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TEORIA DA HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA Isabela de Albuquerque Rosado do Nascimento A construção do tempo histórico Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever o tempo histórico. Explicar o tempo cronológico. Analisar o tempo na contagem dos séculos. Introdução Abordar o tempo é algo complicado, porque ele assume diversas di- mensões. É possível falar de tempo biológico, geológico, psicológico, histórico, dentre outros. Embora os historiadores sejam impelidos a lidar constantemente com a variável “tempo” em suas pesquisas, ela nem sempre é alvo de estudos metodológicos. O tempo costuma ser tratado mais como um objeto de estudo — a partir da delimitação de um recorte acerca de um determinado grupo social — do que como uma categoria de análise. A carência de reflexões na área faz com que os historiadores pouco discutam sobre como lidar com o indicador temporal na pesquisa histórica. Mas, afinal, como po- demos definir o tempo? Neste capítulo, você vai estudar as explicações em torno do tempo da história, a partir do confronto com outras áreas do conhecimento científico, e entenderá a diferença entre os conceitos de tempo histórico e tempo cronológico. Por fim, analisará também a passagem do tempo a partir da contagem dos séculos, parte importante na organização dos currículos escolares na área de história. Descrição do tempo histórico Dissociar a atividade da história do componente “tempo” é, de certa forma, inutilizá-la. Sem essa variável, o historiador perde sua razão de ser e seu ofício passa a ser associado a outros, como dos geógrafos, sociólogos, antropólogos e críticos literários, por exemplo. Muito embora esses profi ssionais também utilizem a categoria de tempo em suas pesquisas, em nenhuma delas o tempo é tão importante quanto para o pesquisador da área de história. Nossa cons- ciência sobre o tempo já está tão interiorizada que é difícil pensar em nosso cotidiano sem horários ou calendários. Elias (1998), em seu livro Sobre o tempo, analisa como esse conceito foi construído socialmente, por meio de um processo caracterizado pelo autor como civilizador. É ao estabelecermos seus parâmetros organizacionais, a partir da adoção de um calendário, por exemplo, que somos inseridos num contexto social mais amplo, do qual passamos a também fazer parte. Nesse contexto, os calendários devem ser identificados não apenas no seu sentido cronológico e linear. De acordo com Elias (1998), é pela adoção de calendários que as sociedades humanas também expressam, como parte integrante de suas culturas, as práticas ritualísticas identificadas, garantindo sua repetição e destacando sua recorrência. Sendo assim, o tempo histórico só pode ser estudado à luz de referências específicas, pois ele nada mais é do que uma construção histórica e social. Por outra perspectiva, o tema por ser identificado como objeto de estudo, enquadrando-se numa história cultural do tempo, cujo objetivo é seria estudar a rede de elaboração de seus significados nas experiências dos sujeitos sociais. As leituras sobre a concepção do tempo histórico sofreram variações em cada uma das correntes historiográficas. A concepção de tempo presente em Isaac Newton (1643–1727) — marcada por seu caráter puro e absoluto, inde- pendente dos objetos materiais e dos acontecimentos — dominou o cenário dos debates filosóficos por mais de dois séculos e influenciou a maneira como os historiadores enxergavam o desenrolar dos fatos. Até meados do século XX, as heranças positivista e historicista viam o tempo a partir dos paradigmas newtonianos e kantianos, respectivamente. De acordo com Immanuel Kant (1724–1804), o tempo é uma experiência intuitiva. É por meio dele que o ser humano pode identificar as transformações na natureza, bem como a mudança de estado dos objetos (SOUZA, 2008). A concepção idealista e subjetiva sobre o tempo do filósofo alemão coaduna com a ideia de que o tempo não pode ser interpretado fora de organizações A construção do tempo histórico2 culturalmente definidas. A Figura 1 apresenta um esboço de diferentes ca- lendários adotados por tradições distintas. Figura 1. Os calendários das principais religiões monoteístas. À concepção de tempo histórico, a primeira geração da escola dos Annales, composta por Marc Bloch (1886–1944) e Lucien Febvre (1878–1956), avançou com importantes contribuições. Ao definir a história como “[...] uma ciência dos homens no tempo” (BLOCH, 2001, p. 67), Bloch (2001) assinala o tempo como o plasma que envolve e explica os fenômenos. Fora do tempo, portanto, não é possível explicar os fenômenos presentes nas sociedades, pois ele é o seu local de inteligibilidade. Os tempos históricos estão divididos em presente, passado e futuro, inter- ligados por uma relação simbiótica, na qual presente e passado influenciam-se mutuamente (BLOCH, 2001). No entanto, como pode o presente influenciar o passado? Deve-se levar em conta que a história, por ser uma ciência inter- pretativa, descreve no presente como estão estruturadas suas visões acerca do 3A construção do tempo histórico passado, de um determinado tempo histórico. Em certa medida, toda história é contemporânea, já que o tempo histórico em que o historiador se insere ajuda a moldar o seu olhar sobre o passado. Se a primeira geração dos Annales auxiliou no entendimento do tempo histórico, foi com a segunda geração que as concepções sobre o tempo foram aprimoradas. Braudel (2007) apresenta uma nova concepção sobre a dimensão temporal na história a partir de sua tripartição: curta, média e longa duração. A curta duração refere-se ao “[...] tempo breve, ao indivíduo, ao evento” (BRAUDEL, 2007, p. 44), marcados por acontecimentos delimitados cronolo- gicamente dentro de uma sociedade. Pode ser de dias, meses ou alguns anos, e estão, portanto, datados historicamente. A média duração é o tempo conjuntural, das décadas. Para Braudel, a média duração funcionava como uma espécie de contraponto à curta duração — que pertencia ao campo da história factual. Insere-se neste campo a Nova História Econômica e Social, para a descrição das oscilações dos preços, variações de taxas de juros, progressões demográficas, entre outras. Já a longa duração é de caráter estrutural e corresponde ao tempo dos séculos. O tempo da longa duração está presente nas mentalidades e na arqui- tetura, por exemplo, e representa a expressão mais lenta da mudança — ou permanências — do tempo histórico. Membro da terceira geração dos Annales, Philippe Ariès (1989) é provavel- mente o maior expoente a discutir a noção do tempo histórico. De acordo com o historiador, a melhor percepção que se pode ter do tempo está na dicotomia entra presente e passado, “[...] ou, ainda, na distinção entre as várias estruturas entre si, consideradas sob a perspectiva de estruturas totais e fechadas que se sucedem” (BARROS, 2018, documento on-line). Fora do movimento dos Annales, há outras importantes discussões sobre o tempo. Um autor pouco abordado no Brasil é Robert Berkhofer Junior (1931–2012). O historia- dor americano sugere que o uso da temporalidade pelos historiadores implica duas dimensões básicas: o tempo físico (externo e natural) e o tempo subjetivo (dimensão interna e sujeita às questões da cultura). A construção do tempo histórico4 Explicação de tempo cronológico Segundo o dicionário Michaelis Online ([2019], documento on-line), a defi nição geral de tempo corresponde a “Período de momentos, de horas, de dias, de semanas, de meses, de anos etc. no qual os eventos se sucedem, dando-se a noção de presente, passado e futuro”. Em linhas gerais, o tempo cronológico é aquele que pode ser contabili- zado e agrupado em unidades que já conhecemos, pois são utilizadas em nossa sociedade – dias, semanas, meses, anos, séculos e milênios. Pode ser entendido, portanto, como o tempo do relógio e do calendário. Muito embora, como você já deveter observado, a escolha de um parâmetro temporal esteja relacionada à cultura e ao processo histórico, o tempo cronológico é dotado de uma materialidade e possui regularidade, previsibilidade e estabilidade, utilizando medidas exatas para aferir o tempo com rigor e precisão. Elias (1998, p. 4) delimitou os relógios como “[...] processos físicos que a sociedade padronizou, decompondo-os em sequências-modelo de recorrência regular, como as horas ou os minutos”. Você já leu no subtópico anterior que a divisão e a organização do tempo fazem parte de um processo civilizador, no Na visão de Berkhofer, a grande falha do historiador está em utilizar poucas variedades analíticas possíveis na leitura do tempo físico ou mensurável, que estaria normalmente vinculado ao seu caráter meramente contextual e explicativo, numa espécie de cenário no qual o objeto maior está localizado (CARDOSO, 1988. p. 35–36). O Quadro 1 resume essa concepção. Fonte: Adaptado de Cardoso (1988). Tempo Físico Tempo Subjetivo Da natureza Da cultura Externo Interno Linear, irreversível, matemático Heterogêneo, descontínuo Quadro 1. Proposta das dimensões básicas do uso da temporalidade pelos histo- riadores segundo Robert Berkhofer Jr. 5A construção do tempo histórico qual medidas foram arbitrária e culturalmente demarcadas, com o propósito identificá-lo. No entanto, é possível estudar o tempo de forma objetiva. Em nossa percepção humana, o tempo pode ser localizado em três etapas principais: o instante, a anterioridade e a posterioridade. O instante corres- ponde ao momento de enunciação e fala do sujeito e, por ser dinâmico, passa tão rapidamente que se torna impossível manter-se nele. É a partir do instante que estão definidos os parâmetros de anterioridade — aquilo que aconteceu antes do instante — e de posterioridade — situado após o instante enquanto referencial. Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.), logo no início do Capítulo 10 do Livro IV de Física, começa por perguntar se o tempo existe e, se sim, qual a sua natureza (ROARK, 2011). Ao abordar a temática, o filósofo considera como certo que ele é composto de um passado que já não é e por um futuro que ainda não é. O presente seria a divisão entre passado e futuro, e, apesar de não fazer parte do tempo, corresponderia ao que chamamos de realidade. Dando sequência à opinião de Platão, que o ligava ao movimento dos astros, ao menos uma coisa parece certa: ele está vinculado ao movimento (REIS, 1996). Para um estudante de história de uma instituição de ensino superior, pode parecer despropositado dialogar com a física, mas os campos científicos estão mais interligados do que se imagina. O conhecimento — apesar de divididos em áreas de saber específicas — não pode ser compartimentalizado de forma estanque, pois a realidade em que vivemos não é tão bem delimitada quanto imaginamos. Sendo assim, ao tratar do tema do tempo cronológico, o diálogo com outras ciências vem a acrescentar ao entendimento do historiador, apri- morando, assim, seu ofício. Desde Aristóteles, passando por Isaac Newton (1643–1727) e chegando à visão da relatividade postulada por Albert Einstein (1879–1955), a forma como o tempo cronológico era entendido foi alvo de estudos. Na tradição ocidental, filósofos e cientistas esforçaram-se por produzir reflexões, fórmulas e postu- lados sobre sua natureza e materialidade. Apesar de tradições diversas — e muitas vezes divergentes — no campo de estudos da física, essa discussão tem avançado bastante e abalado as concepções humanas do como encarar tempo, chegando à Teoria da Relatividade de Einstein e às novas propostas estabelecidas pelo britânico Stephen Hawking (2015). A construção do tempo histórico6 O físico inglês Stephen Hawking (1942–2018), autor de Uma breve história do tempo e O universo numa casca de noz, dialoga com a ideia do físico alemão erradicado nos Estados Unidos Albert Einstein (1879–1955). Em 1905, Einstein descobriu que o tempo não corre da mesma maneira em todos os lugares e, se um relógio está parado, seus ponteiros avançam mais rápido em comparação a um relógio em movimento. A partir de instrumentos que possibilitam observar elementos muito pequenos (na casa de 10–33 milímetros), é exequível identificar importantes fenômenos para a compreensão de objetos ainda inexplicáveis, tais quais os buracos negros. Hawking ainda observa que a nossa noção temporal de uma seta que aponta do passado para o futuro encontra correspondência na noção física de passagem do tempo pelo critério da entropia. A segunda lei da termodinâmica afirma que a desordem do universo, sua entropia, sempre aumenta do passado para o futuro, e nunca o inverso. Assim, o físico sustenta que há não apenas uma seta do tempo termodinâmica como também uma seta do tempo psicológica, pela qual podemos lembrar do passado, mas nunca do futuro (HAWKING, 2015). A filósofa húngara Agnes Heller (1981, p. 53) dedicou um subtópico de sua obra Uma teoria da história apenas para discutir as relações entre passado, presente e futuro: Toda recordação do que passou é uma interpretação: reconstruímos nosso passado. As experiências que tivemos, nossos interesses, sinceridade e in- sinceridade, tudo isto modifica aquilo que reconstruímos, o modo pelo qual o fazemos e o tipo de significação que atribuímos ao passado reconstruído. Em síntese, mudamos nosso passado através da interpretação seletiva. A partir da valorização da experiência, a qual Heller (1981) considera importante e estruturante com relação à construção do passado, a historiadora alemã defende que o presente é fundamental neste processo, pois é nele que atribuímos sentido ao que vivemos anteriormente. Isso posto, o passado passa no presente por um processo de ressignificação, onde ele pode ser, inclusive, alterado e modificado. 7A construção do tempo histórico Com relação à história, a disciplina mais adequada ao diálogo quanto a postulados teóricos a respeito da noção de tempo é a filosofia. Em função das dificuldades no tocante à definição do conceito na sua totalidade e de forma absoluta, filósofos reconhecem que a maneira mais fácil de se apro- ximar do conceito é de forma enviesada, a partir de noções correlatas como temporalidade e duração, processo e evento e continuidade e ruptura. (BARROS, 2014). Na Figura 2, você pode conferir cada um desses conceitos e sua dimensão. Figura 2. Conceitos relacionados ao tempo, segundo Barros. Fonte: Adaptada de Barros (2014). No esquema proposto por Barros (2014), é possível verificar conceitos regularmente utilizados em obras historiográficas. Mediante a identificação e definição de cada um deles, é possível tomar maior consciência de como o tempo é dimensionado nas pesquisas da área de história. A noção de temporalidade refere-se à dimensão humana do tempo, através da qual o tempo adquire sentido. O conceito pode ser identificado quando os historiadores começaram a utilizá-lo na acepção de seus recortes (Anti- guidade, Medievalidade, Modernidade e Contemporaneidade). O processo A construção do tempo histórico8 de identificação de uma temporalidade corresponde, portanto, a percebê-la simbolicamente, a fim de operacionalizá-la (BARROS, 2014). Já a noção de duração refere-se ao ritmo, ao modo e à velocidade como ocorre uma transformação no tempo, bem como aos elementos que se manti- veram até serem suplantados por algo novo. A percepção da duração é distinta, pois há um “tempo interno” (sentido e percebido subjetivamente). Em alguns casos, a mudança ocorre num ritmo mais curto, enquanto noutras pode ser percebida variando mais lentamente (BARROS, 2014). Os conceitos de processo e evento também são caros à ciência histórica. Evento e processo são aparentemente complementares; enquanto o primeiro remete-se ao acontecimento, o outro alude a uma sucessão de fatos com uma lógica interna que fazem parte de um todo, em função do seu desenrolar (BARROS, 2014). Por último, temos os conceitosde ruptura e continuidade. Se por um lado uma das principais marcas da disciplina é a mudança, por outro a permanência de elementos também se faz presente. No debate sobre a duração, é possível observar que a duração braudeliana, por exemplo, é marcada por sinais de ruptura (curta duração), mas também pela conti- nuidade (longa duração). A passagem do tempo a partir da contagem dos séculos O tempo cronológico também é objeto de estudo do historiador. O entendimento de como as sociedades humanas compreendiam a passagem do tempo e de que forma organizavam meios e métodos para mensurá-lo coopera para um constante exercício de alteridade de como a nossa sociedade enxerga — e lida com — seu próprio tempo histórico. Como a história tem como alvo não apenas as sociedades longínquas no tempo, mas também aquelas que dialogam com o próprio tempo histórico do historiador, a modalidade denominada de História do Tempo Presente tem estado cada vez mais em evidência, sobretudo desde finais dos anos 1980. Das relações e discussões entre o tempo cronológico e o tempo histórico, a disciplina organizou os seus próprios parâmetros com o objetivo de medir e estudar as diferentes temporalidades. Para fins didáticos e organizacionais, portanto, os currículos da disciplina precisam ser estruturados em extensos períodos — que servem como espécie de norteadores — vinculados, porém, a temporalidades específicas. Portanto, o entendimento quanto ao estudo e, 9A construção do tempo histórico consequentemente, à organização da passagem do tempo não está pautado em elementos universais, mas a partir da eleição de marcos de temporais. Apesar de não ser alvo de estudos e reflexões quanto à periodização da disciplina, a passagem dos séculos seria uma maneira dos historiadores me- lhor aferirem o desenrolar mais ou menos total dos fatos, além de uma visão de conjunto dificilmente possível para quem se encontra inserido na área de acontecimentos (FONSECA, 1967). Nos debates acadêmicos atuais, os filó- sofos e pesquisadores estão mais interessados em desconstruir e relativizar a maneira como a periodização da história é concebida do que em explicar como isso foi feito. Entretanto, tal divisão é a maneira principal como os currículos da disciplina estão orientados e, mesmo reconhecendo que essas formas de organização não são absolutas, é importante entender como isso é estabelecido. A partir da organização do tempo mediante a contagem dos séculos, surgem algumas indagações: como dividir a história? De que maneira organizar o tempo e quais critérios utilizar para estruturação da história? É importante salientar que a prática de estabelecer recortes remonta a tempos remotos e que cada sociedade desenvolve seu próprio modo peculiar de divisão histórica e temporal. Tomemos como base, por exemplo, o caso do nosso país, para o qual há quatro grandes eixos principais: período pré-cabralino (anterior a 1500), período colonial (1500–1822), período imperial (1822–1889) e período republicano (1889–). Repare que neste caso específico estamos referenciando um único país e que para cada eixo histórico foram estabelecidos marcos específicos, referentes a rupturas políticas. No entanto, como funcionaria essa organização do ponto de vista global/universal? Seria essa missão possível? Cabe adiantar que não existem marcos que possam ser identificados como naturais ou a priori e que todos eles foram organizados posteriormente. Dessas disputas quanto à divisão da história em períodos, épocas ou idades, nasce a periodização da história. Nesse contexto, “realistas” e “convencio- nalistas” foram os protagonistas no tocante à divisão da disciplina. Sobre as duas correntes, Cardoso (1988, p. 32) afirma que: A primeira afirma que a periodização provém necessariamente da própria natureza do objeto de pesquisa: os períodos, quando estabelecidos de maneira adequada, seriam, portanto, um reflexo fiel da realidade história. A segunda acredita, pelo contrário, que a história é um devir ou movimento constante, ininterrupto, e que qualquer periodização é arbitrária — podendo justificar-se unicamente por razões didáticas e pragmáticas. Pela perspectiva dos realistas, há uma periodização correta para cada delimitação de um objeto de pesquisa, cabendo aos pesquisadores encaixá-la A construção do tempo histórico10 adequadamente. Já os convencionalistas, partindo da ideia de que toda forma de periodização é imperfeita e de pouca base científica, sustentam que a sociedade é marcada por estruturas em diferentes níveis e que essa forma de organização serve puramente para auxiliar em aspectos didáticos e formais. Desse modo, os períodos históricos surgem como formas de evidenciarmos “[...] transformações de técnicas, produção, estilos de vida, mentalidade e ideias de comunidade nacionais ou mesmo universal” (FONSECA, 1967, documento on-line). É importante ressaltar que toda e qualquer forma de divisão é baseada em escolhas, em critérios específicos e histórico-culturais. As diferenças com relação à organização da disciplina entre as escolas de tradição germânica, francesa e anglo-saxônica são expressivas e estabelecidas a partir de seus próprios marcos historiográficos quanto ao estudo das sociedades humanas. Malgrado os debates em torno dessa divisão e das divergências com relação à sua adoção, os principais eixos temporais vinculados aos estudos de história no Ocidente estão vinculados ainda a quatro grandes períodos: Antigo (c. 4.000 a.C.– 476 d.C.), Medieval (476–1453), Moderno (1453–1789) e Contemporâneo (1789–). Cada um desses marcos estabelecidos corresponde a eventos ou episódios específicos que, na concepção dos historiadores franceses do século XIX, teriam sido responsáveis por identificar o fim de um período e o advento de novos tempos. A Antiguidade corresponderia do surgimento da escrita até a queda do Império Romano do Ocidente; o Medievo se estenderia daí até o episódio da conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos; a Modernidade encerrar-se-ia com a Revolução Francesa e seus impactos sobre os rumos na Europa e nas Américas, dando início assim à chamada Idade Contemporânea. Mesmo com da nossa tradição americana no estudo das sociedades pré- -cabralinas e pré-colombianas e com a inserção da disciplina de História da África como obrigatória nos currículos escolares desde 2008, esse é o modelo adotado ainda nas principais universidades brasileiras, fruto da influência eu- rocêntrica — principalmente francófona — em nossa tradição historiográfica. Dentro dessa lógica, como ficam as sociedades pré-colombianas e as civili- zações do Extremo Oriente como China e Índia? A tentativa de livros didáticos de aproximar os povos da América Pré-Colombiana com as sociedades do Antigo Oriente Próximo, estabelecendo comparáveis no tocante à invenção da escrita representam, por exemplo, uma forma de encaixá-las na lógica segundo a qual a História Europeia Ocidental foi organizada (VAINFAS et al., 2016). Nesse trâmite, o conceito de temporalidade é o principal norteador dessa divisão, pois é ele quem atesta, a partir da passagem do tempo e tomando como base a tradição europeia, como esses recortes serão estabelecidos. 11A construção do tempo histórico No caso específico da Educação Básica, seja ela no Ensino Fundamental ou Médio, a história é abordada como a disciplina que estuda as mudanças no tempo. Com relação ao uso da temporalidade, a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) apresenta que a “[...] relação passado/presente não se processa de forma automática, pois exige o conhecimento de referências teóricas capazes de trazer inteligibilidade aos objetos históricos selecionados” (BRASIL, 2018, documento on-line). Partindo dessa premissa, fica claro que a proposta da disciplina como componente curricular é suscitar discussões sobre o passado, seja ele longínquo ou mais próximo da temporalidade atual, a partir das suas interpolações com o presente.O agrupamento dos conteúdos por períodos (Antigo, Medieval, Moderno e Contemporâneo) ainda é a principal ferramenta para a compreensão da passagem do tempo nas sociedades humanas, identificadas por determinadas características que as compunham. Mesmo com a proposta da BNCC em aproximar diferentes sociedades no tempo — afinal, qual é a semelhança entre a sociedade brasileira do século XXI e as sociedades da Mesopotâmia em 3.000 a.C., por exemplo — a dimensão temporal não pode ser ignorada na disciplina, pois, caso contrário, ela perderia seu principal norteador. Mesmo adotando a divisão histórica em temporalidades específicas, é sempre bom lembrar que os grupos humanos foram constantemente suscetí- veis a trocas culturais, sendo praticamente impossível pensar em sociedades 100% fechadas e avessas a qualquer forma de contato. Mesmo com a divisão em períodos extensos marcados por séculos, a história compreende que essa divisão não é pura e absoluta, mas passível de considerações e críticas diversas. O professor Paulo Duarte Silva, do Instituto de História da UFRJ, pesquisou em sua tese de doutorado, defendida pelo PPGHC–UFRJ, o processo de formação do calendário cristão nos séculos V e VI, em compasso com o fortalecimento da autoridade cívica episcopal no Ocidente. O autor destaca especialmente em sua pesquisa as festas cristãs relativas aos ciclos temporais do Natal e da Páscoa, comparando a pregação de Leão de Roma (440–461) e de Cesário de Arles (502–542). Seu trabalho é um exemplo do estudo do tempo como o próprio objeto de análise. Caso queira acessar sua tese completa, ela está disponível no link a seguir. https://qrgo.page.link/2qMVa A construção do tempo histórico12 ARIÈS, P. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. BARROS, J. D. A historiografia e os conceitos relacionados ao tempo. Dimensões, v. 32, p. 240–266, 2014. Disponível em: http://www.periodicos.ufes.br/dimensoes/article/ view/8336. Acesso em: 8 ago. 2019. BARROS, J. D. 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