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Dissertação de mestrado sobre liberdade em Locke

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO 
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS 
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA 
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Rodrigo Ribeiro de Sousa 
 
 
 
 
A Liberdade no “Segundo tratado sobre o governo” de John Locke 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
São Paulo 
2011
 
 
 
 
Rodrigo Ribeiro de Sousa 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
A Liberdade no “Segundo tratado sobre o governo” de John Locke 
 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada ao 
programa de Pós-Graduação em 
Filosofia do Departamento de 
Filosofia da Faculdade de Filosofia, 
Letras e Ciências Humanas da 
Universidade de São Paulo, para 
obtenção do título de Mestre em 
Filosofia, sob a orientação do Prof. 
Dr. Alberto Ribeiro Gonçalves de 
Barros. 
 
 
 
São Paulo 
2011
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Quanto a isso, Hidarnes, não poderias dar-nos bom conselho, 
disseram os Lacedemônios, pois tentaste o bem que nos 
prometes; mas aquele que gozamos, não sabes o que é; 
conheceste o favor do rei; mas da liberdade nada sabes – que 
gosto tem, como é doce”. 
 
Etienne de La Boétie, “Discurso da Servidão Voluntária” 1. 
 
 
 
 
 
“Passante, aos espartanos dizei, 
que aqui jazemos, em obediência à lei”. 
 
Simónides de Céos, Epitáfio de Leônidas, em Termófila. 
 
1
 Cf. Etienne de LA BOÉTIE. “Discurso da Servidão Voluntária”. São Paulo: Brasiliense, 1999. 
 
 
 
Agradecimentos institucionais 
 Ao Departamento Jurídico do Centro Acadêmico “XI de 
Agosto”, na figura de seus combativos estagiários, que me inspiram a defesa 
concreta do ideal de liberdade. 
 Ao Centro Acadêmico “XI de Agosto”, pelo auxílio com a 
impressão das versões preliminares desta dissertação. 
 
 
Agradecimentos acadêmicos 
 Ao professor Alberto R. G. de Barros, pela criteriosa 
orientação. 
 Aos examinadores da banca de qualificação, professores 
Maria das Graças de Souza e Milton Meira do Nascimento, pelas pertinentes 
críticas e sugestões. 
 Aos amigos e pesquisadores Emerson Ribeiro Fabiani, 
Frederico Lopes de Oliveira Diehl e Lauro Joppert Swensson Jr., pela leitura crítica 
e pela análise sistemática desta dissertação. 
 Ao amigo e professor Adjair de Andrade Cintra, pelas vezes 
em que me substituiu na atividade docente, permitindo-me uma maior dedicação 
na etapa de finalização desta dissertação. 
 À Manuela Schreiber Silva e Sousa, pela judiciosa e atenta 
revisão. 
 
 
Agradecimentos pessoais 
 Ao amigo Tiago Rossi, pela fraternal compreensão nos 
momentos de abstração indispensáveis ao desenvolvimento deste trabalho. 
 À Manuela, pelo apoio incondicional. 
 A meu pai, pelo exemplo de luta pela vida. 
 
 
 
RESUMO 
 
SOUSA, Rodrigo Ribeiro de. “A liberdade no „Segundo Tratado sobre o governo‟ 
de John Locke”. 134 p. Dissertação de Mestrado – Faculdade de Filosofia, Letras 
e Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São 
Paulo, 2011. 
 
 
Na galeria de retratos da história, John Locke é apresentado com inúmeras 
facetas, que vão desde os rótulos de “pai do iluminismo” e “expoente do 
constitucionalismo liberal” a insígnias como a de “ideólogo da nascente burguesia” 
ou de “populista majoritário”. De forma subjacente a cada um dos contraditórios 
rótulos atribuídos a Locke, repousa, invariavelmente, uma diferente interpretação 
do conceito de liberdade enunciado no “Segundo tratado sobre o governo”. Diante 
de tão variadas interpretações da noção de liberdade para Locke, o propósito 
deste trabalho é analisar o conceito de liberdade enunciado no “Segundo Tratado”, 
a fim de destacar os argumentos que permitem e sustentam cada uma dessas 
visões. Para atingir esse objetivo, a dissertação é composta de dois capítulos. No 
primeiro, é analisada a liberdade exercida pelos indivíduos no estado de natureza. 
No segundo, analisa-se a enunciação da noção de liberdade política para Locke. 
Na conclusão, as noções de liberdade natural e liberdade política são 
relacionadas, com a apreciação do conceito geral de liberdade descrito por Locke 
no “Segundo tratado sobre o governo”. 
 
 
Palavras-chave: liberdade, liberdade natural, liberdade política, lei natural, direito 
natural, republicanismo, Locke. 
 
 
 
ABSTRACT 
 
SOUSA, Rodrigo Ribeiro de. “The freedom in „Second treatise of government‟ of 
John Locke”. 134 p. Thesis (Master Degree) – Faculdade de Filosofia, Letras e 
Ciências Humanas. Departamento de Filosofia, Universidade de São Paulo, São 
Paulo, 2011. 
 
 
In the portrait gallery of history, John Locke is presented with many masks, ranging 
from the labels of "begetter of the Enlightenment" and "exponent of liberal 
constitutionalism" to "ideologist of the rising bourgeoisie" or "majoritarian populist". 
Labels as varied result, invariably, from different interpretations of the concept of 
freedom enunciated in the "Second Treatise of Government". Given such different 
interpretations of the concept of freedom for Locke, the purpose of this study is to 
analyze the concept of freedom enunciated in the "Second Treatise" in order to 
highlight the arguments that allow and support each of these visions. To achieve 
this objective, the dissertation consists in two chapters. At the first chapter, 
freedom is analyzed from the perspective it is exercised by individuals in the state 
of nature. In the second, the articulation of the concept of political freedom for 
Locke is discussed. In the conclusion, the notions of natural freedom and political 
freedom are related, with the approach to the general concept of freedom 
described by Locke in the "Second Treatise of Government". 
 
 
Keywords: freedom, natural freedom, political freedom, natural law, republicanism, 
Locke
 
 
 
SUMÁRIO 
 
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 9 
 
CAPÍTULO I - A LIBERDADE NATURAL ............................................................ 21 
1.1. - ESTADO DE NATUREZA. .......................................................................................................... 22 
1.2. - LEI NATURAL: DO “SEGUNDO TRATADO” AOS “ENSAIOS SOBRE A LEI DE NATUREZA”. ............. 39 
1.3. - PROPRIEDADE ........................................................................................................................ 56 
1.4. - LIBERDADE NATURAL. ............................................................................................................ 61 
 
CAPÍTULO II - A LIBERDADE POLÍTICA ............................................................ 64 
2.1 - SOCIEDADE POLÍTICA. ............................................................................................................. 66 
2.2 - CONSENTIMENTO E PODER FIDUCIÁRIO. .................................................................................... 78 
2.2.1. - Soberania Popular ........................................................................................................ 89 
2.3. - PODER POLÍTICO. ................................................................................................................... 98 
2.3.1. - Rebelião e direito de resistência. ............................................................................... 104 
2.4. - LIBERDADE POLÍTICA. ........................................................................................................... 116 
 
CONCLUSÃO ..................................................................................................... 123 
 
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................. 130 
 
 
 
 
Lista de abreviações 
 
“Segundo tratado sobre o governo”: abreviado por “Segundo Tratado” 
 
“Ensaios sobre a lei de natureza”: abreviado por “Ensaios” 
 
“Primeiro tratado sobre o governo”: abreviado por “Primeiro Tratado”
9INTRODUÇÃO 
 
 Na galeria de retratos da história, John Locke é apresentado, 
conforme alerta John Dunn2, com inúmeras facetas, que vão desde os rótulos de 
“pai do iluminismo” e “expoente do constitucionalismo liberal” a insígnias como a 
de “ideólogo da nascente burguesia” ou de “populista majoritário”. 
 Richard Ashcraft3, por exemplo, acredita que o pensamento de 
Locke é o de um revolucionário radical de esquerda, ao passo que C. B. 
Macpherson4 sustenta que o “Segundo Tratado” forneceu uma justificativa 
conservadora para a dominação de classe da burguesia ascendente5. J. W. 
Gough, por sua vez, considera que Locke está no meio do caminho entre as duas 
posições extremas na política, inclinando-se ligeiramente para a esquerda6. 
 A inclusão do pensamento de Locke em tão variado espectro 
de orientações ideológicas não deve ser explicada apenas pela inquestionável 
riqueza de seus textos políticos, devendo ser atribuída principalmente às 
ambiguidades de seus argumentos. 
 Tais ambiguidades – que tantas disputas permitem no âmbito 
dos mais variados conceitos da teoria política de Locke – não devem ser 
 
2
 John DUNN, The political thought of John Locke – An historical account of the argument of the “Two 
Treatises of Government”. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p. 5. 
3
 Cf. Richard ASHCRAFT, Revolutionary Politics and Locke's Two Treatises. Princeton: Princeton 
University Press, 1986. 
4
 Cf. C. B. MACPHERSON. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes a Locke. Rio de 
Janeiro: Paz e Terra, 1979. 
5
 Cf. Ron BECKER. The ideological commitment of Locke: freemen and servants in the “Two Treatises of 
Government”. In: History of political thought. Vol. XIII, n 4, 1992, p. 631. 
6
 John W. GOUGH John Locke´s political philosophy: eight studies. Oxford: Clarendon Press, 1973. 
10 
 
interpretadas, por sua vez, como salienta D. A. Lloyd Thomas7, como frutos de 
uma mente obscura ou como resultado de contradições internas, devendo ser 
consideradas, antes, como indispensáveis aos propósitos para os quais o 
“Segundo Tratado” foi escrito. 
 De fato, o “Segundo Tratado” foi escrito como um trabalho de 
persuasão política e não simplesmente como um texto acadêmico, o que fez com 
que Locke deixasse em aberto, em diversas passagens, sua posição em relação a 
questões controversas, de modo a permitir diferentes interpretações e evitar, 
assim, o afastamento de possíveis aliados. 
 Dessa forma, ainda que as convicções políticas que deram 
origem ao “Segundo Tratado” tenham sido estruturadas por Locke antes da 
Revolução de 1688, e que, conforme salienta Gough8, tal obra não deva ser lida 
como mera justificativa teórica do movimento que levou à coroação de Guilherme 
de Orange, é inegável que muitos dos elementos da teoria política de Locke 
vieram a coincidir com os princípios apregoados na Revolução Gloriosa, o que lhe 
valeu o rótulo de “peça de ocasião”9. 
 A vinculação direta da teoria política desenvolvida por Locke 
nos “Tratados” com os acontecimentos de 1688, que rendeu à obra o status de 
defesa teórica da Revolução Gloriosa, foi, em grande parte, reforçada pelo próprio 
Locke, que ainda no prefácio expressou o desejo de que sua obra pudesse servir 
 
7
 D. A. L. THOMAS, Locke on government. Londres: Routledge, 2006, p. 10. 
8
 J.W. GOUGH. Introdução. In: John LOCKE, Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos, 
Petrópolis, Vozes, 1994, p. 9. 
9
 Para M. CRASTON, a desvinculação dos “Tratados” do rótulo segundo o qual teriam sido concebidos como 
justificativa póstuma da Revolução Gloriosa não importa em negar a sua natureza de “pièce d’occasion”, pois 
em tendo sido escritos dez anos antes de sua publicação os “Tratados” devem ser vistos como uma peça de 
uma ocasião diferente, isto é, como uma obra escrita não depois da Revolução, para justificá-la, mas antes da 
Revolução, para promovê-la. Cf. John Locke: a biography. Londres: Longmans, Green and Co, 1957. 
11 
 
para “instaurar o trono de nosso grande restaurador, nosso atual rei Guilherme”10, 
objetivo que coincide com os propósitos defendidos pelos partidários da 
supremacia do parlamento em relação ao rei11 e que se tornaram dominantes na 
política inglesa após o sucesso da Revolução. 
 O propósito declarado por Locke não deve ser confundido, 
contudo, com a motivação do autor para o desenvolvimento de sua teoria política, 
cujos aspectos essenciais já haviam sido elaborados muito antes do sucesso da 
Revolução. 
 Assim, ainda que as conclusões políticas decorrentes do 
“Segundo Tratado” tenham inegavelmente servido aos objetivos revolucionários, 
tal qual pretendido por Locke, o rigor metodológico do autor e a forma de 
desenvolvimento de seus argumentos12 desvinculam a obra do estrito contexto da 
Revolução Gloriosa, erigindo a teoria política de Locke a uma definitiva – e 
destacada – posição na história da filosofia política moderna. 
 
10
 Apud GOUGH, op.cit., p. 9. 
11
 Grupo político que se tornou dominante na política inglesa a partir da Revolução Gloriosa e que foi 
designado posteriormente como “whig”. Formado por defensores da subordinação do Poder Executivo (o rei) 
ao Legislativo (o Parlamento), bem como de uma maior defesa da liberdade religiosa, era liderado por uma 
poderosa oligarquia de grandes proprietários e apoiado em amplas camadas da burguesia. Opunha-se aos 
defensores da monarquia absoluta e da primazia da Igreja Anglicana, que foram designados posteriormente 
por “tories”. Em que pese muitos autores façam referência aos defensores dessas correntes pela designação 
que vieram a adquirir posteriormente (“whigs” e “tories”), tal denominação não será utilizada nessa 
dissertação, a fim de impedir a associação de tais grupos com a ideia de partidos políticos, incabível no 
período em que a teoria política de Locke foi concebida, evitando, assim, eventuais anacronismos. 
12
 Victor GOLDSCHMIDT sustenta, no clássico Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos 
sistemas filosóficos, que a filosofia se explicita em movimentos sucessivos no decorrer dos quais produz, 
abandona e ultrapassa ideias ligadas umas a outras em uma ordem de razões. A adequada interpretação dos 
sistemas filosóficos consiste em apreender essa ordem de razões de acordo com o propósito do autor, jamais 
separando as teses dos movimentos que elas produziram. Cf. Victor GOLDSCHMIDT. Tempo histórico e 
tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos. In: A religião de Platão. São Paulo: Difusão Europeia 
do Livro, 1963, p. 139-147. 
12 
 
 De fato, conforme sustenta Peter Laslett, os “Tratados” foram 
provavelmente escritos dez anos antes de sua publicação, isto é, em 1680, oito 
anos antes do desembarque de Guilherme de Orange em Torbay13. 
 A identificação do período em que os “Tratados” foram escritos 
e a desvinculação da teoria de governo de Locke do rótulo de “peça de ocasião”, 
desenvolvida para justificar a Revolução Gloriosa, não importa, porém, na 
negação do propósito de Locke de interferir na política inglesa de seu tempo14, o 
que explica, nesse sentido, a ocorrência da maior parte das contradições e das 
ambiguidades presentes no texto que, conforme preceitua Thomas15, são uma 
forma de permitir a adesão à sua teoria de possíveis aliados políticos. 
 Por esse motivo, embora a tentativa de superação dessas 
ambiguidades deva ser feita, inicialmente, por meio da interpretação cuidadosa do 
texto, em um esforço analítico voltado a reconstruir a coerência do argumento, 
diante da peculiar característica do “Segundo Tratado”, tal coerência apenas pode 
 
13
 Por meio da análise dos argumentos sustentados por Locke nos dois “Tratados”, LASLETT afirmaque os 
tratados devem ter sido escritos simultaneamente, tendo ambos como alvo – e não apenas o primeiro – as 
teses sustentadas por Robert Filmer no Patriarca. Assim, LASLETT identifica, em várias passagens do 
“Segundo Tratado”, argumentos que seriam desenvolvidos por Locke como tentativa de contraposição aos 
argumentos de Filmer em defesa da teoria paternalista e despótica do governo. Além disso, LASLETT destaca 
uma série de passagens dos “Tratados” em que seria possível identificar-se indiretamente o momento em que 
as obras foram escritas. Entre essas passagens, destacam-se as referências de Locke ao “rei Jaime” (§§ 133 e 
200 do “Segundo tratado”), que só podem ser corretamente compreendidas se forem tomadas como alusões a 
Jaime I e não a Jaime II, o que indicaria que teriam sido escritas antes de 1685, ano da coroação de Jaime II. 
Cf. Peter LASLETT, John Locke – Two treatises of government: a critical edition with an introdution and 
aparatus criticus. Cambridge: Cambridge University Press, 1960. 
14
 Profundamente atrelado ao conde de Shaftesbury, de quem era conselheiro pessoal, Locke comungava da 
maior parte das ideias propugnadas por ele e seus seguidores, muitas das quais representam a base dos 
argumentos desenvolvidos nos dois “Tratados”. 
15
 D.A.Lloyd THOMAS, Locke on government. Londres: Routledge, 2006, p. 9-10. 
13 
 
ser obtida, em algumas hipóteses, por meio do recurso ao contexto histórico, 
conforme sugere Dunn16. 
 Embora outras formas de abordagem desses problemas 
possam ser admitidas17, a tentativa de elucidar as ambiguidades contidas no 
“Segundo Tratado” será empreendida neste trabalho por meio da combinação dos 
dois elementos acima descritos, isto é, pela harmonização entre o texto e o 
contexto em que este foi elaborado, de modo a evitar dois dos equívocos mais 
frequentes no estudo das ideias políticas, tal qual descritos por Jean-Fabien Spitz: 
a dificuldade de “entrar no texto”, e a incapacidade de “sair do texto”18. 
 Nesse sentido, o esforço analítico que se procurará 
desenvolver se inicia com o reconhecimento de que, de forma subjacente a cada 
um dos contraditórios rótulos atribuídos a Locke, repousa, invariavelmente, uma 
diferente interpretação do conceito de liberdade enunciado no “Segundo Tratado”. 
 
16
 Reconhecendo ser impossível “impor uma ilícita coerência expositiva ao processo histórico como um 
todo”, DUNN se propõe a estudar a obra política de Locke por meio de uma abordagem que, embora 
“analítica em sua ambição”, procura elucidar as incoerências de seu pensamento pelo recurso ao 
“macrocosmo do processo histórico” e à “explanação biográfica”, dirigindo-se aos motivos que levaram 
Locke a escrever, dizer e publicar o que conhecemos dele. Cf. DUNN, op. cit., p. 5-6. 
17
 Lena HALDENNIUS indica três formas de resolução das ambiguidades presentes no “Segundo Tratado”. A 
primeira delas consiste em simplesmente constatar, diante das incoerências e inconsistências do texto, que o 
projeto político de Locke é fracassado, por ser incapaz de construir coerentemente a argumentação. A segunda 
reconhece a impossibilidade de resolução dessas inconsistências por meio da simples análise do texto, o que 
impõe ao intérprete a necessidade de recorrer à história ou à biografia para explicá-las. A última delas funda-
se no esforço de reconstrução parcial do texto, de modo a “analisar se a coerência é possível”. Cf. Locke and 
the non-arbitrary. In: European Journal of Political Theory. London: Sage publications, 2003, p.261. 
18
 Para SPITZ, a filosofia política é uma disciplina essencialmente histórica, mas não pode ter um interesse 
puramente arqueológico. O estudioso deve recorrer ao passado em busca dos fundamentos indispensáveis à 
formulação do conceito estudado no presente, mas deve explorar o passado com atenção ao fato de que a 
linguagem do passado não mais coincide com a linguagem do presente. Para tanto, deve conhecer o contexto 
do passado e a sua linguagem, colocando-se “à escuta” para que possa identificar para quem o autor escreve e 
contra quem escreve. Por outro lado, deve estar atento ao fato de que os conceitos e problemas possuem uma 
lógica indissociável do argumento interno do texto, motivo pelo qual não se deve “forçar” os conceitos na 
tentativa de explicar determinadas nuances do contexto. Cf. Jean-Fabien SPITZ, La liberté politique - Essai 
de généalogie conceptuelle. Presses Universitaires de France, p. 08-10. 
14 
 
 Assim, se para Macpherson a teoria política de Locke “fornece 
uma base moral à apropriação burguesa”, pois “apagou a incapacidade jurídica 
pela qual a apropriação capitalista havia sido, até então, entravada”, tal conclusão 
se deve à peculiar compreensão conferida pelo autor à ideia de liberdade para 
Locke, como sendo resultado da “supremacia moral do indivíduo”, que faz com 
que a liberdade seja erigida ao status de direito individual inalienável, o que impõe 
à autoridade política o dever de não interferência e possibilita ao indivíduo o 
exercício de um “direito individual de apropriação”, que “subrepuja quaisquer 
reivindicações morais da sociedade” 19. 
 Por outro lado, na recusa de Locke em aceitar que a esfera 
política “apareça como a fonte única de todas as normas comuns”, tal qual 
enunciado por Spitz, reside a ideia de que a liberdade enunciada por Locke institui 
um “individualismo de responsabilidade ética”, fundado em uma moralidade 
comum delineada pela lei da natureza, que se apresenta como “instrumento de 
proteção” contra o arbítrio do poder político20. 
 As inúmeras interpretações da noção de liberdade de Locke 
explicam a estéril tentativa de inseri-lo em categorias ideológicas 
predeterminadas. Assim, por exemplo, os liberais reclamam sua formulação do 
conceito de liberdade como uma máxima dessa tradição, por suas implicações 
 
19
 MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo, de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro: 
Paz e Terra, 1979, p 233. 
20
 Cf. SPITZ, op. cit., p.12. 
15 
 
para o conceito de liberdade negativa, no sentido de não-interferência, tal qual 
enunciado por Isaiah Berlin21. 
 Com efeito, para Berlin, embora o termo liberdade seja de 
grande “porosidade”, o que permite a coexistência de um grande número de 
acepções, dois sentidos centrais podem ser identificados para a sua conceituação: 
o sentido negativo e o sentido positivo22. No primeiro sentido, a liberdade política é 
definida negativamente e está associada ao espaço em que o indivíduo pode agir 
sem a obstrução ou a interferência de outros indivíduos ou grupo de indivíduos. 
Ainda que esse espaço de ausência de interferências possa ser delimitado por 
uma fronteira de maior ou menor extensão, a liberdade decorrente dessa ausência 
é sempre uma liberdade “de” alguma obstrução e que concede ao indivíduo uma 
determinada esfera de ação individual23. 
 No sentido positivo, a liberdade é concebida, segundo Berlin, 
como derivada do desejo do indivíduo de ser senhor de sua própria vida e 
instrumento de seus próprios atos de vontade. Trata-se da liberdade “para” viver 
uma determinada forma de vida, independentemente da vontade de outrem24. 
 Para além da identificação com a ideia de liberdade negativa, 
nos moldes enunciados por Berlin, mais recentemente, contudo, a teoria política 
de Locke tem sido associada a uma noção positiva de liberdade, no sentido de 
 
21
 Cf. Isaiah BERLIN, Two concepts of liberty. In: Four essays on liberty. Oxford: Oxford University Press, 
1969, p. 3. 
22
 Para BERLIN, a liberdade negativa está relacionada com a resposta à pergunta “Qual é a área em que o 
sujeito – uma pessoa ou um grupo de pessoas – está ou deve ser deixado para fazer ou ser aquilo que é capaz 
de fazer ou ser, sem a interferênciade outras pessoas?” A liberdade positiva, por sua vez, está relacionada 
com a resposta à pergunta “O que ou quem é a fonte de controle ou interferência que pode determinar a 
alguém que faça ou seja uma coisa em vez de outra coisa?” Segundo o autor, as duas questões são claramente 
diferentes, muito embora as respostas a cada uma delas possam ser sobrepostas. 
23
 Cf. BERLIN, op. cit., p. 3. 
24
 Idem, ibidem, p. 8. 
16 
 
autorrealização moral ou racional, da qual é testemunho a interpretação proposta 
por Mark Goldie25. 
 Destacando o conteúdo moral imposto pela lei da natureza, 
Goldie, por exemplo, afirma que para Locke, "a verdadeira liberdade consiste em 
uma vida regida pelo intelecto racional, e não pela escravidão das paixões”26, o 
que aproxima o conceito de liberdade de Locke da noção de liberdade para agir e 
se autodeterminar, própria à liberdade positiva. 
 A oposição entre liberdade negativa e liberdade positiva pode 
ser vislumbrada na separação, enunciada por Benjamim Constant, entre a 
liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos27. 
 Para Constant, nesse sentido, a liberdade dos antigos 
consistia no exercício da soberania, que fazia com que a liberdade do corpo social 
fosse concebida como compatível com a completa submissão do indivíduo à 
autoridade do todo. A liberdade dos modernos, por outro lado, consiste no 
“exercício pacífico da independência privada”, isto é, nas “garantias concedidas 
pelas instituições a esses privilégios”28. Trata-se, assim, de uma liberdade “de”, 
em que lei deve ter uma atuação mínima, restrita a garantir a independência 
individual, e não de uma liberdade “para”, que é típica dos antigos. 
 
25
 Mark GOLDIE, Introduction. In: Two Treatises of Government. Londres: Everyman, 1993, apud Lena 
HALDENNIUS, Locke and the non-arbitrary. In: European Journal of Political Theory. London: Sage 
publications, 2003, p. 265 
26
 Cf. GOLDIE, op.cit., p. 25. 
27
 Cf. Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos. In: Revista Filosofia Política 2, Porto Alegre: 
L&PM, 1985, p. 9-25. 
28
 Cf. Idem, ibidem, p. 15. 
17 
 
 Analisando as origens29 e as consequências30 da distinção 
entre essas duas espécies de liberdade, Constant conclui não ser mais possível 
desfrutarmos da liberdade dos antigos, pois as relações entre os indivíduos se 
transformaram de tal maneira que o que se reconhece na sociedade antiga não 
deve ser imitado pela sociedade moderna, que possui instituições e relações 
sociais completamente distintas da sociedade antiga. 
 Segundo Constant, os antigos fazem com que os indivíduos 
sejam escravos da sociedade, ao passo que a liberdade dos modernos assenta-se 
na fruição de sua independência privada. Nesse sentido, os modernos têm maior 
apego à sua liberdade e não desejam sacrificá-la. Já os antigos, ao sacrificarem a 
sua liberdade aos direitos políticos “sacrificavam menos para obter mais”, 
enquanto, “fazendo o mesmo sacrifício, nós daríamos mais para obter menos”31. 
 Da concepção de Constant sobre a liberdade dos modernos 
deriva, assim, a mais completa enunciação do conceito liberal de liberdade 
política, que tem na identificação do indivíduo como o construtor do todo – e não 
do todo como o suporte do indivíduo, tal qual decorre da concepção organicista 
vigente na antiguidade – e, consequentemente, no respeito à liberdade individual, 
 
29
 As origens dessa distinção podem ser atribuídas a quatro motivos: a) a maior extensão geográfica dos 
territórios das sociedades políticas modernas em comparação com os das pólis gregas; b) a alteração da 
concepção da guerra, que de principal ocupação para os antigos passou a ser excepcional para os modernos, 
que cultuam a paz como essencial às exigências do comércio; c) a existência da escravatura entre os antigos, 
que não mais é aceita entre os modernos; d) o surgimento do comércio como a principal atividade dos 
modernos, que torna os indivíduos mais desejosos de uma liberdade individual e aproxima as nações. 
30
 A distinção entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos tem por consequências a diminuição 
da importância da cidadania, em razão da grande extensão territorial dos Estados modernos, bem como a 
diminuição do tempo dedicado ao ócio e o aumento do tempo dedicado ao comércio (o nec otio), o que 
dificulta a participação política. 
31
 CONSTANT, op. cit. p. 15. 
18 
 
que deve ser garantida por uma atuação mínima da lei, os seus dois principais 
pilares. 
 Para além da contraposição entre as noções de liberdade 
positiva e negativa, que decorre da oposição entre as ideias de liberdade dos 
antigos e liberdade dos modernos, o conceito de liberdade enunciado por Locke 
pode ser situado, também, no âmbito do debate sobre a dupla filiação do conceito 
de liberdade política que, de acordo com a enunciação de Spitz32, possui uma 
dupla origem. A primeira, de configuração jurídico-liberal, decorre de uma 
concepção do indivíduo como portador de direitos que a política tem a função de 
garantir e assegurar. A segunda, que advém de uma reflexão sobre o estatuto de 
cidadania que devem possuir os indivíduos em uma sociedade política, concebe a 
política como um instrumento de proteção e engajamento, em que os indivíduos 
são tanto mais livres quanto mais aptos estão a controlar o meio social, material e 
humano em que vivem. 
 Segundo Spitz, até recentemente33, o conceito de liberdade 
moderna esteve órfão de um de seus pais, pois as ideias inspiradas pelo 
republicanismo e pelo humanismo cívico – que deram origem à filiação 
republicana do conceito de liberdade – foram obscurecidas em uma espécie de 
“face escondida” da história da filosofia política moderna. 
 Essa “face escondida”, contudo, começou a emergir 
vigorosamente no âmbito da filosofia política graças principalmente aos trabalhos 
 
32
 Jean-Fabien SPITZ, La liberté politique Presses Universitaires de France. 
33
 O obscurecimento da matriz republicana do conceito de liberdade perdurou até o colapso do “socialismo 
real” europeu, que apregoava como única alternativa à concepção liberal de liberdade o conceito marxista, 
que admite a possibilidade de existência de uma verdadeira liberdade política exclusivamente no âmbito de 
um outro sistema a ser construído pelos atores históricos. 
19 
 
de John Pocock34 e Quentin Skinner35 que, em seu esforço de obter as fundações 
históricas do pensamento político moderno, acabam por recuperar a concepção 
republicana da liberdade. 
 Para Spitz, diversos elementos da concepção republicana de 
liberdade podem ser identificados na teoria política de Locke, o que o 
desvincularia de rótulos tais como os de “arquiliberal” ou “pai do liberalismo”36. 
 Diante de tão variadas – e contraditórias – interpretações da 
noção de liberdade para Locke, o propósito deste trabalho será analisar o conceito 
de liberdade enunciado no “Segundo Tratado”, a fim de destacar os argumentos 
que permitem e sustentam cada uma dessas visões. 
 Para atingir esse objetivo, a dissertação é composta de dois 
capítulos. O primeiro consiste em um esforço de compreender a maneira pela qual 
Locke concebe, no “Segundo Tratado”, a liberdade exercida pelos indivíduos no 
estado de natureza. Para tanto, serão abordadas as noções de estado de 
natureza, propriedade e lei natural, que dão o contorno da concepção de liberdade 
natural para Locke, sintetizada ao final do capítulo. No segundo capítulo, será 
analisada a enunciação da noção de liberdade política empreendida por Locke 
nessa mesma obra, o que será realizado por meio do exame das noções de 
sociedade política, consentimento e poder fiduciário, e poder político, o que 
conduzirá, ao final do capítulo, à delimitação do conceito de liberdade política. Na34
 Cf. John POCOCK, The machiavellian moment: florentine political thought and the Antlantic Republican 
traditition. Princeton: Princeton University Press, 1975. 
35
 Quentin SKINNER, As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Saraiva, 2006. 
36
 SPITZ, op. cit., passim. 
20 
 
conclusão, as noções de liberdade natural e liberdade política serão relacionadas, 
com a apreciação do conceito geral de liberdade que resulta dessa relação. 
 
21 
 
 
CAPÍTULO I 
A liberdade natural 
 
 
 A liberdade natural é enunciada por Locke no capítulo II do 
“Segundo Tratado” como a liberdade exercida pelos homens no estado de 
natureza, ou seja, em um estado pré-político em que os homens possuem 
“perfeita liberdade para regular as suas ações e dispor de suas posses e pessoas 
do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir 
licença ou depender da vontade de qualquer outro homem”37. 
 Mais adiante, no capítulo IV, em que Locke aborda a questão 
da escravidão, a liberdade natural é definida da seguinte forma: 
“A liberdade natural do homem consiste em estar livre de 
qualquer poder superior sobre a Terra e em não estar submetido 
à vontade ou à autoridade legislativa do homem, mas ter por 
regra apenas a lei da natureza. (...) A liberdade, portanto, não 
corresponde ao que nos diz sir R. F., ou seja, uma liberdade para 
cada um fazer o que lhe aprouver, viver como lhe agradar e não 
estar submetido a lei alguma. (...) [A] liberdade da natureza 
consiste em não estar sujeito a restrição alguma senão à da lei 
da natureza” 38 (os destaques em negrito e sublinhados não constam 
do original). 
 Para Locke, portanto, trata-se da liberdade exercida pelo 
homem no estado de natureza, em que os homens não possuem qualquer 
 
37
 Cf. John LOCKE, Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 381-382. 
38
 Idem, ibidem, p. 401-402. 
22 
 
restrição ou interferência, exceto a da lei da natureza, que ordena a paz e o 
convívio da humanidade. 
 A precisa compreensão da noção de liberdade natural 
depende, assim, da análise da noção de lei natural, bem como da “condição 
natural dos homens”39, isto é, do estado em que os homens “são absolutamente 
livres para decidir suas ações”. 
 Nas seções subsequentes serão analisadas, portanto, as 
noções de estado de natureza, de propriedade e de lei natural, indispensáveis à 
delimitação do conceito de liberdade natural para Locke. 
 
1.1. Estado de natureza 
 
 Locke define o estado de natureza como o estado em que 
vigora a lei natural e no qual os homens vivem “juntos segundo a razão, sem um 
superior comum na terra com autoridade para julgar entre eles”40. 
 Inicialmente, deve-se destacar que o relato do estado de 
natureza e a conceituação da lei natural, com os quais Locke inicia a 
argumentação do “Segundo Tratado”, não se tratam de construções originais do 
pensamento político de Locke, mas de expedientes comuns aos tratados políticos 
escritos no mesmo período. A despeito disso, conforme sustenta Gough41, a 
sistematização e a consolidação desses conceitos, até então abordados de forma 
esparsa e por vezes imprecisa pelos autores de sua geração, constitui-se na 
 
39
 Op. cit., p. 83. 
40
 Op. cit., p. 92. 
41
 Introdução. In: LOCKE, op. cit., p. 15 
23 
 
principal contribuição da teoria política de Locke, que tem na noção de lei natural 
uma vigorosa reformulação de argumentos que perpassam toda a história das 
ideias políticas. 
 Essa formulação, conforme salienta Dunn42, decorre de um 
pressuposto rigidamente convencional, dotado de um nível de generalidade que o 
tornava inquestionável a quaisquer que fossem os interlocutores que Locke 
pretendesse alcançar. Trata-se de uma ideia de inspiração estoica e tomista, 
segundo a qual todo o cosmos é fruto da criação de Deus, que criou cada parte do 
universo com propósitos especificamente determinados para a finalidade do 
todo43. 
 Na concepção de estado de natureza, Locke pressupõe, 
assim, a noção de “grande cadeia do ser”44, em que cada espécie tem sua posição 
e sua graduação, e em que cada um dos elementos foi construído de forma a 
integrar-se à grande pintura formada pelo todo. Dotado de uma posição 
particularmente nobre, apenas abaixo dos anjos, o homem, nesse projeto divino, 
tem a necessidade de cooperar com seu semelhante de forma voluntária e 
autoconsciente45. 
 Ainda que possa parecer a mais pura banalidade, tal 
pressuposto é, segundo Dunn, de grande relevância para o projeto de 
demonstração da “verdadeira origem, extensão e finalidade do governo civil” que 
 
42
 Cf. DUNN, op. cit., p. 87-88. 
43
 Tal noção, que era, segundo Arthur LOVEJOY, muito provavelmente “a concepção difundida sobre a 
organização geral das coisas” trazia implícita uma visão da natureza segundo a qual a organização do cosmos 
é um reflexo da razão divina, que governa o universo. Cf. Arthur LOVEJOY, A grande cadeia do ser. São 
Paulo: Palíndromo, 2005, p. 7. 
44
 Cf. Arthur LOVEJOY, op. cit, passim. 
45
 Cf. DUNN, op. cit., p. 87-88 
24 
 
Locke lança em resposta ao “Patriarca”, de Robert Filmer46, pois os discursos de 
Locke e de Filmer são frequentemente incompreensíveis sem essa suposição, 
embora nenhum dos dois tenha se preocupado em descrevê-la, sequer 
superficialmente, exatamente por se tratar de uma noção amplamente aceita, a 
ponto de se tornar inquestionável47. 
 Tomando como pressuposto para a concepção de estado de 
natureza a ideia de “grande cadeia do ser”, Locke define, no capítulo II do 
“Segundo Tratado”, a lei natural como a lei “que a todos obriga”, identificando-a 
com a própria razão, que é, ela mesma, esta lei48. 
 Trata-se da lei que rege o estado de natureza, em que os 
homens são absolutamente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e 
de suas pessoas sem pedir a autorização de outro homem, nem depender de sua 
vontade, dentro dos limites estabelecidos por essa mesma lei. 
 Como um estado de liberdade e igualdade absolutas, em que 
ninguém possui mais que os outros, vigoram, no estado de natureza, as normas 
provenientes da razão, que se destinam à ordenação da paz e à conservação da 
humanidade, impedindo que os homens violem os direitos do outro, prejudicando-
se entre si. 
 
46
 Robert FILMER, Patriarcha and other writings. (Cambridge texts in the history of political thought). New 
York: Cambridge University Press, 1991. 
47 FILMER desenvolve, em seu “Patriarca”, um amplo esforço de fundamentação do direito divino dos reis a 
partir da descendência hereditária de Adão e dos patriarcas. O propósito de Locke, que é explicitado já na 
epígrafe do “Primeiro Tratado” é o de que sua obra sirva para que sejam “desmascarados e derrubados os 
falsos princípios de onde partem Sir Robert Filmer e seus adeptos”. Locke revela, assim, o empenho de 
refutar a principal doutrina propalada pelos defensores da monarquia absoluta, que derivavam o poder do rei 
da transmissão hereditária do poder paterno conferido diretamente por Deus a Adão. Cf. Segundo tratado 
sobre o governo civil e outros escritos, op. cit., p. 51. 
48
Cf. LOCKE, Dois tratados sobre o governo, op.cit., p. 384. 
25 
 
 São a observância e o respeito à razão, portanto, que 
conferem aos homens a perspectiva de sua independência e igualdade em 
relação aos demais seres humanos, impondo a norma segundo a qual nenhum 
homem pode lesar outro homem em sua vida, sua saúde, sua liberdade ou seus 
bens. 
 Nesse sentido, é da relação de igualdade que há entre “nós 
mesmos e aqueles que são como nós”49 que a razão natural extrai os preceitos e 
cânones para a direção da vida, em especial – conforme argumentodesenvolvido 
por Hooker50 e incorporado por Locke – o dever que têm os homens de se 
amarem mutuamente, pois o desejo do homem de ser amado impõe-lhe a 
obrigação de amar da mesma forma a seu igual, uma vez que deve ser aplicada 
uma medida comum para coisas iguais. 
 A igualdade e a liberdade são, assim, a base da reciprocidade 
que no estado de natureza determina todo poder e toda a competência que um 
homem possa vir a exercer sobre outro homem. 
 O respeito à razão obriga os homens, segundo Locke, à sua 
autoconservação e, na medida do possível e desde que a sua própria 
autoconservação não esteja ameaçada, a zelar pela conservação do restante da 
humanidade, impedindo a destruição da vida, da liberdade ou dos bens de outra 
pessoa51. 
 
49
 Op. cit., p. 384. 
50
 Richard HOOKER, Of the laws of ecclesiastical polity. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. 
51
 A exceção identificada por Locke para a não intervenção na liberdade de outra pessoa é a realização de 
justiça a um infrator da lei natural. Cf. op. cit., p. 85. 
26 
 
 A lei natural, que tem por objetivo a manutenção da paz e a 
conservação da humanidade, confere a todos os homens, assim, o poder de 
executá-la, punindo os transgressores da razão natural com pena suficiente para 
reprimir as violações, preservando o inocente e refreando o transgressor. 
 Esse poder de um homem sobre o outro, existente no estado 
de natureza, não é, porém, um poder arbitrário ou absoluto, limitando-se tão 
somente ao poder de infligir ao infrator, “na medida em que a tranquilidade e a 
consciência o exigem”52, uma pena proporcional à sua transgressão, de forma 
suficiente a assegurar a reparação e a prevenção. 
 E esse poder de punir pertence a todos os homens na medida 
em que a transgressão da lei da natureza é uma violação dos direitos de toda a 
espécie, representando uma ameaça à preservação de toda a humanidade e uma 
declaração de desobediência à reta razão, o que deve ser reprimido por todos os 
indivíduos. 
 A violação da lei da natureza representa, portanto, uma 
declaração de rompimento com os princípios da natureza humana, à qual está 
vinculado, em geral, um dano causado a outra pessoa. 
 Por essa razão, a cada transgressão da lei natural surgem 
dois direitos distintos: o direito de punição, a título de prevenção, que pertence a 
todos; e o direito de reparação, que pertence à vítima, pelo princípio da 
autopreservação. 
 Assim, por exemplo, Locke afirma que todo homem no estado 
de natureza tem o poder de matar um assassino, tanto para dar a outros o 
 
52
Cf. LOCKE, “Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos”, op. cit., p. 85. 
27 
 
exemplo das consequências da violação da lei natural, como para impedir outros 
ataques do mesmo assassino que, por ter renunciado à razão, declarou guerra a 
todo o gênero humano e por isso pode ser destruído assim como pode ser 
destruída uma besta selvagem com a qual a humanidade não pode viver em 
segurança53. 
 Para explicitar esse direito de destruir aquele que comete 
assassinato, que é conferido pela lei natural a qualquer pessoa, Locke lança mão 
da passagem do velho testamento54 em que Caim55, após assassinar o seu irmão 
Abel, declara seu temor de ser morto caso seja encontrado56. Para Locke, a 
declaração de Caim decorre da constatação de ter ele violado o princípio no qual 
está fundamentada a grande lei da natureza: “Quem derramar o sangue humano, 
pelas mãos humanas perderá o seu”. 
 Neste ponto, conforme salienta Dunn57, Locke inverte um 
raciocínio convencional, pois o direito de execução de outro homem era 
tradicionalmente descrito como próprio da autoridade política, uma vez que a 
proibição de matar um semelhante constitui expressamente um mandamento 
divino, que impõe ao homem até mesmo a proibição de matar a si mesmo. Para 
autores como Filmer, nesse sentido, a única maneira de compatibilizar a proibição 
 
53
 Cf. op. cit., p. 87. 
54
 Cf. Gênesis, Cap. IV. 
55
 De fato, um exemplo de indivíduos submetidos ao “estado de natureza” tal qual descrito por Locke é o dos 
irmãos Caim e Abel, que não estão submetidos à autoridade de nenhum outro homem, mas apenas à razão 
natural, concedida por Deus a seus pais, Adão e Eva. 
56
 Caim afirma “quem me encontrar, me matará”. 
57
 Cf. DUNN, op. cit., p. 89. 
28 
 
constante do mandamento com o poder de matar concedido à autoridade política 
é considerar que ambos apenas podem ser derivados diretamente de Deus58. 
 Para Locke, por outro lado, o direito de matar um criminoso 
decorre diretamente da lei da natureza, pois a violação da lei natural representa 
uma demonstração de renúncia à racionalidade inerente a essa lei, o que rebaixa 
o agressor a uma categoria inferior da ordem da criação, equiparando-o a uma 
“besta selvagem”, sobre a qual o homem exerce uma autoridade natural 
decorrente dos propósitos da criação. 
 Desse modo, o direito de execução de um criminoso é 
existente ainda no estado de natureza e deve ser deduzido da noção de grande 
cadeia do ser, em que as várias classes de criaturas foram dispostas por Deus de 
uma maneira tal em que as mais baixas devem servir aos propósitos das mais 
elevadas. Para tanto, Deus não apenas deu autoridade ao homem sobre toda a 
natureza animal, isto é, o direito de apropriar-se dela para sua própria 
subsistência, mas conferiu também ao homem um poder físico sobre essa 
natureza, a capacidade de implementar seus direitos. Na medida em que a 
violação da lei natural constitui uma renúncia à razão, rebaixando o agressor à 
condição animal, qualquer homem pode legitimamente executá-lo, como exercício 
de seu poder sobre as criaturas inferiores e em implementação da lei da natureza. 
 A fim de afastar os questionamentos acerca da existência de 
um estado de natureza e, consequentemente, da lei natural, Locke lança mão de 
dois exemplos. O primeiro refere-se ao estado em que se encontram os 
governantes das comunidades independentes, que não possuem nenhuma 
 
58
 Cf. FILMER, op. cit., passim. 
29 
 
convenção ou acordo a suprimir a liberdade e a igualdade mútuas. O segundo 
exemplo utilizado por Locke é a situação do estrangeiro. Para Locke, a punição de 
um estrangeiro só é admissível se for reconhecida a existência de um direito 
natural, pois a autoridade da lei nacional não tem qualquer efeito sobre o 
estrangeiro. 
 Dessa maneira, no capítulo II do “Segundo Tratado” Locke 
elabora a definição de lei natural e oferece também a concepção de estado de 
natureza, essenciais à compreensão da noção de liberdade natural. 
 Na sequência do “Segundo Tratado”, Locke identifica, no 
capítulo III, que embora o homem seja de tal forma livre e desfrute, no estado de 
natureza, do domínio absoluto de sua própria liberdade, sem suportar o ônus de 
submeter-se a quem quer que seja, o gozo de seus direitos naturais é, nesse 
estado, “bastante incerto e constantemente exposto às invasões de outros”59. 
 Dessa forma, embora no estado de natureza vigore a lei 
natural, que é passível de ser apreendida por todas as criaturas racionais, os 
homens são tendenciosos e “não são aptos a reconhecer o valor de uma lei que 
eles seriam obrigados a aplicar em seus casos particulares”60, o que torna esse 
estado carente de uma lei geral aceita e reconhecida pelo consentimento de 
todos. 
 Nesse estado, todos são reis da mesma maneira, “mas a 
maior parte não respeita estritamente, nem a igualdade nem a justiça”, o que torna 
o gozo dos direitos “muito perigoso e muito inseguro”, fazendo com que os 
 
59
 Cf. LOCKE, op. cit., p. 495. 
60
 Cf. LOCKE, op. cit., p. 157. 
30 
 
homensdesejem “abandonar esta condição, que, embora livre, está repleta de 
medos e perigos contínuos”61. 
 Além disso, falta no estado de natureza “um juiz conhecido e 
imparcial, com autoridade para dirimir todas as diferenças segundo a lei 
estabelecida”, pois como o julgamento das violações à lei natural compete, nesse 
estado, a todos os homens, a indiferença e a negligência podem diminuir a 
vigilância em relação às violações que afetem exclusivamente os outros homens, 
assim como a paixão e a vingança podem conduzir a excessos nos julgamentos 
em causa própria62. 
 O estado de natureza possui, nesse sentido, uma tendência a 
degenerar-se em estado de guerra em razão das injustiças decorrentes dos 
julgamentos em causa própria e da indiferença da maioria dos homens em relação 
à maior parte das violações da lei natural. 
 Uma aparente ambiguidade existente no conceito de estado 
de natureza é identificada por R. H. Cox63, que destaca que a concepção fornecida 
por Locke nos capítulos II e III do “Segundo Tratado” difere da fornecida no 
capítulo IX, em que a oposição existente entre o estado de natureza e o estado de 
guerra parece dissolver-se, aproximando-se muito da definição hobbesiana. 
 De fato, no capítulo IX, Locke indaga que “se o homem no 
estado de natureza é livre como se disse, se é senhor absoluto de sua própria 
 
61
 Cf. Idem, Segundo tratado sobre o governo civil e outros escritos, op. cit., passim. 
62
 Cf. Idem, ibidem, p. 157. 
63
 Cf. Locke on war and peace. Oxford: Clarendon Press, 1960. 
31 
 
pessoa e suas próprias posses, igual ao mais eminente dos homens e a ninguém 
submetido, por que haveria ele de se desfazer dessa liberdade?”64 
 A elucidação é feita na sequência: 
“A resposta evidente é a de que, embora tivesse tal direito no estado 
de natureza, o exercício do mesmo é bastante incerto e está 
constantemente exposto à violação por parte dos outros, pois que 
sendo todos reis na mesma proporção que ele, cada homem um 
igual seu, e por não serem eles, na sua maioria, estritos 
observadores da equidade e da justiça, o usufruto que lhe cabe da 
propriedade é bastante incerto e inseguro”65. 
 
 Conforme bem propõe José Santillán, essa aparente 
ambiguidade presente na noção de estado de natureza pode ser afastada pelo 
desdobramento da pluralidade natural em duas partes: por um lado, ela é tomada 
como uma forma pura, pacífica; por outro, trata-se de uma forma degenerada, 
conflituosa. O estado de natureza como condição de paz original tende a 
degradar-se em estado de guerra. O estado de natureza pacífico supõe uma 
racionalidade humana que observa as leis naturais (condição ideal); o estado de 
guerra (ou, como propõe Santillán, o estado de natureza belicoso) implica no 
abandono da racionalidade e na violação da lei natural (condição real) 66. 
 A exposição do estado de natureza efetuada por Locke no 
capítulo IX do “Segundo Tratado” seria, de acordo com essa leitura, apenas uma 
descrição do segundo aspecto da pluralidade natural dos homens, a condição real, 
que tende a degenerar-se em estado de guerra em razão das injustiças 
 
64
 Cf. LOCKE, Dois tratados sobre o governo, op. cit., p. 494-495. 
65
 Cf. Idem, Ibidem, p. 495. 
66
 Cf. José SANTILLÁN, Loke e Kant. Ensayos de Filosofía Política. México, Ed. FCE: 1992. 
32 
 
decorrentes dos julgamentos em causa própria e da indiferença da maioria dos 
homens em relação à maior parte das violações da lei natural. 
 As inconveniências a que estão expostos pelo “exercício 
irregular e incerto do poder” levam os homens, nesse sentido, à procura de abrigo 
sob as leis estabelecidas por um governo, a fim de que possam salvaguardar suas 
propriedades do arbítrio e da negligência alheios. 
 Para Locke, portanto, o objetivo principal da união dos homens 
em sociedades políticas e de sua submissão a governos é a preservação de suas 
vidas, liberdades e de seus bens, a que Locke designa genericamente por 
propriedade67, o que só pode ser realizado com o afastamento das carências e 
debilidades existentes no estado de natureza. 
 Desse modo, conforme será exposto no capítulo II desta 
dissertação, a constituição da sociedade política para Locke tem seu fundamento 
na necessidade de instituição das leis civis e de organização da justiça, que 
precisam ser empreendidas com o consentimento de todos e em conformidade 
com a lei da natureza, que continua a vigorar a despeito da criação da sociedade 
política. 
 Na teoria política de Locke, conforme analisa Rolf Kuntz68, a 
descoberta da condição natural dos homens dá-se pela redução da ideia de 
homem a um mínimo inteligível. Tal constatação surge como decorrência lógica do 
“bombardeio de limpeza” realizado com a contestação da obra de Filmer, que 
forneceu um importante ponto de referência: não há por que imaginar as relações 
 
67
 Idem, ibidem,. p. 156. 
68
 Cf. Rolf KUNTZ, Locke, liberdade, igualdade e propriedade. In: Revista do Instituto de Estudos 
Avançados da Universidade de São Paulo. Disponível em www.iea.usp.br/artigos 
http://www.iea.usp.br/artigos
33 
 
estáveis de comando como naturais, pois não são elas provenientes do poder 
divino e tampouco do poder paterno69. 
 Ao contrário de Thomas Hobbes, no entanto, Locke não 
concebe a condição natural como um estado de terror e medo constantes. 
Enquanto para Hobbes o estado de natureza é marcado pela ausência de lei e 
pela insegurança, em que os homens têm por únicos guias o seu próprio interesse 
e os seus apetites, para Locke o estado de natureza é caracterizado pelo império 
da lei da natureza, que deve ser compreendida como lei em sentido forte70. 
 Para Locke, nesse sentido, a lei natural não é uma norma de 
importância menor em comparação à lei positiva. Ao contrário: trata-se de uma 
norma plena de eficácia que se constitui no próprio fundamento de validade da lei 
positiva, e que deve ser instituída para o aperfeiçoamento dessa condição e para 
que possam ser afastadas tanto a indiferença da maioria dos homens no exercício 
da jurisdição recíproca quanto as injustiças provocadas pelos julgamentos em 
causa própria. 
 Locke descreve71, assim, a condição natural dos homens 
como um estado de liberdade e igualdade absolutas, em que ninguém possui mais 
que os outros e em que vigoram as normas provenientes da razão, que se 
destinam à ordenação da paz e à conservação da humanidade e impedem que os 
homens violem os direitos uns dos outros, prejudicando-se entre si. 
 
69
 Cf. KUNTZ, op. cit. p. 4. 
70
 Cf. KUNTZ, op. cit. p. 4. 
71
 Cf. John LOCKE, Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 384. 
34 
 
 A definição de Locke da lei natural como a lei “que a todos 
obriga”, e que se identifica com a própria razão, expressa, como salienta Kuntz72, 
a sua convicção sobre a existência de um direito fundado na natureza, 
manifestação de uma razão divina que governa todo o universo. Tal concepção 
demonstra uma clara filiação de Locke à concepção tomista de lei natural e 
constitui, em última análise, uma recuperação do argumento estoico73. 
 Dunn aponta, por sua vez, que ao contrário de exposições 
tradicionais da lei da natureza, em especial a concepção de Hobbes, o conteúdo 
dessa lei para Locke não é nem um pouco reducionista. Alguns outros termos 
claramente invadiram o conceito e, segundo o autor, não é preciso muita 
investigação para se identificar que o termo invasor é “Deus”. 
 Para Dunn, nesse sentido, o estado de natureza, em que 
“todos os homens estão naturalmente inseridos” não é uma condição associal, 
mas uma condição a-histórica. É o estado em que os homens foram postos por 
Deus no mundo. O estado de natureza seriaentão um tema para reflexão 
teológica, e não para pesquisa antropológica. 
 Desse modo, a matriz teológica subjacente à noção de lei 
natural funciona antes como um axioma interpretativo e não se reduz 
simplesmente a um conjunto de alegações de fato. 
 Entretanto, para Dunn, Locke lança mão, a partir do conceito 
de lei natural, de “duvidosos recursos da inferência”, pois não é a teologia natural 
 
72
 Cf. Locke, liberdade, igualdade e propriedade, op. cit, passim. 
73
 Para os filósofos estoicos, o homem carrega uma “centelha” da razão divina no âmago de seu ser. Cf. 
Alberto BARROS, Direito natural em Cícero e Tomás de Aquino. In: Direito e Filosofia. São Paulo: Atlas, 
2007. 
35 
 
que explica, pura e simplesmente, as conclusões obtidas a partir do conteúdo da 
lei natural, mas a teologia natural combinada com uma mente saturada pela 
revelação do Cristianismo. Para esse comentador, embora Locke alegue estar 
estudando a condição humana como um todo, nos termos de sua racionalidade, 
as conclusões a serem obtidas pelo recurso à lei da natureza já são previamente 
conhecidas, pois são extraídas da revelação do Cristianismo. 
 Prosseguindo na análise da noção da lei natural como a razão 
inscrita por Deus nos homens, Dunn aponta dois tipos de fontes de informações 
que temos para conhecimento dos propósitos de Deus para o homem: aquilo que 
Ele falou diretamente aos homens e aquilo que pode ser inferido diretamente das 
características da ordem criada. Para tanto, recorre à clássica frase de Bacon para 
designar as fontes a partir das quais o homem pode extrair esses objetivos, isto é, 
do “livro da palavra de Deus” ou do “livro das obras de Deus”74. A segunda 
possibilidade aproxima-se da hipótese de naturalismo antropológico, ainda que, de 
alguma forma, a teologia natural sempre acabe por superar a força dessa 
antropologia descritiva. 
 Por essa razão, embora reconheça que “após as brandas e 
convencionais formulações de seus escritos políticos de juventude, Locke nunca 
mais pretendeu extrapolar os preceitos políticos particulares diretamente da lei 
positiva de Deus, isto é, das revelações do Cristianismo”75, Dunn postula que a 
estrutura do argumento como um todo está saturada de pressupostos do 
Cristianismo e, embora Jesus Cristo e São Paulo não apareçam em pessoa no 
 
74
 Em inglês, a oposição forma um interessante jogo de palavras: “book of God’s word” e “book of God’s 
work”. 
75
 Cf. DUNN, op. cit., p. 88-89. 
36 
 
texto do “Segundo Tratado”, sua presença não passa despercebida, o que levaria 
até mesmo a um certo “paroquialismo ocidental” que passa ao largo para a maior 
parte das análises sobre a teoria de Locke. 
 Sobre essa particular conclusão, Jeremy Waldron76 comenta 
que Dunn procura com ela desqualificar um importante fundamento da teoria de 
Locke, sob a alegação de que os aspectos teológicos e principalmente os 
aspectos cristãos e bíblicos a tornariam irrelevante para nossas preocupações. De 
forma mais precisa, Waldron sustenta que dar destaque a essas provocações e 
trazê-las à tona é apenas uma forma de confinar Locke ao século XVII. 
Parafraseando o título famoso do próprio Dunn, ele seria parte “do que está morto” 
no pensamento político de Locke, e passaria a ser de interesse tão-somente 
arqueológico para a história das ideias. 
 Postas de lado essas provocações, um importante aspecto da 
abordagem de Dunn é, na verdade, a constatação de que o recurso de Locke ao 
estado de natureza se deve ao fato de que os valores morais são artefatos 
históricos, expressos linguisticamente e portanto preservados ao longo do tempo 
de uma geração a outra. Tal característica induz a forma pela qual o homem é 
educado moralmente, deixando-o até certo grau à mercê da linguagem e da 
história77. 
 Desse modo, se a consistência linguística torna disponíveis os 
recursos de uma moral existente e de um vocabulário moral, esse vocabulário, por 
outro lado – que é em si mesmo um produto histórico – é também profundamente 
 
76
 Cf. Jeremy WALDRON, God, Locke, and Equality – Christians Foundations in Locke’s Political Thought. 
Cambridge: Cambridge University Press, 2002, p. 13. 
77
 Cf. DUNN, ob. cit., p. 96. 
37 
 
contaminado pela história. Essa infecção, porém, não atinge apenas a linguagem, 
mas o conjunto mesmo de conceitos morais. O recurso a uma lei da natureza 
surge, nesse sentido, da necessidade de se afastar dessa contaminação, em 
busca de um critério para a moralidade humana que esteja fora da história78. 
 De acordo com Dunn, a a-historicidade do estado de natureza 
é importante, também, como proteção do argumento contra a acusação clássica, 
feita por Filmer e por outros teóricos, segundo a qual os homens não nasceram 
iguais e nunca viveram por qualquer período de tempo em um estado de liberdade 
associal, pois todo homem é nascido no seio de uma família, em uma condição de 
impotência biológica e psicológica79. 
 O fato de se tratar de um conceito a-histórico não significa, no 
entanto, que ele importe em uma negação total da realidade da história, pois em 
qualquer estágio do estado de natureza, em qualquer ponto da história, os 
indivíduos que se confrontem com outros indivíduos nessa condição de igualdade 
fazem isso não meramente com deveres hipotéticos, mas com deveres reais, a 
que se submeteram em função de suas vidas particulares, já que, de acordo com 
Locke, o estado de natureza não é um “estado de licenciosidade”. 
 Assim, segundo Dunn, para entender corretamente o estado 
de natureza é necessário afastar a história; mas para aplicá-lo na discussão de 
qualquer questão humana concreta, é necessário permitir o retorno da história 
exclusivamente no contorno da questão a ser discutida. 
 
78
 Idem, ibidem, p. 96-97. 
79
 Cf. FILMER, op. cit, passim. 
38 
 
 É o que faz Locke para expor a forma de início das sociedades 
políticas, com a evocação dos exemplos históricos de Roma e Veneza, que foram 
fundadas “mediante a união de vários homens livres e independentes uns dos 
outros, entre os quais não havia nenhuma superioridade ou sujeição naturais”80, 
ou com a descrição do estado em que se encontravam os nativos da Flórida, do 
Peru e do Brasil81. 
 Afirmar o contrário seria atribuir à teoria de Locke uma 
ingenuidade insustentável, pois ele era bem ciente quanto ao fato de que o 
homem vive na história. O relato do estado de natureza é construído fora da 
história justamente para a identificação de uma estrutura jurídica, e não para a 
proclamação de um inventário moral referente a uma situação histórica existente. 
 Essa estrutura, que já está presente, portanto, no estado de 
natureza, é identificada por Lena Haldennius82 como expressão do que ela 
denomina o mais poderoso argumento da teoria política de Locke: o argumento 
contra a arbitrariedade. Para essa autora, as ideias de liberdade política e poder 
político legítimo são costuradas no “Segundo Tratado” pela noção moral de não-
arbitrariedade requerida por ambas. As concepções de Locke sobre a liberdade e 
sobre o governo legítimo devem ser entendidas, nesse sentido, primeiramente 
como expressões de uma demanda normativa por relações políticas não-
arbitrárias, em que o critério para a não-arbitrariedade é a moralidade natural que 
regula o estado de natureza. 
 
80
 Cf. LOCKE, op. cit., p. 474. 
81
 Cf. Idem, ibidem, p. 474. 
82
 Lena HALDENNIUS, Locke and the non-arbitrary. In: European Journal of Political Theory. London: 
Sage publications, 2003. 
39 
 
 Assim, para Haldennius, se a imagem do estado de natureza é 
uma imagem de um estado regulado por uma lei moral objetiva –a lei da natureza 
– indispensável à sobrevivência e à prosperidade da espécie humana, a 
preocupação é com a preservação da humanidade – e não com a 
autopreservação de cada membro. 
 Por essa razão, o mandato político confiado ao governante é o 
de governar de modo a promover o bem do povo, tal como estabelecido pela lei da 
natureza ou pela moralidade natural. A liberdade é, portanto, parte essencial 
desse mandato83. 
 
1.2. Lei natural: do “Segundo Tratado” aos “Ensaios sobre a lei de natureza” 
 
 De acordo com Thomas, embora Locke não tenha reservado, 
no “Segundo Tratado”, uma parte para a exposição sistemática da lei natural, não 
há dúvida de que ele possui uma concepção coerente desse termo, que pode ser 
reconstruída a partir de suas frequentes, embora dispersas, referências à lei 
natural no “Segundo Tratado”, bem como de seus escritos de juventude, 
especialmente os “Ensaios sobre a lei de natureza” 84. 
 De fato, os “Ensaios”, que segundo Goldie podem ser lidos 
como um “palimpsesto do desenvolvimento intelectual de Locke”, são reflexões 
preparatórias ou paralelas que constituem, nas palavras de Goldie, a pré-história 
do “Segundo Tratado”. Tais textos, que fazem parte dos escritos não publicados 
 
83
 Cf. HALDENNIUS, op. cit., p. 262. 
84
 Cf. op.cit., p.15. 
40 
 
em vida por Locke e que ficaram conhecidos como a “Coleção Lovelace”, por 
receberem o nome de seu adquirente, permaneceram, juntamente com um grande 
volume de documentos, praticamente desconhecidos até serem transferidos do 
escritório de Locke para a biblioteca de Oxford em 194285. 
 Embora sejam considerados como parte dos escritos de 
juventude de Locke, os “Ensaios sobre a lei de natureza” são de fundamental 
importância para o entendimento de alguns dos conceitos desenvolvidos de forma 
sumária ou dispersa por Locke em seus escritos políticos de maturidade, em 
especial no “Segundo Tratado”. 
 É esse o caso da noção de lei de natureza, cujo conteúdo é 
sucintamente descrito no “Segundo Tratado” como um comando para a defesa da 
“paz e a conservação de toda a humanidade”86. A precisa compreensão da 
concepção da lei de natureza deve ser obtida, assim, da análise da exposição 
empreendida por Locke nos “Ensaios”. 
 Previamente à análise da argumentação desenvolvida por 
Locke nos “Ensaios sobre a lei de natureza”, há que se salientar, conforme 
destacado por Goldie, que o termo “Ensaios” utilizado para designar a exposição 
sobre a lei da natureza é equivocado, pois os nove textos escritos por Locke são 
na verdade dissertações que seguem o tradicional formato escolástico, que expõe 
os argumentos favoráveis juntamente com as objeções contrárias a determinadas 
questões em debate87. 
 
85
 Cf. Mark GOLDIE, Introdução. In: John LOCKE, Ensaios políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 
XI-XIII. 
86
 Cf. LOCKE, Dois tratados sobre o governo, § 7, p. 385. 
87
 Cf. LOCKE, Ensaios políticos. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.99. 
41 
 
 Na tentativa de investigar a existência da lei de natureza, 
Locke inicia por constatar que todo aquele que já tiver refletido sobre “Deus Todo-
poderoso, ou o invariável consenso de toda a humanidade a todo tempo e em 
todos os lugares, ou mesmo sobre si mesmo ou sua consciência, não acreditará 
facilmente” que só homem tenha vindo ao mundo totalmente isento de qualquer lei 
aplicável a si, diferentemente de todo o restante da ordem criada, que possui “leis 
válidas e fixas de operação apropriadas à sua natureza”88. 
 Segundo Locke, a lei natural é designada de diversas 
maneiras, podendo ser equiparada ao “bem ou virtude moral” perseguidos pelos 
“filósofos de outrora (e entre eles especialmente os estoicos)”, à “reta razão”, 
entendida como “certos princípios definidos de ação dos quais emergem todas as 
virtudes e tudo quanto é necessário para a moldagem apropriada da moralidade” e 
à noção mais ampla de “lei de natureza”, que inclui a ideia de uma “lei que cada 
um pode detectar meramente pela luz plantada em nós pela natureza”, aquela 
“regra de viver de acordo com a natureza que os estoicos tanto enfatizam”89. 
 Entre essas diferentes designações, Locke afirma que a 
menos apropriada é a de “reta razão” ou “ditado da razão”, já que não é a razão 
que estabelece a lei da natureza, mas antes “a busca e descobre como lei 
instituída como um poder superior e implantada em nossos corações”. Considerar 
os ditames da razão como a própria lei de natureza representaria uma violação da 
 
88
 Cf. LOCKE, Ensaios políticos, op cit., p.101. 
89
 Cf. op. cit., p. 102. 
42 
 
“dignidade do legislador supremo”, pois a razão não é “mais autora dessa lei do 
que sua intérprete”90. 
 Desse modo, a lei natural é, para Locke, o decreto divino que 
pode ser percebido por todos os homens pela luz da natureza e interpretado pela 
razão, e que possui todos os requisitos de uma lei propriamente dita, pois 
“estabelece o que se deve e o que não se deve fazer”91, obrigando a todos. 
 Para Locke, a existência da lei da natureza pode ser provada 
por cinco diferentes argumentos, que são descritos nos “Ensaios sobre a lei de 
natureza”. 
 O primeiro deles é derivado da “Ética a Nicômaco”92, de 
Aristóteles, em que se reconhece, de acordo com Locke, que “a função própria do 
homem é agir de acordo com a razão, de tal modo que o homem deve, 
necessariamente, fazer o que a razão prescreve”93. Por esse argumento, a 
existência de princípios morais universais pode ser constatada pela uniformidade 
das definições de virtudes, que são invariáveis entre todos os homens a despeito 
das eventuais discordâncias sobre alguns princípios. Para Locke, a grande 
semelhança entre as leis positivas dos diferentes povos demonstra a existência de 
um “conceito ou obrigação antecedente a tais leis”, pois se não houvesse uma 
obrigação moral comum a orientar a edição das leis, não haveria tanto acordo 
 
90
 Cf. op. cit., p. 102. 
91
 Cf. op. cit., p. 102. 
92
 Cf. ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009, p.25-28. 
93
 Cf. op. cit., p. 103. 
43 
 
entre as leis dos mais diferentes povos, e a “virtude seria uma coisa entre os 
índios e outra entre os romanos”94. 
 O segundo argumento que atesta a existência da lei natural 
advém, segundo Locke, da constatação de que os homens julgam suas condutas 
e a si mesmos de acordo com sua própria consciência, o que não seria possível 
se não existisse uma lei a que reconhecidamente devessem prestar obediência, 
pois “na ausência de lei não é possível proferir julgamento algum”95. 
 O terceiro argumento destacado por Locke decorre da 
percepção de que todas as coisas do mundo possuem, por sua própria 
constituição, “um modo de existência próprio à sua natureza”96, um conjunto de 
atribuições e tarefas inerentes à sua particular posição na ordem da criação. Neste 
argumento, Locke remete à noção convencional de “grande cadeia do ser”, 
segundo a qual o cosmos é fruto da obra de Deus, que criou cada parte do 
universo com propósitos especificamente determinados para a finalidade do todo. 
Por esse motivo, não seria razoável afirmar que “somente o homem seja 
independente de leis, enquanto tudo o mais se encontra subordinado”97, sendo 
incompatível com a sabedoria do Criador que ao animal dotado do maior grau de 
perfeição e situado na posição mais elevada na cadeia da ordem criada não tenha 
sido atribuída nenhuma obra, ou que lhe tenha sido concedida uma lei 
“precisamente para que ele possa não se submeter a lei alguma”98. Ao destacar 
 
94
 Cf. op. cit., p. 104. 
95
 Cf. op. cit., p. 107. 
96
 Cf. op. cit., p. 107. 
97
 Cf. op. cit., p. 107. 
98Cf. LOCKE, op. cit., p. 108. 
44 
 
este argumento, Locke demonstra, segundo aponta Goldie99, estar “seguindo 
Hooker de perto”, pois sua exposição se assemelha muito à argumentação 
realizada por esse autor no “Of the laws of Ecclesiastical Polity”100. 
 O quarto argumento exposto por Locke deriva da existência da 
sociedade política e das leis civis positivas, já que estas não são obrigatórias por 
si mesmas, “senão em virtude da lei de natureza, que ordena a obediência aos 
superiores e a conservação da paz pública”. Além disso, o cumprimento dos 
pactos, que constitui a base da sociedade política, não decorre da simples 
submissão à lei civil, pois não é de se esperar que alguém cumpra uma 
convenção contra a sua vontade “salvo se a obrigação de manter a palavra houver 
derivado da natureza, e não da vontade humana”101. 
 O quinto e último argumento evocado por Locke para 
demonstrar a existência da lei de natureza decorre do exercício de supressão da 
lei natural, do qual resulta a constatação de que “se não existisse lei natural, não 
existiriam nem virtude nem vício, nem a recompensa pelo bem nem a punição pelo 
mal: onde não existe lei, não existe falta, nenhuma culpa”102. Para Locke, a 
eliminação da lei da natureza acarretaria a supressão de toda e qualquer 
referência para a conduta humana e o homem “não estaria obrigado a nada, a não 
ser àquilo que a utilidade ou o prazer pudessem recomendar”103. Como, no 
entanto, a “natureza do bem e do mal é, com efeito, eterna e certa”, a honra e a 
baixeza de nossas virtudes e vícios devem-se exclusivamente aos parâmetros 
 
99
 Cf. op. cit., p. 107. 
100
 Cf. Richard HOOKER. Of the laws of ecclesiastical polity. Cambridge: Cambridge University Press, 1997. 
101
 Cf. op. cit., p. 109. 
102
 Cf. op. cit., p. 109. 
103
 Cf. op. cit., p. 109. 
45 
 
fixados por essa lei, que não é fixada “nem pelas ordenações públicas dos 
homens nem por nenhuma opinião privada”104. 
 Após a apresentação dos argumentos que demonstram a 
existência da lei de natureza, Locke passa a analisar a forma como podemos 
conhecê-la, iniciando com a afirmação de que “o modo de alcançarmos o 
conhecimento dessa lei é pela luz da natureza, por oposição a outros modos de 
conhecimento”105. Por “luz da natureza”, Locke faz alusão àquela “espécie de 
verdade”106 cujo conhecimento pode ser atingido pela experiência sensorial do 
homem. 
 Para sustentar essa afirmação, Locke procura investigar, 
dentre os tipos de conhecimento por ele identificados, qual deles pode se prestar 
ao conhecimento da lei natural. Tais tipos de conhecimento, a inscrição, a tradição 
e a experiência sensorial podem também ser designados, segundo Goldie, como 
conhecimento inato, conhecimento recebido ou herdado e dados dos sentidos107, 
respectivamente. 
 Com relação ao conhecimento inato, Locke sustenta, em 
primeiro lugar, que a lei natural não está inscrita no coração ou na mente dos 
homens, uma vez que a afirmação segundo a qual “a alma dos homens, quando 
nascem, são pouco mais que tábulas rasas, aptas a receber todas as espécies de 
 
104
 Cf. op. cit., p. 109. 
105
 Cf. op. cit., p. 110. 
106
 Cf. op. cit., p. 110. 
107
 Cf. op. cit., p. 110. 
46 
 
impressões” não foi provada, embora “muitos tenham laborado para essa 
finalidade”108. 
 A despeito da categórica recusa em conceber a lei natural a 
partir da noção de ideias inatas, que é efetuada por Locke nos “Ensaios” de 
maneira compatível com a exposição contida no Livro I do “Ensaio sobre o 
entendimento humano”109, Locke afirma, no “Segundo Tratado” que o direito de 
matar um assassino é amplamente reconhecido como decorrente da lei natural 
pois “tão claramente estava isso inscrito no coração dos homens110”. Embora essa 
oposição possa ser potencialmente explicada como decorrência do estilo 
argumentativo de superposição de ideias utilizado por Locke nos “Tratados” 111, as 
possíveis maneiras de compatibilizar essas noções escapam, por suas inevitáveis 
repercussões na teoria do conhecimento, aos estreitos limites deste trabalho. 
 Em segundo lugar, a lei natural demonstra não estar 
simplesmente inscrita nos corações dos homens pela constatação das inúmeras e 
contraditórias regras de natureza avocadas distintamente por cada pessoa. Para 
Locke, se os seres humanos tivessem a alma abastecida por essa lei, eles 
concordariam sobre ela “sem demora e hesitação”, e mostrariam unanimemente 
presteza em obedecê-la. 
 Além disso, se a lei natural estivesse inscrita no coração dos 
homens, os jovens, os analfabetos, as raças primitivas, os tolos e os insanos 
 
108
 Com esse argumento, conforme salienta GOLDIE, Locke faz uma alusão implícita a DESCARTES. A 
referência explícita foi apagada por Locke do manuscrito dos “Ensaios”, que continham em seu primeiro 
esboço uma menção expressa a DESCARTES como alguém que “laborou para demonstrar a teoria das ideias 
inatas”. Cf. LOCKE, Ensaios Políticos, op. Cit, p. 119. Para uma compreensão da teoria das ideias inatas de 
DESCARTES, Cf. DESCARTES, Discurso do método. São Paulo: Nova Cultural, 1996. 
109
 Cf. John LOCKE, Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010. 
110
 Cf. op. cit., p. 390. 
111
 Cf. Nota 4 do editor. In: LOCKE, Dois tratados sobre o governo, op. cit., p. 390. 
47 
 
conheceriam essa lei tanto quanto os outros, ao passo que, de forma oposta, é no 
conhecimento ou no desconhecimento dessa lei que “reside a diferença entre o 
sábio e o estúpido”112. 
 Por fim, Locke sustenta que a lei natural não está inscrita na 
mente ou nos corações dos homens pois, se assim fosse, teríamos que supor que 
além dos princípios práticos estariam também inscritos em nossos corações os 
princípios especulativos, o que é difícil de se provar, uma vez que os primeiros e 
mais conhecidos princípios das ciências não estão inscritos como um axioma em 
nossa mente, não sendo possível que alguém os pressuponha antes de ter sido 
ensinado por outra pessoa ou o tenha provado por si mesmo por indução113. 
 No que se refere à tradição, Locke considera, em primeiro 
lugar, que se a lei da natureza pudesse ser conhecida dessa maneira, seria 
impossível determinar corretamente o seu conteúdo, “dada a imensa variedade 
entre tradições conflituosas”, tornando difícil, também, a distinção entre a lei e a 
opinião. Ora, se a lei de natureza é idêntica em todos os lugares e as tradições 
variam, “segue-se ou que não existe nenhuma lei de natureza, ou que ela não 
possa ser conhecida por meio da tradição”114. 
 Em segundo lugar, Locke afirma que se a lei natural pudesse 
ser conhecida pela tradição, “tratar-se-ia mais de questão de confiança que de 
conhecimento”, pois dependeria antes da autoridade daquele que transmite o 
conteúdo dessa lei do que propriamente da evidência. 
 
112
 Cf. op. cit., p. 123. 
113
 Cf. op. cit., p. 123. 
114
 Cf. op. cit., p. 115. 
48 
 
 Por fim, o terceiro argumento utilizado por Locke para 
sustentar a impossibilidade de conhecimento da lei natural pela tradição é o fato 
de que uma tradição remonta sempre a uma origem, um autor original que teria 
descoberto o conteúdo da lei da natureza por uma das outras duas formas de 
conhecimento, que estariam, portanto, “igualmente abertos ao restante da 
humanidade”, não havendo a necessidade da tradição “na medida em que cada 
um possui dentro de si os mesmo princípios básicos de conhecimento”115. 
 Com relação ao último modo de conhecimento investigado por 
Locke, a percepção sensorial é, enfim, reconhecida como a base do conhecimento 
da lei natural. Para Locke, nesse sentido, a fundação de todo conhecimento da lei 
da natureza é derivada das coisas que percebemos

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