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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS FACULDADE DE DIREITO PROJETO DE PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO: ARTE, CULTURAS E DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICO GABRIEL ARBES SILVEIRA GABRIEL JULIANI LOPES GIORDANO MOROCINI ISMAEL LOPES DE SOUZA JUAN SAMPAIO NEITZKE ROGÉRIO LUIZ MENEGAZ RODRIGUES DIÁRIO DE UM DETENTO E LEI DE EXECUÇÃO PENAL: UMA ANÁLISE ACERCA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REINSERÇÃO DOS APENADOS ORIUNDOS DO PRESÍDIO REGIONAL DE PELOTAS Pelotas – RS 2019 GABRIEL ARBES SILVEIRA GABRIEL JULIANI LOPES GIORDANO MOROCINI ISMAEL LOPES DE SOUZA JUAN SAMPAIO NEITZKE ROGÉRIO LUIZ MENEGAZ RODRIGUES DIÁRIO DE UM DETENTO E LEI DE EXECUÇÃO PENAL: UMA ANÁLISE ACERCA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REINSERÇÃO DOS APENADOS ORIUNDOS DO PRESÍDIO REGIONAL DE PELOTAS O presente trabalho é parte fundamental para a aprovação na disciplina de Introdução ao Direito da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas. Prof. Orientadora: Amanda Löwenhaupt. Pelotas – RS 2019 RESUMO Esta pesquisa faz parte do Projeto “Pesquisa Empírica em Direito: Arte, Culturas e Democratização do Conhecimento Jurídico”, onde investiga-se, empiricamente, temas envolvendo Direito e arte (lato sensu), relacionando-se a canção “O Diário de um Detento” (1997), legislação penal e, em especial, as políticas públicas de reinserção de ex-apenados do Presídio Regional de Pelotas, no Rio Grande do Sul, dando-se atenção para a investigação junto aos agentes atuantes da questão carcerária do município. Palavras-chave: Direito Penal, sistema carcerário e ressocialização de ex-apenados. ABSTRACT This research is part of the Project “Empirical Research in Law: Art, Cultures and Democratization of Legal Knowledge”, which investigates, empirically, themes involving law and art (lato sensu), relating the song “O Diário de um Detento” (1997), criminal legislation and, in particular, the public policies for the reintegration of ex-convicts of the Pelotas Regional Prison, in Rio Grande do Sul, paying attention to the investigation with the acting agents of the municipal prison issue. Keywords: Criminal Law, prison system and resocialization of ex-convicts. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 4 1 ARTE E DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICO 7 1.1 Conexões entre Direito e Arte 7 1.2 Conexão entre a obra e o Direito 8 2 ETAPAS DO PROCESSO PENAL BRASILEIRO 13 2.1 O Processo Penal de acordo com a Legislação Brasileira 14 2.2 Crítica à dificuldade da aplicação do Processo Penal com vista o previsto em lei 18 3 DEFINIÇÃO DOUTRINÁRIA DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE REINTEGRAÇÃO SOCIAL 22 4 ANÁLISE ACERCA DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE REINSERÇÃO SOCIAL APLICADAS NO PRESÍDIO REGIONAL DE PELOTAS EM COMPARAÇÃO COM A LEI DE EXECUÇÃO PENAL 28 4.1 A concepção da Lei de Execução Penal com vistas à Reinserção Social e sua (não) efetivação por completo 28 4.2 A Lei de Execução Penal na Realidade do Presídio Regional de Pelotas 35 CONCLUSÃO……………………………………………………………... 42 REFERÊNCIAS……………………………………………………………. 43 ANEXOS………………………………………………………………….... 47 4 INTRODUÇÃO Esta pesquisa teve início a partir de uma proposta de avaliação feita ao 1º ano do curso de Direito da Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, na disciplina de “Introdução ao estudo do Direito”, ministrada pela Prof. Dr. Ana Clara Corrêa Henning, em 2019. A turma foi separada em grupos e foi-lhes indicado que escolhessem uma obra de arte e, a partir dela, elaborada uma questão de interesse do mundo jurídico. Esta questão serviu de base para a construção de um projeto de pesquisa empírica do qual resulta este texto. A proposta da Prof. Ana Clara surge de um desdobramento de seu projeto de pesquisa “Inventar: arte e construção do conhecimento jurídico”, que visa o estabelecimento de relações entre o Direito e a Arte como forma de reflexão a respeito das relações de poder e saber que atravessam o mundo jurídico contemporâneo. A relação entre estas áreas do conhecimento aparentemente distantes pode se manifestar de muitas maneiras. Questões jurídicas podem ser sugeridas ou evidenciadas pela arte e a arte pode suscitar novas formas de pensar o Direito. Este tipo de intersecção é fruto da ascensão de formas de estudos integrados, pautados pela interdisciplinaridade, que estimulam uma abordagem complexa entre áreas socioculturais do conhecimento. A importância deste tipo de abordagem vem da riqueza do que é originado nas fronteiras dos campos dos saberes, onde o choque entre diferentes concepções e habitus provocam novas questões. Conforme já colocado, o trabalho é de pesquisa empírica, cruzando os conhecimentos teóricos pertinentes com os dados coletados em campo. Desta forma, os alunos são colocados em contato com as questões que o Direito tenta regular na vida prática das pessoas, em oposição a um conhecimento predominantemente teórico. Segundo Paulo Eduardo Alves da Silva e Alexandre dos Santos Cunha, “[a] pesquisa em direito no Brasil especializou-se na norma como dever ser, deixando um pouco de lado o conhecimento da norma como ser, como ela acontece na realidade” (SILVA e CUNHA, 2011, p.11). Assim sendo, a proposta de trabalho da Prof. Ana Clara traz como virtude o fomento à construção de conhecimento jurídico mais próximo da realidade e distante das conveniências do 5 gabinete, preenchendo lacunas do campo e estimulando a formação de novos pesquisadores. Sobre a pesquisa empírica no campo jurídico, Igreja afirma: Podemos afirmar que a análise do Direito como objeto de uma pesquisa empírica é algo recente e ainda muito pouco consolidada na formação acadêmica das faculdades de Direito. De fato, o que observamos em nossa cotidianidade é a transmissão da ideia de um Direito formalista, positivista, dogmático, distante do universo da pesquisa empírica. (IGREJA, 2017, p.11) Este trabalho, mediante a justaposição entre arte e direito desenvolvida a partir do Rap “O Diário de um Detento” (1997), dos Racionais Mc’s, tem como escopo abordar a temática carcerária no que diz respeito às políticas públicas de ressocialização de apenados e ex-apenados através da análise de dados empíricos coletados em entrevistas realizadas junto aos agentes atuantes neste campo e nos órgãos que compõem a estrutura prisional municipal, assim como, pela investigação na legislação, jurisprudência e doutrina pertinentes. Quanto aos aspectos metodológicos utilizados na pesquisa, o método dedutivo mostrou-se mais apropriado aos fins da pesquisa. Tal método caracteriza-se por partir de um assunto mais amplo e ir aprofundando-o para um assunto mais específico. “Por intermédio de uma cadeia de raciocínio em ordem descendente, de análise do geral para o particular, chega a uma conclusão.” (PRONADOV , 2013 , p. 27). O trabalho se deu grande parte em cima de pesquisa bibliográfica de autores do campo das ciências sociais e jurídicas. Segundo Pronadov, este tipo de pesquisa se caracteriza por: Quando elaborada a partir de material já publicado, constituído principalmente de: livros,revistas, publicações em periódicos e artigos científicos, jornais, boletins, monografias, dissertações, teses, material cartográfico, internet, com o objetivo de colocar o pesquisador em contato direto com todo material já escrito sobre o assunto da pesquisa.(PRONADOV , 2013 , p.54) Além da pesquisa bibliográfica, apresentaremos também pesquisa qualitativa e quantitativa. Na pesquisa qualitativa, através de um roteiro semi estruturado de cinco perguntas, entrevistamos operadores que atuam no sistema prisional pelotense. Desse modo, buscamos uma visão mais densa e profunda sobre a reintegração social, a partir do olhar de quem lida com o problema na prática. Segundo Gerhardt e Souza, “A pesquisa qualitativa não se preocupa com representatividade numérica, mas, sim, com o aprofundamento da compreensão de 6 um grupo social, de uma organização, etc. (GERHARDT, SILVEIRA, 2009 , p.31). Sobre a aplicação deste tipo de método no campo jurídico, Igreja aponta que recentemente: “[...]a pesquisa qualitativa sai do âmbito meramente acadêmico e desperta o interesse dos que pensam e elaboram políticas públicas, daqueles que buscam as pesquisas voltadas para o estudo dos problemas sociais e das instituições voltadas para a busca de suas soluções. (IGREJA, 2017, p.16) Na pesquisa quantitativa buscou-se grau de conhecimento da população pelotense do assunto reintegração social, assim como seu posicionamento frente as mesmas. Sobre esse modelo de pesquisa, Fonseca defende que: Diferentemente da pesquisa qualitativa, os resultados da pesquisa quantitativa podem ser quantificados. Como as amostras geralmente são grandes e consideradas representativas da população, os resultados são tomados como se constituíssem um retrato real de toda a população alvo da pesquisa. A pesquisa quantitativa se centra na objetividade. Influenciada pelo positivismo, considera que a realidade só pode ser compreendida com base na análise de dados brutos, recolhidos com o auxílio de instrumentos padronizados e neutros. A pesquisa quantitativa recorre à linguagem matemática para descrever as causas de um fenômeno, as relações entre variáveis, etc. A utilização conjunta da pesquisa qualitativa e quantitativa permite recolher mais informações do que se poderia conseguir isoladamente. (FONSECA, 2002, p. 20). Para tanto, através de programas de cálculo de amostragem de pesquisas quantitativas e baseando-se na população pelotense estimada pelo IBGE em 2019 – 342.405 habitantes – aplicamos 230 questionários. Foi considerado um grau de confiança de 90% e uma margem de erro de 5,41% para mais ou para menos. O questionário foi construído com 18 perguntas de respostas objetivas, com opções de resposta: sim, não e não sei opinar. A busca da pesquisa, em termos de abrangência e representatividade, foi a de relacionar tanto os agentes que atuam no campo carcerário pelotense, quanto as pessoas diretamente atingidas pelas escolhas feitas em termos de políticas públicas na questão prisional. O uso de entrevistas qualitativos em combinação com questionários quantitativos pode traçar um um cenário que se aproxima mais da realidade, conforme afirma Igreja: O método qualitativo pode ser de fundamental importância para auxiliar à pesquisa quantitativa na definição de suas categorias e na elaboração de seus questionários e suas variáveis. Muitas vezes, as categorias usadas estão distantes da compreensão dos sujeitos do estudo. Uma pesquisa exploratória qualitativa antes da elaboração de uma pesquisa de maior amplitude quantitativa pode auxiliar nesse processo de compreensão do fenômeno a ser estudado. Além disso, desenvolvida de maneira conjunta à pesquisa quantitativa, pode contribuir para a explicação de acontecimentos que surgem nas coletas de dados quantitativos e que parecem se desviar 7 do previsto e para ilustrar com estudos de casos fenômenos que acontecem de maneira global ou mesmo exceções que podem ser observadas. (IGREJA, 2017, p.17) 1. ARTE E DEMOCRATIZAÇÃO DO CONHECIMENTO JURÍDICO 1.1 Conexões entre Direito e Arte Não cabe a este trabalho a difícil tarefa de definir o que é arte, campo de conhecimento e de produção cultural humana que explora, também, seus próprios pressupostos. Esta definição já demanda esforço suficiente para os pesquisadores da área e exigiria um desvio das reais intenções deste trabalho. O historiador da arte Jorge Coli, em seu livro “ O que é arte? ”, afirma: Dizer o que seja a arte é coisa difícil. Um sem-número de tratados de estética debruçou-se sobre o problema, procurando situá-lo, procurando definir o conceito. Mas, se buscamos resposta clara e definitiva, decepcionamo-nos: elas são divergentes, contraditórias, além de frequentemente se pretenderem exclusivas, propondo-se como solução única. (COLI, 1981, p. 7) A arte, como artefato cultural produzido pelo homem em determinado contexto, pode vir carregado de múltiplas proposições, instigar um olhar crítico ou mesmo servir como instrumento sensibilizador deste olhar sobre algum aspecto da realidade concreta. Essa propriedade do campo artístico de provocar o expectador a olhar o mundo de maneira diversa, torna a arte um instrumento que pode enriquecer a percepção para com os diferentes fatos sociais. Apesar desses méritos, são escassos os estudos que cruzam Direito e arte, e os que existem são predominantemente voltados à literatura. 8 1.2 Conexão da obra com o Direito O Brasil e a América Latina, de maneira geral, possuem uma forte tradição musical voltada para a canção, influenciados da colonização portuguesa, espanhola e francesa. Em nosso país, misturou-se, primeiramente, com os ritmos de nossos povos originários e dos escravos negros trazidos da África e, posteriormente, digeriu de forma antropofágica as influências advindas do resto do mundo, principalmente as norte-americanas. Essa forma musical antiga – de origem incerta, mas popular pelo menos desde os trovadores medievais – é, geralmente, uma composição que carrega um texto entoado de maneira melódica pela voz humana, podendo ou não ser acompanhado por uma base de instrumentos harmônicos e/ou rítmicos e é muito mais ligada às práticas populares que ao universo da música erudita, apesar de não ser uma exclusividade. Essa essência proporciona à canção possibilidades narrativas muito mais diretas que as formas instrumentais e, tradicionalmente, foi veículo para a propagação de mitos e histórias reais. No Brasil do século XX e XXI, a canção popular tornou-se, principalmente a partir do samba e da bossa-nova, uma importante ferramenta para o debate intelectual e, o compositor moderno tornou-se um crítico de todos os aspectos da vida, do político ao cultural. Naves, ao comentar o papel desempenhado pelo artista moderno e, por extensão, pelo compositor moderno, afirma: Internamente, à maneira do artista moderno, o compositor passou a atuar como crítico no próprio processo de composição; externamente, a crítica se dirigiu às questões culturais e políticas do país, fazendo com que oscompositores articulassem arte e vida. O compositor popular passou a operar criticamente no processo de composição, fazendo uso da metalinguagem, da intertextualidade e de outros procedimentos que remetem a diversas formas de citação, como a paródia e o pastiche. E ao estender a atitude crítica para além dos aspectos formais da canção, o compositor popular tornou-se um pensador da cultura. (NAVES, 2010, p. 20) Nesse papel de crítico da vida social, política e cultural do país, o compositor repercutiu os diferentes contextos perpassados no século XX. É interessante observar que as canções, no Brasil, foram moldadas segundo o contexto de sua produção, tanto na forma quanto no conteúdo. Sobre esta relação entre a obra e o contexto social em que é produzida, o filósofo Celso Favaretto pontua: [...] arte hoje pode ser muitas coisas [..] não há um conceito de arte fechado. A arte é aquilo que você encontra como arte. O que quer dizer isso? A arte não pode ser avaliada sem considerar o lugar em que foi produzida, ou seja, em seu contexto (FAVARETTO, 2013, p.38). 9 O samba dos anos 1920 e 1930, de modo geral, surge como um gênero que intenciona criar uma identidade nacional, estimulado pelo governo Vargas, e parte da produção desta época resulta em textos de caráter ufanista. A bossa-nova apresentou uma versão “sofisticada” do samba, influenciada pela harmonia do jazz norte-americano e letras que falavam sobre a vida urbana no Rio de Janeiro, refletindo o otimismo com o crescimento econômico dos anos dourados do governo de Juscelino Kubitschek. As canções de protesto do fim dos anos 1960 e o surgimento da MPB na década seguinte repercutiam um ambiente político muito mais complicado, já que o país se encontrava submetido a um governo militar autoritário que cassou direitos políticos e fechou o congresso. O Rock brasileiro dos anos de 1980 transparece a alegria com a abertura democrática do país ao mesmo tempo em que expõe efeitos da globalização e da americanização da música popular brasileira. Essa simplificação dos diferentes momentos políticos e culturais do país certamente não dão conta da complexidade dos acontecimentos e nem de todas as manifestações musicais do período, mas indicam o diálogo que os compositores brasileiros do século XX estabeleceram com o ambiente sociocultural ao qual são contemporâneos. Partindo desta premissa, cabe a este trabalho um olhar especial ao Rap produzido no Brasil a partir do fim da década de 1980. O gênero musical é originário da Jamaica, mas popularizado nos Estados Unidos, e mistura levadas rítmicas com um discurso rítmico-poético rimado, muitas vezes engajado, de forma que nossa atenção estará voltada para o texto. O Rap nacional é tomado como a parte musical de uma cultura maior, o Hip Hop brasileiro – inspirado no movimento nascido nas periferias de Nova York, na década de 1970, e que é composto por diferentes manifestações como o grafitti e a dança break, por exemplo. No Brasil, a cultura Hip Hop e o Rap também são majoritariamente produzidos e veiculados nas periferias e trazem em sua essência os processos históricos aos quais essa parte da população é resultante. Os produtores desta cultura de rua são, em geral, homens e mulheres descendentes de sujeitos que foram escravizados como parte de um projeto colonizador, cujos traços perduram nas pirâmides sociais de seus países. Por ter nascido em comunidades majoritariamente negras, o rap é considerado um gênero musical representativo da diáspora africana no 10 Atlântico, que também abarca outras sonoridades, como o jazz, o blues, o samba e o soul. (MALMACEDA, 2017, p.4) As temáticas, as formas, as ferramentas utilizadas para a construção do texto no Rap são onde, geralmente, se encontra o maior interesse por parte dos estudiosos da canção brasileira. Segundo Naves (2010), antropólogos que se debruçam para entender o Rap, associam-no à figura do bricoleur. Sobre as particularidades da linguagem utilizada pelo Rap, Naves afirma: Em que pesem as semelhanças do artista modernista e do rapper como bricoleurs, radicaliza-se no Rap o procedimento da colagem. A própria linguagem do rap se estrutura a partir da colagem, levando o recurso às citações do repertório legado pela tradição (musical, cinematográfico, literário etc.) às últimas consequências. Ao agir desta forma, o rapper cria uma tensão entre a suposta referencialidade à realidade dura contida em sua narrativa e o procedimento intertextual que costuma adotar. (NAVES, 2010, p.136) O Rap, portanto, relaciona-se com outras formas e contextos artísticos – por adesão ou ruptura – e se utiliza de recursos estéticos de modo a aumentar seu impacto na percepção do ouvinte. Além disso, discurso do Rap é, muitas vezes, narrativo e realista, apresentando natureza híbrida: “ao mesmo tempo recria genealogias e valoriza fortemente a comunidade de origem e a negritude, busca incorporar esses segmentos, via informações modernas, à nova ordem mundial” (NAVES, 2010, p. 135). As narrativas entregues pelos rappers incorporam do épico à linguagem local, absorvendo, no Brasil, expressões relacionadas ao tráfico, à cadeia e à vida nas periferias através dos dialetos das próprias comunidades. O épico procura dar conta do tema das trajetórias tumultuadas, das dificuldades de percurso dos habitantes das periferias brasileiras que, tal como heróis míticos da tradição helênica, têm de se submeter a diversas provas para alcançar um objetivo; no caso a própria sobrevivência física e moral num meio extremamente pobre e violento (NAVES, 2010, p.139) A linguagem informal, ou coloquial, impede os acessos de grandiosidade característicos do épico e acentua a identidade própria e a cor local de cada região periférica. Os textos do Rap, portanto, condizem com os locais, circunstâncias e condições dos moradores das periferias de onde são produzidos, e esse retrato estilizado ganha um grande poder de circulação através do Rap, chegando ao lado de fora da periferia e dos muros das prisões. Ao pensar sobre o aspectos sociológicos do Rap e do Hip Hop. Malmaceda (2017) afirma: Pensando em classificação sociológica, o hip-hop é considerado uma ‘subcultura’, pois seus alicerces não condizem a um padrão hegemônico ou 11 encontram-se dentro do mercado formal: criam uma identidade para seus ouvintes que se distingue dos valores preconizados em discursos oficiais. O rap nasce dentro de periferias urbanas e não parece razoável pensá-lo de forma autotélica, tendo em vista que seu objetivo autodeclarado é interferir de forma política na cultura, buscando transformar as sociedades nas quais surge. (MALMACEDA, 2017, p.3) O Rap, consequentemente, é um importante veículo para a exposição de outras realidades brasileiras, muitas vezes invisibilizadas, e por isso torna-se um documento de grande valor para se estudar nossa sociedade através do olhar de seus excluídos e marginalizados. Através destas manifestações artísticas,são mostradas situações antes invisíveis ou disfarçadas pelos dados oficiais, sendo exemplo relevante disso o Rap “Diário de um Detento”, escrito pelo músico Mano Brown com colaboração do ex-detento Jocenir, em 1997, no qual é repercutida a rotina degradante dos detentos no sistema penitenciário nacional. A letra da canção retrata um pouco da vida no interior dos muros do sistema carcerário brasileiro e tem como foco o massacre de 111 detentos na Casa de detenção São Paulo, ocorrido em 1992, conhecido como “o massacre do Carandiru”. A obra teve grande alcance na época de seu lançamento e levou um retrato do sistema carcerário brasileiro a outros estratos sociais. O relato disseminado por “Diário de um detento” contrasta de maneiras elementares com os discursos oficiais sobre as políticas públicas voltadas para a segurança e para o sistema prisional, expondo o abismo existente entre a prática e o discurso político-institucional. Em entrevista, Jocenir – um dos compositores do “Diário” - denuncia que: “A maior parte das análises críticas que se faz ao sistema são feitas da calçada, olhando para a vitrine”(MEDIUM, ---). O ex-detento também escreveu livros em que relata, de forma ainda mais aprofundada e detalhada sua experiência no cárcere. Sobre a escrita originada no cárcere, é interessante observar a dinâmica estabelecida entre o produtor e o leitor. É exposta a existência de um olhar duplo por parte do narrador, que mostra “uma adesão ambivalente aos códigos carcerários (dos homens presos) e ao dos homens livres” (MALMACEDA, 2017, p. 16): É possível estabelecer um esquema que funcionaria assim: a sociedade (o mundo dos homens livres) recusa aos presos condições mínimas de cumprimento de penas, mas, ao mesmo tempo, tem curiosidade pela experiência carcerária e cria uma demanda por suas narrativas (admitindo-se aqui que a circulação dos livros não se de apenas dentro dos presídios). Os homens encarcerados que escrevem, por sua vez, querem 12 opor-se a essa mesma sociedade (que os expõe as piores condições de cumprimento de sua pena), ao “sistema”, mas querem também de algum modo pertencer a esse mundo, cujas leis reconhecem em sua normatividade. (MALMACEDA, 2017, p.13) O relato épico de quase 8 minutos começa, logo após a anunciação do local e da data, com tom de denúncia e desabafo, em primeira pessoa: “Aqui estou mais um dia/sob o olhar sanguinário do vigia/você não sabe como é caminhar, com a cabeça na mira de uma HK/ metralhadora alemã, ou de Israel/estraçalha ladrão que nem papel”. Assim inicia o percurso quase cinematográfico desta canção, que joga com o tempo ao anunciar “Aqui estou mais um dia” e, no decorrer da canção “Faltam só, um ano, três meses e uns dias”. Passado e futuro são usado na letra como recursos que colaboram com a narrativa de forma a inserir o ouvinte/leitor no pesadelo vivido pelo narrador. Para Garcia (2017, p.179), Diário de um Detento” (Mano Brown/Jocenir), contudo, é uma obra em que a lírica mal se equilibra frente a uma épica bem acentuada, de tal forma que o lirismo aí permanece sobretudo por conta da intensidade das vivências cantadas pela voz principal. A característica talvez possa ser generalizada para todo o rap que participa do hip hop, como já se notou, na medida em que o vínculo com o movimento pressupõe a comunicação de experiências concretamente vividas pela comunidade ou pela classe social do rapper. (GARCIA, 2007, p. 179) A característica ressaltada pelo autor, ou seja, o vínculo da narrativa com a realidade experienciada pelos sujeitos que escrevem e cantam é o ponto de intersecção entre a proposta artística de “Diário de um detento” e campo do direito. O que interessa analisar na pesquisa apresentada é uma discussão acerca das condições carcerárias e as políticas de reinserção e ressocialização dos apenados e ex-apenados a partir do ponto de vista das partes envolvidas nesse contexto, na cidade de Pelotas, de modo a contribuir com reflexões para o estudo do Direito Penal e Processual Penal relativos à questão carcerária. 13 2. Etapas do Processo Penal Brasileiro Tendo em vista a grande diferença entre teoria e prática presente no relato da canção anteriormente referida, busca-se em um primeiro momento, um entendimento e uma explanação teórica geral de como decorre o processo de execução penal. Na execução da pena todas as garantias constitucionais incidentes ao Direito Penal e Processual Penal precisam ser observadas para proporcionar o respeito aos direitos individuais do aprisionado. O processo penal se inicia na regulamentação da realização da sentença, que está presente nos Códigos Penal e de Processo Penal, seguido pela execução penal que constitui-se no cumprimento da sentença que impõe a pena ou medida de segurança, e repara, não somente nos pontos relacionados com o cárcere, mas também com a reabilitação do apenado, de modo que objetive a implementação do mando já incorporado na sentença paralelamente à reinserção social do apenado ou internado. Portanto, os sentenciados à pena têm direito à ampla defesa, ao duplo grau de jurisdição, ao contraditório, ao devido processo penal, à retroatividade de lei mais benéfica, à individualização e humanização da pena, e aos princípios da anterioridade e da legalidade. Com a sentença transitada em julgado é que se principia essa relação jurídica, que será concluída com o cumprimento da pena ou o manifestação de alguma causa extintiva da punibilidade. Em seu artigo 1º, a Lei de Execução Penal fala sobre a finalidade para a qual é designada: “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.” (LEI DE EXECUÇÃO PENAL, 1984, [s.p.]). Ou seja, o papel da execução penal é cumprir aquilo que foi determinado pelo juiz na sentença, não podendo alterá-la ou mesmo os fundamentos da condenação, prezando a integridade do apenado. A fase de conhecimento do processo passa a execução com o trânsito em julgado da sentença, que se torna título executivo judicial. Em um primeiro momento, pode-se dizer que, com a sentença penal condenatória transitada em julgado, finda-se o processo de conhecimento e forma-se o título executivo penal; com este, por sua vez, instaura-se o processo de execução. Na execução a sentença será cumprida, 14 ou seja, a pena privativa de liberdade, restritiva de direitos ou monetário serão executadas. 2.1 O Processo Penal de acordo com a Legislação Brasileira Características da lei penal: a lei, fonte única do direito penal, tem as seguintes características: a) é exclusiva, isto é, somente ela pode criar delitos, fixando as penas; b) é obrigatória, fazendo com que todos os seus destinatários a acatem, sejam os órgãos do Estado, seja o povo; c) é inafastável, somente sendo revogada por outra lei; d) é igualitária, prevendoaplicação idêntica a todos os seus destinatários, sem privilégios; e) é constitucional, devendo estar de acordo com a Constituição Federal, sob pena de não ser aplicada. (NUCCI, 2014, p. 36). O Direito Penal é então, “[...] o corpo de normas jurídicas voltado à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspondentes, bem como regras atinentes à sua aplicação.”(NUCCI, 2014, p. 16). Não, eu acho que o tema..., acho que o debate é importante, acho que é um direito crucial, porque quem gosta de Direito Penal, de Direito Criminal sabe que polícia trabalha, o MP trabalha, o judiciário trabalha na área criminal e qual é o destinatário final de todo trabalho? É a execução penal! No final, todos nós falamos “a polícia cuida, faz sua investigação tudo dentro da lei para não gerar nenhum algo, nenhum problema que venha macular aquela investigação. Ministério Público denuncia, com todo cuidado; o judiciário [preside] o processo, o Ministério Público faz o processo com todo o cuidado para não haver [novidades], respeita..., buscando respeitar todos os direitos do preso, todo..., um [devido] um processo legal; aí o destinatário final é a execução penal. Aí, a execução penal tem uma série de direitos que tem que ser respeitados e o que nós vemos? Em tese, eu..., isso o que a gente está vendo aí. Então o destinatário..., então chega na execução penal tudo o que a gente preservou, com cert..., talvez seja tudo jogado por água abaixo, entenderam? Então, o Estado tem que investir muito na execução penal, tem que recuperar o sistema prisional, mas o que a gente vê não é..., é ausência de interesse, ausência de investimentos. (PASSOS, José Olavo. Visão sobre Políticas Públicas Penitenciárias no Brasil. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Giordano Morocini. Pelotas, 10. out. 2019) Com base neste mecanismo jurídico, pode-se dizer haver uma tangível diferença entre o processo de conhecimento e o processo de execução da pena, por conseguinte se forma uma nova relação jurídica, onde o condenado não mais visa sua absolvição, mas somente procura uma forma mais tranquila para o cumprimento de sua pena, o respeito a seus direitos e a concessão dos benefícios legais a ele cabíveis, e, para ter acesso a tais, é necessário que o reeducando cumpra alguns deveres aos quais ele foi apresentado. A relação jurídica na execução penal é formada por direitos e deveres dos sentenciados com a administração e vice-versa. Sendo assim, o sentenciado faz uso de seus direitos, não suprimidos pela sentença 15 judicial transitada em julgado, e a administração adquire deveres para a garantia destes. Com isso em mente, percebe-se que os princípios pelo qual a execução penal é guiada, contidos no Código Penal; na Lei de Execução Penal; no Código de Processo Penal; e também na Constituição Federal, não podem de maneira alguma serem invocados com o objetivo de reduzir direitos ou justificar maior rigidez punitiva sobre os apenados. Logo: Ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei. Parágrafo único. Não haverá qualquer distinção de natureza racial, social, religiosa ou política. (LEI DE EXECUÇÃO PENAL, 1984, Art. 3º [s.p.]). Isto é, tudo que a lei não proíbe ou que a sentença não tirou da pessoa, lhe é assegurado, e, de modo algum, terá alteração no cumprimento da sua pena por motivos de questões sociais, políticas, religiosas ou de natureza racial, o tratamento será igual para todos indivíduos que estiverem em situações equivalentes. Deste modo, há um processo para a categorização dessa situações, disposto no Artigo 5º da Lei de Execução Penal, o qual diz que “Os condenados serão classificados, segundo os seus antecedentes e personalidade, para orientar a individualização da execução penal.” (LEI DE EXECUÇÃO PENAL, 1984, [s.p.]), e que, de acordo com o Artigo 6º desta mesma lei, tal processo será realizado pela Comissão Técnica de Classificação, seguindo as regras discorridas no artigo 7º. Porém, mesmo com a individualização da pena, todos os ingressantes do sistema prisional não perdem a dignidade mesmo que, o Estado tenha determinado com base na lei que o direito à liberdade e o preceito financeiro sejam retirados momentaneamente, necessitando de acesso à saúde, à alimentação, à educação. No entanto, alguns direitos relativos à progressão da pena podem ser retirados ou reduzidos, como em caso de o apenado cometer falta grave, que dependendo do tipo da falta, é determinado diferentes tipos de regimes disciplinares, interferindo no andamento da progressão da pena, como o fixado na legislação, em relação aos tipos de faltas: Art. 50. Comete falta grave o condenado à pena privativa de liberdade que: I - incitar ou participar de movimento para subverter a ordem ou a disciplina; II - fugir; III - possuir, indevidamente, instrumento capaz de ofender a integridade física de outrem; IV - provocar acidente de trabalho; V - descumprir, no regime aberto, as condições impostas; VI - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei. VII – tiver em sua posse, utilizar ou fornecer aparelho telefônico, de rádio ou similar, que permita a comunicação com outros presos ou com o ambiente externo. 16 Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao preso provisório. Art. 51. Comete falta grave o condenado à pena restritiva de direitos que: I - descumprir, injustificadamente, a restrição imposta; II - retardar, injustificadamente, o cumprimento da obrigação imposta; III - inobservar os deveres previstos nos incisos II e V, do artigo 39, desta Lei. E em relação às consequências dessas faltas: Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. § 1o O regime disciplinar diferenciado também poderá abrigar presos provisórios ou condenados, nacionais ou estrangeiros, que apresentem alto risco para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade. § 2o Estará igualmente sujeito ao regime disciplinar diferenciado o preso provisório ou o condenado sob o qual recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando. (LEI DE EXECUÇÃO PENAL, 1984, [s.p.]) A responsabilidade de determinar a execução dessas leis fica a cargo do juiz da execução, o qual inicia sua função com o trânsito em julgadoda sentença penal condenatória, sendo decretada pelas leis de Organização Judiciária de cada Estado. Ao magistrado compete algumas ações (LEI DE EXECUÇÃO PENAL, 1984), tais como aplicar leis posteriores que favorecem o apenado de casos já julgados aos mesmos, declarar a punibilidade extinta e decidir sobre alterações no curso da pena, e também alguns outros procedimentos referentes à pena e suas condições. Um dos tais procedimentos é a progressão de regime, que nada mais é do que o direito de toda pessoa condenada à pena privativa de liberdade possui, previsto no Código Penal, art. 33 § 2: § 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto; c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. Ou seja, é a possibilidade do apenado migrar do regime prisional em que ele está cumprindo a pena, para outro mais benéfico e, para isso, existem algumas 17 exigências para a contagem do tempo e o merecimento para a progressão. No Brasil, existem três diferentes regimes prisionais: o regime fechado, em que a pena é cumprida em estabelecimento de segurança média ou máxima, com probabilidade de trabalho no período diurno, mas repouso noturno em isolamento; o regime semiaberto, em que a pena é executada em colônia industrial, agrícola ou estabelecimento similar, sujeito a trabalho e sem uma vigilância tão direta; e o regime aberto, em que o cumprimento da pena se dá em albergue ou local similar, e consiste no senso de responsabilidade e autodisciplina do apenado, isto porque o local localiza-se em centro urbano e não possui impedimentos para a fuga. Para essa migração para outro regime ocorrer, o apenado precisa ter, além de um determinado tempo de pena, que é variável, alguns requisitos que precisam ser observados, tais quais: se o réu é primário ou reincidente e se o crime cometido é simples (todos dispostos no Código Penal) ou hediondo (estão todos elencados na lei Lei 8.072/90). A seguir uma tabela demonstrativa dos requisitos objetivos(LEI DE EXECUÇÃO PENAL, 1984, [s.p.]) para a progressão em cada caso: Réu primário Réu reincidente Crime simples ⅙ do cumprimento da pena ⅖ do cumprimento da pena Crime hediondo ⅙ do cumprimento da pena ⅗ do cumprimento da pena Além destes, há o requisito subjetivo, que é variável e se refere a um atestado emitido pelo Diretor do Estabelecimento Prisional no qual o apenado reside. Ou seja, não basta apenas cumprir o tempo determinado, o indivíduo tem que ‘merecer’ o direito à progressão. E, em casos de crimes contra Administração Pública, é necessário que exista reparo no dano causado ou que seja devolvido o produto do crime, com acréscimos legais. Importante ressaltar que, embora prescrito na lei a forma da progressão de regime ser transcorrida, há algumas diferenças na prática, já que nem sempre há casa de albergado ou colônia agrícola, e sendo assim, vagas insuficientes para a alocação dos apenados em determinado regime para o local adequado. Por tal motivo, com mais frequência têm sido atribuídas prisões domiciliares sob supervisão de tornozeleiras eletrônicas, conforme descrito 18 na Súmula Vinculante 56: “A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS.” Tais são os parâmetros: Cumprimento de pena em regime fechado, na hipótese de inexistir vaga em estabelecimento adequado a seu regime. Violação aos princípios da individualização da pena (art. 5º, XLVI) e da legalidade (art. 5º, XXXIX). A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso. 3. Os juízes da execução penal poderão avaliar os estabelecimentos destinados aos regimes semiaberto e aberto, para qualificação como adequados a tais regimes. São aceitáveis estabelecimentos que não se qualifiquem como “colônia agrícola, industrial” (regime semiaberto) ou “casa de albergado ou estabelecimento adequado” (regime aberto) (art. 33, § 1º, b e c). No entanto, não deverá haver alojamento conjunto de presos dos regimes semiaberto e aberto com presos do regime fechado. 4. Havendo déficit de vagas, deverão ser determinados: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado. (RE 641.320, rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 11-5-2016, DJE 159 de 1º-8-2016, Tema 423.) 2.2 Crítica à dificuldade da aplicação do Processo Penal com vista o previsto em lei. Levando em consideração a extensão territorial brasileira, a falta de instituições penitenciárias, a dificuldade de conseguir recursos com a própria condição econômica dos residentes carcerários, constituídos em sua maioria por apenados pobres, marginalizados e sem grau de ensino primário, e perante a realidade social do país, encontra-se dificuldades na aplicação de diversos dispositivos. Nota-se então que existe um certo distanciamento da Lei de Execução Penal em relação à realidade, sendo caracterizada como um serviço doutrinário a longo prazo, levantando pontos nela previstos e procurando um meio de viabilizá-los. Isto é, ela é avançada e perfeita, em sua maioria, pois em síntese, seu objetivo é de proporcionar uma ressocialização adequada ao apenado, porém nem sempre ele é atingido: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=11436372 http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4076171&numeroProcesso=641320&classeProcesso=RE&numeroTema=423 19 Do jeito que está formatado hoje, eu enxergo que a questão carcerária está completamente falida, no nosso país. Eu estou na VEC desde dois mil e doze e, pelo que eu noto, só tem piorado, né?! O que que... que que eu posso perceber é que o presídio é uma máquina de formar o exército, captar os presos para as facções criminosas. Não consigo ver nenhuma melhora. E eu..., até às vezes eu falo em palestras, coisas assim, que eu quando cheguei aqui eu trabalhei na VEC e na Vara Criminal. Então, a Vara Criminal que eu trabalhava era uma Vara Criminal nova e os presos, dedezoito, dezenove anos, caíam nessa Vara Criminal em razão da prevenção. E eram os primeiros delitos deles ali, então, eu comecei a ver a gurizada de dezoito, dezenove anos indo para o presídio – isso há sete anos! E eu continuo atendendo; eu saí da Vara Criminal, sigo só na VEC, eu continuo..., a maioria, assim, noventa por cento desses guris que ingressaram há sete anos com o primeiro delito seguem no sistema prisional e, hoje, já inserido dentro de facções. (SILVEIRA, Roberta da. Visão sobre o Sistema Penitenciário brasileiro. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Gabriel Arbes. Pelotas, 21. nov. 2019) Com essa ampla inserção de réus primários e prisões preventivas, surge uma nova questão, a superlotação, que, mesmo com muitas críticas que têm como objetivo denunciá-la, ainda permanece, no Brasil, uma visão conformista sobre o problema, pois não encontra-se uma jurisprudência e raramente acha-se textos doutrinários que tratam de maneira específica do tema. E, ainda, a superlotação nas casas prisionais, em grande parte se deve ao amplo ingresso de réus primários não violentos e sem antecedentes no sistema por posse de drogas por exemplo, mas não à métodos de re-socialização, de modo que o impacto na redução da violência seja extremamente baixo. Mas a maioria lá, gente, a maioria é chamado de mula, porque a droga é proibida, então, o traficante usa as pessoas pobres para serem mulas e elas caem no sistema e nunca mais retornam e pioram sua situação. Veja bem: um jovem da sua idade, você tem quantos anos, vinte...? vinte e três, ou mais jovem ainda do que você faz lá um caso com [inaudível], cometeu um crime, né?, juntou-se com a turminha da vila porque ele estava com dezoito anos e queria um tênis novo, queria..., mas na vila, na periferia não tem, né? Então, o que que aconteceu? Ele assaltou um posto de gasolina. Qual seria a atuação da justiça em um caso desse? Jogaram ele dentro – ele já tem dezoito anos, né?!, então... –, jogaram ele para dentro do sistema. Lá dentro ele foi cooptado pelo traficante. Quando ele saiu, dois anos depois, com a progressão, ele já estava com incumbência lá fora: de roubar, de matar e de vender droga, de traficar. Perdeu-se um menino! Um menino!! Que para mim é um menino, com dezoito anos é um menino! É um adolescente. Perdeu-se. Entende? Não seria o caso de uma justiça restaurativa? Não seria o caso de chamar esse menino e botar para ser ressocializado? No caso, socializado?!! Ou com penas alternativas ou com ele, sabe?, fazendo os encontros da justiça restaurativa? Vocês conhecem a justiça restaurativa, né? (FERRAZ, Cândida Rosa. Visão sobre Políticas Públicas Penitenciárias efetuadas no Presídio Regional de Pelotas. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Giordano Morocini. Pelotas, 16. Out. 2019) 20 Um dos meios de prevenção, denominada Justiça Restaurativa, que é uma técnica de resolução de violência e conflito que se baseia pela sensibilidade e criatividade a partir da escuta das vítimas e dos ofensores, têm estado em funcionamento há pelo menos dez anos, e se expandindo a cada dia e, que é atualmente uma ferramenta de trabalho judicial, extrajudicial e jurídico. Em Pelotas, por meio do Pacto Pelotas Pela Paz, é utilizada como “metodologia transversal de resolução pacífica de conflitos que será aplicada nas escolas e nos condomínios do programa Minha Casa Minha Vida, em parceria com o Poder Judiciário local.” (SEMINÁRIO PACTO PELOTAS PELA PAZ, PREFEITURA DE PELOTAS) . Dessa maneira que o índice da população carcerária eleve cada vez mais e não resolva de maneira efetiva a questão da segurança pública. Então, a gente tem, vamos dizer assim, no papel, acho que a gente tem, como a gente diz, a LEP é muito boa, né, mas, a LEP é perfeita, a gente não tem que arrumar ou poucas coisas teriam que se arrumar em relação a LEP, a questão é botar em prática. Em termos de políticas públicas penitenciárias, a gente tem vários planos, né, nacional..., plano nacional de política penitenciária, né, superando, contempla várias..., a própria questão do egresso, né, a gente tem várias políticas previstas para..., no papel. Mas colocar em prática é que se torna difícil. (GHIGGI, Marina. Visão sobre o Sistema Penitenciário brasileiro. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Ismael Lopes. Pelotas, 25. out. 2019) Eu penso que, que essa mudança esperada só vai acontecer quando a gente tiver uma mudança de mentalidade desde quando se prevê a lei, né? A gente aí um índice de criminalidade praticados por crimes que não violentos, e aí, acaba encarcerando; e isso aumenta essa ..., faz esse presídio ter superlotação, enfim, muita... muito uso da prisão preventiva, então a gente tem muito preso preventivo, muito preso preventivo – que é o preso sem condenação definitiva. E, digo, que se essa mentalidade mudasse em relação a [lá], quando se cria a lei ou quando se aplica, no caso as prisões preventivas, já seria um grande passo. (SANTOS, Mayra. Visão sobre o Sistema Penitenciário brasileiro. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Ismael Lopes. Pelotas, 25. out. 2019) Aproximadamente, cerca de 85,6% da população pelotense acredita que o sistema prisional não é eficaz e, cerca de 82,1% acredita que o país não cumpre seu papel de re-socializador. Ou seja, evidencia-se uma falta para com a sociedade brasileira e com a população carcerária - principalmente réus primários, pois é o primeiro contato -, no cumprimento do objetivo para com o qual a Lei de Execução Penal foi criada, que é o de devolver à sociedade o egresso reformado, preparado para uma vida em sociedade mais íntegra. É, eu acho que teria que ter uma re-estrutura muito grande, assim. Eu não, eu não tenho muita credibilidade no nosso sistema, mas não é nem pelo 21 sistema prisional, é por tudo que vem antes, né? Que nem eu digo assim: esses guris com dezoito anos que estão entrando no presídio por causa de drogas. Não tinham que estar entrando no presídio em razão de drogas, tinham que estar recebendo tratamento. Então, se não tiver uma prevenção, se não se tratar da parte preventiva, eu não vejo como melhorar. Esse primeiro ingresso no presídio tinha que ser muito cuidadoso porque ali é que está começando a vida da pessoa, se ele vai ser inserido em uma facção ou se ele vai ter uma chance, sabe, o que que ele quer, se ele tem suporte, sabes? (SILVEIRA, Roberta da. Visão sobre o Sistema Penitenciário brasileiro. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Gabriel Arbes. Pelotas, 21. nov. 2019) E, exatamente. E aí tu ficas pensando assim: tá, o sujeito traficava, bom, tráfico, beleza, é um crime, crime grave, tudo bem. Mas a gente pensa o seguinte, tá, e tantos outros crimes que são tão graves e a gente não tem que... não tem uma resposta com a prisão. Pega, por exemplo, os crimes tributários que lesam a sociedade como um todo, enfim, em milhões muitas vezes, né, e a gente vê, não tem uma resposta em termos de prisão paraesse tipo de crime. Então, o que a sociedade pensa como crime também é complicado. Parece que crime é só aquela criminalidade de rua, aquela criminalidade da pobreza. Então, tem..., essa questão da seletividade penal, ela é muito..., ela está introjetada na gente. Bom, eu contrataria alguém que sonega imposto de renda, né, mas eu não contrato quem está traficando. (GHIGGI, Marina. Visão sobre o Sistema Penitenciário brasileiro. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Ismael Lopes. Pelotas, 25. out. 2019) “A gente costuma dizer que os nossos presos não vem, eles voltam – é sempre os mesmos.” (GHIGGI, Marina. Visão sobre o Sistema Penitenciário brasileiro. [Entrevista cedida a] Gabriel Juliani e Ismael Lopes. Pelotas, 25. out. 2019) 22 3. Definição doutrinária de políticas públicas de reintegração social Desde a origem de sua existência, o homem visa caminhos mais fáceis para atingir os seus propósitos, desde os mais básicos como a alimentação e abrigado, até os desejos mais abstratos, como a realização pessoal e o status social. Dentre os brasileiros essa realidade está apresentada, e tendo em conta a conjuntura econômica de nosso país atualmente, indivíduos acabam se encaminhando para o mundo do crime. Parecendo uma opção viável ou até mesmo a única possibilidade de ascensão social, a vida em meio ao crime pode levar quem o pratica para dentro de uma cela do sistema carcerário. Dados Do Ministério da Justiça, com o Levantamento nacional de informações penitenciárias – INFOPEN, de 2014, trazem informações acerca dos números de encarcerados no Brasil e em outro país (ver tabela 1): Tabela 1: Número de apenados conforme levantamento do INFOPEN – 2014. O sistema penal brasileiro, atualmente, encontra-se visivelmente defasado e com seu prazo de validade vencido, este não consegue mais dar conta de tanta demanda, o Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo, aproximadamente 700 mil presos, atrás somente dos Estados Unidos da América, China e Rússia. O número de detentos cresceu 575,2% desde 23 1990, mantendo esse ritmo, em 2030, teremos 1,9 milhão de adultos encarcerados. (DE SOUZA, 2017) Sobre a problemática das prisões brasileiras e a possível prática da ressocialização, indo ao encontro das colocações de De Souza (2017): A função de ressocialização não é observada na realidade carcerária brasileira, uma vez que há aumentado cada vez mais a população carcerária e o preso ao sair da prisão não tem possui perspectiva de futuro. A prisão na maioria das vezes produz efeitos devastadores no presidiário, que às vezes sai de lá pior do que entrou. As instituições penais vigentes no país deveriam ter como finalidade a de punir e reeducar o preso recluso para só assim devolvê-lo para o convívio social, porém o que se observa de fato é que este objetivo não é concretizado atualmente e talvez nunca tenha sido, isso se deve ao fato de que alguns sistemas prisionais construídos no Brasil não são aptos para tal realidade, e assim por consequência, em vez dessa almejada reformulação e reeducação, a reincidência continua a crescer de forma alarmante e preocupante. A maioria dos detentos encontrados nas penitenciárias é reincidente […] em menos de alguns anos fora da prisão, cometem um novo delito retornando ao sistema prisional que já anda a cada mais lotado, e com apenas este fato (a constante reincidência dos detentos) se demonstra que não ocorre à verdadeira ressocialização que tanto o Estado profere a sociedade. (DE SOUZA, 2017). Ainda conforme De Souza, o sistema prisional encontra-se em um estado de caos: “é quase impossível vislumbrar que o mesmo ainda possa alcançar com êxito sua função prometida de ressocialização [...] já que nada é realmente feito fazendo com que muitos desses voltem à vida do crime.” (DE SOUZA, 2017) De acordo com a legislação brasileira, a pena privativa de liberdade deve ser executada de forma progressiva, no intuito de alcançar a gradativa recuperação social do condenado. No Brasil existem três tipos de regimes de cumprimento de pena: o regime fechado (ocorre em instituições prisionais de segurança máxima ou média, denominados), o regime semiaberto (ocorre em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar) e o regime aberto (cumprido em casa, ou local adequado) (ANDRADE et al., 2015). 24 Conforme o previsto na Lei de Execuções Penais (LEP): a assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade (LEP, 1984, art.10). Desta maneira, entende-se a ressocialização como o processo humanizado de tratamento ao apenado, ou seja, dá-se a estrutura humana e física para que este possa ver-se em sociedade, como sujeito integrador da comunidade. A terminologia “assistência”, presente na LEP, é destacada em Andrade et al (2015), pois, este termo substitui o uso da palavra “tratamento”, Tendo em vista que a assistência: “sugere prestação de serviços, a atenção e o apoio contínuos aos apenados. A assistência é definida como dever do Estado – capítulos II e III da LEP” (Brasil, 1984 in ANDRADE et al., 2013, p. 13). Ainda levando em consideração a discussão terminológica: “[…] o termo reintegração social pressupõe a igualdade entre as partes envolvidas no processo, já que requer a “abertura de um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão” (Baratta, 2007, p. 3). No Art. 10 da LEP está disposto que “a assistência ao preso e ao internado como dever do Estado objetiva prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade, estendendo-se ao egresso” (Brasil, 1984). A LEP ainda prevê, entre as atenções básicas que devem ser prestadas aos presos: assistência psicológica, educacional (Compreenderá a instrução escolar e a formação profissional do preso e do internado), jurídica (Destinada aos presos e aos internados sem recursos financeiros para constituir advogado), religiosa (Abrange liberdade de culto, e também, permitindo a participação nos serviços organizados no estabelecimento penal, bem como a posse de livros de instrução religiosa), social (Tem por finalidade amparar o preso e o internado e prepará-los para o retorno à liberdade), material (Consistirá no fornecimento de alimentação, vestuário e instalações higiênicas) e à saúde (Compreenderá atendimento médico, farmacêutico e odontológico). Dada à realidade carcerária no Brasil, existe a predominância de entendimento entre especialistas que a prisão em si não alcança o objetivo de ressocializar, sendo, então, difícil de ser defendida como modo ressocializador de correção (SALLA; LOURENÇO, 2014). 25 Se respeitarmos a classificação definida por Leandro Thurow, coordenador do projeto apac de Pelotas e um dos idealizadores do Projeto Municipal de Trabalho Prisional, A LEP (1984) prevê dois objetivos base para a questão prisional– privar de liberdade e ressocializar. Enxergo que a primeira tem sido executada de forma geral, ainda que questionável na medida em que não se tem conseguido impedir a privação da liberdade de comunicação (presença de celulares). Com relação à ressocialização, a mesma envolve questões bastante amplas dependendo do que entendemos fundamental ao processo. Seria dar condições de trabalho? Fomentar a aceitação dos egressos na sociedade? Ensinar regras de convivência? Valores? Fato é que o sistema prisional no RS tem apresentado série histórica de reincidência criminal de egressos sempre acima dos 70%. Percentual que evidencia a não resolutividade nas questões preventivas. No estudo de caso “O Desafio da Reintegração Social do Preso: Uma Pesquisa em Estabelecimentos Prisionais”, realizado no ano de 2015, promovido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), pesquisadores em pesquisa de campo constataram a presença de diferentes visões acerca da reintegração social por parte dos operadores do direito entrevistados de maneira anônima. Nesta pesquisa o problema em questão foi dado pelo questionamento “qual a compreensão que os atores das experiências investigadas tinham sobre a ideia de ressocialização?” e se “eles acreditavam na possibilidade de reintegração social do detento”. (ANDRADE et al, 2015, p. 30). Antes de adentrarmos em breve análise sobre o trabalho citado acima, é prudente consideramos, en passant, a ideia de Foucault sobre o tema do aprisionamento e a relação desta com os operadores do direito. Tratando sobre a na obra “A Verdade e as Formas Jurídicas”, para o autor importa compreender como o discurso jurídico produz “efeitos de verdade”, sendo estas "práticas judiciais" definidoras da relação do homem com a verdade. (OLIVEIRA; FERIANI, 2013, p. 382) Conforme (Oliveira e Feriani, 2013), para além de julgar e punir, promotores, advogados e juízes classificam e julgam crimes, teorizam sobre variadas questões. Estes operadores do direito, em última instância, definem o que é certo e o que é o errado; o normal e o anormal; o injusto e o injusto. Além das leis, ainda existem 26 normas sociais que, apesar de não escritas, são consideradas em desfechos de crimes. O juiz de execução penal “A” citou que “nem todos os presos teriam vocação para reintegrar à sociedade”, a existência de “pessoas ruins”, “de índole criminosa” e de pessoas “convictas de que sua vida é no crime”. Os exemplos citados pelo operador A, segundo comenta, não são de pessoas que podem ser transformadas. É necessário frisar também que a reinserção do sujeito na comunidade é trabalho não somente do Estado, pois se trata de um tema de alta complexidade e que engloba o desejo de ser uma nova pessoa, à família e a sociedade. Em outro exemplo que este estudo traz, o juiz de execução penal “B” cita a diferença entre “bandidos” e “trabalhadores”. Há aqui, de novo, a presença de pessoas boas e pessoas ruins compondo a população carcerária. Dentre os operadores do direito entrevistados no estudo de caso aqui referenciado, foi constatado que todos defendem uma visão humanizada dos presídios, a necessidade do cumprimento da LEP, além da aproximação das famílias dos apenados e da sociedade. Então, notasse uma defesa da importância do cumprimento das necessidades básicas à vida da pessoa em cárcere e, também, na possibilidade de reintegração social através de politicas públicas humanizadas. Em suma, conforme este estudo de 2015 relata, dentre todos os operadores da execução penal entrevistados tiveram posicionamentos que se dividiam entre os que entendiam que a ressocialização dependia da vontade individual de transformação e, para outros, que a ressocialização dependia não apenas do desejo pessoal mas, também de oportunidades. A ideia de que o fim da ressocialização reforçaria o caráter meramente punitivo da pena imposta ao condenado, ficando estes apenas no cárcere, excluídos do convívio em sociedade, perdendo por completo sua autonomia e livre-arbítrio; tendo sua personalidade anulada – por extensão, sendo incapacitados de voltar a uma vida fora da prisão. 27 Tanto sob o prisma da integração social como do criminoso, a melhor prisão é, sem dúvida, a que não existe, uma vez que não há nenhuma prisão boa o suficiente para atingir a reintegração. Para Baratta (2007), nenhuma dessas duas posições é aceitável. Para o autor, a prisão, do modo como se apresenta, é de fato incapaz de promover a ressocialização; ao contrário, o que ela tem produzido realmente são obstáculos ao alcance deste objetivo. No entanto, apesar deste reconhecimento, sustenta que o intuito não deve ser abandonado, mas reconstruído e, nesta reconstrução, propõe a substituição dos termos ressocialização e tratamento pelo de reintegração social. A seu ver, ressocialização e tratamento denotam “uma postura passiva do detento e ativa das instituições: “são heranças anacrônicas da velha criminologia positivista que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como “boa” e aquele como “mau” (BARATTA, Op. cit., p. 3). Baratta também apresenta que a ressocialização precisa ser ponderada de acordo com o seu conceito sociológico, melhor dizendo, deve ser adquirida não por meio da pena, mas buscá-la mesmo com a presença dela, procedendo de modo a modificar as circunstâncias de estadia na penitenciária, de maneira menos precária. Além disso, dentre os argumentos utilizados, o autor ressalta a importância da individualização da reforma, considerando o presidiário não como um número e parte das estatísticas, não atuando de forma apenas coativa no fato do crime, mas sim, avaliando o indivíduo com relação às causas da sua criminalidade. Ainda, o autor explica que a infraestrutura penitenciária, com muros altos e grades, dificulta a ressocialização do detento, uma vez que o seu distanciamento impede a consciência de reabilitação social. Além disso, o autor comenta que o apoio médico e psicológico, bem como o trabalho e a instrução profissional são fundamentais para o retorno do criminoso a vida em sociedade. Do mesmo jeito que, segundo o autor, o referido acompanhamento deve se dar de maneira contínua para detentos e ex-detentos, ponderando as circunstâncias de vida em que vive, a família, a comunidade etc. 28 Inclusive, Baratta apresenta que é necessário que a comunidade incorpore a normalidade e a ressocialização dos presos, uma vez que há, atualmente, muito preconceito acerca dos ex-detentos, destacadamente em relações trabalhistas. Em oposição, o termo reintegração social pressupõe a igualdade entre as partes envolvidas no processo, já que requer a “abertura de um processo de comunicação e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão” (BARATTA, Op. cit., p. 3). 4. Capítulo: Análise acerca das Políticasde Reinserção Social aplicadas no Presídio Regional de Pelotas em comparação com a Lei de Execução Penal 4.1 A concepção da Lei de Execução Penal com vistas à Reinserção Social e sua (não) efetivação por completo. Desde 1933, com a apresentação do Código Penitenciário da República, que estancou na instauração do Estado Novo, efetuam-se discussões no Poder Legislativo Brasileiro sobre o tratamento que o Direito de Execução Penal deveria receber, sobretudo acerca dos objetivos da sanção penal e como esta agiria no tocante ao apenado. Nesse sentido, em meio ao ambiente progressista e com intuito de estímulo a cidadania que entre 1987 e 1988 subsidiária a construção da Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã”, concebeu-se, em 1984, a vigente Lei de Execução Penal (LEP), compartilhando e complementando com a Carta Magna e com o Código Penal os desígnios pertinentes e necessários ao Direito de Execução Penal. Além da observância à constitucionalidade e coordenação de esforços entre os diplomas legais nacionais, a confecção da LEP visa atender anseios internacionais sobre a manutenção dos Direitos Humanos da pessoa em situação de cárcere, contidos nas regras mínimas para o encarceramento da ONU, entre outros dispositivos internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de San Jose da Costa Rica. 29 A partir disso, formulou-se a atual diretriz sancionatória penal brasileira, a qual busca, além de cumprir a determinação judicial, possibilitar que o indivíduo objeto do processo penal tenha a possibilidade de mudar sua situação social através de um processo executório da pena, conforme artigo 1º da LEP, com seu intuito explicitado na exposição de motivos: “Contém o artigo 1º duas ordens de finalidades: a correta efetivação dos mandamentos existentes nas sentenças ou outras decisões, destinados a reprimir e a prevenir os delitos, e a oferta de meios pelos quais os apenados e os submetidos às medidas de segurança venham a ter participação construtiva na comunhão social.” (EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS Nº 213, DE 9 DE MAIO DE 1983) Desse modo, configura-se cenário para que a prestação de assistência assuma papel fundamental no processo de execução penal, impondo ao estado dever de propiciar assistência de cunho material, educacional, laboral, médica e social, albergando tais auxílios a partir do princípio da dignidade da pessoa humano, contido no artigo 1º da Constituição de 1988, decorrendo deste os direitos subjetivos que ocasionam o aporte, imprescindível, do Estado ao apenado, traduzido no artigo 1º da Lei de Execução Penal. Assim, tal argumento é verificado no pensamento do autor Roig: “Levando-se em consideração que o Estado Republicano e Democrático de Direito brasileiro possui como fundamento a dignidade da pessoa humana (e sua correspondente humanidade das penas), compete aos juristas e às agências jurídicas impedir que a habilitação desmesurada e irracional do poder punitivo e executório – típicos do Estado de Polícia – prejudique os objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da CF), erradicação da marginalização e redução das desigualdades sociais (art. 3º, III, da CF) e promoção do bem de todos (art. 3º, IV, da CF). Surge daí a tese central da teoria redutora de danos na execução penal, aqui defendida: a existência de um autêntico dever jurídico-constitucional de redução do sofrimento e da vulnerabilidade das pessoas encarceradas, sejam elas condenadas ou não.” (ROIG, 2018, p.14) Assim, conforme exposto pelo professor Roig e de acordo com a teoria da redução de danos, o Estado assume papel precípuo na minimização dos abalos inerentes ao indivíduo em situação de cárcere, visto que, segundo o próprio autor, é: “A visão redutora da execução penal, aqui sustentada, está de acordo que a pena não pode ser um meio para resolver problemas, porque ela mesma é um problema social, que não anula o dano do crime (dialética hegeliana), mas sim duplica a danosidade do evento delitivo. De fato, conforme ventilado pela penologia revisionista, a pena nada mais é do que uma voluntária prática de exclusão social” (ROIG, 2018, p.15) 30 Posto isso, com o intuito da garantia dos direitos não atingidos pela pena, são produzidas Políticas Públicas decorrentes do artigo 10º da LEP, como o Plano Estratégico de Educação no âmbito do Sistema Prisional (PEESP): “As Diretrizes Nacionais para a Oferta de Educação para Jovens e Adultos em Situação de Privação de Liberdade nos Estabelecimentos Penais, que vinham sendo discutidas desde o Seminário Nacional de 2007, foram finalmente aprovadas – inicialmente pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), em março de 2009, e depois pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), em março de 2010. Em novembro de 2011, a presidente Dilma Rousseff assinou o Decreto Presidencial (nº 7.626) que instituiu o Plano Estratégico de Educação no âmbito do Sistema Prisional (Peesp) com a finalidade de ampliar e qualificar a oferta de educação nos estabelecimentos penais” (INEP, 2018, p.12) Além do PEESP, há a Política Nacional de Saúde Prisional, instituída pela A Portaria Interministerial nº 1777, de setembro de 2003 “O Plano Nacional de Saúde prevê a inclusão da população penitenciária no SUS, garantindo que o direito à cidadania se efetive na perspectiva dos direitos humanos. O acesso dessa população a ações e serviços de saúde é legalmente definido pela Constituição Federal de 1988, pela Lei nº 8.080, de 1990, que regulamenta o Sistema Único de Saúde, pela Lei nº 8.142, de 1990, que dispõe sobre a participação da comunidade na gestão do Sistema Único de Saúde, e pela Lei de Execução Penal nº 7.210, de 1984.” (Ministério da Saúde, 2003, p.10) Também foi dedicada atenção a produção de plano executório para compreender e efetivar os direitos da mulher nos estabelecimentos prisionais, materializado no “Projeto de Efetivação dos Direitos das Mulheres do Sistema Penal” (BRASIL, 2012). Ademais, outras planos estratégicos com vistas à correta manutenção de direitos e, posteriormente, propiciar a boa reintegração ao convívio social, sendo suscitados pela LEP, como a resolução conjunta 01/2014 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT), em consonância com os “Princípios de Yogyakarta”, busca estabelecer os parâmetros para o acolhimento da população LGBT em situação de privação de liberdade. Outra política que se deve citar é a lei 10216/2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, servindo de subsídio de como atender esta parcela da sociedade quando em situação de cárcere. Como auxílio de assistência social, pode-se citar o auxílio reclusão, sendo este importante meio de promoção da rede de seguridade social, como cita o autor Rodrigo Roig: “Neste contexto, vale destacar que a concessão de
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