados em desunir ou estabele- cer uniões estéreis dele com o seu analista e dele consigo próprio. Bion também fez uma importante contribuição relativa ao destino da interpretação nos pacientes portadores de uma forte “parte psicótica da perso- nalidade” quando ele descreve o fenômeno da “re- FUNDAMENTOS PSICANALÍTICOS 315 versão da perspectiva”. Este fenômeno consiste basicamente no fato de que o paciente que o utiliza mantém com o analista uma “acordo manifesto e um desacordo latente”, tendo em vista o fato de que, formalmente, possa tratar-se de um paciente assíduo, colaborador, gentil, que assente com a cabeça confirmando que está aceitando as inter- pretações, porém no fundo, ele as desvitaliza, re- vertendo o significado de tais interpretações a suas próprias premissas que lhe são familiares e que lhe servem como defesas, logo, como resistências. O conceito de “reversão da perspectiva” não tem o mesmo significado que o de um transtorno paranóide do pensamento, ou de um controle ob- sessivo, bem como, também, não alude ao proble- ma da falsidade; na verdade, está mais próximo a de um perverso que quer impor as suas premissas, de forma sutil. Segundo Bion, este tipo de resistên- cia à interpretação também não equivale àquela que habitualmente é conhecida como “intelectualiza- ção”; antes, ela se deve à incapacidade de pensar destes pacientes. Ainda em relação ao destino da interpretação, Rosenfeld (1965) assinala o quanto os pacientes narcisistas “podem aceitar e usar as interpretações do analista, mas imediatamente as despojam de vida e significação, de maneira que apenas res- tam palavras sem sentido” (p. 201). Em Relação à Elaboração O processo de elaboração analítica consiste, em linhas gerais, na aquisição de um insight total a partir da integração de insights parciais. Pode-se dizer que, no curso da análise, um fluxo e conti- nuado e crescente de insight, sem que haja mudan- ças autênticas na vida real, está se revelando como um sério indicador de resistência à análise, talvez uma das mais sérias, qual seja, a da resistência às mudanças. Fora de dúvidas, os pacientes que apresentam o maior grau de resistência às verdadeiras mudan- ças são aqueles que, mercê de uma forte caracte- rologia narcisística defensiva, funcionam no pro- cesso analítico na condição de “pseudocolabo- radores”. Essa última denominação já aparece no magistral trabalho de Abraham, que aborda esta temática de resistências narcisistas (1919) e, mais recentemente, também Meltzer (1973, p. 31) con- sidera estes falsos colaboradores como pacientes que desenvolveram o que ele denominou como “pseudomadurez”, assim como Betty Joseph (1975, p. 414) retoma o termo original de Abraham (estra- nhamente sem citá-lo). Esta última autora faz a in- teressante observação de que o que caracteriza es- tes pacientes é que “...eles mantêm esplitada a sua parte paciente, e usam a comunicação verbal como uma forma de acting. Aparentemente são bastante cooperadores e adultos, mas essa cooperação é uma pseudocooperação destinada a manter o ana- lista afastado das partes infantis do “self”, real- mente desconhecidas e mais necessitadas”. Uma das formas de resistência que pode ocor- rer, na esteira do narcisimo, é a que encontramos nos pacientes que desenvolveram uma “transferên- cia imitativa (Gadini, 1984, p. 9) a qual se consti- tui em uma situação “das mais temíveis e insidio- sas” para o processo analítico. Temível porque se organiza como resistência poderosa e tácita. Insi- diosa porque se apresenta com todas as aparências de uma transferência positiva. Usam a imitação, ao invés da introjeção e, por essa razão, não conse- guem a estruturação de uma identidade bem-defi- nida. Ainda um outro tipo de resistência decorrente de fixações narcisistas é a de natureza que pode- ríamos denominar “transferência de vingança” (em alusão à expressão que Freud utilizou para carac- terizar sua paciente Dora-1905, p. 116), a qual está presente em pacientes que, emborade forma laten- te, são cronicamente ressentidos e rancorosos. Co- mumente são analisandos que tiveram, muito pre- cocemente, uma importante perda parental e que, por isso mesmo, acham-se no direito de, pelo resto da vida, reivindicar o retorno do anelado, e impos- sível estado anterior. Compensam este fracasso, e as conseqüentes traições que julgam ter sofrido, desfigurando as situações reais e configurando ou- tras, nas quais aparecem como uma, privilegiada, vítima de injustiças e humilhações, as quais rumi- nam de forma obsessiva e prazerosa, com fantasias e planos de ressarcimento e vingança. Essa carac- terização coincide com o que Bergler (1959) cha- ma de “colecionadores de injustiças”. A compulsão rancorosa, ainda que seja um derivado indireto da inveja, diferencia-se dessa, pois não visa primaria- mente a destruir as capacidades do analista inveja- do, mas sim de castigá-lo. Essa forma de resistên- cia se processa de maneira egossintônica porquan- to o analisando se acha com pleno direito para tal, e o triunfo sobre o analista, representante do anti- go objeto abandonante e humilhador, pode passa a ser, na análise, um objetivo mais importante que a própria cura. Exemplifico com um analisando que se dizia sempre amedontrado ante mim, e configurava esse sentimento com uma imagem que repetia com fre- 316 DAVID E. ZIMERMAN qüência: ele se sentia como um pobre ratinho, fra- co e humilde, enquanto eu lhe aparecia como um gatão, grande, forte, capaz e detentor do poder. Movido por um sentimento contratransferencial, em certo momento perguntei a quem o gato e o rato lhe lembravam. Respondeu, prontamente: Tom e Jerry. A continuidade do trabalho foi em torno do quanto se imaginava vingando-se de todas as figu- ras autoritárias, do presente e do passado, que o teriam submetido e humilhado. Secreta e sutilmen- te, e fazendo da astúcia a sua principal arma, qual Jerry sempre levando vantajem final sobre Tom, sentia-se passando de submetido a submetedor, de humilhado a humilhador. Este paciente ilustra outros tantos que, como ele, polido sem afetação, e com um educado res- sentimento e sarcasmo, ante o temor de sofrer um novo abandono agressivo, resistem à análise, rea- gindo com um furor narcista (termo de Kohut- 1971), para dar uma boa lição a quem representa essa injuriosa ameaça. Ocorre que estes analisandos ressentidos, sem motivos aparentes, fazem uma oposição sistemática, porque para o endosso de sua tese precisam configurar o analista como objeto mau. Agem, como me disse este mesmo paciente que ilustrei acima: para mim, a lei mais importan- te da vida, é a de Talião”. Não se julgam primaria- mente agressivos porquanto estão unicamente justiçando através desta lei. Ou seja, como mostra a etimologia da palavra, estão de novo e mais uma outra vez (“re”)-”taliando”. Quanto mais melho- ram, mais se queixam, e isso costuma despertar reações contratransferenciais dolorosas, uma sen- sação no analista de vazio, desânimo e de estar sen- do vítima de ingratidão. Essas situações não são infreqüentes e podem contribuir para a formação de impasses. O negativo da elaboração é o impasse, ou seja, este surge quando aquele se detém. Pela importân- cia que o impasse psicanalítico – incluída a sua forma mais grave, a reação terapêutica negativa – representa para a clínica cotidiana do processo ana- lítico, creio ser válido a inclusão de um capítulo especial, que segue mais adiante (o de número 30).
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