Buscar

A_fundamentacao_do_Direito_Kelsen_Hart_K

Prévia do material em texto

Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 1 
A FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO 
KELSEN, HART, KANT1 
 
Sérgio Mascarenhas de Almeida
2
 
 
Comunicação ao Seminário Permanente sobre o Estado e o Estudo do Direito 
Faculdade de Direito, Universidade Nova de Lisboa, 30 de maio de 2012 
 
 
 
Em 2007 Alec Stone Sweet, professor de direito em Yale, avançou com o conceito de 
golpe de estado jurídico, entendido como «uma transformação fundamental nas fundações 
normativas de um sistema jurídico através da criação de direito (lawmaking) constitucional 
por um tribunal» (Sweet A. 2007a, p. 915), «constitui um tipo específico de criação do 
direito, um [tipo] que altera a Norma Fundamental e uma Regra de Reconhecimento»
3
 (idem, 
p. 916). O estudo do professor de Yale foi acompanhado de comentários de Neil Walker 
(Walker N. 2007), Wojciech Sadurski (Sadurski W. 2007), ambos professores do Instituto 
Universitário Europeu de Florença, e de Gianluigi Palombella da Universidade de Parma 
(Palombella G. 2007) – note-se que só o terceiro questiona a adequação do recurso ao 
conceito de norma fundamental
4
 mas não discute a referência à regra de reconhecimento de 
Hart. Na sua resposta (Sweet A. 2007a), Stone Sweet regressa a Kelsen e a Hart. O assunto 
não ficou por aí. Em 2011 Luigi Corrias da Universidade VU de Amsterdão toma posição de 
forma desenvolvida sobre a proposta de golpe de estado jurídico (Corrias L. 2011) e já este 
 
1
 Declaro que o texto que apresento é da minha autoria, sendo exclusivamente responsável 
pelo respectivo conteúdo e citações efectuadas. 
2
 Aluno nº 2487, Curso de Doutoramento de 2010. 
3
 Stone Sweet tem expressamente em vista os conceitos introduzidos por Hans Kelsen e 
H.L.A. Hart, no caso do primeiro por referência para a tradução para inglês da primeira edição 
da Teoria Pura do Direito (Kelsen H. 1992). 
4
 Por referência para a segunda edição da Teoria Pura do Direito (Palombella G. 2007, p. 
942). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 2 
ano é Theodor Schilling da Universidade Humbolt de Berlim que se pronuncia sobre tal 
conceito (Schilling T. 2012). 
 
O que nos interessa destacar aqui é apenas o seguinte: este debate no German Law 
Journal demonstra bem a atualidade das teorias de Kelsen e Hart sobre a fundamentação do 
direito. Na presente comunicação procuraremos precisamente proceder a uma leitura crítica 
das duas propostas para depois, recuando no tempo, regressarmos a Kant para vermos se e em 
que medida encontramos na sua obra uma proposta alternativa de fundamentação do direito. 
 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 3 
A FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO EM KELSEN 
 
A norma jurídica e o sistema jurídico 
Kelsen entende o direito como sistema de normas jurídicas (Kelsen H. 1992, p. 55), daí 
que «apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como 
Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como 
determinado através de uma norma jurídica» (Kelsen H. 1984, p. 109). A Teoria Pura 
compreende a norma jurídica como «um juízo hipotético
5
 que exprime a ligação específica 
entre um facto material condicionante com uma consequência condicionada» (Kelsen H. 
1992, p. 23). A norma propriamente dita é a consequência jurídica, não é o facto material 
condicionante. 
O que é relevante no método de criação de uma dada norma é a sua fundamentação e 
esta encontra-se noutra norma: «o fundamento de validade de uma norma apenas pode ser a 
validade de uma outra norma. Uma norma que representa o fundamento de validade de uma 
outra norma é figurativamente designada como norma superior, por confronto com uma 
norma que é, em relação a ela, a norma inferior» (Kelsen H. 1984, p. 267). O processo 
jurídico funciona, pois, na base desta hierarquia positiva de normas. Essa hierarquia estrutura-
se entre dois «casos-limite – a pressuposição da norma fundamental e a execução do acto 
coercivo» (idem, p. 325), casos limite que nos remetem para fora do sistema do direito 
positivo. No topo temos a passagem entre sistema e norma fundamental, assegurada pela 
constituição em sentido jurídico-positivo; na base encontramos a passagem entre sistema e 
atos coercitivos, assegurada pelas normas individuais. 
 
A constituição em sentido jurídico-positivo. O «caso limite» superior do processo 
jurídico é constituído pela norma fundamental. Exterior ao sistema jurídico positivo, aquela 
relaciona-se com este pela via das normas jurídicas positivas do topo da hierarquia, a 
constituição positivada: «a norma fundamental refere-se apenas a uma Constituição que é 
efectivamente estabelecida por um acto legislativo ou pelo costume» (idem, p. 291), daí que 
«neste // sentido, a norma fundamental … pode, nestes termos, ser designada como 
constituição no sentido lógico-jurídico, para a distinguir da Constituição em sentido jurídico-
positivo» (idem, pp. 274-275). 
 
 
5
 E não como imperativo. 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 4 
A norma jurídica individualizada. «A Teoria Pura reconhece na obrigação jurídica 
simplesmente a norma jurídica individualizada, isto é, uma norma jurídica (que estabelece 
[como obrigatório] certo comportamento) na sua conexão com o comportamento concreto de 
um indivíduo em particular» (Kelsen H. 1992, p. 43). Este caráter de norma individual da 
obrigação jurídica é especificamente relevado quando essa obrigação resulte de um ato 
judicial: «o chamado “juízo” judicial não é, de forma alguma, tão-pouco como a lei que 
aplica, um juízo no sentido lógico da palavra, mas uma norma – uma norma individual, 
limitada na sua validade a um caso concreto, diferentemente do que sucede com a norma 
geral, designada como “lei”» (Kelsen H. 1984, p. 41). Como é evidente, está aqui em causa 
apenas a sentença declarativa. Enquanto «acto coercivo» a sentença executiva constitui, como 
foi referido, um «caso limite» que remete para o campo fático, extra normativo (idem, p. 325). 
 
Em suma, a Teoria Pura do Direito estrutura o direito nos seguintes termos: 
 
 
A produção do direito. «As normas particulares do sistema jurídico … devem ser 
criadas por intermédio de um ato especial que as promulgue ou estabeleça» (Kelsen H. 1992, 
p. 56). Cada norma «é válida qua norma jurídica apenas porque foi formulada de uma certa 
maneira – criada de acordo com uma certa regra, promulgada ou estabelecida de acordo com 
um método específico. O direito é válido apenas como direito positivo, isto é, apenas como 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 5 
direito que foi promulgado ou estabelecido. Neste requisito necessário de ser promulgado ou 
estabelecido … aí reside a positividade do direito» (Kelsen H. 1992, p. 56). 
O ato de criação das normas jurídicas é «um ato, não do inteleto, mas da vontade» 
(idem). Neste ato da vontade «o conhecimento, porém, não é essencial: é apenas o estádio 
preparatório da sua função que … é simultaneamente – não só no caso do legislador como 
também no do juiz – produção jurídica: o estabelecimento de uma norma jurídica geral – por 
parte do legislador – ou a fixação de uma norma jurídica individual – por parte do juiz» 
(Kelsen H. 1984, p. 112). O produto do ato de criação da norma é «a norma jurídica 
reconstruída que exibe a forma básica de leis positivas» (Kelsen H. 1992, p. 23), sendo esta «a 
forma paradigmática em que tem de ser possível representar-se todos os dados do direito 
positivo» (idem, p. 58). 
Uma vez que a declaração do direitoproduz normas jurídicas (individualizadas), «a 
aplicação do Direito é simultaneamente produção do Direito. … É desacertado distinguir entre 
actos de criação e actos de aplicação do Direito. … todo o acto jurídico é simultaneamente 
aplicação de uma norma superior e produção, regulada por esta norma, de uma norma 
inferior» (Kelsen H. 1984, p. 325). 
 
A norma fundamental 
Pergunta Kelsen: «O que explica a unidade duma pluralidade de normas jurídicas e 
porque pertence uma certa norma jurídica a um certo sistema jurídico?» (Kelsen H. 1992, p. 
55); «o que é que fundamenta a unidade de uma pluralidade de normas, por que é que uma 
norma determinada pertence a uma determinada ordem? … porque é que uma norma vale, o 
que é que constitui o seu fundamento de validade?» (Kelsen H. 1984, p. 267). 
 
O conceito de norma fundamental. A bem conhecida resposta de Kelsen é a de que «a 
indagação do fundamento de validade de uma norma … Tem de terminar numa norma que se 
pressupõe como a última e a mais elevada … aqui designada como norma fundamental» 
(idem, p. 269), a qual «tem de ser pressuposta, visto que não pode ser posta por uma 
autoridade, cuja competência teria de se fundar numa norma ainda mais elevada. A sua 
validade já não pode ser derivada de uma norma mais elevada, o fundamento da sua validade 
já não pode ser posto em questão» (idem). Por isso, «a norma fundamental não está “contida” 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 6 
numa ordem jurídica positiva, pois ela não é uma norma positiva, isto é, posta, mas uma 
norma pressuposta pelo pensamento jurídico» (Kelsen H. 1984, p. 274, nota 1)
6
. 
A consequência é que «retraçar as várias normas de um sistema jurídico para uma 
norma fundamental é questão de demonstrar que uma norma particular foi criada de acordo 
com a norma fundamental» (Kelsen H. 1992, p. 57; no mesmo sentido, idem p. 55), o que 
quer dizer tão só que «da norma fundamental resulta apenas a validade objectiva das normas e 
não as normas preenchidas de conteúdo»
7
 (Kelsen H. 1984, p. 274, nota 1), conteúdo que 
«apenas pode ser determinado através de actos pelos quais a autoridade a quem a norma 
fundamental confere competência e as outras autoridades que, por sua vez, recebem daquela a 
sua competência, estabelecem as normas positivas desse sistema» (idem, p. 272). 
Sendo a norma fundamental um pressuposto do sistema jurídico que não o integra e que 
não obedece ao mesmo critério de aferição das normas jurídicas positivas, ela distingue-se 
destas pois «se, porém, a norma fundamental não pode ser o sentido subjectivo de um acto de 
vontade, então apenas pode ser o conteúdo de um acto de pensamento. Por outras palavras: se 
a norma fundamental não pode ser uma norma querida, mas a sua afirmação na premissa 
maior de um silogismo é logicamente indispensável para a fundamentação da validade 
objectiva das normas, ela apenas pode ser uma norma pensada» (idem, p. 280) 
 
Norma fundamental e constituição. A relação entre norma fundamental e sistema 
jurídico estabelece-se, antes de mais, pela via da constituição em sentido jurídico-positivo 
(consistindo a própria norma fundamental, vimo-lo antes, na constituição em sentido lógico-
jurídico): «se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos sobretudo ter 
em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição determinada, efectivamente 
estabelecida, produzida através do costume ou da elaboração de um estatuto, eficaz em termos 
globais; e mediatamente se refere à ordem coer- // citiva criada de acordo com essa 
 
6
 No mesmo sentido, já antes Kelsen H. 1992, p. 58. Assinala José Lamego que «na fase 
derradeira da sua obra, KELSEN socorre-se da noção de HANS VAIHINGER de “ficção” 
para caracterizar o estatuto da norma fundamental (Grundnorm): as “ficções” são construções 
empregues em razão da sua utilidade explanatória, constituem, como diz KELSEN, um 
“expediente do pensamento” (Denkbehelf)» (Lamego J. 2008, p. 349, nota 16). 
7
 Daí que a relação entre a norma fundamental e as normas positivas não assente «numa 
operação lógica» de dedução do particular (as normas positivas) a partir do geral (a norma 
fundamental) (Kelsen H. 1984, p. 273). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 7 
Constituição» (Kelsen H. 1984, pp. 277-278). Esta delimitação justifica-se porque a norma 
fundamental «é o ponto de partida de um processo: do processo de criação do Direito 
positivo» (idem, p. 275), processo em que, de acordo com a teoria da hierarquia das normas, 
validada a constituição em sentido jurídico-positivo pela norma fundamental, validam-se as 
normas de nível inferior a partir daquela constituição. Por isso, «o problema que a Teoria Pura 
do Direito procura resolver com a teoria da norma fundamental somente se levanta quando se 
põe a questão de saber qual é o fundamento de validade da Constituição jurídico-positiva» 
(idem, p. 282, nota). 
Sendo assim, o conteúdo da norma fundamental pode ser enunciado como «devemos 
conduzir-nos de acordo com a Constituição efectivamente posta e eficaz»; e podemos assim 
estabelecer um silogismo normativo para a fundamentação da validade de uma ordem 
jurídica, enunciado nos seguintes termos: «a proposição do dever-ser que enuncia a norma 
fundamental: devemos conduzir-nos de acordo com a Constituição efectivamente posta e 
eficaz, constitui a premissa maior; a proposição de ser que afirma o facto: a Constituição foi 
efectivamente posta e é eficaz … constitui a premissa menor; e a proposição de dever-ser: 
devemos conduzir-nos de acordo com a ordem jurídica, quer dizer: a ordem jurídica é vale (é 
válida ou vigente), constitui a conclusão» (idem, p. 298). 
 
Kelsen tem de operar a relação entre compreensão teórica do direito (a sua teoria pura) 
e direito em concreto, empírica e factualmente determinado, que mais não seja porque 
«também o acto com o qual é posta uma norma jurídica positiva é – tal como a eficácia da 
norma jurídica – um facto da ordem do ser» (idem, p. 292). A validação da norma jurídica 
positiva ocorre se esta for criada – posta – com o «facto da ordem do ser» para tal adequado; e 
essa validação subsiste se a norma positiva for eficaz, factualmente aplicada «na ordem do 
ser». Só se se verificarem estes dois pressupostos é que a norma fundamental valida a norma 
positiva. 
A relação da norma fundamental com a factualidade da ordem do ser não se opera 
apenas pela via da exigência de positividade factual das normas do sistema jurídico, ela 
emerge também na própria validação do sistema, para além das normas que o compõem: 
«surge a questão: o que subjaz ao conteúdo da norma fundamental de um certo sistema 
jurídico? A análise da pressuposição última dos juízos jurídicos revela que o conteúdo da 
norma fundamental depende de um certo facto material, a saber, o facto material que cria 
aquele sistema a que o comportamento concreto (dos seres humanos a que o sistema se dirige) 
corresponde até um certo grau» (Kelsen H. 1992, p. 59). Esta relação é operada pela 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 8 
pressuposição de um ato instituidor do sistema jurídico: «a norma fundamental confere ao ato 
do primeiro legislador – e assim a todos os outros atos do sistema jurídico que se baseiam 
neste primeiro ato – o sentido do ‘deve’, esse sentido específico em que condição jurídica é 
ligada a consequência jurídica na norma jurídica reconstruída, a forma paradigmática em que 
tem de ser possível representar-se todos os dados do direito positivo» (Kelsen H. 1992, p. 58). 
Dado que a norma fundamental se refere imediatamente à constituição em sentido jurídico 
positivo, e apenas mediatamente por via desta às demais normasdo sistema, o primeiro 
legislador tem de ser entendido como legislador constitucional e o seu ato – ato, também ele, 
primeiro – tem de ser entendido como ato de posição da constituição. Por esta via Kelsen 
articula a sua teoria da norma fundamental com a teoria constitucional (como vimos, o nosso 
autor marca bem esta articulação ao contrastar norma fundamental / constituição em sentido 
lógico jurídico e normas constitucionais / constituição em sentido jurídico positivo). 
A norma fundamental fundamenta a validade da constituição no sentido jurídico 
positivo ou constituição estadual, reportando-a ao ato originário do legislador originário. 
Posteriormente, esta constituição estadual pode sofre modificações e, nesse caso, «se se 
pergunta pelo fundamento de validade da Constituição estadual … seremos talvez conduzidos 
a uma Constituição estadual mais antiga. Quer dizer: fundamentamos a validade da 
Constituição estadual existente no facto de ela ter surgido de conformidade com as 
determinações de uma Constituição estadual anterior … de acordo com uma norma positiva 
estabelecida por uma autoridade jurídica» (Kelsen H. 1984, p. 276). Em concreto podemos 
então partir da constituição em sentido jurídico positivo presente e, por um processo de 
regressão de constituição estadual em constituição estadual anterior, chegar «finalmente a 
uma Constituição estadual que é historicamente a primeira, a qual já não surgiu por um 
processo idêntico e cuja validade, portanto, não pode ser reconduzida à de uma outra 
procedente de uma norma positiva fixada por uma autoridade jurídica» (idem). desta 
constituição «que foi historicamente a primeira» (idem), é que se pode dizer que «a validade 
desta Constituição … tem de ser pressuposta» (idem, p. 277) e que o seu sentido é o de que 
«devemos conduzir-nos como a Constituição prescreve» (idem). 
A exposição de Kelsen não é totalmente feliz pois deixa espaço para algumas 
ambiguidades. Podemos, porém, reconstruí-la nos seguintes termos: 
Uma ordem jurídica é criada num ato original pelo legislador original. Esse ato combina 
num só momento vários factos: 
1. Cria (estatui ou institui) o novo sistema jurídico; 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 9 
2. Põe, de forma originária, a constituição em sentido jurídico positivo, conjunto 
de normas que regem a criação/aplicação de normas jurídicas no sistema; 
3. Atribui autoridade para a criação do direito aos sujeitos do sistema jurídico; 
4. Pressupõe a norma fundamental ou constituição em sentido lógico jurídico que 
legitima todos os demais factos. 
Anote-se que os factos 1. a 3. têm de ser factualmente eficazes na ordem do ser para 
que o facto 4. possa ser pressuposto. 
Depois de, por esta forma, surgir o novo sistema jurídico, a constituição estadual, 
constituição em sentido jurídico positivo, pode sofrer alterações e modificações. Desde que as 
mesmas obedeçam às regras que regem a mudança do direito constitucional positivo, são 
validadas pela norma fundamental pressuposta no ato originário e não põem em causa a 
continuidade do sistema jurídico. 
 
Norma fundamental, validade e eficácia. As normas do sistema têm de ser válidas
8
. 
Vimos que são válidas se são criadas de acordo com o disposto por normas superiores e vimos 
que as normas de topo do sistema jurídico-positivo – as normas da constituição em sentido 
lógico-jurídico – são válidas se fundamentadas na norma fundamental. 
Ora o comportamento dos indivíduos pode não corresponder ao modo prescrito pelas 
normas. Coloca-se aqui uma questão de eficácia, entendida como «o facto de que o seu 
comportamento concreto corresponde ao sistema jurídico» (Kelsen H. 1992, p. 60). A 
possibilidade desta divergência entre comportamento e prescrição normativa leva a que «a 
validade de um sistema jurídico que governa o comportamento de seres humanos concretos 
depende de certa maneira … da eficácia do sistema» (idem). Por isso, «a eficácia da ordem 
jurídica como um todo e a eficácia de uma norma jurídica singular são – tal como o acto que 
estabelece a norma – condição da validade. Tal eficácia é condição no sentido de que uma 
ordem jurídica como um todo e uma norma jurídica singular já não são consideradas como 
válidas quando cessam de ser eficazes» (Kelsen H. 1984, p. 297). 
No caso da constituição jurídico-positiva, a mesma «é eficaz se as normas postas de 
conformidade com ela são, globalmente e em regra, aplicadas e observadas» (idem, p. 291). 
De facto, «quem são aqueles que mantêm a Constituição …? Pois são os indivíduos que 
 
8
 A validade traduz-se em que «dizer que uma norma que se refere à conduta de um indivíduo 
“vale” (é “vigente”), significa que ela é vinculativa, que o indivíduo se deve conduzir do 
modo prescrito pela norma» (Kelsen H. 1984, p. 267). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 10 
criaram a Constituição e os indivíduos que aplicam a Constituição enquanto criam normas de 
conformidade com ela e fazem a aplicação dessas normas. Nisto reside a eficácia da 
Constituição e da ordem jurídica criada de harmonia com ela» (Kelsen H. 1984, p. 283, nota). 
Tendo presente que «a eficácia de uma ordem jurídica não é, tão-pouco como o facto 
que a estabelece, fundamento de validade» (idem, p. 297), torna-se, assim, necessário 
conciliar o impacto da eficácia do sistema e das suas normas com a validade normativa. A 
norma fundamental permite essa conciliação pois «a eficácia é estabelecida na norma 
fundamental como pressuposto da validade» (idem, p. 288). 
À luz do que já foi dito, esta referência da norma fundamental à eficácia respeita em 
primeiro lugar à constituição em sentido jurídico-positivo. O sentido da norma fundamental é 
precisamente o de que «devemos agir de harmonia com uma Constituição efectivamente 
posta, globalmente eficaz, e, portanto, de harmonia com as normas efectivamente postas de 
conformidade com esta Constituição e globalmente eficazes. A fixação positiva e a eficácia 
são pela norma fundamental tornadas condição da validade» (idem, p. 297; no mesmo sentido, 
p. 283, nota). 
 
Apreciação crítica 
A Teoria Pura do Direito de Kelsen constitui uma tentativa de integração das 
componentes do sistema jurídico num todo conceptual formal. Para o alcançar Kelsen 
procedeu a uma série de reduções ou cortes nos quadros de entendimento do direito que 
convém realçar: 
 Elimina a dicotomia entre situações jurídicas e normas jurídicas. Tudo o que no 
direito seja declarativo é reduzido a norma do sistema; tudo o que seja executivo 
é colocado fora do sistema de normas. 
 Coloca fora da normatividade, logo fora do sistema jurídico, a questão de facto, 
seja na perspetiva da aplicação do direito, seja do ponto de vista da estrutura da 
norma. 
 Põe fora do sistema a conformação do conteúdo da previsão normativa: questão 
de «conhecimento», «estado preparatório», constitui na Teoria Pura do Direito 
um desempenho extra-sistemático por parte dos agentes do sistema. 
 Também deixa fora do sistema o conteúdo da norma, as proposições jurídicas, 
definidas em termos formais e externos, não são analisáveis. 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 11 
 Elimina a distinção entre interpretação da norma e criação da norma, as quais se 
fundem num momento único. 
 Recusa a noção de fontes do direito a favor de um conceito de norma jurídica 
reconstruída, eliminando no processo qualquer referencial orientador à tradição 
jurídica a favor do produto do labor do teorizador. 
 
O desenho do sistema jurídico feito por Kelsen acaba assim por ser completamente 
dissociado dos sistemas jurídicos efectivamente existentes. O direito proposto pela Teoria 
Pura do Direito surge-nos comoum produto intelectual, um equivalente jurídico das 
múltiplas realidades artificiais ou realidades virtuais que a ciência moderna tem vindo a criar. 
No que respeita à fundamentação do direito, a norma fundamental constitui «um conceito, não 
só controverso na sua interpretação, mas também efetivamente nebuloso» (Castelani A. 2011, 
p. 503), donde levantar-se-nos um conjunto de questões adicionais: 
 
Não sendo uma norma positiva, posta, sendo apenas uma norma pressuposta, como é 
que a mesma se revela e exprime? Kelsen não coloca a questão, limita-se a afirmar 
dogmaticamente a norma fundamental. Ora aqui, das duas uma: ou a norma fundamental não 
é positivável, mas então remetemo-nos para a posição de um jus naturalista – ou não se desse 
o caso de que «pode, pois, pensar-se uma legislação exterior que contenha somente leis 
positivas; mas então deveria ser precedida por uma lei natural que fundamentasse a autoridade 
do legislador» (Kant I. 2005, p. 35)
9
; ou a norma fundamental tem uma base positiva mas, 
nesse caso, ela é uma criação doutrinária e vale o que vale a doutrina como fonte de direito. 
Num caso ou noutro, excluindo, da parte do leitor da Teoria Pura do Direito, um ato de fé 
naquilo que nesta obra lê, dificilmente cumpre a norma fundamental a função que Kelsen lhe 
atribui. 
 
 
9
 Noção que não terá escapado ao próprio Kelsen. Como refere José Lamego, «noutros 
lugares da sua obra, Kelsen diz que a norma fundamental (Grundnorm), como pressuposição 
logico-formal, ao permitir compreender como relações jurídicas uma serie de situações 
fácticas de poder, constitui uma espécie de equivalente da doutrina jusnaturalista do contrato 
social, como protótipo da ideia de vinculação social e fundamento de validade do Direito 
positivo» (Lamego J. 2008, p. 354). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 12 
Em segundo lugar, há que observar que a norma fundamental, tal como descrita por 
Kelsen, se demarca claramente das normas positivas: 
 
 Norma Fundamental Norma Positiva 
Comprovação Pressuposta Posta 
Formação Conhecimento Vontade 
Estrutura Proposição imperativa Proposição hipotética 
Conteúdo “Remissão formal”
10
 “Material” 
Inserção sistemática Extra sistemática Intra sistemática 
 
Se a norma fundamental é tão diferente da norma positiva, então porquê chamá-la de 
norma? Não deveria antes Kelsen separar claramente norma fundamental de norma positiva? 
O problema está em que, a fazê-lo, teria de teorizar a fundamentação do direito em termos 
marcadamente diversos daquele que faz e teria de ponderar de outra maneira a relação entre 
factualidade e normatividade. 
 
Para evitar estes problemas Kelsen recorre a três estratégias: 
 Apresenta a norma fundamental em termos meramente hipotéticos: «dada a 
pressuposição de que a norma fundamental é válida, o sistema jurídico que nela 
se baseia também é válido» (Kelsen H. 1992, p. 58). 
 Coloca a norma fundamental fora do sistema jurídico positivo. 
 Define a norma fundamental como pressuposto indemonstrado e indemonstrável 
(pois para ser demonstrada teria de ser «posta»). 
Mas estas estratégias remetem-nos para uma mera petição de princípio: a norma 
fundamental fundamenta o direito porque Kelsen diz que fundamenta; e Kelsen diz que a 
norma fundamental fundamenta porque ela fundamenta. O nosso autor acaba, no fundo, por se 
colocar na mesma posição do indiano de Locke, «o qual, dizendo que o mundo era suportado 
por um grande elefante, foi-lhe perguntado o que suportava o elefante, ao que a sua resposta 
foi, uma grande tartaruga; mas sendo de novo pressionado para se saber o que dava suporte à 
tartaruga de costas largas, respondeu, algo que não sabia o que fosse. E então aqui, como em 
 
10
 Estamos aqui a colocar a hipótese, que não vamos aprofundar, de se aproximar a norma 
fundamental de Kelsen das normas de conflitos que operam por remissão formal em Direito 
Internacional Privado. 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 13 
todos os casos em que usamos palavras sem ter ideias claras e distintas, falamos como 
crianças que, sendo questionadas sobre o que é tal coisa que não sabem o que seja, dão de 
imediato esta resposta satisfatória de que é algo» (Locke J. 1977, p. 132). 
Assim seria se Kelsen se ficasse por aqui. Felizmente ele tem mais a dizer sobre o 
direito e é naquilo que ele diz a mais que a sua Teoria Pura se torna algo de mais interessante 
do que um mero dogma ou um simples exercício especulativo sobre o que pode ser o direito. 
 
A revolução como ‘facto do direito’ 
Vimos que Kelsen regride até uma constituição estadual originária, posta num ato 
originário do legislador originário, ato contemporâneo da pressuposição da norma 
fundamental. Ora diz-nos o nosso pensador que esta constituição estadual originaria «é uma 
Constituição estadual que surgiu revolucionariamente, quer dizer, rompendo com uma 
Constituição anteriormente existente» (Kelsen H. 1984, p. 276). O ato instituidor do sistema 
jurídico é, assim, uma revolução
11
. A importância da revolução está em que «a significação da 
norma fundamental torna-se especialmente clara quando uma Constituição não é 
constitucionalmente modificada mas é revolucionariamente substituída por uma outra, quando 
a existência – isto é, a validade – de toda a ordem jurídica imediatamente assente na 
Constituição é posta em questão» (idem, p. 289). A consequência da revolução é que «o velho 
sistema deixa de ser efetivo e o novo sistema torna-se efetivo porque o comportamento atual 
dos seres humanos para quem o sistema afirma ser válido não mais corresponde ao velho 
sistema mas, em geral, ao novo sistema. … Pressupõe-se uma nova norma fundamental» 
(Kelsen H. 1992, p. 59), ou seja, «com o tornar-se eficaz da nova Constituição, modificou-se a 
norma fundamental, quer dizer, o pressuposto sob o qual // o facto constituinte e os factos 
postos em harmonia com a Constituição podem ser pensados como factos de produção e 
aplicação de normas jurídicas» (Kelsen H. 1984, pp. 290-291). 
 
Vemos desta forma que em Kelsen o que funda e fundamenta o sistema jurídico não é 
um pressuposto que não se sabe o que seja. Antes, o fundamento do sistema jurídico é um 
 
11
 Em Kelsen «uma revolução … é toda a modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda a 
modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as 
determinações da mesma Constituição» (Kelsen H. 1984, p. 290). Para uma análise da relação 
entre norma fundamental, constituição e revolução, cf. o estudo de Theodor Schilling que 
referimos no início da presente comunicação (Schilling T. 2012). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 14 
ato, o ato revolucionário, que é um ato eficaz, quer dizer, susceptível de substituir 
efectivamente uma ordem jurídica por outra. Este ato é simultaneamente facto da ordem do 
ser, facto executivo, e ato normativo declarativo da instituição do sistema jurídico, logo 
norma individual no sentido de Kelsen. Como refere Castelani, «Kelsen faz, pois, claramente 
referência a uma situação de facto, o dado objetivo da formação de um ordenamento jurídico. 
Mas define este fenómeno como norma jurídica» (Castelani A. 2011, p. 504). 
Paradoxalmente, se «a indagação de Kelsen tem que ver com análise das condições formais, 
independentes do conteúdo da experiência, que são necessárias para o conhecimento 
científico (dogmático) do Direito» (Lamego J. 2010, p. 56), ela acaba por remeter a 
fundamentação do direito para uma experiência limite. É certo que, como refere Castelani, 
Kelsen operaum corte entre o facto pré jurídico de que emerge o sistema e o sistema jurídico 
originado nesse facto (Castelani A. 2011, p. 507-8). Porém, este corte é um postulado não 
justificado nem demonstrado, quer dizer, puramente dogmático, Kelsen não oferece nenhum 
argumento que justifique a correção desta separação entre pré jurídico e jurídico. 
 
Porque é que o nosso teórico tem de operar esta cisão? Possivelmente porque não o 
fazer poria em causa alguns dos dogmas da sua construção: 
 O dogma da cientificidade vs. ideologia. O ato revolucionário é o ato ideológico 
por essência. 
 O dogma da hierarquia das normas que coloca no topo normas gerais e na base 
normas individuais. Se o ato revolucionário é uma norma individual, inverte-se a 
hierarquia. 
 O dogma da estrutura da norma previsão+estatuição, em que a estatuição é uma 
sanção. No ato revolucionário não há previsão, só há estatuição. 
 O dogma da divisão estrita entre ser e dever ser (Lamego J. 2008, p. 347). 
 Sobretudo, põe em causa o dogma da norma fundamental – a grande descoberta de 
Kelsen – pois esta é perfeitamente dispensável numa concepção do direito que 
fundamente o sistema no ato revolucionário. 
 
Para além do que Kelsen no diz, fiquemo-nos pela seguinte constatação: a Teoria Pura 
do Direito aponta para a fundamentação do sistema jurídico na revolução, incontornável 
‘facto do direito’. 
 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 15 
A FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO EM HART 
 
Hart distingue dois tipos de regras jurídicas: as regras primárias que «dizem respeito às 
ações que os indivíduos devem ou não fazer»; as regras secundárias que «especificam os 
modos pelos quais as regras primárias podem ser determinadas de forma concludente, ou ser 
criadas, eliminadas e alteradas, bem como o facto de que a respectiva violação seja 
determinada de forma indubitável» (Hart H. 1986, p. 104). Há, desta maneira, três tipos de 
regras secundárias, o primeiro dos quais – as regras que permitem determinar ou criar regras 
primárias – Hart designa de regra de reconhecimento. 
 
A regra de reconhecimento «especificará algum aspecto ou aspectos cuja existência 
numa dada regra é tomada como uma indicação afirmativa e concludente de que é uma regra 
do grupo que deve ser apoiada pela pressão social que ele exerce» (idem), aspeto ou aspetos 
esses que se traduzem na previsão de «critérios dotados de autoridade para a identificação das 
regras válidas do sistema» (idem, p. 274), tendo presente que «dizer que uma dada regra é 
válida é reconhecê-la como tendo passado todos os testes facultados pela regra de 
reconhecimento e, portanto, como uma regra do sistema» (idem, p. 114). Tal como Kelsen, 
Hart coloca a questão em termos de hierarquia de regras pois «se for levantada a questão de 
saber se uma certa regra é juridicamente válida, devemos, para lhe responder, usar um critério 
de validade facultado por uma outra regra qualquer» (idem, p. 118). No limite temos a regra 
de reconhecimento que se distingue das demais regras pois «não // há regra que faculte 
critérios para a apreciação da sua própria validade jurídica» (idem, pp. 118-119). 
 
Hart identifica assim a regra de reconhecimento como uma das «condições mínimas 
necessárias e suficientes para a existência de um sistema jurídico» (idem, p. 128). Introduz 
uma delimitação importante neste domínio
12
: as «regras de reconhecimento … e as suas 
regras de alteração e de julgamento devem ser efectivamente aceites como padrões públicos e 
 
12
 Ele também se questiona sobre o impacto do cumprimento das regras (a sua eficácia) para a 
existência do sistema jurídico e elege essa eficácia geral – Ou seja, o respeito pela regra na 
generalidade dos casos mas não na totalidade dos mesmos – como a segunda condição 
mínima, necessária e suficiente para a existência do sistema jurídico. Sem prejuízo disso, «as 
regras jurídicas legisladas … podem existir como regras jurídicas desde o momento da sua 
emissão, antes de verificada qualquer ocasião para a sua prática» (Hart H. 1986, p. 318). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 16 
comuns de comportamento oficial pelos seus funcionários», seus do sistema jurídico (Hart H. 
1986, p. 128)
13
. 
 
O direito funda-se no seu reconhecimento pelos agentes institucionais ao serviço da sua 
componente institucional. Sucede apenas que «normalmente, quando um jurista, que age 
dentro do sistema, afirma que certa regra concreta é válida, ele não afirma explicitamente mas 
pressupõe tacitamente o facto de que a regra de reconhecimento (por referência à qual ele 
testou a validade da regra concreta) existe como regra de reconhecimento aceite do sistema» 
(idem, p. 275), por isso, «na maior parte dos casos a regra de reconhecimento não é 
enunciada, mas a sua existência manifesta-se no modo como as regras concretas são 
identificadas, tanto pelos tribunais ou outros funcionários, como pelos particulares ou seus 
consultores» (idem, p. 113). Em conclusão, a regra de reconhecimento «é efectivamente uma 
forma de regra judicial costumeira, que somente existe se for aceite e executada nos actos dos 
tribunais de identificação do direito e de aplicação deste» (idem, p. 318)
14
. 
Hart combina a sua teorização da regra de reconhecimento com a sua tese da dupla 
perspetiva sobre as normas, interna e externa, ao considerar que «o uso pelos tribunais e 
outras entidades de regras de reconhecimento não afirmadas, para identificar as regras 
concretas do sistema, é característico do ponto de vista interno» (idem, p. 113). Recordemos 
que o ponto de vista interno significa que «alguns membros [do grupo social], pelo menos, 
devem ver no comportamento [prescrito pela regra] em questão um padrão geral a ser 
observado pelo grupo como um todo» (idem, p. 65), enquanto o ponto de vista externo 
consiste no registo descritivo do comportamento «em termos de regularidades observáveis de 
conduta, de predições, de probabilidades e de sinais» (idem, p. 99). Dado que, para Hart, o uso 
da regra de reconhecimento manifesta o ponto de vista interno, «aqueles que as usam deste 
modo manifestam através desse uso a sua própria aceitação das regras como regras de 
orientação e, relativamente a esta atitude, está associado um vocabulário característico 
diferente das expressões naturais do ponto de vista externo» (idem, p. 113). 
 
13
 Quanto ao cidadão comum, a única coisa que se lhe exige é que satisfação a condição da 
eficácia do sistema (passagem citada). 
14
 Esta ideia não é alheia a Kelsen que se demarca da mesma quando nos diz que «a teoria da 
norma fundamental não é … uma teoria do reconhecimento. Esta afirma que o Direito 
positivo é válido quando é reconhecido pelos indivíduos que lhe estão subordinados» (Kelsen 
H. 1984, p. 305, nota 2). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 17 
 
Análise crítica 
O primeiro ponto que cumpre destacar é o facto de Hart associar a regra de 
reconhecimento a um costume. Isto é essencial para a sua construção pois permite-lhe lidar 
com a questão da forma de revelação da regra de reconhecimento enquanto regra jurídica. 
Porém, em boa verdade isto cria uma dificuldade de monta. 
Vejamos, a concepção do direito de Hart incorpora uma diferenciação de duas 
perspetivas sobre o direito, a perspetiva externa e a perspetiva interna. Ora o costume 
carateriza-se por constituir uma prática reiterada acompanhada da convicção da sua 
obrigatoriedade (Ascensão J. 1978, p. 219; Larenz K. 1989, p. 429-430; Rotolo A. 2005, 
p.180ss; Shiner R. 2005, p. 71). É patente que há aqui uma correspondência entre as 
caraterísticas do costume e os doispontos de vista sobre o direito de Hart: a prática reiterada é 
a componente externa do costume; a convicção da obrigatoriedade é a componente interna. 
Acresce que as normas emanadas de outras fontes (legislação, doutrina, jurisprudência) 
têm para Hart de ser eficazes, ou seja, têm de dar lugar a uma prática reiterada que em geral 
corresponda ao que dita a norma. Têm também de ser acompanhadas por adesão interna dos 
agentes jurídicos. A consequência é que, em boa verdade, legislação, jurisprudência e 
doutrina também exigem convicção de obrigatoriedade / adesão interna e prática reiterada / 
expressão externa. Aparentemente o que distinguirá o costume das demais fontes é a 
informalidade da expressão interna e externa da norma, quer dizer, o costume não tem 
associado um ato formal de institucionalização da proposição normativa. Esta é uma 
perspetiva que, em traços gerais, partilhamos com Hart. Porém, como já tivemos ocasião de 
explicitar (Mascarenhas S. 2011), para nós as caraterísticas prática reiterada, convicção da 
obrigatoriedade e formalismo institucionalizador são componentes de todas as fontes do 
direito. O problema está em que, a ser assim, a norma de reconhecimento manifesta-se em 
toda a prática conforme ao direito e não apenas na prática dos agentes institucionais do 
sistema. 
Além disso, a norma de reconhecimento e as instâncias em que a sua aplicação é 
suscitada torna-se indistinguível da norma por ela validada e das instâncias de aplicação desta 
norma. Ou seja, decorre do que Hart nos diz que (a) observamos que num dado caso se aplica 
uma norma primária (perspectiva externa); (b) porque essa norma é aplicada, inferimos a 
adesão do agente ao direito (perspectiva interna); (c) porque observamos (a) e inferimos (c), 
afirmamos a existência da regra de reconhecimento e a sua aplicação no contexto do caso. 
Tudo isto tendo presente que o agente concreto nem sequer tem de ter consciência de que 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 18 
adere ao direito com base numa regra de reconhecimento. O problema está em que não há 
qualquer índice específico de verificação ou afirmação da regra de reconhecimento que se 
demarque da verificação e aferição da regra primária. Embora Hart nos diga que «a regra 
última de reconhecimento pode ser vista de duas perspectivas: uma está expressa na afirmação 
externa de facto de que a regra existe na prática efectiva do sistema; a outra está expressa nas 
afirmações internas de validade, feitas por aqueles que a usam para identificar o direito» (Hart 
H. 1986, p. 123); a verdade é que não nos dá qualquer critério para se poder procede a esta 
afirmação externa (não há qualquer prática externa que seja identificável como expressão da 
regra de reconhecimento ou, pelo menos, Hart não nos indica qual ela seja); e que as 
«afirmações internas de validade» são afirmações sobre o sistema e sobre as suas normas, não 
são afirmações sobre a regra de reconhecimento. Hart não nos dá qualquer critério que nos 
permita afirmar que existe uma regra de reconhecimento em concreto e que esta é admitida 
pelos agentes e participantes no sistema jurídico. 
 
Em suma, não estamos, também aqui, longe do indiano de Locke. Toda a construção de 
Hart assenta numa petição de princípio indemonstrada e indemonstrável, a regra de 
reconhecimento existe porque Hart nos diz que existe
15
. 
 
A regra de reconhecimento e o ‘facto do direito’ 
Porém, tal como Kelsen, Hart não se fica por aqui. Diz-nos ele que «a asserção de que 
[a regra de reconhecimento] existe só pode ser uma afirmação externa de facto. … a regra de 
reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, 
dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a 
certos critérios. A sua existência é uma questão de facto» (idem, p. 121). Como referimos, 
Hart identifica uma dupla perspetiva sobre a regra de reconhecimento: «o argumento para 
chamar à regra de reconhecimento “direito” é o de que a regra que faculta os critérios para a 
identificação das outras regras do sistema pode bem ser concebida como um elemento 
 
15
 É interessante observar que Hart identifica três tipos de regras secundárias mas não explora 
nem aprofunda as demais com o mesmo desenvolvimento que reserva para a regra de 
reconhecimento. Ora as regras secundárias de alteração e julgamento são regras positivas 
como as regras primárias e, como estas, carecidas de validação pela regra de reconhecimento. 
Uma análise mais apurada deste conjunto de regras poderia ter levado Hart a aperceber-se de 
forma mais precisa dos problemas que a sua proposta levanta. 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 19 
definidor de um sistema jurídico e, portanto, digna ela mesma de se chamar “direito”; o 
argumento a favor de a considerar “facto” é o de que afirmar que tal regra existe é, na 
verdade, produzir uma afirmação externa de um facto real dizendo respeito à maneira por que 
as regras de um sistema “eficaz” são identificadas» (Hart H. 1986, p. 123). Decorre da 
segunda perspectiva que a regra de reconhecimento «é considerada em todo este livro como 
uma questão de facto empírica, embora complexa» (idem, p. 274), «é uma questão de facto, 
embora seja uma questão acerca da existência e conteúdo de uma regra» (idem, p. 275). 
 
Temos assim um facto, o facto de que o sistema jurídico existe, é válido e eficaz, facto 
empiricamente observável. Da observação deste facto infere-se que o mesmo se tem de basear 
numa regra, infere-se a existência desta regra – regra essa que nunca é enunciada e que não 
tem índices de positividade independentes do próprio comportamento do sistema jurídico 
positivo. Ora se a regra de reconhecimento não é enunciada nem positivada, não há nada que 
demonstre a sua existência (para além da crença teórica de Hart). Mas resta a observação da 
existência do direito e do sistema jurídico. No limite fica-nos apenas este facto, o ‘facto do 
direito’. 
 
 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 20 
A FUNDAMENTAÇÃO DO DIREITO EM KANT
16
 
17
 
 
Na Crítica da Faculdade de Juízo Kant enuncia o plano do seu sistema filosófico 
dividindo a filosofia em parte teórica e parte prática, em que a primeira tem por domínio a 
natureza (CFJ, p. 51), legisla mediante a faculdade de entendimento (idem, p. 55) e representa 
os seus objetos na intuição como fenómenos (idem, p. 56). Já a parte prática da filosofia 
respeita ao conceito de liberdade (idem, p. 51), legisla mediante a faculdade de razão (idem, p. 
55) e representa no seu objeto a coisa em si (idem, p. 56). Uma e outra respeitam à 
determinação das leis ou regras a que a pessoa está sujeita nas circunstâncias concretas do seu 
agir. Entre componente teórica e componente prática encontra-se a faculdade de juízo como 
termo médio sem domínio próprio (idem, p. 58) mas que constitui a pedra mestra ou pedra-
angular que, para Kant, «procura reconciliar entre si os dois domínios da natureza e da 
liberdade, do conhecimento e da acção» (Morão A. 1988, pp. 469-470). 
A razão prática exerce-se independentemente do exercício da razão teórica
18
 «dado que 
a razão prática não tem a ver com objectos para os conhecer, mas com a sua própria faculdade 
de tornar reais aqueles … isto é, com uma vontade, que é uma causalidade» (CRPr, p. 105). 
A razão prática concretiza-se em metafísica dos costumes, sistema de leis a priori da 
moralidade (MC, p. 5), e esta tem por contraponto a antropologia moral
19
 «como o outro 
 
16 As obras de Kant são referidas na sequência do texto pelas seguintes abreviaturas: 
CFJ Críticada faculdade do juízo (Kant I. 1992); 
CRP Crítica da Razão Pura (Kant I. 1985); 
CRPr Crítica da razão prática (Kant I. 1986a); 
FMC Fundamentação da Metafísica dos Costumes (Kant I. 1986b); 
L Logique (Kant I. 1979); 
MC A metafísica dos Costumes (Kant I. 2005). 
17
 Um dos pressupostos que orientam o nosso estudo é o entendimento de que o pensamento 
de Kant foi profundamente marcado por um quadro de referência jurídico. No Anexo I 
explicitamos de forma mais desenvolvida este ponto. 
18
 Por isso «à lei da liberdade (enquanto causalidade não sensivelmente condicionada), por 
conseguinte, também ao conceito do bem incondicionado, não se pode proporcionar como 
base nenhuma intuição, portanto, nenhum esquema, em vista da sua aplicação in concreto» 
(CRPr, p. 83). 
19
 Ou antropologia prática (FMC, p. 12-13). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 21 
elemento da divisão da filosofia prática em geral … doutrinas e preceitos fundados na 
experiência» (MC, p. 24; Guyer P. 1998b, p. xv). 
 
 
 
Como faculdade intermédia, a faculdade de juízo intervém mediante dois procedimentos 
ou dois exercícios judicativos, a faculdade de juízo determinante e a faculdade de juízo 
reflexiva. A primeira estabelece a relação entre a ação possível e uma lei dada. Opera por 
subsunção e no caso do juízo prático traduz-se na imputação do ato ao agente (MC, p. 372). A 
faculdade de juízo reflexiva realiza a operação inversa, parte da situação dada para a 
determinação da lei, do particular para chegar ao universal. No juízo reflexivo «a vontade, que 
não se refere senão à lei, não pode ser denominada de livre ou não livre, porque não se refere 
às acções mas directamente à legislação concernente às máximas das acções (a própria razão 
prática, portanto)» (MC, p. 37). O exercício da razão reflexiva prática consiste assim na 
determinação da legislação que rege a ação
20
, ou seja, «aqui não se trata do esquema de um 
 
20
 Daí que «julgar se alguma coisa é ou não um objecto da razão pura prática é apenas a 
distinção entre a possibilidade ou impossibilidade de querer essa acção pela qual, se para ela 
tivéssemos o poder (acerca do que deve a experiência julgar), um certo objecto se realizaria» 
(CRPr, p. 71), sublinhado nosso. A dimensão fenoménica, empírica, da ação não é questão 
que se coloque ao juízo reflexivo, antes é questão que se coloca em sede de juízo 
determinante. Os termos em que isso ocorre não cabem no âmbito da presente comunicação. 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 22 
caso produzido segundo leis, mas do esquema (se é que o termo é aqui adequado) de uma lei 
em si mesma» (CRPr, p. 83). 
 
A determinação das leis morais pressupõe um critério de fundamentação das mesmas, 
«o sistema pressupõe a Fundamentação da Metafísica dos Costumes» (CRPr, p. 16). A 
questão a que a Fundamentação procura dar resposta é a de saber qual o critério que permite 
identificar as proposições normativas que constituem leis da moralidade e que integram o 
sistema dos costumes. Uma tal lei é, na terminologia de Kant, um imperativo categórico: «há 
por fim um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer outra intenção a 
atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente este comportamento. Este 
imperativo é categórico» (FMC, p. 52)
 21
. Kant dificulta a compreensão do seu pensamento 
ao utilizar em vários sentidos a expressão ‘imperativo categórico’, sentidos que convém 
distinguir para se evitarem mal entendidos: 
 ‘Imperativo categórico’ como conceito22. Na sequência referiremos o conceito de 
imperativo categórico com maiúsculas, ‘Imperativo Categórico’. 
 ‘Imperativo categórico’ como imperativo categórico concreto. Referiremos os 
imperativos categóricos concretos com minúsculas, ‘imperativo categórico’. 
 ‘Imperativo categórico’ como lei ou norma universal moral. Utilizaremos a expressão 
‘lei moral’ para referimentos o imperativo categórico neste sentido. 
 ‘Imperativo categórico’ como teste de determinação da lei moral. Referiremos este 
teste como ‘teste da imperatividade categórica’. 
Independentemente do sentido da expressão imperativo categórico que temos em mente, 
a questão para o agente concreto nas circunstâncias concretas em que pretende empreender a 
ação, é a de determinar qual o imperativo que lhe permite configurar o comportamento que 
em geral é devido para, depois, agir em conformidade com esse comportamento devido em 
geral. Daí que o imperativo categórico «não se relaciona com a matéria da acção e com o que 
 
21
 No universo dos imperativos há os que são categóricos e os que não o são, os que se 
enquadram no conceito de imperativo categórico e os que se enquadram nos conceitos de 
outros imperativos. 
22
 Por exemplo, diz-nos Kant que «o imperativo categórico é portanto só um único» (FMC, p. 
59). O que Kant quer enfatizar com isto é que há um único conceito de imperativo categórico, 
por contraste com o conceito de imperativo hipotético que se desdobra em imperativo 
problemático ou técnico e imperativo pragmático ou assertórico-prático (FMC, pp. 50 e 53). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 23 
dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva» (FMC). Temos, 
pois, aqui duas operações consistentes com as modalidades de juízo que referimos antes: 
primeiro, uma aferição do mandamento (idem, p. 53) que fornece o critério para a ação, ou 
seja, de apuramento de qual é a lei moral a que o agente deve obedecer – operação a realizar 
mediante um juízo reflexivo; segundo, determinação do imperativo categórico (ou seja, uma 
aferição da conformidade da máxima da ação ou da ação com a lei) – operação a concretizar 
através de um juízo determinante. 
No presente trabalho interessam-nos em particular os dois últimos sentidos da expressão 
‘imperativo categórico’ pois a nossa questão incide, precisamente, sobre como se determinam 
as normas que regem a ação, como se fundamenta a normatividade destas. 
 
A Fundamentação não se limita a definir o que são imperativos categóricos, ela centra-
se antes na questão de saber em que termos se estabelecem imperativos, para o que propõe um 
conjunto de testes com base nos quais se pode verificar se uma dada proposição normativa ou 
máxima (CRPr, p. 29) constitui ou não uma lei moral. 
Quais são esses testes que permitem determinar qual é a lei moral que rege a ação? Kant 
toma como ponto de partida o próprio conceito de Imperativo Categórico: «vamos primeiro 
tentar se acaso o simples conceito de imperativo categórico não fornece a sua fórmula, 
fórmula que contenha a proposição que só por si possa ser um imperativo categórico» (FMC, 
p. 58)
23
. A fórmula dá-nos o que importa fazer, o procedimento que permite responder à 
questão de saber se uma máxima se pode constituir em imperativo categórico
24
. Corrija-se, as 
 
23
 Na Crítica da Razão Prática Kant especificou e clarificou o alcance desta etapa no 
desenvolvimento do seu sistema moral: «quem sabe o que para um matemático significa uma 
fórmula, que determina muito exactamente o que importa fazer para tratar uma questão e não 
a deixa falhar, não considerará como insignificante e dispensável uma fórmula, que faz o 
mesmo relativamente a todo o dever em geral» (CRPr, p. 16, nota 1). 
24
 Vários intérpretes destacam o carater procedimental do Imperativo Categórico que faz dele 
um teste de imperatividade categórica: para Günter Elscheid ele «deve ser entendido como 
uma instrução sobre a forma de introduzir questões morais num certo processo intelectual» 
(Ellscheid G. 2009, p. 246);Shelly Kagan considera que a fórmula da lei universal é um teste 
de máximas (Kagan S. 2002, p. 122ss); de forma mais limitada Christine Korsgaard refere que 
«a Fórmula da Lei Universal é configurada como um processo de decisão» (Korsgaard C. 
1996, p. 39); Allen Wood também entende que a primeira formulação da primeira fórmula 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 24 
fórmulas pois na Fundamentação Kant não dá uma, dá três, de que a primeira se desdobra em 
duas formulações. Temos assim quatro proposições que correspondem às três fórmulas da 
imperatividade categórica
25
: 
Primeira fórmula, primeira formulação
26
: «Age apenas segundo uma máxima tal que 
possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal» (FMC, p. 59). 
Primeira fórmula, segunda formulação: «Age como se a máxima da tua acção se 
devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza» (idem). 
Segunda fórmula (princípio da humanidade e de toda a natureza racional em geral ou 
imperativo prático): «Age de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua 
pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca 
simplesmente como meio» (idem, p. 69). 
 
constitui um teste de normatividade (Wood A. 2006, p. 11), porém previne contra o que há de 
excessivo e redutor na ênfase exagerada numa leitura da teoria moral de Kant como «um tipo 
qualquer de procedimento de decisão racional» (Wood A. 2002b, p. 167). 
25
 Anote-se que a apresentação que aqui fazemos da diferenciação entre conceito e fórmulas e 
a própria identificação das fórmulas não é consensual. Por exemplo, Alexis Philonenko 
considera que a primeira proposição – a nossa primeira formulação da primeira fórmula – 
corresponde à noção de imperativo, noção essa separada das fórmulas, enquanto a nossa 
segunda formulação da primeira fórmula é, para este tradutor e intérprete de Kant, a expressão 
única da primeira fórmula (Philonenko A. 1989, p. 114 e 115). Sem prejuízo disso, 
Philonenko marca bem que as fórmulas não são derivadas do Imperativo Categórico, 
princípios especiais decorrentes deste, mas que são apenas outras tantas expressões do 
mesmo. Já Paul Guyer entende que «as formulações adicionais do IC [a segunda e a terceira, 
adicionais em relação à primeira] definem condições que também são necessárias para tornar 
inteligível as duas maneiras diferentes por que pode ser possível a adoção do PLU [princípio 
da legislação universal] por qualquer agente racional» (Guyer P. 1998c, p. 222). Gruyer não 
discute a diferença entre as duas formulações da primeira fórmula e desdobra a terceira 
fórmula em duas formulações. Apesar do mérito da sua abordagem, optámos, neste domínio, 
por nos mantermos fiéis à exposição de Kant. 
26
 «Age de tal modo que a máxima da tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como 
princípio de uma legislação universal» (CRPr, p. 42); «age segundo uma máxima que possa 
valer simultaneamente como lei universal» (MC, p. 35). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 25 
Terceira fórmula (princípio da autonomia da vontade)
27
: «Age segundo máximas de 
um membro universalmente legislador em ordem a um reino dos fins somente possível» 
(FMC, p. 83). 
 
Estas quatro formulações dão-nos outras tantas apresentações do conceito de Imperativo 
Categórico. Dão-nos igualmente quatro testes de imperatividade categórica, quatro maneiras 
de identificarmos o que importa fazer. É sobre estes que vai incidir a continuação do nosso 
estudo (sobre o conceito de Imperativo Categórico, cf. mais desenvolvidamente o Anexo II). 
Antes de prosseguirmos para a análise dos testes da imperatividade categórica convém 
reiterar uma ideia chave que já mencionámos: estes testes não nos dão resposta à questão de 
se saber se a ação concreta é permitida ou proibida, dão antes resposta à questão de se saber se 
a máxima da ação corresponde ou não à lei moral que deve reger a ação, logo que permite 
determinar o imperativo categórico. Se uma máxima passa o teste da imperatividade 
categórica, essa máxima conforma-se com a lei moral e constitui o imperativo categórico que 
rege a ação, a ação é permitida se for conforme com tal imperativo; se o teste falhar, a 
máxima não corresponde à lei moral, logo não nos dá o imperativo categórico que rege a 
ação, a ação não deve conformar-se com tal máxima. Neste caso é necessário refazer todo o 
procedimento para se formular outra máxima que, por sua vez, deverá ser sujeita ao teste da 
imperatividade categórica. Este processo deverá ser feito tantas vezes quantas as necessárias 
para se chegar à formulação do imperativo que rege a ação (sendo certo que um juízo bem 
orientado não procederá às cegas na formulação das máximas)
28
. De facto, os testes da 
 
27
 Kant não apresenta uma formulação acabada na sua primeira abordagem à terceira fórmula, 
antes descreve esta como «a ideia da vontade de todo o ser racional concebida como vontade 
legisladora universal» (FMC, p. 72) «por meio de todas as suas máximas» (idem, p. 74), «o 
conceito segundo o qual todo o ser racional deve considerar-se como legislador universal por 
todas as máximas da sua vontade para, deste ponto de vista, se julgar a si mesmo e às suas 
acções» (idem, p. 75). Consideramos que ele acaba por dar uma formulação desta terceira 
fórmula na passagem citada no texto supra. Anote-se também que Kant se dispensou de 
fornecer exemplos de aplicação deste terceiro teste, ao contrário do que fez no caso das duas 
primeiras fórmulas (idem, p. 74 nota de Kant). 
28
 É comum a confusão entre as duas operações. Por exemplo, afirma Christine Korsgaard: 
«em termos gerais, se uma máxima passa o teste do imperativo categórico a ação é permitida; 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 26 
imperatividade categórica consistem em juízos (reflexivos) que permitem verificar se a 
máxima corresponde à lei moral e constitui um imperativo categórico. Em consequência, da 
sua aplicação nós não podemos retirar a conclusão de que a ação é permitida (ou proibida), 
apenas podemos concluir se uma dada proposição constitui ou não uma lei prática, se permite 
ou não a determinação do imperativo categórico que rege a ação. Só assim «uma acção 
praticada por dever tem o seu valor moral, não no propósito que com ela se quer atingir, mas 
na máxima que a determina; não depende portanto da realidade do objecto da acção, mas 
somente do principio do querer segundo o qual a acção, abstraindo de todos os objectos da 
faculdade de desejar, foi praticada» (FMC, p. 30). 
Identificada a lei prática, coloca-se então a questão de saber se a ação que o agente 
pretende realizar é permitida ou não, mas a resposta a esta questão implica um juízo sobre a 
moralidade da ação, juízo este determinante, onde se opera a subsunção da ação (ou da 
máxima da ação) à lei moral que rege esse juízo, tendo em vista a imputação do facto ao 
agente: «a moralidade é pois a relação das acções com a autonomia da vontade, isto é, com a 
legislação universal possível por meio das suas máximas. A acção que possa concordar com a 
autonomia da vontade é permitida; a que com ela não concorde é proibida» (idem, p. 84)
29
. 
 
As quatro formulações devem permitir testar proposições para determinar se estas são 
imperativos categóricos
30
, a cada uma daquelas correspondendo um diferente teste da 
imperatividade categórica
31
. Cumpre, assim, analisarmos cada um desses testes. Nase falhar, a ação é proibida e, nesse caso, o que é requerido é a ação ou omissão opostas» 
(Korsgaard C. 1998, p. xxi). 
29
 Em consequência, «a função de um princípio fundamental nunca pode ser diretamente pôr 
um termo a questões morais difíceis; pode apenas servir para dar enquadramento geral 
adequado no qual regras morais e questões controversas devem ser colocadas e discutidas. 
Mesmo então qualquer formulação do mesmo deve ser vista como provisória – um objeto de 
constante reflexão crítica e de continua reinterpretação e rearticulação» (Wood A. 2002b, p. 
174). 
30
 Que as fórmulas possam constituir testes decorre do próprio conceito de fórmula, entendido 
por Kant como consistindo em «regras de que a expressão serve de modelo à imitação» (L, p. 
86). 
31
 Do ponto de vista do caso concreto, o teste da imperatividade categórica «não é proposto 
como um algoritmo para decidir todas as questões morais com precisão. Ele reduz 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 27 
demonstração seguiremos a ordenação que nos foi dada pelo próprio Kant: a primeira fórmula 
corresponde ao método rigoroso a aplicar no juízo moral mas, para dar à lei moral «acesso às 
almas», convém proceder previamente à aplicação dos testes das demais fórmulas (FMC, p. 
80). A nossa ordem será, pois, a seguinte: segunda fórmula; terceira fórmula; primeira 
fórmula, segunda formulação; primeira fórmula, primeira formulação. 
 
Segunda fórmula: o Imperativo Categórico modelado no costume 
Vimos que a segunda fórmula diz: Age de tal maneira que tu e cada um usem sempre e 
simultaneamente, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, da humanidade 
como fim, conforme uma lei universal. Para Kant os «seres racionais estão pois todos 
submetidos a esta lei que manda que cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros 
simplesmente como meios, mas sempre simultaneamente como fins em si» (idem, p. 76). Para 
o nosso propósito as expressões chave são, «age», «usem sempre» e «se trate»
32
. 
Saliente-se, não há aqui invocação expressa da máxima da ação, a moralidade exprime-
se no comportamento. Ora «a aquisição de um hábito ou a sua perda consiste em estabelecer 
em si uma inclinação persistente sem a intervenção de qualquer máxima, através da satisfação 
reiterada dessa inclinação, e isso é não um princípio do modo de pensar, mas um mecanismo 
do modo de sentir» (MC, p. 439). É no uso, na forma de tratar, mecanismo do modo de sentir, 
que se revela o imperativo sem a mediação da expressão do mesmo em proposição normativa, 
princípio do modo de pensar. De acordo com Kant, para o homem comum a moralidade 
exprime-se no comportamento concreto, não no entendimento abstrato
33
. 
 
grandemente a indeterminação moral. E para além disto, a sua engenhosidade consiste em que 
facilita a decisão ao transformar a mesma de uma respeitante ao sujeito numa situação 
concreta (onde pode ser bastante difícil evitar a má fé e a desonestidade) numa respeitante ao 
mundo em geral. Aqui o imperativo categórico é, como deve ser, um procedimento geral para 
a construção de experiências mentais moralmente pertinentes» (Pogge T. 1998, p. 206). 
32
 Todas as traduções para língua inglesa que consultámos traduzem «se trate» por «treat» 
(FMC 1997, p. 41; FMC 2002, p. 51;FMC 2008, p. 32; FMC 2009, p. 35). Já quanto a 
«usem», não existe idêntico consenso. Mary Gregor e Allen Wood traduzem por «use» (FMC 
1997, p. 38; FMC 2002,p. 47), enquanto Thomas Abbot e Jonathan Bennett traduzem por 
«treat» (FMC 2008, p. 29; FMC 2009, p. 32). 
33
 «Se, porém, se perguntar – o que é, então, verdadeiramente a pura moralidade na qual, 
como pedra-de-toque, se deve ponderar o conteúdo moral de cada acção? – … na razão 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 28 
O uso pode exprimir a moralidade e é necessário que o faça, tanto mais que a 
moralidade não se forma apenas com o exercício filosófico da razão
34
. Pelo contrário, 
ninguém mais do que o filósofo deve reconhecer que «diante de um homem de classe inferior, 
um burguês ordinário, no qual percepciono uma rectidão de carácter de um grau tal que eu, no 
que me toca, não tenho consciência de possuir, o meu espírito inclina-se, quer eu queira quer 
não e por muito que eu levante a cabeça para que não lhe passe despercebida a superioridade 
da minha condição» (CRPr, pp. 92)
35
. Do uso ou forma de tratar conforme à lei, espera-se que 
seja constante e que não varie de ação para ação (no sentido amplo que inclui a omissão), que 
seja idêntico em todas as situações «sempre e simultaneamente». Por outras palavras, espera-
se que seja habitual, tendo em atenção que o «hábito (habitus) é uma destreza para agir e uma 
perfeição subjectiva do arbítrio» (MC, p. 326). 
Suscita-se aqui um problema: «em toda a destreza desse tipo [do hábito] é um hábito 
livre (habitus libertatis); porque quando é costume (assuetudo) dessa liberdade, quer dizer, 
uma conformidade que se converteu em necessidade por repetição frequente da acção, não é 
um hábito que proceda da liberdade e, portanto, não é um hábito moral. Deste modo, a virtude 
não pode ser definida como o hábito de praticar acções conformes à lei» (idem), daí que «as 
máximas morais, ao contrário das técnicas, não podem fundar-se no costume (pois que este 
releva da componente física da determinação da vontade), uma vez que, mesmo que a prática 
das máximas morais se tornasse costume, o sujeito perderia com isso a liberdade de adoptar as 
suas máximas, liberdade essa que caracteriza a acção praticada por dever» (idem, p. 330). Não 
 
comum dos homens, ela [esta questão] está já há muito resolvida, não certamente mediante 
fórmulas gerais abstractas, mas pelo uso habitual» (CRPr, p. 175). 
34
 Menos ainda com esse exercício pelo filósofo Kant «como se, antes dele, o mundo estivesse 
totalmente na ignorância ou no erro acerca da natureza do dever» (CRPr, p. 16, nota 1). 
35
 O caminho que levou Kant até uma tal posição não foi direto nem imediato. Como ele 
próprio referiu num momento de autoanálise, «por inclinação sou inquisidor. Sinto uma sede 
abrasadora de conhecimento, a agitação que acompanha o desejo de progredir no mesmo, e a 
satisfação em cada avanço nele. Houve um tempo quando cria que ele constituía a honra da 
humanidade e em que desprezava quem nada sabe. Nisto Rousseau corrigiu-me … Aprendi a 
honrar os homens e considerar-me-ia mais inútil do que um trabalhador comum se não cresse 
que esta minha forma de ver pode dar valor a todos os outros no estabelecimento dos direitos 
da humanidade» (Korsgaard C. 1996, p. 37). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 29 
é assim qualquer uso que permite revelar a existência de um imperativo categórico por detrás 
da ação que lhe é conforme. 
A questão é pois a de se saber como e em que termos o uso, o hábito, podem ser práticas 
conformes à moralidade, tendo presente o «valor do carácter, que é moralmente sem qualquer 
comparação o mais alto, que consiste em fazer o bem, não por inclinação, mas por dever» 
(FMC, p. 29). Como passar do «mecanismo do modo de sentir» para «um princípio do modo 
de pensar»? Isso pode ocorrer «se se acrescentasse: “determinar-se a agir pela representação 
da lei”; e, nesse caso, o hábito não é uma disposição do arbítrio, mas da vontade, a qual, com 
a regra que adopta, é ao mesmo tempo uma faculdade de desejar universalmente legisladora,e 
só um hábito semelhante pode ser considerado como virtude» (MC, p. 326), o que é, no 
fundo, possível porque «o entendimento mais vulgar pode discernir sem instrução qual a 
forma que, na máxima, se presta à legislação universal, e qual a que não» (CRPr, p. 38). 
A moralidade pré-existe à expressão do seu conceito e das respetivas fórmulas a que só 
o filosofar pode dar corpo. Pré-existe porque a ação não está necessariamente dependente da 
razão discursiva, antes também se exprime na razão comum, vulgar, e nesta ela pode formar-
se com base no exemplo
36
. É este o caso do homem reto cujo «exemplo apresenta-me uma lei 
que confunde a minha presunção quando a comparo com a minha conduta e o seu 
cumprimento, por conseguinte, a sua praticalidade, vejo-a demonstrada diante de mim através 
da acção», ou seja, de «a lei, tornada concreta através de um exemplo» (exemplo que, diga-se 
de passagem, «confunde sempre o meu orgulho») (idem, pp. 92-93). 
Mas a questão não fica por aqui. É que «no que se refere à força do exemplo … aquele 
que os outros nos dão não pode fundar nenhuma máxima de virtude. Pois que esta consiste 
precisamente na autonomia subjectiva da razão prática de cada homem, por conseguinte, em 
que não é a conduta de outros homens que nos há-de servir de móbil, mas sim a lei» (MC, p. 
440), por isso «o bom exemplo (a conduta exemplar) não deve servir de modelo, mas tão-
somente como prova de que é factível aquilo que é prescrito pelo dever» (idem)
37
. O exemplo 
 
36
 Precisamente porque para Kant «o conhecimento do universal in concreto é conhecimento 
comum» (L, p. 28). 
37
 O exemplo permite sedimentar a clareza subjetiva, da intuição, necessária para a distinção 
estética (L, p. 68) entendida no sentido kantiano de sensível. Esta distinção, caraterística da 
razão comum, é insuficiente e pode, com facilidade, entrar em conflito com o seu 
contraponto, a distinção lógica, por conceitos. Sem prejuízo disso, «é pela conjugação das 
duas, a distinção estética ou popular e a distinção escolástica ou lógica, que consiste a lucidez 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 30 
não pode redundar na repetição mecânica. Como fundamenta ele a formação moral do 
homem? O ponto de partida é a imitação que «é para o homem ainda inculto a primeira 
determinação da vontade para aceitar máximas que subsequentemente faz suas» (L, p. 439). 
Vemos que aquilo que a razão comum faz sem reflexão, pode a filosofia adotar como 
um primeiro passo no método para testar máximas para verificar se constituem imperativos 
categóricos, para que a pessoa se oriente no pensamento (L, p. 57). Este primeiro passo 
consiste assim em «fazer do juízo segundo leis morais uma ocupação natural, de certa maneira 
um hábito, que acompanhe todas as nossas próprias acções livres como igualmente a 
observação das acções livres dos outros, e de o tornar o mais penetrante perguntando, 
primeiramente, se a acção é objectivamente conforme à lei moral e a que [lei]» (CRPr, p. 
179), pelo que «o meio experimental (técnico) para educar na virtude reside no bom exemplo 
que o professor ele próprio possa dar» (MC, p. 439). Sem prejuízo disto, o entendimento 
vulgar, concreto, baseado no exemplo empírico, não é suficiente para fundamentar a formação 
de leis morais pois pode induzir em erro, erro esse decorrente da «influência despercebida da 
sensibilidade sobre o entendimento ou, para melhor dizer, sobre o julgamento» (L, p. 59), da 
confusão «entre o que é simplesmente subjetivo com o que é objetivo» (idem). 
 
Torna-se assim patente porque é que a observação do uso constitui o primeiro teste de 
imperatividade categórica, teste que facilita o acesso às almas. Ora no direito o uso é a base 
do costume. Se a imperatividade categórica se revela nos usos e se apura pela observação dos 
mesmos, ela aproxima-se do costume jurídico que, também ele, se revela em termos 
semelhantes. Aparentemente Kant modela o teste da imperatividade da segunda fórmula no 
costume jurídico. Este teste é, porém, insuficiente pois, vimo-lo, falta-lhe rigor para fornecer 
o juízo definitivo da existência de um imperativo categórico
38
. São necessários outros testes 
para se poder extrair tal conclusão. 
 
 
 
 
… o talento de apresentação luminosa, adaptada à faculdade de compreensão do entendimento 
comum, de conhecimentos abstratos e profundos» (idem, p. 69). 
38
 Não surpreende esta desconfiança relativamente ao costume da parte de Kant, ela é 
consonante com a evolução que esta fonte do direito sofreu a partir da Idade Média (cf. Anexo 
I e Mascarenhas S. 2011). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen, Hart, Kant 
FDUNL, SPEED, 2012-05-30 31 
Terceira fórmula: o Imperativo Categórico modelado no direito civil 
Acabamos de ver que podemos chegar à moralidade pela observação do 
comportamento, nosso e dos outros. Se dois sujeitos se observam mutuamente cada um deles 
pode destacar da ação concreta todas as suas máximas (FMC, p. 74), esteja em causa a sua 
própria ação ou a ação dos demais. Uns e outros podem dar um passo adicional e, tomando 
como base a simples observação do comportamento próprio e alheio, tomarem consciência de 
uma máxima comum ao comportamento dos vários participantes na interação. Além disso, a 
observação do comportamento alheio coloca os agentes em relação entre si, o que lhes 
permite estabelecer comunicação tendo em vista um acordo relativamente à máxima das 
respetivas ações e ao estabelecimento da lei que as rege. Quer dizer, podem criar «uma 
ligação sistemática de seres racionais por meio de leis objectivas comuns» (idem, p. 75) e 
constituir um reino em tais termos que «somos certamente membros legisladores de um reino 
moral, possível mediante a liberdade, proposto ao nosso respeito pela razão prática, mas ao 
mesmo tempo, no entanto, somos os seus súbditos, não o seu soberano» (CRPr, p. 98). 
Estamos aqui no âmbito da terceira fórmula do Imperativo Categórico, fórmula que abre a 
moralidade à intersubjetividade. Por esta via podemos chegar ao «conceito segundo o qual 
todo o ser racional deve considerar-se como legislador universal por todas as máximas da sua 
vontade» (FMC, p. 75), máximas essas que assim são suscetíveis de ser agregadas numa 
totalidade, num sistema (idem, p. 80)
39
. 
De onde vem esta constituição de um sistema de leis morais no contexto de um reino 
composto por seres racionais em interação legisladora? O seu modelo é o processo legislativo 
que tinha progredido ao longo de séculos e estava em vida de Kant a atingir a maturidade com 
a emergência dos seus instrumentos paradigmáticos: os estatutos (leis formais), os códigos e 
as constituições do direito civil dos estados modernos (cf. Anexo I). Para Kant o direito 
positivo é o direito legislado. A caraterização da autonomia, na Fundamentação, como 
sujeição à lei de que a pessoa é ela mesma autora (FMC, pp. 72ss)
40
, é consistente com o 
desenho que Kant dá do poder legislativo (MC § 46, pp. 179-182). 
 
39
 Esta operação implica uma alteração de fundo no procedimento moral pois dispondo de um 
sistema de máximas tornadas «leis objetivas comuns», o homem pode-se «julgar a si mesmo e 
às suas acções» por referência a esse sistema (FMC, p. 75). 
40
 «A vontade não está pois simplesmente submetida à lei, mas sim submetida de tal maneira 
que tem de ser considerada também como legisladora ela mesma, e exactamente por isso e só 
então submetida à lei (de que ela se pode olhar como autora)» (FMC, p. 72). 
Sérgio Mascarenhas de Almeida A fundamentação do direito: Kelsen,

Continue navegando