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Bioética e Mundo Natural Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Prof. Dr. Américo Soares da Silva Revisão Textual: Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro Entre o Dever e a Consequência • Introdução; • O Caminho Que Deve Ser Trilhado... • A Utilidade, o Prazer e a Dor. • Compreender a ética no pensamento kantiano e na percepção do consequencialismo. OBJETIVO DE APRENDIZADO Entre o Dever e a Consequência Orientações de estudo Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua formação acadêmica e atuação profissional, siga algumas recomendações básicas: Assim: Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e horário fixos como seu “momento do estudo”; Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo; No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam- bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados; Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus- são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de aprendizagem. Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Mantenha o foco! Evite se distrair com as redes sociais. Determine um horário fixo para estudar. Aproveite as indicações de Material Complementar. Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma Não se esqueça de se alimentar e de se manter hidratado. Aproveite as Conserve seu material e local de estudos sempre organizados. Procure manter contato com seus colegas e tutores para trocar ideias! Isso amplia a aprendizagem. Seja original! Nunca plagie trabalhos. UNIDADE Entre o Dever e a Consequência Introdução Se, no antigo mundo grego, havia uma dicotomia entre o virtuosismo e o rela- tivismo, entre a certeza da Verdade e a Verdade construída – e, portanto, provi- sória –, séculos mais tarde, o campo da Ética tem novos antagonistas disputando uma hegemonia. Na modernidade, às portas do mundo contemporâneo, encontramos, de um lado, a intransigente defesa do Dever – racionalmente articulado – como o único caminho ético possível para uma sociedade de pessoas racionais. Por outro lado, curiosamente, também, seguindo pistas racionais, forma-se uma escola do pensa- mento ético que pensa principalmente na consequência dos nossos atos. Propomo-nos, então, apresentar de maneira breve, cada uma dessas linhas de força e permitir com isso a construção de uma ponte entre esses eixos do pensa- mento ético e algumas das demandas atuais, principalmente, aquelas em torno das discussões sobre a Vida. O Caminho Que Deve Ser Trilhado... O Dever, enquanto conceito ligado à Ética, relaciona-se com a ideia “daquilo que é melhor que aconteça”, ou até de certa maneira “o mais desejável”, “a melhor das possibilidades” (LALANDE, 1993). Temos que considerar que não estamos tratan- do de uma causalidade do mundo natural, ou seja, não é o termo dever enquanto “isso é esperado acontecer”, por exemplo: “esperamos que um objeto solto caia na atmosfera em direção ao solo, e não para fora da órbita do planeta”, isso graças à gravidade. No caso do exemplo da gravidade e outros fenômenos do mundo natural, são situações que envolvem forças que não necessariamente iniciam a sua ação pela von- tade humana de que aconteça (até hoje não se tem notícia de alguém que por simples vontade pudesse se opor a gravidade e voar – isso é domínio da ficção e da fantasia). Assim sendo, no mundo natural, muito mais aguardamos que aquele efeito aconteça (é mais uma questão de tempo), uma vez que a causa esteja presente, em situações normais, não temos a opção de interferir no fenômeno. Outro exemplo: diante do aquecimento da água a uma temperatura de aproximadamente cem graus, ela come- ça a ferver e a evaporar (Sim, em situações convencionais de temperatura e pressão). Porém, no campo ético, a teoria do dever segue um trajeto distinto: “[...] o dever é a obrigação moral considerada em si mesma e, em geral, independentemente de uma regra de ação particular. [...]” (LALANDE, 1993, p. 253). Esse é o domínio das decisões, das aspirações. Determinada coisa deveria acontecer de uma determi- nada maneira e não de outra. Isso porque é perfeitamente possível que aconteça de outra forma, uma vez que o acontecimento, a ação, depende de uma resolução humana, uma escolha, e enquanto escolha sempre pode acontecer algo diferente 8 9 do almejado. Almejar, esperar, desejar não garante que aquilo que acreditamos, que deveria acontecer, realmente ocorra. No final do século XVIII, o filósofo de língua alemã, Immanuel Kant, nascido em Königsberg (localizada na antiga Prússia), tornou-se um dos principais expoentes da teoria do dever. Figura 1 – Retrato de Kant Fonte: Getty Images É possível estabelecer um parentesco entre a teoria kantiana do dever e a ética grega antiga, principalmente enquanto princípio de contenção dos impulsos. Se fos- se perguntado ao velho Kant “por que nós, seres racionais, não agirmos da melhor maneira de forma espontânea?”, vários estudiosos concordam que a resposta seria: [...] porque não somos seres morais apenas. Também somos seres na- turais, submetidos à causalidade necessária da natureza. Nosso corpo e nossa psique são feitos de apetites, impulsos, desejos e paixões. Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos comportamentos são a parte da natureza em nós, exercendo domínio sobre nós, submetendo-se à causa- lidade natural inexorável. [...] (CHAUÍ, 2003, p. 316) Figura 2 – Dúvida sobre como agir Fonte: Getty Images 9 UNIDADE Entre o Dever e a Consequência Se há semelhanças entre o virtuosismo grego e o pensamento kantiano, enquanto reconhecimento que a melhor ação se origina da racionalidade, e que devemos conter os impulsos imediatistas das paixões para alcançar uma melhor condição moral. Tam- bém é importante destacar a grande importância dada pelo pensador alemão acerca da liberdade. Em uma das suas mais belas passagens, Kant reflete sobre o fascínio e a dualidade que existe entre a causalidade da natureza e a causalidade por liberdade. Duas coisas enchem o ânimo de admiração e veneração sempre nova e crescente, quanto mais frequente e persistentemente à reflexão ocupa- -se com elas: o céu estrelado acima de mim e a lei moral em mim. Não me cabe procurar e simplesmente presumir ambas como envoltas em obscuridade, ou no imediatamente transcendente além de meu horizon- te; vejo-as ante mim e conecto-as imediatamente com a consciência de minha existência [...] (KANT, 2015, p. 191) O velho filósofo prussiano, que entre outros temas escreveu sobre como nós podemos conhecer as coisas na natureza, ao se voltar para a ética e o estudo da moral, ele se refere como: “lei moral em mim”. Isso não foi somente um recurso estilístico. De fato, para ele, aquilo que podemos chamar ora de moralidade, ora de consciência moral, não tem outra origem a não ser no próprio ser humano. Um pouco à moda dos antigos gregos, Kant isola os impulsos naturais – causa- lidade natural – como exterior às decisões morais. Note-se que essa exterioridade não é apenas para fenômenos e condições ambientais (frio intenso, chuva, gravida- de etc.), mas, também, para os fenômenos biológicos que são parte do ser humano (fome, sede, sono, sexualidade etc.). Nesses casos, a biologia corpórea pode funcio- nar como intrusa, para a racionalidade,assim como também seriam considerados intrusão os gestos ou as ações feitas por terceiros. Ele dará o nome de heteronomia para ações cujas motivações sejam oriundas não da própria racionalidade, mas de um ajuste para com a natureza ou com toda a sorte de motivações externas. Por exemplo, ao optar ajudar a outrem a obter felicidade, se esse gesto for motivado pelo interesse em obter apoio político, então o motivo da ação não foi a felicidade em si, mas um efeito colateral a ser obtido na forma de uma chantagem. O apoio político do exemplo não foi dado livremente, mas “arrancado” à custa de pressões externas, o que, para o pensamento kantiano, também seria considerado imoral. Para Kant, em qualquer cenário, somente podemos falar de uma conduta genui- namente moral se ela for realizada de maneira autônoma, uma vez que: Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. [...] Pela simples análise dos conceitos da mo- ralidade pode-se, porém, mostrar muito bem que o citado princípio da autonomia é o único princípio da moral. Pois desta maneira se descobre que esse seu princípio tem de ser um imperativo categórico, e que este imperativo não manda nem mais nem menos do que precisamente esta autonomia. (KANT, 2007, pp. 85,86) 10 11 Ou seja, para o pensador de Königsberg, a liberdade é um passo fundamental para que o sujeito racional possa fazer escolhas. A “pressão” que interfira nessa von- tade individual inibe a possibilidade da pessoa livremente escolher esse ou aquele tipo de ação. Por exemplo, uma pessoa sendo ameaçada, tendo a sua própria vida posta em risco, não mais decide com base naquilo que sua consciência racional compreen- de como certo. Apenas age ou fala conforme as ordens do captor ou do algoz, tudo para evitar o sofrimento e a morte. Nessas circunstâncias, falará ou fará coisas que vão contra sua própria consciência moral, tudo para salvar a própria vida. Portanto, fundamentalmente, deve-se preservar a espontaneidade da tomada de decisão sobre os mais diferentes temas; as pessoas não podem ter suas decisões formatadas por imposições externas à sua vontade. Figura 3 – A ideia de Liberdade Fonte: Getty Images É sempre importante lembrar que essas tomadas de decisão que guiam nossas ações não são somente decisões burocráticas sobre coisas, sobre ob- jetos. São também, e muitas vezes principalmente, decisões que envolvem a rede de interações sociais na qual estamos inseridos, ou seja, são decisões sobre relacionamentos tanto com os outros como em relação a nós mesmos. Não para menos, Kant defende também que “[...] o homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade.” (KANT, 2007, p. 68.). Isso nos leva à ideia que tratar o outro como um objeto da nossa vontade, ou ainda, como um meio, para alcançar outros fins, é desconsiderar o seu valor como ser racional digno de ser reconhecido enquanto tal. Ou melhor, ajudar ou apoiar o próximo apenas pensando em conseguir vantagens – “Ah, agora que eu o ajudei ele ficará me devendo o favor...” – não é uma atitude ética. O outro foi conside- rado um meio para um fim, ou uma ponte para o sucesso da minha ação, em linguagem ainda mais direta: não é ético usar as pessoas ao seu redor. Retomando o raciocínio do autor, podemos então – como fez o próprio Kant – sintetizar esses princípios numa fórmula. Não esqueçamos que não se trata de uma 11 UNIDADE Entre o Dever e a Consequência lista de regras do tipo pode ou não pode; tal ação é ruim e tal ação é boa (conforme uma lista previamente estabelecida). Assim como os gregos antigos haviam feito, o pensador nos oferece um modelo de análise das nossas ações. Se quisermos saber se algo está de acordo ou não com a ética, basta aplicarmos na análise a “fórmula” sugerida pelo autor. No caso de Kant, essa fórmula é chamada de imperativo categórico (KANT, 2007) e poderia ser descrita como: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (KANT, 2007, p. 59). E ainda como um desenvolvimento dessa máxima: “Trate o outro como um fim em si mesmo e nunca como um meio!” (adaptado, KANT, 2007, p. 59). O que a teoria kantiana do dever nos oferece e uma abordagem racional que fundamenta uma sabedoria há muito presente até no senso comum, que é: “Não faça com o outro aquilo que não deseje que seja feito com você”. Mais uma vez, a ética se apresenta diferente da moralidade por não nos oferecer uma lista de coisas boas ou coisas ruins, e sim um método racional para avaliarmos a correção ou não das ações segundo também critérios racionalmente estabeleci- dos, fossem eles o virtuosismo do equilíbrio ao estilo de Aristóteles, seja o dever racional como demanda o pensamento kantiano. Podemos agregar aqui mais uma linha de pensamento, pela qual se deve buscar a felicidade geral, porém, avaliando o possível resultado das ações, suas consequ- ências. Ou melhor, avaliar se os resultados das ações são mais benéficos que preju- diciais, não apenas para o indivíduo que executa a ação, como também para a so- ciedade com um todo. Essa linha de pensamento ético é nomeada de Utilitarismo. A Utilidade, o Prazer e a Dor O filósofo inglês Jeremy Bentham (1748-1832) que viveu entre os séculos XVIII e XIX, inaugurou uma nova linha de força do pensamento ético, o Utilitarismo. O Utilitarismo, apesar de ter sua fundação atribuída a Bentham, ao longo dos anos, recebeu muitas contribuições, reflexões feitas por outros pensadores que a tornaram de certa maneira mais uma “escola de pensamento” – um tronco comum de onde partem várias ramificações – e menos a obra de um autor só. Entre seus ilustres colaboradores, estiveram John Stuart Mill (1806-1873) e Henry Sidwick (1838-1900). Cada um à sua maneira acrescentando uma diferente perspectiva sobre pontos do utilitarismo. Mesmo assim, nem eles, nem outros co- laboradores se afastaram tanto do tronco principal, cuja tese fundamental está em que a ética deve ser guiada por um equacionamento de quanto prazer (benefícios) e quanta dor (malefícios) podem resultar de uma determinada ação. Dessa forma, comecemos então pelo início, nas palavras do fundador do Utilitarismo: 12 13 A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores soberanos: a dor e o prazer [...]. O princípio de utilidade reconhece esta sujeição e a coloca como fundamento desse sistema, cujo objetivo consiste em construir o edifício da felicidade através da razão e a lei. Os sistemas que tentam questionar este princípio são meras palavras e não uma atitude razoável, capricho e não razão, obscuridade e não luz. (BENTHAM, 1984, p. 03) E ainda: Pode-se afirmar que uma pessoa é partidária do princípio de utilidade quando a aprovação ou a desaprovação que dá a alguma ação, ou a al- guma medida, for determinada pela tendência que, no seu entender, tal ação ou medida tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da comunida- de; ou, em outras palavras, pela conformidade ou não conformidade com as leis ou os ditames da utilidade. (BENTHAM, 1984, p. 05) Figura 4 – A felicidade da comunidade como um todo Fonte: Getty Images Esses trechos extraídos da obra mais importante de Bentham – Uma Introdu- ção aos Princípios da Moral e da Legislação, publicada em 1789 – demonstram muito do que seria a essência do pensamento utilitarista. Compreenderemos melhor a linha de raciocínio do utilitarismo, destacando tam- bém aquilo que o utilitarismo não é. O Utilitarismo não é uma ética do egoísmo. Tal associação pode advir – pelo menos para os falantes da língua portuguesa – de uma compreensão mais estreita da ideia de utilidade. No senso comum, associamos muitofacilmente utilidade com ferramentas. O mar- telo, a pá, uma chave de fenda, são ferramentas úteis, pois nos auxiliam na execução de determinadas tarefas. Dessa forma, entendemos que, no imaginário coletivo, uti- lidade se vincula a esse suporte para tarefas práticas do cotidiano. Nesse contexto, o senso comum foi prontamente apartando a ideia de utilidade de qualquer coisa mais 13 UNIDADE Entre o Dever e a Consequência espiritualizada, ou mesmo intelectualizada, ao ponto de a mistura da ideia de utilidade com algo moral ser uma associação ofensiva para muitas pessoas. A própria ética do dever kantiana nega que uma pessoa ajudar outra por inte- resse próprio, e não por considerar essa pessoa em si mesma, seja um ato moral, pois, no contexto, uma pessoa estaria utilizando a outra tal qual uma ferramenta. Mas, no pano de fundo do pensamento de Bentham e dos demais adeptos do utilitarismo, o termo útil se assemelha com ajuda, e com servir, numa concepção mais ampla. Daí o próprio Bentham se referir aos “dois senhores” que governam os homens (BENTHAM, 1984) como o prazer e a dor, e ambos numa acepção que vai além do sentido físico de sofrimento ou da ausência de sofrimento. O sentido de prazer e dor no pensamento benthamiano inclui a vida emotiva e a moralidade com vistas a se alcançar a felicidade. Principalmente nesse ponto do caminho que o pensamento utilitarista se afasta da ética do egoísmo. Uma ética centrada no egoísmo ou em um tipo de hedonismo imediatista conclamará o indivíduo a buscar o prazer e a afasta a dor de si mesmo. Como caminho para encontrar a felicidade, esse tipo de ação de autopreservação apenas constrói um modelo de comportamento pelo qual cada um buscará a pró- pria felicidade, mas sem o impasse causado pela presença do outro. Isso significa que, se, para alcançar meus objetivos (obter maior prazer, maior satisfação), isso gerar grande sofrimento a outra pessoa, a ética do egoísmo não sinalizará que esse caminho seja imoral! Ou ainda, utilizar-se de outra pessoa como uma ferramenta para alcançar um resultado seria considerada uma atitude movida pela racionalida- de. Como já vimos, isso não se alinha ao pensamento da ética do dever, e o ponto a se destacar é: isso também não está de acordo com o pensamento utilitarista, porque, como o próprio Bentham estabelece: trata-se do “aumentar ou diminuir a felicidade da comunidade”. Portanto, além de considerar como suas ações podem ajudá-lo a alcançar a fe- licidade (aumentado tudo o que é prazer e diminuído a dor), o utilitarista pensará, também, no impacto que suas ações têm na coletividade ao seu redor. Esse cálculo das consequências de nossas ações está no centro do utilitarismo ben- thamiano, que é denominado como utilitarismo do ato (BARBIERI & CAJAZEIRA). Mas esse exercício do assim conhecido utilitarismo do ato impõe um grande desafio, que é o da própria avaliação das consequências das ações. Em alguns casos, certamente, fica evidente a possibilidade de o agente da ação estar ciente dos efeitos da mesma sobre a outra pessoa, e se responsabilizar por isso. Mas como avaliar isso (a ação) em um prazo longo no tempo? Um aparente benefício hoje pode se provar um malefício mais tarde. E quanto aos efeitos sobre terceiros, sobre a comunidade? O utilitarismo do ato pode se ver às voltas com um inferno deliberativo, criando um critério ético extremamente difícil de ser posto em prática, seja pela falta de conhecimento do agente acerca das consequências possíveis, seja a dificuldade de calcular isso cotidianamente. 14 15 Figura 5 – O desafi o de se avaliar o impacto das ações o tempo todo Fonte: Getty Images Esse pode ser o motivo do aparecimento de abordagens alternativas dentro e fora do escopo utilitarista. Ainda dentro do utilitarismo surgiram variações que levaram à formação de um chamado utilitarismo indireto. Um utilitarista também fará bem ao longo de uma vida se adotar o prin- cípio de não prejudicar ou trair os seus amigos. Esta política permite-lhe construir amizades genuínas aumentando assim tanto a sua própria felici- dade quanto a dos seus amigos. Esses benefícios superam qualquer bem extra que ele poderia fazer em alguma ocasião isolada traindo um amigo. (MULGAN, 2012, p. 166) Embora, num primeiro momento, uma leitura desse tipo pudesse despertar até certa simpatia, inclusive por sua simplicidade, uma observação um pouco mais de- morada indica uma perigosa aproximação com um egoísmo expandido, no qual as lealdades para com o grupo próximo fundamentariam o norte de conduta do indivíduo. Mas, então, como lidar com um amigo próximo que se torna criminoso? Essas lealdades localizadas não seriam bastante convenientes para aqueles repre- sentantes públicos que escolhem o caminho da corrupção? A corrupção desses re- presentantes, protegidos por um código de lealdade dos amigos próximos, não pre- judica sobremaneira a comunidade como um todo? Essas limitações do utilitarismo na sua versão de utilitarismo do ato e na versão do utilitarismo indireto contribuíram para propostas fora do escopo do utilitarismo, mais próximas da filosofia política, como é o caso de uma das abordagens do filósofo John Rawls. John Rawls (1921-2002), pensador norte-americano, notabilizou-se por seus es- tudos acerca da teoria da justiça. Mesmo não sendo um pensador utilitarista, algumas de suas proposições são bas- tante interessantes no nosso contexto, como, por exemplo, a do equilíbrio reflexivo. 15 UNIDADE Entre o Dever e a Consequência Seguindo a síntese feita por Tim Mulgan da proposta rawlsiana: 1 – A razão para promover o bem – O fato de que uma ação promoverá a felicidade humana oferece-nos uma razão para executá-la [...]. 2 – O prin- cípio da prevenção de danos – Se pudermos evitar que algo ruim acon- teça, sem sacrificar nada de importância moral comparável, devemos fazê-lo. 3 – O princípio da ajuda aos inocentes – Se formos de prestar assistência a uma pessoa inocente em grande necessidade em grande ne- cessidade, com um custo insignificante para nós mesmos, então devemos fazê-lo. 4 – Os números efetivamente contam – Se você deve escolher entre a vida de um grupo de pessoas e as vidas de outro grupo, você deve escolher o grupo maior. (MULGAN, 2012, pp.81,82) A solução proposta por alguns utilitaristas para superar os desafios da aplicação prática do utilitarismo do ato e das críticas, levantadas por outros autores como Rawls, foi a de focar no aspecto mais voltado para as instituições (algo já presente no pensamento de Bentham), ou seja, deixar as instituições e a legislação vigente arcar com o desafio de seguir os parâmetros do utilitarismo, essa abordagem ficou conhecida como utilitarismo da norma ou normo-utilitarismo. “Os atos bons ou corretos são os que estão em conformidade com a regra es- colhida pelo grupo social na base da melhor consequência conjunto.” (BARBIERI & CAJAZEIRA, 2012, p.113), ou seja, na perspectiva do utilitarismo da norma, os legisladores e as instituições irão se embrenhar na complexa tomada de decisão sobre normas que respeitem a essência do utilitarismo que é produzir o máximo de prazer (bem-estar) ao máximo de pessoas possível. Nessa situação, o agente verdadeiramen- te ético é aquele que se faz um fiel seguidor dessas normas, sem tanto se preocupar com o cálculo das consequências, pois esse cálculo já estaria “embutido” na norma. Para todos os efeitos e em todas as suas variações, o utilitarismo é uma ética te- leológica. Uma ética que visa fins, que tem uma finalidade. A finalidade é promover a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas, o que, por sua vez, levaria a se buscar o maior benefício possível ao maior número de pes- soas. Tudo isso pelo pressuposto de que nossas ações geram efeitos. Efeitos esses que podem nos aproximar do fim pretendido ou nos afastar dele, eis o porquê do cálculo sobre as consequências dos nossos atos. Isso também levou o utilitarismo a ser associado a um consequencialismo,uma ética em que o efeito pode ser tão o mais importante quanto a intenção da ação. Enquanto um consequencialismo, a ética utilitarista não se prende a princípios absolutos de certo e errado, cada situação demandaria um curso de ação diferente; mesmo considerando o norte mais geral oferecido por regras utilitaristas previa- mente pensadas. O curioso é que, embora o foco seja diferente da ética do dever, as duas aborda- gens – que não são imunes a críticas – podem convergir em muitos pontos. O primeiro deles é de, justamente, não apresentar uma lista muito específica de pode ou não pode, como fazem os mandamentos morais. O segundo ponto que coloca ambas na condição de pensamento ético é oferecer critérios para avaliação 16 17 das ações o que exige um aprendizado e uma reflexão por parte das pessoas. Por exemplo, para ética kantiana do dever, o roubo é antiético não porque seja pecado, mas por não ser uma conduta capaz de racionalmente ser considerada universal. Já para o utilitarismo, a consequência do roubo é produzir benefícios a quem rouba às custas de se prejudicar a vítima (ou vítimas nos casos de corrupção na gestão pública) e, portanto, inaceitável. Mas, como todos os modelos podem ser passíveis de críticas, ambos os formatos, quando levados ao extremo, carregam seus dilemas, o que expõe os seus limites. Uma extremada ética do dever que buscasse pela simples generalização para es- tabelecer um fundamento da ação teria problemas com situações do mundo contem- porâneo – por exemplo, na conduta médica, um paciente em situação que demanda cuidados maiores deveria ser privado de saber a verdade sobre um ente querido que faleceu enquanto esse paciente se recupera? Notoriamente, a contrariedade pode agravar o estado de saúde já comprometido do paciente, ou seja, colocando a vida do mesmo em risco. Mas está se mentindo para aquele paciente, e isso não é anti- ético? Para uma leitura pura da ética do dever sim, pois uma leitura pura não prevê “situações especiais” e o princípio ou é aplicado universalmente ou não é aplicado. Do lado da ética das consequências, o utilitarismo, propõe sempre buscar a máxi- ma felicidade ao maior número de pessoas. Nesse caso, por exemplo, se um indiví- duo é um criminoso, mas fisicamente saudável, então a sociedade deveria colocar os interesses coletivos acima dos interesses individuais? Deveríamos submetê-lo à euta- násia para retirar seus órgãos e transplantá-los para outras boas e produtivas pessoas da sociedade que contribuiriam melhor para o todo? A história é repleta de exemplos de supostos interesses coletivos que cometeram as maiores atrocidades, afinal, a qual coletividade nos referimos? O número de beneficiários justifica a ação por si mesma? Talvez a ética do dever precise da ponderação acerca das consequências dos atos ou dos princípios adotados, da mesma maneira que a ética das consequências precise do freio dos princípios estabelecidos pelos valores da coletividade como um tipo de limite sobre o cálculo dos resultados. O mundo contemporâneo com toda a sua complexidade, principalmente, na- quilo que se refere ao tratamento da Vida e da própria Natureza, demanda uma constante reflexão sobre qual o melhor caminho a se seguir. Parece-nos que uma única escola de pensamento não consegue sozinha responder a todas as questões, seja um relativismo ou um virtuosismo antigo, seja o dever ou as consequências pensadas pelos modernos. O século XX, com o seu vertiginoso desenvolvimento científico, ampliou ainda mais o desafio, não apenas da compreensão do mundo, mas de como agir nele. Por isso, na etapa seguinte, traremos para a discussão uma última linha de pensamento ético, que, combinada em maior ou em menor medida com as ou- tras linhas de pensamento, pode nos oferecer não respostas definitivas, mas instrumentos para buscarmos uma melhor compreensão sobre a ética, a vida e a natureza no mundo (atual) que nos rodeia. Essa pode ser a grande contribuição da ética da responsabilidade. 17 UNIDADE Entre o Dever e a Consequência Material Complementar Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade: Livros Fundamentos da ética BRAGA JUNIOR, A. D. Fundamentos da ética. Curitiba: InterSaberes, 2016. (e-book) Bioética: fundamentos e reflexões JORGE FILHO, I. Bioética: fundamentos e reflexões. Rio de Janeiro: Atheneu, 2007. (e-book) Bioética: uma diversidade temática RUIZ, C. R; TITTANEGRO, R. Bioética: uma diversidade temática. São Caetano do Sul, SP: Difusão, 2007. (e-book) Homo ecologicus: ética, educação ambiental e práticas vitais PELIZZOLI, M. L. Homo ecologicus: ética, educação ambiental e práticas vitais. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011. (e-book) 18 19 Referências BARBIERI, J. C.; CAJAZEIRA, J. E. R. Responsabilidade social empresarial e empresa sustentável: da teoria à prática. 2.ed. atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. BENTHAM, J. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução de Luiz João Baraúma. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984. CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. 13.ed. São Paulo: Ática, 2003. KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Traduzido do alemão por Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. LALANDE, A. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. Tradução de Fátima Sá Correia et al. São Paulo: Martins Fontes, 1993. MULGAN, T. Utilitarismo. Tradução de Fábio Creder. Petrópolis: Vozes, 2012. 19
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