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Ética, Cidadania e Sustentabilidade Créditos Centro Universitário Senac São Paulo – Educação Superior a Distância Diretor Regional Luiz Francisco de Assis Salgado Superintendente Universitário e de Desenvolvimento Luiz Carlos Dourado Reitor Sidney Zaganin Latorre Diretor de Graduação Eduardo Mazzaferro Ehlers Diretor de Pós-Graduação e Extensão Daniel Garcia Correa Gerentes de Desenvolvimento Claudio Luiz de Souza Silva Luciana Bon Duarte Roland Anton Zottele Sandra Regina Mattos Abreu de Freitas Coordenadora de Desenvolvimento Tecnologias Aplicadas à Educação Regina Helena Ribeiro Coordenador de Operação Educação a Distância Alcir Vilela Junior Professores Autores Flávia Cristina Martins Mendes José Antônio Fracalossi Meister Revisor Técnico Marcelo Gasque Furtado Valdelis Fernandes de Andrade Karin Pfannemüller Gomes Técnico de Desenvolvimento Carolina Tiemi Sato Komatsu Coordenadoras Pedagógicas Ariádiny Carolina Brasileiro Silva Izabella Saadi Cerutti Leal Reis Nivia Pereira Maseri de Moraes Otacília da Paz Pereira Equipe de Design Educacional Alexsandra Cristiane Santos da Silva Ana Claudia Neif Sanches Yasuraoka Angélica Lúcia Kanô Anny Frida Silva Paula Cristina Yurie Takahashi Diogo Maxwell Santos Felizardo Flaviana Neri Francisco Shoiti Tanaka Gizele Laranjeira de Oliveira Sepulvida Hágara Rosa da Cunha Araújo Janandrea Nelci do Espirito Santo Jackeline Duarte Kodaira João Francisco Correia de Souza Juliana Quitério Lopez Salvaia Jussara Cristina Cubbo Kamila Harumi Sakurai Simões Katya Martinez Almeida Lilian Brito Santos Luciana Marcheze Miguel Mariana Valeria Gulin Melcon Mônica Maria Penalber de Menezes Mônica Rodrigues dos Santos Nathália Barros de Souza Santos Rivia Lima Garcia Sueli Brianezi Carvalho Thiago Martins Navarro Wallace Roberto Bernardo Equipe de Qualidade Ana Paula Pigossi Papalia Josivaldo Petronilo da Silva Katia Aparecida Nascimento Passos Coordenador Multimídia e Audiovisual Ricardo Regis Untem Equipe de Design Audiovisual Adriana Mitsue Matsuda Caio Souza Santos Camila Lazaresko Madrid Carlos Eduardo Toshiaki Kokubo Christian Ratajczyk Puig Danilo Dos Santos Netto Hugo Naoto Takizawa Ferreira Inácio de Assis Bento Nehme Karina de Morais Vaz Bonna Marcela Burgarelli Corrente Marcio Rodrigo dos Reis Renan Ferreira Alves Renata Mendes Ribeiro Thalita de Cassia Mendasoli Gavetti Thamires Lopes de Castro Vandré Luiz dos Santos Victor Giriotas Marçon William Mordoch Equipe de Design Multimídia Alexandre Lemes da Silva Cristiane Marinho de Souza Emília Correa Abreu Fernando Eduardo Castro da Silva Mayra Aoki Aniya Michel Iuiti Navarro Moreno Renan Carlos Nunes De Souza Rodrigo Benites Gonçalves da Silva Wagner Ferri Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 01 Conceito de ética e seu legado para o Ocidente Objetivos Específicos • Conhecer o percurso histórico da ética. Temas Introdução 1 Palavras que se formam e se eternizam 2 A aplicabilidade da ética 3 Panorama histórico da ética 4 Ética aplicada Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução Nesta aula, faremos uma viagem histórica por um dos conceitos mais ricos e desafiadores para a filosofia e para a história da humanidade: a ética. Se analisarmos os precursores da filosofia, identificaremos em seus escritos pontos relacionados à ética – nem sempre assim descritos, mas presentes. Por exemplo: os pré- socráticos, ao se perguntarem pelos princípios das coisas, já buscavam responder “quem somos?” e “qual o princípio ordenador de todas as coisas?”. Pensar sobre ética é admitir que o ser humano não nasce pronto, acabado e determinado, ao contrário, ele nasce com possibilidades de “vir a ser”, conforme o que fizer de sua vida. Isso significa que as pessoas têm a possibilidade de agir de forma certa e errada. O humano é um ser em constante formação, assim, não existe uma resposta única sobre a ética, mas várias alternativas de ação. Na prática, as sociedades, das mais antigas às mais atuais, sempre privilegiam um determinado tipo de ação, o qual é considerado aceito ou não. E, dentro das sociedades, existem também específicas formas de ética ou práticas que se dirigem a grupos determinados. Por exemplo, a ética profissional, empresarial, bioética etc. Nosso desafio é fazer essa viagem e descobrir a riqueza do pensamento e da experiência humana no decorrer da história. A proposta é entender a ética em seu contexto histórico desde os pré-socráticos até a contemporaneidade. Entenderemos também os conceitos de ética e de moral, aspectos históricos, a herança ética ocidental, as situações que envolvem a ética e os problemas relacionados a ela. Assim, você terá uma compreensão da ética, um pouco da sua história, seus conceitos e suas aplicações aos comportamentos humanos. 1 Palavras que se formam e se eternizam Os termos ética e moral geralmente são admitidos como sinônimos, mas, para entender o porquê da confusão em equipará-las, é preciso visualizar as duas palavras em sua origem. Antes de detalharmos os conceitos fundamentais para esta disciplina, vamos a um exemplo, considerando que buscar o sentido de uma palavra pode nos ajudar muito em sua compreensão, mas pode não dizer tudo o que necessitamos saber sobre ela. O substantivo pedofilia, por exemplo, tem origem grega: ped(o) (criança) + filia (amigo). Assim, em seu sentido etimológico1, o pedófilo seria o “amigo da criança”. Mas, como sabemos, atualmente, o termo tem outra conotação: pedófilo é aquele que sente atração sexual por crianças ou pratica pedofilia (psicopatologia: distúrbio ou perversão que faz com que uma pessoa em idade adulta 1 Etimologia é o estudo da origem, formação e evolução das palavras e da construção de seus significados a partir dos elementos que a compõem. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 se sinta atraída por crianças). Logo, a origem da palavra nos dá uma ideia de seu sentido e o contexto no qual surgiu, mas não é sempre suficiente para tudo o que necessitamos. 1.1 A palavra “ética” e seu conceito inicial A palavra ética tem origem na palavra grega ethos e significa costume, a forma como o ser humano se molda conforme seu jeito de ser, fazendo assim seu abrigo protetor e o constituindo à medida que vive e estabelece suas relações. Pessoas só conseguirão ser éticas se tiverem alguma informação, se forem capazes de articular essa informação com as diferentes circunstâncias sociais e pessoais, se souberem refletir e, acima de tudo, apropriarem-se conscientemente dos exemplos e ensinamento (LACERDA; PESSOA, 2018, p. 8). A ética também evoluiu, pois é fruto das experiências humanas, ou seja, é resultante do que é vivido. Por isso, se é uma teoria, também é resultante das experiências vividas pela humanidade. Por exemplo, o dinheiro não regia as relações nas sociedades primitivas. Nelas, vivia-se a partir de uma concepção coletiva de bens. O que era de um, era de todos, e o que era de todos, era ao mesmo tempo de cada um, “meu” e “teu” eram sinônimos de “nosso”. Não há fragmentação entre posse e uso. Atualmente, pela forma como a sociedade está estruturada, não se consegue entender a posse dos bens do mesmo modo. Quem não tem dinheiro tem dificuldade de garantir ao menos os bens básicos e necessários para viver. Esse é um modo da sociedade atual se constituir. O que se deseja é construir uma ética dando a possibilidade de uma identidade a cada ume ao mesmo tempo constituir um princípio universal. Mas a mudança da ética não nos dá o direito de pensá-la como relativista. Ela é relativa ao tempo e ao espaço onde se encontram as pessoas que dela fazem uso, ou seja, ela é relativa ao local onde se faz presente. Todo pensamento ético busca a universalidade, busca ser para todos, embora nunca o seja, pois quem constrói as relações e o modo de constituir seu ser social são as pessoas dentro de um determinado tempo e espaço. Ao nos voltarmos para o resgate histórico da palavra ética, sempre nos levamos ao que os gregos já nos chamavam a atenção: a ética é o que nos faz pensar sobre os hábitos e costumes, a fim de que se consiga uma boa convivência na casa onde se habita. Isto é, que se consiga construir um pensamento que permita que as pessoas tenham a possibilidade de viver bem, em harmonia. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 1.2 Valor: base da ética A palavra moral tem correspondência com a palavra em latim mos ou moris, e significa costumes e tradições, ou seja, um modo de organizar o lugar onde estamos, fazendo-o de nosso jeito. Assim, a moral está intimamente vinculada aos costumes, às tradições e aos valores de cada povo, de cada lugar. Os valores e costumes são transmitidos de geração em geração. Por exemplo: a moral do índio é diferente da moral do bandeirante, e esta é diferente da moral do português e assim sucessivamente. O que deve ficar claro é que cada povo constitui seu modo de ser e viver. Agora, o que entender por valores e sua relação com a ética? De maneira simples, pode-se afirmar que valor é aquilo que vale para nós e tudo aquilo que não nos é indiferente. Os valores são estudados pela axiologia (do grego axiós, que justamente quer dizer valor) e para entender esse conceito, pense que quando algo nos chama a atenção – seja por ser bom ou por ser mau – é um valor. Entre os bons valores, há o amor, felicidade, solidariedade. Entre os maus ou falsos valores estão a violência e a desigualdade. O certo é que toda ética parte de valores que são socialmente aceitos, visto que como tal passam a ser importantes para determinada sociedade e, por isso, busca-se a sua implantação, por meio de ações morais. Os valores nos arrastam e nos atraem, por isso são muito importantes e nos tiram da indiferença. Se forem positivos, nos atraem para que façamos o que ensejam e, portanto, são éticos; se não negativos, nos atraem para que venhamos a repeli-los e, consequentemente, são antiéticos ou imorais. Temos diante de nós sempre a possibilidade de agir de um ou outro modo. Segundo Boff (2003, p. 34, grifo do autor), “todos possuem o daimon, esse anjo protetor que nos acompanha sempre, um dado tão objetivo como a libido, a inteligência, o amor e o poder”. Vivemos então com a realidade protetora, e a realidade que nos fragmenta, o diabólico, que lança “[…] coisas para longe, de desagregada e sem direção; jogar para fora de qualquer jeito” (BOFF, 2003, p. 12). Relacionar-se com as coisas e com as pessoas desperta em nós o mundo dos valores. Estes passam a existir à medida que nos relacionamos. Logo, passamos a entender que a base da ética é o valor, pois, nas relações que as pessoas passam a estabelecer com os demais seres da natureza, os valores são revelados. Portanto: Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 A não indiferença é a principal característica do valor. [...] Os valores existem na ordem da afetividade, uma vez que não ficamos indiferentes diante de alguma coisa ou pessoa, mas sempre somos afetados por elas de alguma forma [...] Valorar é uma experiência fundamentalmente humana que se encontra no centro de toda escolha de vida (ARANHA; MARTINS, 1998, p. 117). Entende-se assim porque na base de qualquer reflexão ética estão os valores, pois são eles que nos chamam a atenção para os fatos, são eles que nos levam ao julgamento para aceitar uma coisa como sendo boa ou má. A reflexão sobre os valores é o primeiro passo para que o ser humano possa fazer ética, pois, conforme as relações que são estabelecidas e pela forma como elas nos tocam e nos tiram da indiferença, passamos a considerar determinada atitude, prática ou discurso como ético ou não. 1.3 Relativismo Outra questão que surge quando refletimos sobre ética é se existem valores que valem para todas as pessoas, em qualquer lugar e em qualquer tempo. Se acreditarmos que os valores são absolutos, então não teremos mais dúvidas sobre o que é certo e o que é errado, tudo já está resolvido de antemão. Entretanto, se o certo e o errado já estão postos, os seres humanos estarão reduzidos à condição de meros reprodutores de regras definidas anteriormente e por um ente superior. Mas, e se os valores não forem absolutos? Deparamo-nos com o desafio do relativismo. De acordo com o relativismo moral, o “certo” e o “errado” são relativos, pertencem apenas a quem está tomando a decisão, e temos apenas respostas individuais para qualquer questão ética. Cada um sabe o que faz e decide o que é certo ou errado. A forma mais conhecida de relativismo é o relativismo ingênuo, a ideia de que cada um de nós é a própria medida de julgamento de nossas ações. Nossas decisões éticas seriam personalistas e não existiriam meios para nossos semelhantes julgarem se nossas escolhas são/foram eticamente melhores do que outras, das quais abrimos mão. Se etimologicamente ética e moral são tomadas como sinônimos, vamos estabelecer e admitir para nosso estudo a diferença entre elas. A ética está relacionada aos estudos (portanto, é uma teoria) das condutas humanas e é uma parte de outra ciência, a filosofia. O estudo do comportamento humano vai além da observação dos costumes de uma comunidade ou povo, ele investiga as boas e más ações na política, nas empresas, no campo profissional, nos experimentos de engenharia genética etc. Essa parte da ética ou da filosofia é denominada prática, pois tem como intuito a aplicabilidade direta para uma realidade específica Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 . Conhecer a origem da palavra é importante, mas devemos lembrar que as palavras, assim como as pessoas, são dinâmicas. Por isso, mais do que sabermos de onde vem a palavra e qual é seu significado original, é necessário entendermos seu conceito e sua importância dentro de determinada realidade. Cabe destacar que a ética se funda sobre valores, liberdade e experiências vividas pela humanidade, assim sendo, é fundamental entendermos que a ética serve para determinados lugar e tempo. Quando há mudanças no modo de ser das pessoas, da mesma forma a ética e a moral daquele determinado espaço também se modificam. Assim, pode-se afirmar que a ética indica uma parte prática da filosofia e tem como intuito orientar as decisões concretas das pessoas e da sociedade (a isso denominamos moral), uma vez que todas as nossas ações impactam o ambiente e os demais seres ao nosso redor. Quadro 1 – Ética e moral É a parte da filosofia que se ocupa dos fundamentos da vida moral. Ética Conjunto de regras que determina o comportamento dos indivíduos na sociedade. Moral Fonte: Adaptado de Aranha e Martins (1986). O importante na questão conceitual sobre ética e moral é que a primeira é teoria, e a segunda é a prática dessa teoria. Assim, toda vez que praticamos atos que são classificados como morais ou não, o são com base em uma teoria – a ética. E quando uma ação é realizada de modo consciente e deliberadamente contrária à ética, tem-se o que denominamos “ato imoral”. 2 A aplicabilidade da ética A educação é uma formade se aplicar e ensinar os princípios éticos. Os pais exercem um papel essencial na formação ética dos filhos, que, posteriormente, será assumida pela sociedade por meio das instituições escolares e religiosas, entre outros. Quando o indivíduo se insere e passa a ter contato com outros meios além dos familiares (empresas, meios de comunicação social, como rádio, televisão etc.), essa forma de educação é exercida por eles. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 O chefe ou patriarca nos grupos parentais ao lado dos pais determinava as normas de comportamento para o grupo todo. Historicamente, a humanidade passou por quatro etapas sucessivamente (família, tribo, cidade e nação) e, a mais recente, globalização. Figura 1 – Etapas da humanidade Família Tribo Cidade Nação Globalização Fonte: Adaptado de Alonso (2002). Primeiro, as famílias formam tribos, “[…] unidas por vínculos de parentesco e de serviços” (ALONSO, 2002, p. 95). A união de várias famílias dá surgimento às tribos e estas, com seu crescimento, reúnem-se na forma de cidades. É importante observar que, ao longo da história, algumas regras éticas do grupo familiar, da tribo, da organização da cidade e das religiões se sobrepuseram e perduraram porque foram reconhecidas tanto individual como coletivamente. “Na medida em que crescem os agrupamentos humanos, passando da tribo para as cidades, parece que a educação das pessoas e, consequentemente a ética (em seu aspectos públicos ou cívicos) sofrem ou se deterioram” (ALONSO, 2002, p. 97). Diante disso, cabe-nos refletir sobre questões que fazem parte do universo da ética, tais como: O que devo fazer? Como devo me comportar? Qual a melhor conduta para a situação? Que decisão tomar? 3 Panorama histórico da ética A ética tem seu berço nas cidades-estado gregas. Mais precisamente no século V a.C. quando a pólis (cidade) grega constituiu seus primeiros estudos sobre ética. Valls (1987, p. 24-25) chama a atenção para o fato de que: A reflexão grega neste campo surgiu como uma pesquisa sobre a natureza do bem moral, na busca de um princípio absoluto da conduta. Ela procedeu do contexto religioso, onde podemos encontrar o cordão umbilical de muitas ideias éticas, tais como as duas formulações mais conhecidas: ‘nada em excesso’ e ‘conhece-te a ti mesmo’. O contexto em que tais ideias nasceram está ligado ao santuário de Delfo do deus Apolo. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 Os conceitos de ética não podem ser entendidos e vistos fora de seu contexto histórico. É dentro de uma realidade e de uma época que surgem determinadas necessidades humanas. Toda a reflexão ética, portanto, faz parte de um período histórico. Por isso, ela é dinâmica e muda conforme a realidade em questão. Vamos passar por grandes períodos históricos, que também são divididos nos estudos da civilização humana: Idade Antiga, Idade Média (segundo maior período da história), Idade Moderna e Idade Contemporânea. Nosso foco será no mundo ocidental, no qual estamos inseridos, mas trataremos também do mundo oriental. No quadro que representa brevemente a cronologia da ética, é possível verificar a riqueza do pensamento ético no transcorrer do tempo. Quadro 2 – Cronologia da ética Pré-socráticos Antiguidade Idade Média Modernidade Idade contemporânea Séc. XII a. C. Os Dórios criam colônias. Homero: Escreve a Odisseia e a Ilíada. Séc. VI a. C. Primeiras formulações filosóficas. Pré-socráticos: A origem das coisas (água, terra, fogo e ar). Empédocles: Amor e ódio. Demócrito: A ignorância é a causa do erro. A harmonia concede a calma, saúde e a felicidade. Séc. V a. C. Sócrates: O que importa é viver sem cometer injustiças, nem mesmo a retribuição a uma injustiça recebida. Ter consciência de sua ignorância. Séc. V – IV a. C. Platão: Reminiscência - o conhecimento nos coloca em contato com a alma que faz surgir o conhecimento. Séc. IV a. C. Aristóteles: O bem é a finalidade da ética, fruto do conhecimento, a sua ausência leva ao mal. Séc. IV – V Santo Agostinho: A razão da filosofia é chegar à felicidade que se encontra em Deus. São Tomás de Aquino: Busca unir a fé e a razão. As criaturas não existem por elas mesmas, por isso estão separadas de sua essência. Só Deus tem a essência e existência. Séc. XIII Séc. XVI - XIX Caracteriza -se pelo fim da ligação entre Igreja e Estado. Agora cabe ao homem descobrir a razão de ser das coisas. Espinosa: A razão é capaz de estabelecer o bom e o mal, e de frear as paixões. Hume: moral utilitarista. Locke: cada homem deve aprovar e recomendar as regras para a vida em sociedade. Hobbes: o desejo da conservação torna os homens solitários por natureza, egocêntricos, agressivos, o que os leva a viver em sociedade e se comportar. Cooperando, podem ser felizes. Kant (grande expoente): A razão é universal e não individual. Age de tal modo sua ação seja universal. Caracteriza -se pela pluralidade da ética = éticas. Revolução industrial e capitalismo marcam a reflexão. Fundamentação transcendental. O homem é a origem dos valores e das normas morais. Iniciado por Hegel. Destacam-se Nietzsche e Shopenhauer. Guerras desvalorização da vida, exploração, gera busca da verdade. Expoentes atuais: Apel , Jonas, Hosle, Gadamer , Levinas, Dussel, Ricouer , entre outros. 3.1 Período grego O conceito e o estudo da ética ocidental se iniciam no período pré-socrático e, em seguida, têm continuidade com Sócrates, Platão e Aristóteles. As três obras fundamentais da ética ocidental são: Ética a Nicômaco, A grande moral e Ética a Eudemo, todas aristotélicas. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 É preciso destacar que, no contexto de formação da filosofia, as preocupações dos primeiros filósofos (pré-socráticos) eram de ordem cosmológica, ou seja, esses pensadores se interessavam em responder às questões sobre como o mundo é constituído, sobre a origem do universo etc. Podemos afirmar que a ética ocidental nasce com Sócrates, que promove uma virada nas preocupações da filosofia, focando o interesse não mais em aspectos externos ao ser humano, como os filósofos anteriores (formação do universo, constituição das coisas etc.), mas justamente nas virtudes que importam para a formação do homem. Sócrates passa a investigar o interior do ser humano e as condições que podem torná-lo excelente do ponto de vista moral. Nas cidades gregas, a nova ciência, a ética, era a matéria-prima das leis da pólis. É possível afirmar que, ao mesmo tempo em que os agrupamentos humanos aumentaram de tamanho, os problemas relacionados com as ações das pessoas também cresceram. A primeira obra a tratar da ética foi Ética a Nicômaco, de Aristóteles. Nela, ele pretendia melhorar a vida pública nas cidades gregas. Nessa obra, os temas da felicidade, das virtudes e da amizade são examinados. A felicidade para Aristóteles é um estado na vida terrena, não é um conceito sobrenatural ou presente divino. No entanto, a felicidade aristotélica não pode ser confundida com a simples procura por prazer. Em verdade, Aristóteles afirma que ela mora na contemplação, na observação das atividades da mente, na reflexão. [...] é ela procurada sempre por si mesma e nunca em vistas em outra coisa [...]. A felicidade é algo absoluto e autossuficiente, sendo também a finalidade da ação [...] o homem feliz vive bem e age bem; pois definimos praticamente a felicidade como uma espécie de boa vida e boa ação (ARISTÓTELES, 1987, p.15-17). Para o filósofo grego, fazer o bem torna-se uma base pela qual podem se estabelecer as ações éticas, isto porque quem busca a felicidade busca algo absoluto e tem, portanto, uma base sólida para seu agir. Assim, como toda ética procura o bem, a busca da felicidade seria a função da busca ética, e o resultado do agir seria a felicidade em si. O conceito de felicidade em Aristóteles não é um momento isolado, mas resultante de uma busca constante e sólida. Não é algo passageiro, é um projeto de vida, uma busca constante e incansável e que quem consegue atingir o bem, atinge também a felicidade. Ser feliz é fazer o bem. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 3.2 Período medieval O período medieval apresenta um pensamento imbuído de visão religiosa cristã. Os grandes pensadores da filosofia e, consequentemente, da ética montam suas reflexões a partir do entendimento do papel de Deus como aquele que dá a vida, visto que cabe ao ser humano fazer a Sua vontade. Assim, a ideia do amor cristão passa a ser tema da ética e da reflexão durante esse período. Dentre todos os pensadores desse período, cabe destacar dois que são fundamentais para nossa reflexão ética: Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Santo Agostinho (354-430 d.C.) parte da ideia religiosa do pecado e sua origem na concepção do paraíso. Lá, houve a ruptura da harmonia da convivência de Deus e o homem, a qual se chamou de pecado. A partir desse momento, sabemos o que é o bem e o que é o mal. Logo, de acordo com esse ponto de vista, ser uma pessoa boa é ser alguém que vive conforme a vontade de Deus. A grande virtude humana está em buscar constantemente a Deus. O problema da felicidade constitui, para Agostinho, toda a motivação do pensar filosófico. Uma das últimas obras que redigiu, a Cidade de Deus, afirma que ‘o homem não tem razão para filosofar, exceto para atingir a felicidade [...] A filosofia é assim entendida [...] como uma indignação sobre a condição humana à procura da felicidade (PESSANHA, 1987, p. 12). No ano de 1252, Tomás de Aquino começou a lecionar e a escrever para a Universidade de Notre Dame, criada em 1215 após a união das escolas vinculadas à Catedral de Paris. Em seus discursos e argumentos, Aquino “cristianizou” Aristóteles. Sua obra fundamental é a Suma Teológica, que harmoniza razão e fé, liberdade e autonomia nas questões éticas. Uma ética racional, livre e autônoma deve ser considerada um ponto de coexistência, de convergência entre as culturas ocidental, judaica e árabe, pois, com as traduções dos estudos éticos de Aristóteles, aprendemos a pensar sobre a ética de maneira universal. O ponto de partida para construção do tomismo – e a consequente cristianização de Aristóteles – parece residir na hábil transformação que Santo Tomás operou na distinção aristotélica entre essência e existência. [...] O conteúdo da filosofia aristotélica é mantido em seu arcabouço racional. Mas é o bastante para torná-la capaz de servir de fundamentação racional para os dogmas da revelação cristã, defender a ortodoxia da igreja e dar combate às correntes consideradas heréticas (MATTOS, 1998, p. 9). Dentro do pensamento de Tomás de Aquino não se pode deixar de considerar as cinco vias que levam a Deus, tidas como a prova de Sua existência: • Deus é a razão de o universo estar em movimento; • Deus é a causa e efeito de todas as coisas; Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 • Todos os seres são gerados ou estão se corrompendo, logo, não tem a razão de ser em si, além de Deus; • As coisas têm graus hierárquicos de perfeição e a comparação é o absoluto, que é Deus; • Deus é responsável pela ordem de todas as coisas. Início de caixa Importante O pensamento tomista é importante, nesse diálogo que se faz entre fé e razão presente até hoje nos debates filosóficos e teológicos, assim como nas questões sobre as origens dos seres. O cuidado que se deve ter é não cair em fundamentalismo e nem mesmo em um ateísmo exacerbado. Nenhum deles nos leva ao fim de toda busca humana que é a verdade. 3.3 Período moderno A queda da cidade de Constantinopla em 1453 é considerada o marco do início da Idade Moderna, para uma parcela de historiadores. Para outros, esse marco seria o descobrimento da América em 1492. No continente europeu, o Renascimento e o Protestantismo revolucionam o contexto da época. As primeiras nações2 europeias foram formadas na Idade Moderna. Muitas cidades e pequenos reinos integrados formaram as monarquias nacionais. Durante a modernidade, sente-se a necessidade de encontrar um fundamento da ética despregado da religião e ancorado na própria racionalidade humana. É preciso destacar que é na obra de Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, que o imperativo categórico é formulado. A Revolução Francesa (1789) traz uma mudança radical na ética praticada até então, porque traz o conceito de liberdade de pensamento. Liberdade que rompe a visão tradicional, que atinge o exercício do poder do Estado e representa um grande número de pessoas em torno da ideia de nação. Nesse período, Kant desponta como o pensador ético por excelência, porque busca os fundamentos últimos, necessários e universais de todas as coisas. Suas obras mais importantes são: Crítica da razão pura, Critica da razão prática e Fundamentação da metafísica dos costumes. 2 Nações são formadas por povos reunidos porque possuem história, língua e culturas comuns e que ocupam o mesmo território. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes [...] a vida moral aparece como forma através da qual se pode conhecer a liberdade, enquanto na Crítica da Razão Prática a liberdade é investigada como a razão de ser da vida moral. [...] a lei moral provém da ideia de liberdade e que, portanto, a razão pura é por si mesma prática, no sentido de que ideia racional de liberdade determina por si mesma a vida moral e com isso demonstra sua própria realidade (CHAUÍ, 1987, p. 15). Observe o quanto é complexo o pensamento kantiano; apesar de sua complexidade, após Kant, não há a possibilidade de se fazer ética sem estudá-lo. Podemos aceitá-lo ou não, mas não podemos deixar de conhecê-lo. Até hoje muitos filósofos estudam seu pensamento, buscando encontrar novidades e justificativas para a ética. É importante pensar a ética kantiana a partir do que ela denomina imperativos categóricos, que se referem à correspondência entre a liberdade e a lei prática. Essa lei, por ser fruto da liberdade, nos impõe deveres, por isso, sem pensamento ético, é denominada ética dos deveres Pensemos bem concretamente: encontro uma amiga na rua e, depois de conversarmos, digo: “Irei te visitar”. Nada me obrigou a dizer que iria visitá-la, foi puro fruto de minha liberdade de ação, logo, criei um dever moral para mim, porque sou livre para fazê-lo. Disso surge o grande imperativo categórico de Kant que é: “age de tal maneira que o motivo que te levou ao agora possa ser convertido em lei universal”, isto é, se todos fizerem o que faço, nos sentiremos bem e confortáveis. 3.4 Período contemporâneo Ética no mundo contemporâneo poderia ser mais bem colocada sob a óptica da pós- modernidade, do relativismo de valores e do impacto da tecnologia e da globalização. Esse processo de grandes mudanças levou a humanidade a clamar cada vez mais por ética, como uma forma de recobrar uma linha de ação, que deixa de lado as grandes ganâncias impostas pelo capitalismo. O mundo do século XX provoca um abalo na reflexão ética, especialmente com o surgimento do nacionalismototalitário. Temos a ascensão do nazismo, do imperialismo, do socialismo comunista e uma série de práticas que devastaram a Europa. Com o processo de globalização, a ética foi definida de um modo mais abrangente e associada ao estudo da maneira pela qual nossa tomada de decisão impacta na vida e em todas as atividades desenvolvidas. Os problemas não podem mais ser resolvidos localmente e pensados globalmente. E o que se depreende de todo esse cenário é que: Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 O novo século inicia-se com avanços tecnológicos excepcionais. Em áreas como as comunicações, a informática, a robótica, a biotecnologia e outras, o ritmo das inovações é elevado. Isso tem multiplicado a capacidade de produção de bens e serviços, e tem aberto novas áreas para investimentos. Contudo, ao mesmo tempo em que a humanidade, dado o enorme poder de produção provocado pela revolução tecnológico em andamento, tem hoje a possiblidade crescente de derrotar todas as teses malthusianas, boa parte do gênero humano convive com o agravamento de seus problemas de sobrevivência no dia-a-dia. (KLIKSBERG, 2003, p. 27) Para Morin (2005, p. 26), “a ética tornou-se, portanto, laica e individualizada; com o enfraquecimento da responsabilidade e da solidariedade, impõe-se uma distância entre a ética individual e a ética da cidade”. Há uma série de situações nas quais o mundo contemporâneo nos apresenta e que devemos descortinar uma jornada de pensamento a ser vivida. Muitos valores e princípios foram relativizados e agora passam a ser reconhecidos. Por um lado, essa situação abre perspectivas importantes para comportamentos antes jamais imaginados, por outro, é preciso refundar um pensamento ético a partir desse modo de compreender a relação e a vida, por exemplo: a homossexualidade, o adultério, o aborto, a moral familiar etc., e que, segundo Morin (2005), leva ao enfraquecimento da tutela comunitária, ao universalismo ético e ao desenvolvimento do egocentrismo. É sobre essas bases que se deve refundar ou fundamentar a ética contemporânea. 4 Ética aplicada A ética aplicada ou também denominada ética prática é um campo bem atual, pois é suscitada por uma série de questões que até então não se apresentavam na forma como atualmente nos desafiam. Tudo isso se deve ao que foi referido anteriormente, a novas perspectivas que se abrem em nossas relações. Existem alguns temas atuais que devem ser pensados sob a óptica da ética, como os experimentos e pesquisas com seres humanos e animais, a riqueza e a pobreza, o meio ambiente, o aborto (de embrião e feto), homicídio, as guerras (existiria uma guerra justa?), as relações entre as empresas e seus funcionários, o meio ambiente, as drogas, a violência, a dor e o sofrimento. E assim temos uma lista quase que infinita para desafiar a reflexão ética na atualidade. De longe, não se pode tratar todos os temas e situações que o mundo nos apresenta hoje, por isso, existem campos específicos da ética para tratar também de temas específicos, por exemplo: ética profissional, ética empresarial, código de ética para a empresa, bioética, ética ambiental (ou eco ética) etc. Tanto em nossa vida pessoal como no ambiente profissional, estamos diante de questões éticas. No mundo corporativo, grande parte das questões éticas são classificadas em quatro níveis. Segundo Stoner (2009), esses níveis são: Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 14 1. Sociedade; 2. Stakeholders (empregados, fornecedores, consumidores, acionistas etc.); 3. Políticas internas de cada empresa; 4. Pessoal (ou individual). A ética teria que constituir todas as decisões dentro de uma organização. Muitas empresas possuem o seu próprio código de ética para orientar e guiar formalmente os comportamentos de seus diretores, especialistas e parceiros de negócios. Órgãos públicos, sindicatos, associações de profissionais liberais têm códigos de ética específicos ou profissionais, nos quais demonstram boa vontade e reconhecem a necessidade e a importância da ética. As ações de uma empresa podem ser antiéticas, um órgão público pode ser palco de corrupção e desvio de recursos financeiros para beneficiar um grupo ou indivíduo. O código de ética de uma instituição, seja ela o governo, empresa, ou ONG (organização não governamental) teoricamente só pode ser vantajoso para os seus stakeholders. Enquanto muitos executivos apenas veem um modismo capaz de capitalizar benefícios ou dividendos, outros têm se desdobrado para criar um instrumento genuíno, com adesão voluntária de todos os stakeholders, incorporando de maneira natural e profissional os princípios éticos da instituição (ARRUDA, 2002, p. 1). Os códigos de ética surgem nas empresas como uma forma de ajudar a constituir as relações entre os diferentes públicos que se relacionam e que gravitam em torno de qualquer organização. Hoje, mais do que isso, pensa-se também na relação com a natureza e com a responsabilidade social. As organizações devem ajudar a construir uma sociedade que possibilite qualidade de vida presente e futura. É importante considerar que o comportamento ético é uma escolha pessoal e séria, contudo, precisamos sim da ajuda de outras pessoas e das instituições para aperfeiçoarmos os nossos conceitos e ações. Se não tivermos padrões sobre os nossos comportamentos e sua correção, qualquer questionamento ou revisão sobre temas universais (aborto, pena de morte, escravidão, exploração do trabalho, direitos humanos etc.) será inviabilizado. Uma conduta ética exige a reflexão e a responsabilidade nos âmbitos individual e coletivo para a construção de uma sociedade com mais democracia e justiça social. Não somos apenas os destinatários das decisões políticas, somos nós que delimitamos por nossas decisões os valores e as metas da nossa sociedade, na medida em que atuamos e temos a possibilidade de participar das diversas instâncias sociais. Possuímos direitos e deveres. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 15 A ética está aí para nos auxiliar na tomada de decisões. O estudo da ética auxilia em nosso desenvolvimento pessoal e toda a humanidade, tanto no presente como no futuro. Devemos perceber a ética não como uma imposição, mas como uma necessidade humana para agir com correção, para construção de uma sociedade mais humana e justa. Se alguém quiser humanizar-se, tem de ser ético; se deseja ser ético, tem que ser humano. Parece um jogo de palavras, mas é uma verdade. Só pode dizer-se que é ético, sendo profundamente humano, e só pode dizer-se ético, quando for imensamente humano. Considerações finais Nesta aula, compreendemos a ética e seu histórico. Abordamos o legado ocidental e os aspectos gerais dessa parte importante da filosofia. Ao final desta aula, você teve uma compreensão histórica da ética no Ocidente e de como refletir sobre os conceitos e problemas éticos, incluindo aqueles relacionados à nossa vida nas empresas e no campo da política. O importante é percebermos que o ser humano necessita de uma ética, para viver e viver bem em sociedade. Diferentemente de seres da natureza que se unem pelos fins que a própria natureza lhes oferece, o ser humano reúne-se em sociedade, como uma necessidade de constituir-se humanamente. Nascemos com essa necessidade e precisamos desenvolvê-la da melhor forma, e, para nos auxiliar nessa tarefa, a ética é um grande guia. Vivemos em um mundo globalizado que nos apresenta sempre cada vez mais desafios aos quais precisamos estar preparados ou, ao menos, alertas para saber como enfrentá-los. Nesse sentido, a ética é a possibilidadee o auxílio que dispomos para poder agir e viver bem em sociedade. Referências ALONSO, Felix Ruiz. Revisitando os fundamentos da ética. IN: COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Fronteiras da ética. São Paulo: Senac, 2002. ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de Filosofia. 2.ed. São Paulo: Moderna, 1998. ARRUDA, Maria Cecília Coutinho. Código de ética. São Paulo: Negócio Editora, 2002. BOFF, Leonardo. Ética e moral: a busca dos fundamentos. Petrópolis: Vozes, 2003. CHAUÍ, Marilena de Souza. Kant – Vida e obra. IN: KANT, I. Crítica da razão pura. 3.ed. São Paulo: Nova Cultura, 1987. KLIKSBERG, Bernardo. Por uma economia com face mais humana. Brasília: UNESCO, 2003. LACERDA, Gabriela; PESSOA, M. Agir bem é bom: ética ontem, hoje e amanhã. São Paulo: Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 16 Editora Senac . São Paulo, 2018. MORIN, Edgar. O método 6: ética. Porto Alegre: Sulina, 2005. PESSANHA, José Américo Motta. In: AGOSTINHO, S. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1987. STONER, James A. F. Administração. 5.ed. Rio de Janeiro: LTC, 2009. VALLS, Álvaro L. M. O que é ética. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 02 Ética e direitos humanos Objetivos Específicos • Compreender os direitos humanos. Temas Introdução 1 Os conceitos de ética e direitos humanos 2 A fundamentação ética 3 A questão histórica 4 A diferenciação social Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução Nesta aula, buscaremos um entendimento da ética e seus elementos constituintes, analisando a sua relação com os direitos humanos e o que eles podem oferecer de fonte inspiradora para a ética. A Declaração Universal dos Direitos Humanos é um tratado sobre os direitos fundamentais, que orienta pessoas e nações e, nesse sentido, inspira a ética, oferecendo um caminho melhor a seguir. Quando nos questionamos sobre alguma atitude ou reconhecemos que não foi uma ação correta, de uma forma ou de outra, sentimo-nos insatisfeitos com nós mesmo. Ao contrário, cada vez que fomos capazes de deitar a cabeça o travesseiro e dizer, cada um a si mesmo, com absoluta convicção de estar sendo sincero, agi bem, fiz o certo, experimentamos alegria (Introdução – para começo de conversa: o que é ética? (LACERDA; PESSOA, 2018, p. 10). Podemos compreender os direitos humanos de dois modos. Como um conjunto de princípios elaborados e estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU), que visa à garantia de direitos considerados fundamentais e essenciais para um bom convívio social, e, segundo Mondaini (2009, p. 12), como um: […] conjunto articulado e interdependente dos direitos civis, políticos, sociais econômicos e culturais, fundados, para além da ideia de universalidade, no princípio da indivisibilidade e no horizonte da internacionalização, condição indispensável para a luta pela construção de uma cidadania global. Um modo representa o conjunto fixado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e que nos é acessível. Já o segundo, pelo fato de ter um caráter mais jurídico, está expresso em muitas leis e, em especial, no caso brasileiro, na Constituição da República Federativa do Brasil. As duas concepções não se contradizem, mas têm um caráter diferencial. A declaração da ONU é uma recomendação aos países membros para que preservem os direitos fundamentais, já a Constituição, pelo seu caráter jurídico é impositiva. A título de exemplificação, o artigo 5º da Constituição Federal afirma: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros, e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá sua função social; […] (BRASIL, 1988). A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo XVII, recomenda: 1. Todo ser humano tem direito à propriedade, só ou em sociedade com outros. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 2. Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade (ONU, 1948, p. 10). Comparando as duas redações, podemos observar que tratam do mesmo assunto – propriedade privada –, de forma diferente, mas não divergente. Para a Declaração, a propriedade é um direito; já para a Constituição, ela é uma garantia. E assim se poderia fazer em relação a outros aspectos. O Brasil, como um país signatário da ONU, acolhe o que diz a Declaração e a transforma em lei, a fim de cumprir essa recomendação importante para o desenvolvimento do ser humano. 1 Os conceitos de ética e direitos humanos A ética surge na história como uma forma de auxílio na resolução dos problemas diários. Isso nos mostra que a humanidade, desde os primeiros agrupamentos, precisou de elementos para agir com correção e justiça. Não devemos esquecer que o ser humano precisa dos outros para se desenvolver, ou seja, a convivência é fundamental. Por outro lado, apesar de fundamental, a convivência pode ser também problemática, pois nas relações estabelecidas surgem os conflitos. A sociedade ideal é, e sempre foi, o sonho da humanidade. Como exemplo, podemos pensar na história do paraíso descrita na bíblia. Lá, temos a realidade perfeita, em que tudo ocorre em harmonia e paz, até o momento em que a harmonia é desafiada pelo ser humano. Este, ao usar sua liberdade, destrói a harmonia. O desafio presente é encontrar formas para fazer com que os seres humanos venham a agir bem e possam conviver harmoniosamente, já que a convivência é uma necessidade humana. A ética é protetiva e auxilia no convívio social. Ela não surgiu como um ato impositivo, mas como uma necessidade humana. Muitas vezes, encaramos a ética como imposição de um grupo sobre outro, porém, é preciso ir além desta concepção e pensá-la como uma necessidade humana para viver bem e se desenvolver plenamente. Tanto os direitos humanos como a ética são constituídos historicamente a partir das situações vivenciadas pela humanidade. Delas, surgem as questões a serem pensadas e respondidas. Direitos humanos e ética buscam oferecer respostas às diversas situações vividas pelas pessoas em sua individualidade e pela humanidade, como um todo, por isso é importante que as relações humanas sejam aceitas e executadas por todos, sem exceção. O pensamento ético e os direitos humanos surgem para proteger o que nos é mais significativo, como a vida, os bens que se dispõem e os direitos fundamentais para que se Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 possa viver dignamente. As normas éticas podem ou não constar de leis ou códigos. Mas o juízo ético é, essencialmente, um juízo moral. Uma ação pode ser legal e não ser ética. E, em certos casos, pode ser ilegal e considerada moralmente ética. Em resumo, a palavra ética se aplica à conduta humana. A ética aprova u desaprova os atos de um ser humano, qualificando-os como certos ou errados, do ponto de vista moral (LACERDA; PESSOA, 2018, p. 10-11). Os direitos humanos são ditos como fundamentais, pois não se pode abrir mão deles. O mesmo se dá com a ética. Algumas pessoas podem não agir eticamente, mas não se pode afirmar que a ética é desnecessária. Temos que manter presente que ética e direitos humanos existem para justificar o nosso convívio social. Direitos devem ser realizados e, por isso, cabe a cada um fazer com que seus direitos se cumpram. Saúde, educaçãoe previdência, entre outros, são direitos fundamentais para que as pessoas possam viver bem. As pessoas, ao se organizarem em sociedade, entendem que juntas tendem a realizar o que está na vontade de cada um e, ao mesmo tempo, faz parte da vontade de todos. Em resumo, todos desejam viver bem, conforme aquilo que reconhecem ser fundamental para si e também para os outros. 2 A fundamentação ética A pergunta sobre como justificar eticamente as ações expressas na Declaração Universal dos Direitos Humanos leva os teóricos a muitas discussões. Surgem questões, como: onde justificar a afirmação que somos todos iguais em dignidade e direitos? É preciso considerar que nascemos diferentes, somos diferentes e precisamos dessas diferenças para que possamos nos desenvolver como humanidade. A discussão aprofunda-se quando nos referimos aos direitos humanos, que envolve duas situações: o direito à vida, ou seja, ao existir, e os direitos aos quais não se pode abrir mão (como liberdade, igualdade etc.). Uma pessoa tem uma dívida para com outra e não tem como pagá-la. Então, resolve trabalhar para o credor de graça até que a dívida seja paga. Você concordaria com isso? Se disser que sim, como essa pessoa se sustentaria? Qual é a diferença entre este trabalho e a escravidão? Como se estabeleceria o tempo que o devedor precisaria trabalhar para pagar essa conta? Quem determinaria esse tempo? Como nós podemos negociar uma dívida? Geralmente, aquele que detém o poder impõe sua vontade sobre o mais frágil; dessa forma, é mais difícil estabelecer uma relação de igualdade Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 A justificação para os direitos humanos é necessária, pois vivemos em uma sociedade em que tudo deve ser justificado e fundamentado. Dentro dessa lógica, o que não for assimilado não se torna defensável. A tarefa de justificação é difícil, mas, ao mesmo tempo, necessária. O que mais se aproxima de uma justificativa para este caso é o fato de dizer que os direitos humanos são elementares, ou seja, são essenciais para todas as pessoas viverem bem. Não basta para o ser humano apenas viver. É preciso que ele viva bem! Tal característica é uma qualidade humana, ao contrário de outros animais para os quais sua condição natural é estar bem. O ser humano, pelo fato de se formar, se tornar humano, precisa de diversos fatores que garantam seu modo de melhor viver. Conforme Mondaini (2009), historicamente, o que se viu foi que os direitos foram aos pouco sendo reconhecidos: as liberdades individuais (direitos civis), a igualdade política (os direitos políticos) e a igualdade social (os direitos sociais). No Brasil, primeiro foram reconhecidos os direitos sociais, já os direitos civis e políticos não eram garantidos. A busca pela efetivação dos direitos humanos é eterna, assim como foi necessário estabelecer seus princípios. Deve-se sempre zelar para que jamais sejam desrespeitados e que os direitos não sejam reconhecidos como tal apenas para alguns. Por isso, vale afirmar os direitos humanos e sua defesa é uma necessidade. Mas as pessoas precisam estar convictas de que lutar por seus direitos é fundamental e, se alguns se apropriarem de direitos que são de todos e excluírem grupos ou alguns dessa obrigação, será ruim para todos. 2.1 Construção social É importante percebermos que os direitos, assim como a ética, são resultantes de uma construção social. As pessoas devem se esforçar para garantir uma ética capaz de concretizar os direitos. Admitir que nos direitos humanos há uma inspiração ética é admitir que em seus fundamentos existe uma concepção de pessoa, de bem e de mal e que os direitos valem para todos, independentemente da orientação religiosa, política ou filosófica individual. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos se afirma que todos os cidadãos devem ter direitos garantidos, dentre os quais destacam-se os direitos à: liberdade, propriedade, segurança e resistência à opressão. Cada pessoa tem como limite os mesmos direitos que os outros, um direito não deve se sobrepor ao outro. É preciso pensar “o que não desejo para mim, não desejo para os outros também”, ou seja, é assegurado aos demais membros Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 da sociedade o desfrutar de direitos que proclamo para mim. Portanto, a Declaração vê a lei como uma expressão da vontade geral. Com isso, busca-se promover a igualdade de direitos e a proibição do que é prejudicial para a sociedade. 2.2 Justificativas para a Declaração Observando o preâmbulo da Declaração, compreendemos o motivo pelo qual esse tratado composto por 30 artigos deve ser seguido por todos: [...] O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (ONU, 2009, p. 2). Todas as constituições do mundo democrático são muito maiores do que esses 30 artigos, mas são imprescindíveis para a coexistência, especialmente em um mundo globalizado, quando os problemas já não são mais pensados localmente. No site da ONU, encontramos justificativas que fundamentam um agir conforme a Declaração Universal dos Direitos Humanos e estes nos demostram ou se justificam por serem éticos. • Os direitos humanos são fundados sobre o respeito pela dignidade e o valor de cada pessoa; • Os direitos humanos são universais, o que quer dizer que são aplicados de forma igual e sem discriminação a todas as pessoas; • Os direitos humanos são inalienáveis, e ninguém pode ser privado de seus direitos humanos; eles podem ser limitados em situações específicas. Por exemplo, o direito à liberdade pode ser restringido se uma pessoa é considerada culpada de um crime diante de um tribunal e com o devido processo legal; • Os direitos humanos são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes, já que é insuficiente respeitar alguns direitos humanos e outros não. Na prática, a violação de um direito vai afetar o respeito por muitos outros; • Todos os direitos humanos devem, portanto, ser vistos como de igual importância, sendo igualmente essencial respeitar a dignidade e o valor de cada pessoa (ONU, 2015). Para mais informações sobre as características da Declaração Universal dos Direitos Humanos, acesse a Midiateca. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 Embora dessa forma tenhamos a justificativa, muitos conceitos precisam ser trabalhados para que se entenda bem o que significam. Um erro comum é acreditar que um termo tem o mesmo significado/valor para todas as pessoas, por exemplo: O que se entende por dignidade humana? Entende-se uma dignidade que inere ao homem, que lhe é concedida independentemente de outro qualificativo, seja biológico, social ou moral. [...] Ela se difere das diversas formas de dignidade contingente. Fala-se [...] de dignidade social em relação aos portadores de cargos políticos ou clericais, de dignidade expressiva, quando a aura de um homem sábio infunde reverência (KAUFMANN, 2013, p. 55, grifo nosso). Mesmo assim, deve-se questionar: será que o que eu entendo é o mesmo que meu amigo, vizinho ou colega entende? Por isso, mesmo tendo uma fundamentação, uma justificativa para a Declaração e para os direitos humanos, deve-se ter claro que a compreensão humana é múltipla e envolve a história, as experiências e os entendimentos individuais e que, por isso, é preciso esclarecer e buscar sempre maiores consensos para que todos possam viver e entender a mesma coisa. A dignidade humana [...] consiste num conceito normativo, que deve proteger todo homem de ser tratado poroutro homem como meio, isto é, como um simples objetivo para consecução de seus fins. Isso implica que todos sejam tratados como possuidores de certo grau de dignidade contingente, que é uma tentativa de proteger os homens de humilhações (KAUFMANN, 2013, p. 55). O quão importante é sabermos o que se entende por dignidade? Embora não se possa dizer tudo o que o conceito abrange, é fundamental entendermos que é a dignidade é inerente ao ser humano, isto é, não pode lhe ser tirada por nada e nem por ninguém. Além disso, não deve ser confundida com outras formas de dignidade, como a social e a expressiva, conforme citação anterior. Além disso, deve-se entendê-la como um conceito normativo, ou seja, uma forma de determinar a conduta humana, assim como a ética e a lógica que levam as pessoas a agirem porque entendem ser o melhor meio para se atingir o bom convívio social. 3 A questão histórica A história da humanidade nos mostra que tivemos que passar por um longo período para percebermos que o direito realmente é parte integrante do nosso ser, assim como o é nossa pele, nossos olhos e cada parte de nosso corpo. A ética e os direitos humanos também são nossos constituintes. Só podemos dizer que somos verdadeiramente humanos se somos reconhecidos e nos reconhecemos como tal. Poderíamos buscar a justificativa para os direitos humanos na história, desde os primeiros códigos constituídos, mas vamos partir de nossa realidade mais recente, fundamentalmente, o período em que a questão dos direitos do homem foi mais pensada e buscada. Não que Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 em outras épocas isso também não tenha sido estudado e aparecesse em códigos jurídicos ou mesmo nas tradições religiosas, mas é a partir do período moderno (final do século XVIII) que encontramos os passos decisivos para que os direitos humanos, tal qual conhecemos hoje, tomassem forma. As primeiras afirmações sobre os direitos humanos surgem na Declaração da Independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776. Nela, podemos encontrar vários motivos para que a independência americana se efetive, pois estava pautada no interesse de vários grupos, desde escravocratas, religiosos, até mesmo libertários. A Declaração da Independência afirma solenemente, ao denunciar os motivos da separação promovida pelo segundo congresso Continental da Filadélfia, que o rei da Grã-Bretanha estaria violando os direitos mais básicos da liberdade. [...] Os documentos fundadores na nova nação são amplos e generosos. A Declaração de Independência afirma que todos os homens foram criados iguais e dotados pelo Criador de direitos inalienáveis, como vida, liberdade, busca da felicidade (KARNAL, 2015, p. 139). Filosoficamente, a Declaração acentuou dois temas: os direitos individuais e o direito de revolução. Duas condições fundamentais para justificar os atos que deveriam tomar, pois, se não afirmassem os direitos individuais, como poderiam dizer que fariam o desligamento do Reino Unido, deixando de ser uma colônia? E se também não declarassem o direito de revolução, também não poderiam desmembrar-se. Assim, a primeira declaração do mundo moderno afirma algo fundamental para a ética: as garantias individuais e a possibilidade de revoltar-se contra o que não se concorda. No caso dos Estados Unidos, já não se concordava em ser colônia. Um segundo momento histórico importante é a Revolução Francesa. Ela nasce sobre o lema: “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. O marco fundamental dessa revolução é a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em que estão expressos os anseios e a busca do seu grande ideal de liberdade e igualdade. As declarações americanas e francesas foram a fonte de inspiração para a libertação de muitas nações e inspiraram as pessoas a encontrar sua razão de ser e pensar como cidadãos de um mundo onde as amarras e as prisões devem ser pensadas não como uma forma de interesse de alguns, mas que, em primeiro lugar, as pessoas tenham a possibilidade de se expressarem, de se enxergaram como iguais e de construírem um mundo mais fraterno e melhor para se viver. A partir da Revolução Francesa se intensificam grandes movimentos de mudanças no mundo, pois seus três princípios (liberdade, igualdade e fraternidade) são fundamentais para que o ser humano desenvolva-se plenamente. Lembremos que, durante o período ou século XVII, especialmente na Europa, existiam dinastias que impunham formas de trabalho e de controle rígidos, próximos da escravidão. O Estado intervinha nas relações comerciais Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 – de servidão e cobrança de altos impostos –, e um pequeno grupo, a elite, podia desfrutar. Mesmo assim, não foram os mais pobres que promoveram a revolução, mas sim um grupo burguês, isto é, um determinado grupo que também pensava em acumular para manter sua posição social. O século XVII foi um período profícuo, no sentido de se estabelecer situações favoráveis para o pensamento sobre a condição humana. O contexto da reflexão sobre as liberdades buscadas leva à construção da libertação das terras americanas e à própria revolução francesa, e também ao período em que surge a primeira Revolução Industrial. Tem-se, portanto, um mundo “em ebulição”, que levara os governos, as pessoas e os pensadores desse período a sérios questionamentos sobre o ser humano e seus direitos. Assim, a partir dos momentos históricos que deram origem a essa reflexão, a humanidade não mais deixara de lado os questionamentos sobre sua importância. Esses momentos fundantes levaram a filosofia política, a ética e tudo o que se refere à condição humana e, nesse sentido, também a religião a se questionar sobre o humano e a humanidade. A culminância de tudo isso se dará mais de um século depois com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Nesse período, as regalias, as benesses sociais eram direcionadas apenas para um grupo. Apenas os mais próximos do poder ou que tinham dinheiro podiam desfrutar do que se oferecia na época. Embora muitos possam dizer que hoje também é assim, podemos, por outro lado, afirmar que esses direitos são garantidos a todos. Para nós brasileiros, um marco importante na garantia desses direitos é a Constituição Brasileira de 1988, que ainda não fez frutificar tudo o que ali está expresso. Caberia à sociedade fazer valer esse direito, cobrando das autoridades o que lhes é devido, assim como também fazendo a sua parte de forma a minorar as diferenças. 4 A diferenciação social A sociedade é uma forma essencial para que todos nós possamos existir e sobreviver. Hoje já não é possível desejar retroceder a um estágio natural. Temos necessidades emocionais, afetivas, psicológicas etc. Nada pode substituir a necessidade da convivência, assim como as demais, as quais podem ser consideradas da natureza humana. Para que as relações aconteçam, é necessário que a sociedade se organize, conheça os direitos de cada um e de todos, e inclua todos em uma perspectiva humanitária, ética e de direito. Seria possível pensar em uma sociedade “perfeita”? Esta seria formada apenas pelos mais capazes e melhores? Esse tipo de pensamento seria excludente e anti-humano; não cabe em nossa reflexão acerca da sociedade de direitos a qual tratamos até o momento. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 Posições como essas já foram defendidas em Esparta, cidade guerreira em que, quem não fosse capaz de entrar em guerra deveria ser morto ao nascer. Porém, não precisamos ir muito longe. Vejamos o exemplo nazista. Por que judeus, doentes e outros grupos foram assassinados inicialmente na Alemanha e,posteriormente, foram perseguidos por toda a Europa? Porque se defendia uma ideia de supremacia de um grupo de uma determinada parte da sociedade sobre outros. Hoje, felizmente, a defesa de direitos e a possibilidade de inclusão das pessoas permitem o entendimento de que ações desse tipo são inadequadas. Pode-se dizer que, ao nascermos, todos somos iguais, o que nos diferencia é o lugar onde nos inserimos após o nascimento. Por outro lado, as discriminações criadas socialmente fazem com que sejam vividos e expressados preconceitos de raça, cor, sexo etc. Procurar então uma forma de igualdade é buscar a garantia do direito de oportunidades sociais e para que ninguém seja tratado como superior ou inferior. São direitos fundamentais de qualquer pessoa: ter uma família, educação, alimentação, serviços de saúde, trabalho digno, acesso a bens e serviços, participar da vida pública e ter o respeito dos semelhantes, entre outros. É nesse sentido que se inserem os direitos humanos como uma forma complementar e fundamental, ou seja: [...] os direitos humanos devem ser observados como conjunto articulado e interdependente dos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, fundados, para além da ideia de universalidade, no princípio da indivisibilidade e no horizonte da internacionalização, condição indispensável para a luta pela construção de uma cidadania global (MONDAINI, 2009, p. 12). A participação na sociedade não é como muitos pensam, ou seja, apenas de se ter o direito de ir e vir, de votar e ser votado, é muito mais do que isso. Participar é entender que se possui direitos e lutar para que eles se efetivem socialmente. Um exemplo de boa forma de participação social é o orçamento participativo. Essa prática se tornou conhecida quando a cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, passou a adotá-la e, hoje, já é uma realidade de muitas cidades e estados brasileiros. O orçamento participativo é uma forma efetiva de a população ter voz para que seus direitos sejam ouvidos, discutidos e principalmente respeitados. Considerações finais Nesta aula, compreendemos a formação histórica dos direitos humanos e da ética. Aprendemos que tal surgimento se deu a partir das relações que a humanidade estabeleceu no Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 decorrer da história, e que os direitos humanos foram sendo elaborados durante séculos, em especial, no período moderno a partir da Independência dos Estados Unidos e da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Passamos a entender que não basta termos direitos, é preciso mais do que isso, é necessário buscar a sua concretização, por meio da participação social sempre que possível. O ser humano tem muitos direitos, e o fato de muitos serem descumpridos levou à necessidade de se construir uma declaração. Muitas vezes, vivemos e não nos damos conta que temos direitos – à liberdade, propriedade, segurança, à vida etc. –, mas, quando eles são suprimidos, logo percebemos a sua importância e, por isso, devem ser garantidos. Busquemos viver bem em sociedade e talvez assim não seja preciso exigir tanto os direitos, muito embora, como afirmam Pinsky e Pinsky (2015, p. 9): A ideia de que o poder público deve garantir um mínimo de renda a todos os cidadãos e o acesso a bens coletivos como saúde, educação e previdência deixa ainda muita gente arrepiada, pois se confunde facilmente o simples assistencialismo com dever do Estado. A ética e a Declaração dos Direitos Humanos nos propõem desafios. E cada pessoa, ao entender esses desafios, tem diante de si a possibilidade de assumir-se cada vez mais como cidadão e membro de uma grande sociedade. Entender-se como um ser que não pertence somente a um país, mas a uma grande nação que nos possibilita viver esse momento histórico, nos torna comprometidos com o “destino” de cada um e ao mesmo tempo de todos. Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 23 nov. 2016. KAUFMANN, Matthias. Em defesa dos direitos humanos: considerações históricas e de princípios. São Leopoldo: UNISINOS, 2013. KARNAL, Leandro. Estados Unidos, liberdade e cidadania. In: PINSKY, Jaime, PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da Cidadania. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2015, p.134-157. LACERDA, Gabriela; PESSOA, M. Agir bem é bom: ética ontem, hoje e amanhã. São Paulo: Editora Senac: São Paulo, 2018. MONDAINI, Marco. Direitos humanos no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/ wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: 23 nov. 2016. PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2015. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 03 Princípios dos direitos humanos Objetivos Específicos • Contextualizar as lutas pelos direitos humanos. Temas Introdução 1 Características dos direitos humanos 2 Dimensões dos direitos humanos 3 As lutas por reconhecimento como reivindicação de direitos 4 Direitos humanos no Brasil Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução Para estudarmos os direitos humanos, é fundamental conhecermos o texto completo deste documento, publicado pela ONU e disponível para leitura livre e gratuita na internet. Além de o texto não ser longo, ele é bastante acessível, com linguagem direta e de fácil compreensão. O rol dos direitos humanos aumentou muito desde a sua Declaração de 1948 e uma de suas características é a “abertura” para novos direitos, pois nunca param de surgir formas de aviltamento da dignidade humana. A escolha de estudar a Declaração Universal de 1948 não se dá pelo fato de nela estarem todos os direitos humanos estabelecidos até o momento, mas sim por este ser um documento que adquiriu consenso e legitimidade entre as nações do mundo no decorrer da segunda metade do século XX. A Declaração se inicia com uma série de justificativas para a sua criação. Esses aspectos iniciais são chamados considerandos, isto é, os motivos que levaram as autoridades no assunto a fazer a descrição dos 30 itens constantes no documento. Lembremos também que a Declaração foi proclamada em dezembro de 1948, três anos após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a qual trouxe problemas e repercussões imensas nas relações entre pessoas e países. Com a Declaração, muitos movimentos sociais surgiram, acompanhando os outros já existentes antes desses documentos, ganhando força e o elemento fundamental para que diferentes grupos sociais tivessem a possibilidade de organizar-se de forma oficial, visto que outros tantos deixaram de ter reconhecimento. 1 Características dos direitos humanos A busca pelos direitos humanos impulsionará o que chamamos de cidadania, o resultado do que as pessoas passam a fazer a partir da constatação que são agentes sociais, isto é, formadores da sociedade e que devem agir buscando seu espaço e sua valorização. O resultado disso é o surgimento ou o desenvolvimento de muitos grupos sociais que passaram a agir em vista da defesa das pessoas e de suas realidades fundamentais. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 O surgimento de grupos sociais, tanto no Brasil como em muitos outros lugares do mundo, ajuda-nos a perceber que as relações humanas são imprescindíveis para a forma como cada país se organiza. O surgimento da sociedadecivil organizada vem concretizar o que realmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos traz como fundamental para todos. Existem muitas dificuldades para se colocar em prática o que está expresso na Declaração e que é vontade de todos (ou ao menos deveria ser), pois a sociedade é um jogo de interesses e cada um defende seu modo de viver e ponto de vista. Quando lutamos por direitos humanos, precisamos entender como se chegar a eles. Devemos ter claro que, ou eles existem para todos, ou algo está errado na sociedade. Para isso não há exceção. Não se pode admitir que em determinadas situações os direitos sejam admitidos e em outras possam ser deixados de lado. Isto está visto e posto no preâmbulo da própria Declaração Universal dos Direitos Humanos: “O reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis constitui o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ONU, 1948, p. 2). Diante disso, devemos compreender alguns conceitos fundamentais apresentados na Declaração. Os direitos são inerentes, isto é, não podem ser separados de nossa condição humana, assim como nossa pele, nossa vida, nosso ser. Eles existem como uma forma de fazer o ser humano como tal: • Somos da família humana, que é composta por pessoas que se reconhecem como membros de um grupo com seus objetivos e interesses comuns ligados por laços afetivos e de cuidado mútuo. • Vivemos juntos, temos nossas divergências, mas estamos unidos por laços de reconhecimento e todos os membros dessa família têm importância. Isso se afirma quando essa declaração diz que os direitos são regidos pela igualdade, ou seja, não deve haver diferença em relação a raça, cor, credo, nacionalidade. • Os direitos humanos são inalienáveis, isto é, não podem ser retirados por ninguém. Eles fazem parte de nós e não há exceção à regra. Por isso, a luta contra as ditaduras é tão importante. Não se pode admitir a ditadura em quaisquer níveis (familiares, sociais, políticos, econômicos etc.). Disso, desprende-se o fato de que buscar igualdade não é algo tácito e garantido sem ressalvas. A garantia se dará na medida em que as pessoas não aceitarem mais condições de submissão e falta de direitos. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 2 Dimensões dos direitos humanos Como sabemos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 possui 30 artigos. Ela será fonte posterior para outras reflexões e documentos, como a Declaração e Programa de Ação de Viena, fruto de uma conferência mundial sobre os direitos humanos de 1993. Nesses artigos, são refletidos os problemas mais importantes e urgentes para a vida em sociedade. Figura 1 – Dimensões dos direitos humanos Cultura e ambiental Civil e política Economia e social Os direitos civis e políticos correspondem ao lema liberdade da bandeira francesa, en- quanto os direitos sociais correspondem ao lema igualdade, e os direitos de natureza difusa ao lema fraternidade. 2.1 Dimensão civil e política (direitos civis e políticos) A dimensão civil e política abarca os direitos de liberdade (de ir e vir, expressão, religião etc.), vida, propriedade e participação nos negócios públicos. Reconhece-se, por exemplo, a liberdade de pensamento, consciência e religião, opinião, reunião e associação pacífica, igualdade entre as pessoas e perante a lei, e nisso consta o direito de recorrer judicialmente, assim como o direito à vida, à segurança, à nacionalidade, ao casamento e, enquanto este durar, direitos iguais para o casal, por isso, também deve ser um ato livre. Excluem-se torturas e penas cruéis, toda forma de escravidão, prisão e exílio arbitrário, a culpa até que seja provado o contrário, não podendo aplicar uma pena maior do que a do momento do ato, intromissão na vida familiar, domicílio, correspondência, ataques à honra e à reputação. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 A observância de todos esses princípios é fundamental. É preciso reconhecer, porém, que muitas coisas ocorrem no mundo e no Brasil e ferem de algum modo esses direitos. Por exemplo: a violação de privacidade e do direito à vida, em guerras internas, como na República Árabe da Síria, República Islâmica do Afeganistão e na Palestina; há ainda povos que não têm seus países constituídos (os ciganos, os curdos no Iraque). O direito de opinião, quando não bem entendido, pode causar problemas. Ter direito de opinião envolve uma vontade – a de se dizer algo –, mas essa só pode ser expressa se não ferir a moral de uma pessoa ou instituição. Pode-se dizer o que se pensa, em público ou para alguém, quando isso for feito com o intuito de corrigir distorções ou de melhorar algo que não está bem. Mas, não é permitido atingir a pessoa ou levá-la a uma situação degradante quando se emite uma opinião. Esse direito é reafirmado quando se expressa que a vontade do povo é o fundamento da autoridade, desde que seja em eleições honestas. 2.2 Dimensão econômica e social (direitos econômicos e sociais) Faz parte da dimensão econômica e social o direito à educação, que deve ser gratuita no ensino básico e generalizada no ensino técnico e profissional. Educação é um direito social pela necessidade da manutenção de um sistema de educação pública para atendimento da etapa de educação básica. Outro aspecto que devemos refletir são os objetivos da educação, que deve levar o que menciona o item 2 do artigo 26 da Declaração: A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz (ONU, 1948, p. 14). Temos aqui até uma justificativa para o conteúdo que estudamos no momento: ética, cidadania e sustentabilidade. Não porque é uma imposição, mas por ser uma necessidade para que as pessoas possam realmente aprender a expandir sua personalidade. Esse é, no fundo, o objetivo da educação. Diante disso, cabe aos pais a responsabilidade de escolher o tipo de educação a ser dada aos filhos, que não pode ser resultante de uma imposição do Estado, de um grupo, ou de uma religião. A responsabilidade é dos pais. O art. 6º da Constituição Federal nos dá o repertório dos direitos sociais: “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados [...]” (BRASIL, 1988). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 Têm-se ainda os direitos à propriedade de assumir negócios em seu país diretamente ou por representantes, direito ao trabalho e à proteção contra o desemprego, a fundar sindicatos e se filiar a eles, ao repouso e lazer, assim como a férias remuneradas. O direito de assumir os negócios de seu país defende a democracia como a forma por excelência de organização social. Também devemos refletir sobre o direito ao trabalho, pois por meio dele a pessoa consegue seu sustento. Quando faltar trabalho, a declaração conclama por uma proteção. Por exemplo, no Brasil, o seguro desemprego é uma forma de cumprir um direito. Podemos levantar críticas contra um ou outro modo de fazer esse pagamento, mas ele tem sua fundamentação na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos. O direito ao repouso e lazer pregado na Declaração nos chama a atenção para um fato importante, especialmente quando se viu e sevê em muitos lugares do mundo as pessoas sem esse direito, o que não é novo; se considerarmos a história dos povos, observaremos que o repouso sempre foi uma medida protegida e considerada importante. Em alguns períodos da história, se dava esse repouso à própria terra que se cultivava, como no Antigo Egito e em Israel. A Declaração afirma, ainda, que deve haver “[...] a limitação razoável das horas de trabalho [...]” (ONU, 1948, p. 13), esta não pode ser fonte de esgotamento físico e mental. Não é sem razão que hoje, como em nenhuma outra época de nossa história, o estresse é uma constante na vida dos trabalhadores e precisa ter a devida atenção e o devido cuidado por quem o regula. Por isso, trabalhadores de algumas profissões – como caminhoneiros e professores do ensino básico – têm direito à aposentadoria antes do tempo previsto para trabalhadores regulares. Essa redução é de, geralmente, cinco anos. O artigo 25 da Declaração é altamente complexo, pois chama a atenção para a garantia de um nível de vida, tanto para si como para a família. Dentro disso estão: saúde, bem-estar, alimentação, vestuário, alojamento, assistência médica, serviços sociais na doença, invalidez, viuvez, velhice e em casos de perdas de meios de subsistência. Esse artigo analisado nos dá a clara ideia do que se vê no Brasil. Apesar de este direito estar instituído a partir da Constituição de 1988, ainda falta a ser feito para que seja garantido e assegurado. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 2.3 Dimensão cultural e ambiental (direitos culturais e ambientais) Assim como é o direito à participação livre na cultura da comunidade, a Declaração ainda propõe os efetivos direitos de liberdade. A questão ambiental ainda não tem a ênfase merecida, mas não se pode esquecer que surgiram outros documentos da própria ONU e tratados que nos chamam a atenção para essa realidade, por exemplo: a Rio-92, o Protocolo de Kyoto, entre outros. Diante de um quadro de direitos propostos pela Declaração, destacamos o artigo 29 como um dever para com a comunidade, onde as pessoas podem ser livres e ter pleno desenvolvimento. A lei, como sabemos, é impositiva e limitadora da ação, pois, se deixasse de ser uma forma reguladora, não haveria a possibilidade de garantir direitos e liberdades, porém, mesmo esses limitadores não são contrários ao que afirma a Declaração. A Declaração Universal dos Direitos Humanos defende o ser humano e lhe propõe a vida em sociedade. Se quisermos liberdade e direitos, devemos também fazer com que estes sejam respeitados por todos. A luta e a constante vigilância da execução desses direitos é tarefa ao mesmo tempo individual (de cada um) e coletiva (de todos que vivem em sociedade). Ninguém tem mais ou menos obrigação, mas aqueles em situação de maior vulnerabilidade têm a seu favor a Declaração como forma de garantia de seu espaço vital. É importante chamar a atenção para esse fato, pois muito se tem visto de que cabe aos outros fazer com que os direitos sejam cumpridos. Aqui, o que precisamos entender e colocar em prática é que a exigência que se coloca é de uma vigilância na execução dessa declaração como compromisso de todos. A Declaração de Viena nos traz aspectos não tratados na Declaração de 1948, por não serem temas recorrentes até o momento. Se em algum aspecto eles apareciam, não era da mesma forma como aparecem em nosso contexto. Entre os temas que para nós são importantes e não o eram, podemos citar: a violência contra a mulher, a violência e o extermínio de povos indígenas, a dominação colonial etc. Por isso, a Declaração de Viena, em seu artigo 5, vem elencar e chamar a atenção para fatos importantes a serem cuidados e observados: Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis interdependentes e inter- relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos de forma global, justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Embora particularidades nacionais e regionais devam ser levadas em consideração, assim como diversos contextos históricos, culturais e religiosos, é dever dos Estados promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais. (ONU, 1993, p. 4). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 Embora possamos, para efeito didático, classificar os direitos humanos de acordo com o aspecto da dignidade humana que eles protegem, eles são interdependentes e inter- relacionados. Dizer que há o direito de liberdade de expressão ou de participação política sem a garantia do direito à educação que deve preparar o futuro cidadão para expressar as suas ideias livremente, é algo inócuo, inútil. Para que haja participação política e liberdade de expressão, as pessoas devem capacitar-se para tal e como fazê-lo a não ser pelos direitos à educação e à liberdade de expressão, tendo em vista que ajuda na escolha dos representantes? Nesse sentido, os meios de comunicação têm um papel muito importante, quando visam à informação e ao esclarecimento das pessoas. Portanto, os direitos humanos precisam ser garantidos em todas as suas dimensões. Outro aspecto a se destacar é o que se refere aos benefícios advindos do progresso, como um direito de todos (artigo 11 da Declaração de Viena) que, sem dúvida, traz novidades em relação à Declaração dos Direitos Humanos de 1948, até mesmo porque o progresso que a humanidade tem no final do século XX e início desse século XXI é algo até então inimaginável. Além da questão da pobreza extrema, que gera uma situação de grande desigualdade (artigo 14 da Declaração de Viena) e terrorismo (artigo 17). Os Direitos Humanos das mulheres e das crianças do sexo feminino constituem uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais. [...] A violência baseada no sexo da pessoa e todas as formas de assédio e exploração sexual, nomeadamente as que resultam de preconceitos culturais e do tráfico internacional, são incompatíveis com a dignidade e o valor da pessoa humana e devem ser eliminadas (ONU, 1993, p. 5). E assim segue a Declaração de 1993 preocupada com a efetivação e a reafirmação do papel dos Estados na implantação dos direitos expressos na primeira Declaração (1948), inclusive solicitando: À assembleia Geral que, ao analisar o relatório da Conferência por ocasião da sua quadragésima oitava sessão, comece por considerar, com caráter prioritário, a questão da criação de um Alto Comissariado para os Direitos Humanos para a promoção e proteção de todos os Direitos Humanos (ONU, 1993, p. 12). O documento também reafirma a questão dos trabalhadores imigrantes, e não podemos esquecer, nesse sentido, que o Brasil, como um país que recebe muitos imigrantes, tem ou deve ter um cuidado especial em relação a essas pessoas. Assim, o que se vê é que a partir da Declaração de 1948 surgem outros documentos, não só por parte da Organização das Nações Unidas, mas de países que afirmam a necessidade de se implantar uma política que atenda às pessoas em suas necessidades fundamentais e em direitos básicos. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 3 As lutas por reconhecimento como reivindicação de direitos A tarefa de efetivar os direitos humanos é difícil, não se dá de forma universal e, às vezes, até mesmo a implantação em locais menores é difícil de ser realizada. A busca para que os direitos humanos ocorram exige cada vez mais das pessoas o entendimento do que vem a ser um efetivo direito. Por exemplo: Por que não se reconhece o Estado palestino no mesmo sentido que se reconheceu oEstado de Israel? Argumentos não nos faltam para justificar que esse Estado exista e o mesmo para que não exista. Mas, se é um direito das pessoas terem reconhecidas sua origem, sua nacionalidade, seu solo, por que tanta dificuldade? Em pleno século 21, ainda ouvimos falar de escravidão no Brasil: De acordo com o relatório da OIT de 2001, o trabalho forçado no mundo tem duas características em comum: o uso da coação e a negação da liberdade. No Brasil, o trabalho escravo resulta da soma do trabalho degradante com a privação de liberdade. Além de o trabalhador ficar atrelado a uma dívida, tem seus documentos retidos e, nas áreas rurais, normalmente fica em local geograficamente isolado. Nota-se que o conceito de trabalho escravo é universal e todo mundo sabe o que é escravidão (CAMARGO, 2016). O período atual deveria ser um momento de realização, de encontro entre pessoas para que todos possam dispor dos bens produzidos e, com isso, alcançarem benefícios comuns e o respeito a lugares, pessoas, crenças etc. Tudo isso para que tenham um motivo para estarem juntas e viverem juntas por opção e não por obrigação (medo ou prisão). Assim posto, devemos reconhecer que, apesar de mais de seis décadas da Declaração dos Direitos Humanos, em muitos lugares do mundo, se não em todos, percebe-se o desrespeito a algum dos direitos humanos. Segundo Daero (2013): Segundo o estudo Human Right Risk Atlas de 2014, da Maplecroft, o número de países que apresentam ‘risco extremo’ aos direitos humanos cresceu 70% nos últimos seis anos. Houve um salto de 20 países em 2008 para 34 agora. [...] China, Índia, Rússia e México aparecem com países ‘de extremo risco’. O Brasil aparece como ‘de alto risco’. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 O governo brasileiro também apresenta uma posição oficial sobre o tema: O poder público, nas suas três esferas, tem por obrigação assegurar, prevenir, proteger, reparar e promover políticas públicas que busquem sempre a afirmação dos Direitos Humanos para toda Sociedade. O Estado, verdadeiramente democrático, pressupõe a prevalência de ações e iniciativas coercitivas a todas as modalidades de preconceito, discriminação, intolerância ou violência motivada por aspectos de origem, raça, sexo, cor, idade, crença religiosa, condição social ou orientação sexual (BRASIL, 2007, p. 4 apud BRASIL, 2012, p. 7). No site da Secretaria Especial de Direitos Humanos, cujo endereço está disponível na Midiateca, podemos verificar uma série de dados, com relatório de diversos anos e ações sobre o assunto. Esses dados são apresentados por temas: crianças e adolescentes, pessoa com deficiência, pessoa idosa, LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros), adoção e sequestro internacional, mortos e desaparecidos políticos, combate às violações, combate ao trabalho escravo e direitos para todos. Há no Balanço Semestral do Disque Direitos Humanos, implantado pelo Governo Federal, dados recebidos pelo Disque 100, que devem nos preocupar: No primeiro semestre de 2015 foram registradas 66.518 denúncias, 63,2% são relacionadas a violações de direitos humanos de crianças e adolescentes (42.114); 24,2% de pessoas idosas (16.014); 7,3% de pessoas com deficiência (4.863); 0,8% de denúncias de violações cometidas contra a população LGBT (532); 0,5% de população em situação de rua (334); 2,6% de pessoas em restrição de liberdade (1.745); e 1,4% de denúncias de outras populações, tais como: quilombolas, indígenas, ciganos, violência contra comunicadores, conflitos agrários e fundiários, fundiários urbanos, intolerância religiosa, entre outros (916) (BRASIL, 2015, p. 11). Nesse relatório, há o registro de toda vez que alguém faz alguma denúncia. Mas, e quanto ao que não é denunciado? As pessoas não realizam a denúncia por diferentes motivos, às vezes não sabem o que fazer ou não têm os meios de chegar até os canais adequados, há também aquelas que são desrespeitadas por seus próprios familiares (idosos, crianças e mulheres) e não têm condições de solicitar ajuda. Por que mesmo depois de tanto tempo da Declaração Universal dos Direitos Humanos isso ainda ocorre? Não há como apontar somente uma causa específica, podemos apontar algumas, como: a desigualdade originada pelas classes sociais, as ideologias políticas dos Estados, a economia capitalista, grandes conglomerados que hegemonizam o poder econômico, político e ideológico, o uso do Estado para garantia de privilégios em vez da garantia de todos, entre outros. Devemos ter claro que determinados problemas humanos não podem ser resolvidos Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 com a ciência, com pesquisas. Problemas científicos são próprios de nosso ser enquanto homens e mulheres, e podem e devem ser resolvidos pela ciência. Mas ninguém consegue resolver um problema de nossa humanidade como se resolve um problema de matemática. As situações humanas são fundamentais para nossa vida, para a democracia, a sociedade e a defesa de nossa humanidade. Nesse sentido, é fundamental termos uma formação filosófica, ética, antropológica, isto é, de conhecimentos acerca da humanidade, pois essas ciências buscam resolver ou nos aproximar de verdades complexas e de difícil solução. Para Singer (2015, p. 191): Sabe-se que as sociedades capitalistas contemporâneas se dividem em duas classes sociais: a primeira é a classe proprietária ou capitalista, composta por pessoas com posses econômicas suficientes para assegurar a satisfação de suas necessidades e das de seus dependentes, sem que tenham necessidade de exercer alguma atividade remunerada. A outra classe social é a trabalhadora, composta pelos demais, que por não terem tais posses subsistem com os ganhos do exercício de atividade remunerada. A ótica de Singer, que não nos cabe julgar se é certa ou errada, é uma maneira de ver os fatos, por meio de uma visão social em que também se uniformizam os grupos sociais: para o autor, as pessoas ou são capitalistas ou são trabalhadores. Qual o problema que se pode constatar aqui? Parece que as classes capitalistas não são trabalhadoras e que o conceito de trabalhador é o de assalariado. Trabalho deve ser entendido por nós como toda a ação que modifica alguma situação e que gera determinado resultado. Nesse sentido, vamos considerar trabalho como tudo o que se faz dentro da sociedade. Por isso, poderíamos pensar em duas classes dentro da sociedade, se assim desejarmos pensar, mas não como Singer faz. A classe capitalista pode ser encarada como a investidora, que, pelo seu investimento, busca obter ganhos, os quais, em sua maioria, têm intuito de obter estabilidade econômica. Em geral, os assalariados não conseguem, na maioria das situações, obter essa estabilidade e possibilidade de sustentação afirmada por Singer (2015). O que deseja a Declaração Universal dos Direitos Humanos é proteger as classes mais desfavorecidas para que tenham, assim como as demais, a possibilidade de se desenvolver com plenitude e ter uma vida com dignidade, que não envolva somente uma questão econômica, mas também liberdade, educação, moradia, proteção no desemprego, saúde etc. 4 Direitos humanos no Brasil Em seu livro, “Direitos humanos no Brasil”, Marco Mondaini (2009) apresenta um transcorrer histórico entre o Brasil Colônia e o atual para entender o caminho que percorremos até chegar no país onde vivemos hoje. Cada capítulo do livro traz um momento forte de nossa história, que o autor divide por etapas. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 • A primeira, que vai de 1930 a 1964, proclamaos direitos humanos na República Nova: enfocando especialmente os direitos sociais entre a ditadura e a democracia. Veja que a primeira etapa tem início em um período em que ainda não existia a Declaração Universal dos Direitos Humanos, criada somente em 1948. • A segunda parte envolve o período da ditadura no Brasil e a luta pelos direitos civis e políticos entre os anos de 1964 a 1985, quando reiniciamos um período democrático na história do Brasil. • E, por fim, o período mais contemporâneo, dos anos de 1985 a 2002, denominado Nova República, com a universalização dos direitos e a conquista da democracia. Trata-se de um período em que novos direitos são garantidos à população brasileira, por meio da nova Constituição de 1988, um marco na história da democratização brasileira. Para quem deseja passar pela história da democratização no Brasil, este livro tem uma fonte riquíssima de dados, traz textos, discursos e canções que marcaram essa época de nossa vida social e política. MONDAINI, Marco. Direitos humanos no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. Por fim, vale citar a Constituição Federal brasileira em seu artigo 3º: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988). O que está contido nesse artigo é o que vem se reafirmando na Declaração Universal dos Direitos Humanos. O Brasil, como membro da ONU e signatário da Declaração, deve fazer constar em sua legislação os mesmos princípios do documento de 1948. Os estudos jurídicos e a Declaração Universal dos Direitos Humanos caminham lado a lado, uma vez que a última é fonte inspiradora para as boas relações sociais. Assim posto, cabe darmo-nos conta que se deve buscar a unidade do Brasil, em que ser cidadão não é apenas termos uma constituição, uma declaração escrita, mas que os direitos Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 assegurados por ela sejam reconhecidos e cumpridos. Cabe a cada um e a todos buscar uma transformação da realidade, por meio da participação nos diferentes âmbitos sociais, seja na família, na escola, no trabalho, na política. Para isso, precisa-se sem dúvida de um amadurecimento da população, pois, como diz Mondaini (2009), ainda vivemos em uma democracia recente. Democracia não se aprende somente na teoria, mas especialmente por meio da vivência prática. Referências BRASIL. Balanço Semestral do Disque Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Direitos Humanos, 2015. Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/bibliotecavirtual/ balancodisque100>. Acesso em: 15 nov. 2015. ______. Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 16 jan. 2016. ______. Relatório sobre violência homofóbica no Brasil: ano de 2011. Brasília, DF: Secretaria de Direitos Humanos, 2012. CAMARGO, Orson. Trabalho escravo na atualidade. Brasil Escola. Disponível em: <http://www. brasilescola.com/sociologia/escravidao-nos-dias-de-hoje.htm>. Acesso em: 6 set. 2015. DAERO, Guilherme. Os 10 piores países para os direitos humanos. Exame.com. 8 dez. 2013. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/mundo/noticias/os-10-piores-paises-para-os- direitos-humanos>. Acesso em: 6 jul. 2015. MONDAINI, Marco. Direitos Humanos no Brasil. São Paulo: Contexto, 2009. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.dudh.org.br/ wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: 16 jan. 2016. ______. Declaração e Programa de Ação de Viena – Conferência Mundial sobre Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.cedin.com.br/wp-content/uploads/2014/05/ Declara%C3%A7%C3%A3o-e-Programa-de-A%C3%A7%C3%A3o-de-Viena-Confer%C3%AAncia- Mundial-sobre-DH.pdf >. Acesso em: 15 nov. 2015. SINGER, Paul. A cidadania para todos. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Orgs.). História da cidadania. São Paulo: Contexto, 2015. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 04 Ética e moral na cultura brasileira Objetivos Específicos • Relacionar ética e moral nas questões étnico-raciais, sociais e culturais. Temas Introdução 1 Cultura e formas de compreender a realidade 2 Moral e ética na cultura brasileira 3 As tensões étnico-raciais no Brasil 4 Discriminação social e cultural: questões migratórias Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução Pensar a realidade de um país como o Brasil envolve muitos aspectos e, por isso, é sempre difícil analisá-lo culturalmente. Porém, existem características comuns que nos identificam como brasileiros e demonstram a nossa unidade enquanto nação1 e país. O que nos identifica como brasileiros? O que nos torna uma nação? Existe uma realidade brasileira que denominamos de formal, que é estabelecida pela classe dominante, pelas leis, normas e por quem mantém uma determinada ordem na sociedade. No entanto, existe também uma realidade informal, que é vivida e que, muitas vezes, se contradiz, colidindo entre o que se diz e o que realmente se faz. Esse é o nosso grande objetivo nesta aula: compreender o que realmente ocorre no Brasil no âmbito formal e que nos faz ser um país diferente em nossa vivência. Por isso, abordaremos três grandes aspectos: a moral, a ética e a cultura brasileira. Além disso, compreenderemos as tensões étnico-raciais, que envolvem as matrizes culturais formadoras do Brasil (culturas africana e indígena) e as questões migratórias que, consequentemente, alimentam a discriminação sociocultural. Segundo Roberto DaMatta (1993, p. 12): “O Brasil com B maiúsculo é algo muito mais complexo. É o país, cultura, local geográfico, fronteira e território reconhecidos internacionalmente, e também a casa, pedaço de chão calçado com o calor de nossos corpos, lar, memória e consciência de um lugar com o qual se tem uma ligação especial, única, totalmente sagrada”. É esse Brasil que desejamos descortinar em nossos estudos. A dificuldade é conseguirmos realmente perceber tudo o que envolve essa realidade, pois, como sabemos, tudo o que envolve cultura, envolve múltiplas interpretações. 1 Cultura e formas de compreender a realidade A história que normalmente estamos acostumados a conhecer parte de uma determinada ótica, geralmente a ótica dos vencedores, mesmo porque os perdedores ou morreram, foram silenciados ou, muitas vezes, não têm a devida atenção ou voz. O que ocorre no Brasil e em muitos países do mundo é que a forma predominante de se fazer entender a realidade passa a ser divulgada como única e verdadeira. 1 Devemos ter cuidado para não confundirmos país com nação. País envolve território, culturas, forma de governo etc. Já a nação envolve a população, o povo que constitui esse país. Assim, nação será um grupo de pessoas que fala o mesmo idioma (ou ao menos o idioma reconhecido como sendo pátrio), que tem os mesmos costumes, embora podendo diferenciar-se em algumas particularidades de região para região, mas que se possa afirmar como sendo um povo. População constitui o conjunto de pessoas que vivem nesse país de modo permanente. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 Vamos para um exemplo bem prático. Todos nós estudamos geografia, sejano ensino médio, seja no ensino fundamental, e estamos acostumados a visualizar os mapas do mundo colocando Europa, Canadá, Estados Unidos, Rússia na parte de cima do mapa. A questão é: por que o mapa deve ser desse modo? Não se poderia fazer o inverso, com a América do Sul, a África e a Ásia na parte de cima? Poderia se dizer: “estão loucos”! Mas não, o que devemos nos dar conta é que a forma como sempre vimos o mapa foi a forma desenhada pela Europa dominante, colocando-se na parte superior. Ou seja, tudo depende da maneira de se enxergar e interpretar o mundo. Figura 1 – Formas de entender a realidade Colocamos desta forma para que possamos, já de início, perceber que a ordem existente em nossa sociedade não precisa continuar do modo que é. Ela pode ser mudada e invertida, pois quem escreve e faz a história é um determinado grupo, geralmente dominante. E se a história fosse escrita pelos perdedores ou pelos desfavorecidos? Talvez, teríamos uma maneira diferente de entender muito mais as realidades as quais estamos acostumados a presenciar e aceitar. De acordo com Boff (1992, p. 9): Estamos habituados a ouvir a versão da conquista da América Latina da perspectiva do poder dominante. Falam os vencedores. Eles têm seus Camões que cantam suas aventuras. Têm seus artistas que consignam em pinturas o seu protagonismo, seus escultores que eternizam seus gestos triunfais. Esse modo de pensar gera uma série de dilemas, pois, a partir dele, constatamos que muito da realidade vivida por nós pode ser alterada. Os dilemas nos incitam a pensar na ética, pois ela surge no contexto social para auxiliar na resolução dos conflitos que o convívio, o Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 entendimento e os valores que são propostos como corretos em uma sociedade passam a ditar o modo de vida das pessoas. Quando nos defrontamos com a ética, temos certeza que é por causa de determinados dilemas. A partir deles, iniciamos uma busca entre situações que não sabemos ao certo o que são e o que devem ser, e o que desejamos buscar. Os dilemas surgem porque não temos certeza de nosso curso de ação e isso nos desestabiliza, nos levando a buscar soluções. Muitas incógnitas surgem porque nem sempre sabemos como resolver os problemas surgidos em nosso convívio diário. Diante de um dilema moral, a definição corrente de moralidade como escolha entre o bem e o mal (maniqueísmo) conduz muitos a uma conclusão precipitada. “se estou fazendo a coisa certa, isso significa que quem se opõe a mim está fazendo a coisa errada...”. Ora, as duas coisas podem estar certas! Isso põe em xeque a visão convencional. Optar entre o bem e o mal, segundo o odo maniqueísta da tolerância zero ou segundo o modo situacional da análise de riscos, exige grande lucidez. [...]; Temos diante de nós escolhas que não são fáceis, sobretudo porque não existem respostas padronizadas. A maior parte dos códigos de conduta moral, aliás, segue a cartilha de contrastar o certo e o errado, o aceitável e o inaceitável, as virtudes e os vícios. Ora, as escolhas entre o bem e o bem são igualmente prementes e exigem maturidade e discernimento. (SOUR, 2014, p.120). Do resultado da construção de uma sociedade, surge o que chamamos de cultura, que é tudo o que envolve a ação das pessoas dentro de um determinado lugar e tempo. A música, o jeito de se vestir, o que se come, o que se fala, como se fala. Tudo o que as pessoas fazem dentro de uma realidade. Por isso, cultura é sempre um conceito muito concreto, pois é a vida materializada. E, como brasileiros, temos uma cultura que não é uniforme ou igual para todos, mas, como uma nação e um país, temos traços culturais característicos, oriundos das pessoas que constituem nosso país, nosso modo de ser e que nos dá o direito de dizer que somos brasileiros. 2 Moral e ética na cultura brasileira A partir do entendimento de cultura e sobre as possibilidades de se entender e escrever as realidades por nós vivenciadas, não se pode deixar relacionar tais conceitos à moral. Cultura e moral são formas vividas pelas pessoas para dentro de uma determinada realidade e lugar. Por que então termos dois conceitos? A diferença está na função ou no modo como cada termo é usado e se insere na realidade, isto é, a funcionalidade de cada um dentro do que uma sociedade precisa para se estruturar como tal. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 Vamos entender moral como ações que realizamos e são avaliadas a partir do modo como o Brasil se constrói. DaMatta (1993) nos chama a atenção para muitos aspectos da realidade socialmente construída em nosso contexto. Por exemplo, a relação entre a lei que pretende ser universal e não pode pactuar com privilégios, mas que, ao mesmo tempo, no Brasil, se transporta para o “não pode”, isto é, ela é “[…] formal, capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos os projetos e iniciativas. […] E vai além, devido a esse contexto é que surge o ‘jeitinho’” (DAMATTA, 1993, p. 98), como o modo pelo qual tentamos nos arranjar dentro dessa forma de constituir-se socialmente. Assim, o jeitinho vem a ser uma forma de resolver os problemas de modo pacífico diante da realidade que se apresenta como “não pode”, e a realidade da pessoa que quer agir. E, nesse momento, aparece a malandragem, prática de muitos para resolver problemas ou situações que se apresentam: “[...] antes de ser um acidente ou mero aspecto da vida social brasileira, coisa sem consequência, a malandragem é um modo possível de ser. Algo muito sério, contendo suas regras, espaços e paradoxos” (DAMATTA, 1993, p. 105). O que nos cabe perguntar é: esse modo de agir deve ser a regra ou deveríamos adotar outros modos? Dentro dos arranjos pelos quais a sociedade passa o jeitinho foi uma forma de agir (não se sabe se a melhor), e um modo de ajeitar-se dentro do contexto. Figura 2 – Brasil de multiculturas Muito já se ouviu falar que o Brasil é o país do futebol e do carnaval. Isso não deixa Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 de ser verdade, mas, ao mesmo tempo, não se pode reduzir o país e sua cultura a apenas esses dois aspectos. Porém, somos também um povo trabalhador que construiu uma nação multicultural. Na realidade atual, os padrões sociais são estabelecidos pelas forças da mídia, da religião, de quem detém o poder, seja na escola, seja na família. Eles podem ser propostos pacificamente e assimilados pelas pessoas, ou por meio de coação e violência, com a imposição de um grupo sobre outro(s). Por exemplo: patrões sobre empregados, chefes do tráfico de drogas sobre a população de uma região e assim por diante. No entanto, também podem ser apresentados de forma mais discreta e passar a ser visto como correto. É diante disso que devemos estar sempre atentos, para não servirmos de “massa de manobra” para os mais diferentes interesses a partir de imposições – as quais podem passar como normais, quando, na verdade, são manipulações. Mesmo em tempos iguais, mas em contextos variados, podemos perceber que a cultura e a própria ética podem ser diferentes. Ser cidadão no Brasil é diferente de ser cidadão na Turquia, no Egito, no Afeganistão. Da mesma forma, a cultura desses lugares também é muito diferente. Comparando esses países com os Estados Unidos, França, Itália ou Inglaterra, temos contextos culturais e éticos diferentes, embora em alguns aspectos possam se assemelhar, considerando que a globalização também provoca uniformidades, como na música (artistas famosos internacionalmente, como Madonna, Rihanna, The Rolling Stones etc.), nas vestimentas(uso de jeans e marcas conhecidas mundialmente como Adidas, Nike etc.), nos hábitos alimentares (redes de fastfood, como o McDonald’s estão presentes em diferentes lugares do globo). A cultura difere de lugar para lugar, embora alguns conceitos sejam universais e tenham validade para todos os povos e as pessoas, as diferenças consistem na forma como os princípios culturais são vividos e executados. O desafio da vivência moral e cultural é realmente o seu exercício, isto é, que as pessoas consigam praticar e exigir que as autoridades responsáveis, em todos os seus âmbitos, o façam também, seja nas empresas, nas famílias, nas ruas, nos municípios, no seu estado e no país. A partir dessa compreensão, percebemos que ainda há muito a se fazer no Brasil, embora já tenhamos evoluído bastante. 2.1 Culturas indígena e africana no Brasil O objetivo desta aula é chamar a atenção para a vivência cultural e moral na sociedade brasileira, em especial, no que tange grupos culturais específicos, como os indígenas e os afrodescendentes. São percebidos alguns avanços no trato com culturas diferentes na Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 realidade brasileira, mas ainda há muito a se fazer, pois os conflitos de interesses que envolvem reconhecimento e respeito às diferenças ainda são um grande desafio a ser trilhado pelas pessoas em nosso contexto cultural. No tocante aos povos indígenas, ainda temos sérios problemas quanto às disputas por terras, pois seu modo de vida é contrastante com o modo de vida capitalista, que usa a posse e exploração da terra ao máximo. O desrespeito com os indígenas se agravou no decorrer do tempo. Primeiro, foram considerados como não humanos, pois viviam conforme a natureza. O que trouxe a discussão sobre poderem ser considerados donos ou não das terras que habitavam, pois, segundo Kaufmann (2013, p. 23): [...] se caso, o fossem, ninguém teria o direito de subtraí-la. Uma discussão bastante citada a esse propósito e a que versa sobre o conceito de dominium em Domingo Soto (1494-1560). Sob a influência de Jean Gerson, ele define a propriedade da seguinte forma: A propriedade (dominium), por isto, é uma faculdade (facultas) própria a qualquer um, expressando o direito (ius) que uma pessoa tem de poder utilizar-se (usurpare) de uma coisa qualquer para sua própria comodidade e para qualquer finalidade por meio da lei (quocumqueusu lege permesso). Embora o contexto que se expressa seja de domínio, torna-se importante perceber que há uma distinção entre os fatos, pois a propriedade é uma “faculdade de dispor da coisa”. Se no caso os índios dispõem da terra, nos parece lógico e certo que seriam eles os donos dessas terras, mas, para a concepção europeia dominadora da época da colonização brasileira, essa não era a compreensão, especialmente no período da expansão comercial e econômica do mundo a partir do século XIV. Quanto aos africanos, a situação é diferente, pois chegam a nossas terras na condição de escravos para exploração da sua mão de obra. Isso causou um impacto muito grande em seu modo de viver e de como eram vistos na época em que aqui chegaram, o que tem reflexo até hoje no modo como a sociedade encara seus descendentes. Assim, foram classificados como sem direitos e, hoje, quando se busca o restabelecimento de direitos para esse grupo étnico, o preconceito surge de forma até raivosa. Não é sem razão que no Brasil surgiu a necessidade de se aprovar o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288 de 20/07/2010), para que se conseguisse estancar o modo preconceituoso como são vistos. E assim expressa a lei em seu primeiro artigo: “Esta Lei institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica” (BRASIL, 2010). Embora a lei tenha surgido para chamar a atenção de uma realidade vivida, devemos compreender que a aplicação de uma lei nesses teores ocorre porque se percebe socialmente a existência de desrespeito em relação ao trato e às relações entre as pessoas de etnias Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 diferentes, em especial indígena e negra. É importante compreender que chamar alguém ou reconhecer alguém como negro não é discriminação, mas adjetivar as pessoas que assim o são declaradas de forma discriminatória passa a ser crime. 3 As tensões étnico-raciais no Brasil A reflexão sobre ética e cultura é fundamental para uma sociedade que busca encontrar sua identidade, pois são dois aspectos da vivência em sociedade que caracterizam os modos de ser de uma nação ou de um povo. Os dois conceitos são históricos, ou seja, eles dependem do lugar e do tempo em que forem utilizados. Por exemplo, pertencer a uma cultura na Roma Antiga é diferente de ser cidadão no Brasil de hoje, o mesmo vale em relação à ética. A realidade do mundo hoje é outra, por um lado temos problemas globais – como a situação dos refugiados africanos, sírios etc. –, e, por outro, temos problemas localizados, como a pobreza, a qual, no Brasil, é também ligada a questão racial (a maioria da população pobre ou carente é negra). Exige-se cada vez mais que as realidades locais sejam respeitadas, mas também que os problemas universais ou globais sejam tratados com o devido cuidado por todos. Segundo Boff (2006), é necessário aprender a conviver novamente. Antigamente, os povos viviam recolhidos em sua comunidade e, nos dias de hoje, todos vivem uma relação de interdependência. Viver pacificamente depende do acolhimento e respeito às diferenças. DaMatta (1993, p. 39) nos fala sobre as diversas realidades que encontramos no Brasil. Segundo ele, vivemos uma ilusão a respeito das relações raciais: “A palavra ‘mulato’, que vem de mulo, o animal ambíguo e híbrido por excelência; aquele que é incapaz de reproduzir-se enquanto tal, pois é o resultado de um cruzamento entre tipos genéticos altamente deferentes”. Percebamos que até mesmo na palavra usada já se tem um grau de preconceito e que isso continua a ser reproduzido em muitas das classificações. Hoje, a palavra pardo tem substituído o termo mulato, mas essa expressão, ainda não entendida e refletida, passa a ser usada por muitos como sendo sinal de aceitação incondicional. De acordo com Gomes (2015, p. 420), “com a chegada dos portugueses e demais europeus às costas do Brasil, os povos autóctones americanos somavam uns cinco milhões de indivíduos, divididos em uns seiscentos povos com culturas e falantes de línguas próprias”. A citação de Gomes nos chama a atenção para fatos importantes da realidade brasileira. Aqui, os índios estavam localizados antes de qualquer um, com sua cultura e modo de vida próprios. A chegada de outros povos fez com que praticamente fossem dizimados. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 O primeiro e grande conflito que se prolonga até hoje é a luta pela terra. Povos são deslocados (exemplo do Xingu, onde grupos de índios deslocados para um determinado lugar para terem ali a possibilidade de viverem conforme seu modo cultural de ser2), e ameaçados, como os ianomâmis em Roraima. Cerca de 35 mil ianomâmis vivem hoje na floresta Amazônica, entre o Brasil e a Venezuela. No Brasil, são 19.338 (dados do DSEI Yanomami – Sesai, 2011) que habitam os estados de Roraima e Amazonas. Em 1992, o governo brasileiro demarcou uma área para esses indígenas, a Reserva Ianomâmi, com 96.650 km2 (BRITANNICA ESCOLA, 2016). Exemplos não nos faltam quando nos referirmosa conflitos entre os povos indígenas e os ocupantes próximos de suas terras. Felizmente, aos poucos, o Governo Federal vai delimitando essas terras, mas isso também não tem sido suficiente para que a sua exploração não ocorra. Em muitos lugares onde esses povos habitam se descobrem riquezas minerais, árvores centenárias e isso tudo tem despertado a ganância de exploradores que subvertem muitas vezes as lideranças desses povos para explorar suas áreas de modo desordenado e irregular. Se não bastasse a realidade dos indígenas dentro da cultura brasileira, temos outros tantos problemas que nos são próprios. Vamos pensar, agora, na realidade dos grupos afrodescendentes, herdeiros, em sua maioria, dos que foram forçados a vir para o Brasil como escravos e que aqui chegando tiveram que assimilar outra cultura. A imposição dos dominadores escravocratas os descaracterizou e até hoje seus descendentes ainda sofrem preconceito por conta da cor de sua pele. A chegada dos escravos na América provocou profundas mudanças e transformações nos continentes africano, americano e europeu. De acordo com Gomes (2015, p. 447), “As colonizações nas Américas produziram encontros desiguais, fundamentalmente experiências históricas, envolvendo trocas culturais, dominação, conflitos, protestos e confrontos que uniram, inventando, Europas, Américas e Áfricas”. Figura 3 – A crueldade da escravidão 2 O parque Indígena do Xingu (PIX), criado em 1961 pelo Governo Federal, está localizado no Estado do Mato Grosso e é composto por 2.642.003 hectares de terra. É composto por vários povos indígenas, cada um com sua cultura e língua própria. Para que não houvesse tanta discrepância entre os grupos, estes foram reunidos por cultura semelhante em três grandes regiões da área. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 A realidade dos africanos que aqui chegaram é diferente da realidade dos indígenas que viviam nas terras brasileiras. Os indígenas conheciam o terreno, tinham a possibilidade de “fugir” e um tipo de cultura que não os levava a trabalhar no modelo europeu para conseguir seu sustento. Já os africanos nada conheciam, tinham línguas e costumes diferentes e, assim como os indígenas, tinham que, em primeiro lugar, aceitar a cultura europeia e a religião católica. A imposição cultural sobre os africanos fez com que eles tivessem de buscar modos diferentes ou disfarçados de viverem sua cultura. Um exemplo claro é a religião: os santos cultuados pelos europeus receberam nomes africanos, conforme suas características. No Brasil, receberam o nome de religiões afro-brasileiras, pois a forma como são cultuadas aqui não é encontrada na África. Destacam-se dentre elas: a Umbanda e o Candomblé, as quais têm estruturas específicas e particulares. Como a liberdade faz parte da natureza humana, os escravos também buscavam constantemente organizar-se para fugir ou para comprar sua liberdade. A escravidão também não se deu de modo uniforme: cada região e cada senhor tinham seus próprios modos de agir em relação aos seus escravos. A escravidão existia no campo (lavoura) e também nas cidades. Da organização em busca da liberdade, surgiram os quilombos ou mocambos. Dentre as várias e complexas experiências históricas de protesto e agenciamento político nas sociedades escravistas destacam-se a formação das comunidades de fugitivos. [...] No Brasil, desde o período colonial, tais comunidades de fugitivos escravos receberam as denominações de quilombos ou mocambos. [...] A palavra quilombo/mocambo para a maioria das línguas bantu da África Central e Centro- Ocidental quer dizer ‘acampamento’ (GOMES, 2015, p. 449). A formação desses quilombos era a possibilidade de os africanos viverem de modo diferente da vontade dos senhores escravocratas. As próprias leis criadas no Brasil para “beneficiar” os escravos nada mais fizeram do que jogá-los ainda mais em uma realidade de exploração. São alguns exemplos: • Lei nº 3.270 de 28 de setembro de 1885 – Lei dos Sexagenários: visava criar uma matrícula aos escravos, que não seria dada às pessoas com mais de 60 anos. Veja o que afirma em seu artigo terceiro nos seguintes parágrafos: §10. São libertos os escravos de 60 anos de idade, completos antes e depois da data em que entrar em execução esta lei, ficando, porém, obrigados a título de indenização pela sua alforria, a prestar serviços a seus ex-senhores pelo espaço de três anos. §11. Os que forem maiores de 60 e menores de 65 anos, logo que completarem esta idade, não serão sujeitos aos aludidos serviços, qualquer que seja o tempo que os tenham prestado com relação ao prazo acima declarado (BRASIL, 1885). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 Pensemos: uma pessoa que tenha vivido as condições mais absurdas de exploração, se chegar aos 60 anos, terá poucas condições trabalho. Para o seu senhor, essa pessoa se torna um peso, pois gera custos – ocupa espaço e se alimenta, por exemplo –, mas não gera lucro. Logo, libertar esses escravos significava largá-los à própria sorte para que buscassem uma forma alternativa de viver sem gerar custos ao seu senhor. • Lei nº 2.040 de 28/09/1871 – Lei do Ventre Livre: uma criança ao nascer e até chegar à idade de trabalhar era um custo para seu senhor. Ao libertá-la, esse custo não mais existiria. Logo, caberia à “comunidade” dos afrodescendentes providenciar o seu cuidado. Ao atingir sua idade para o trabalho era quase certo que ela ocuparia o lugar de trabalho de seus pais, servindo de mão de obra barata para o mesmo senhor. • Lei Áurea de 13 de maio de 1888 – nesse período, já era pacífico que o trabalho assalariado trazia mais vantagem para o mercado do que manter pessoas escravas. “Libertar” não era um ato de “bondade”, mas um ato econômico. A experiência de luta e organização dos trabalhadores no Brasil não está marcada tão somente pela formalização jurídica pela Abolição. Com o fim da escravidão – como um sistema social amparado por leis – o processo de lutas, e também as desigualdades, considerando os trabalhadores, suas etnias e relações de gênero, não desapareceram. A caracterização e reprodução das desigualdades ganham outras dimensões. O escravo vira negro. Como? Não mais havendo a distinção jurídica ente os trabalhadores, a marca étnica – e histórica da população negra é reinventada como fato social (GOMES, 2015, p. 462). A partir do que diz Flávio Gomes (2015), temos então um novo modo de encarar as pessoas dentro da sociedade brasileira. Agora, elas passam a ser classificadas por sua “cor”. Isso provoca diversos fenômenos sociais, como o branqueamento, que é um exemplo claro, expresso especialmente com o alisamento do cabelo para adequação ao que a sociedade considera padrão aceito. O bonito não é o cabelo preto encaracolado, mas o liso e loiro. Felizmente, hoje, isso está mudando e as pessoas começam a se ver como realmente são e não mais como a sociedade deseja que sejam. Uma questão muito atual é o sistema de cotas nas universidades (Lei nº 12.711 de 29/08/2012) e em concursos públicos (Lei nº 12.990 de 09/06/2014), além de outras leis criadas para aumentar as oportunidades para os índios, pobres e afrodescendentes. Esse tema sempre causa divisão de opiniões entre as pessoas. É importante combater qualquer tipo de discriminação: tanto aquela que se dá em razão da cor da pele quanto a gerada pela condição socioeconômica. Temos uma dívida social com esses grupos e, portanto, é necessário refletir sobre a busca pela sua inserção social. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 4 Discriminação social e cultural: questões migratóriasPara tratarmos desse tema, torna-se importante perceber algumas caminhadas que a sociedade brasileira empregou até se defrontar com os problemas da imigração, como a discriminação social. A discriminação social não é nova e há muito temos recorrido à legislação como uma forma de garantir direitos básicos, em especial de negros e índios. Precisamos, porém, ainda andar muito para defendermos os direitos e a liberdade dos migrantes. É importante constatar que a discriminação em relação ao migrante entra no bojo da discriminação quanto a povos que há muito estão presentes em nossa cultura e a influenciaram e influenciam de maneira profunda. Os migrantes constituem as populações que se locomovem dentro de um território próprio por tempo indeterminado. Já os imigrantes vêm de fora do território local. Em geral, os dois termos são aceitos, mas, às vezes, denomina-se migrante todo aquele que sai de um lugar e vai para outro com a intenção de melhorar sua condição de vida (econômica, social, familiar etc.) A forma como cada país se organiza leva muitas pessoas a buscarem outro lugar para viver. Essa é a realidade brasileira em relação aos refugiados, aos migrantes e a todos os que procuram nosso país como uma forma de aqui se estabelecer. Muitos vêm com o sonho de retornarem, outros vêm para ficar, o certo é que, a partir do momento que chegam, todos passam a constituir esse país chamado Brasil. Desde que os colonizadores europeus chegaram ao continente americano, muito se fez em nome de quem deseja dominar, buscando seus interesses, especialmente, os econômicos. A invasão significou o maior genocídio da história humana. A destruição foi de ordem de 90% da população. Dos 22 milhões de Astecas em 1519, quando Hernán Cortés penetrou no México, só restou um milhão em 1600. E os sobreviventes são povos crucificados, submetidos a maus-tratos, em condições piores que a dos judeus no Egito e na Babilônia e dos cristãos sob os imperadores romanos, como dizem, muitas vezes, bispos defensores dos índios (BOFF, 1992, p. 10). O próprio Ministério da Educação, no questionário do estudante do ENADE 2014, coloca entre as alternativas citadas a seguir (utilizando a classificação estabelecida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE) e justifica a necessidade de os estudantes responderem da seguinte forma: Este questionário constitui um instrumento importante para compor o perfil socioeconômico e acadêmico dos participantes do ENADE e uma oportunidade para você avaliar diversos aspectos do seu curso e formação. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 Como você se considera? A ( ) Branco(a). B ( ) Negro(a). C ( ) Pardo(a)/mulato(a). D ( ) Amarelo(a) (de origem oriental). E ( ) Indígena ou de origem indígena (BRASIL, 2014). O uso de muitas palavras para designar as pessoas leva a amenizar as diferenças entre elas. Assim, torna-se difícil estabelecer o que seria exclusão. Por meio do uso de palavras amenas, muitas vezes, o que não deveria ser socialmente aceito passa a ser, mesmo quando as palavras carregam em si uma forma de exclusão social grave. Parece que esses usos são feitos para que não se diga, por exemplo, que uma pessoa é negra, pois o termo é tido como pejorativo, quando, na verdade, não deveria ser. Pensando desse modo, podemos ainda classificar como o faz DaMatta (1993), que mostra que essa conceituação é também reproduzida mesmo pelos órgãos oficiais. Claro que se poderia justificar que a expressão é colocada ao lado de parda para que as pessoas entendam melhor e que haja uma fidelidade no modo como as pessoas se veem. Mas, aos poucos, esse tipo de classificação deveria ser evitado e até mesmo suprimido. Recordemos, então, que ética nos remete à convivência. É pelo fato de vivermos e convivermos que necessitamos da ética: O certo ético é um certo moral, é o ato correto, é o agir bem. Usando a terminologia popular, uma ação ética é uma ação do bem, um comportamento legal, não no sentido de ação de acordo com o texto da lei, mas com o significado que tem a palavra “legal” na fala do brasileiro (LACERDA; PESSOA, 2018, p. 12). Pensar então em uma vivência ética é pensar que se busca uma vocação eminentemente humana, fruto de seu convívio e diversidade. Fazemos parte do mundo, descobrimos com isso, a duras penas, às vezes, o certo e o errado e, para que não tenhamos que recuar e refazer tudo, a descoberta do que não é bom torna-se uma fonte inspiradora e um convite para que tenhamos atitudes com correção, pois determinados erros podem ser fatais. Imagine se, ao nascermos, recebêssemos em vez de uma certidão de nascimento, uma certidão de cidadania, e que essa certidão fosse a garantia de que nada pudesse ser desviado, mudado, alterado sem que todas as pessoas concordassem de que assim pudesse ser e o que vale para um valeria para os outros também? Será que, se isso fosse verdade, muitas coisas estariam ocorrendo no mundo de hoje? Todos devem recordar daquele ditado: “não faça aos outros o que não gostaria que fizessem para você”. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 14 E, para finalizar, Novaes e Lobo (2008, p. 5) apontam: Foram necessários dezessete séculos – a contar do nascimento de Cristo – para que nossos antepassados deixassem de ser vistos como uma peça de reposição na engrenagem dos reinos e impérios e, conquistando sua liberdade – a liberdade é um pressuposto do direito individual –, iniciassem uma nova luta para impor limites aos poderes ilimitados do Estado. Considerações finais Perceber o modo como as relações sociais foram se constituindo no Brasil nos ajuda a entender os modos como as pessoas passam a se relacionar e a se entender atualmente. Nesta aula, tentamos buscar a compreensão para abrir mão de entendimentos preconceituosos e partir para ações concretas. Não se pode mais admitir na sociedade brasileira, estabelecida de modo multicultural, modos de ação em que alguns se sobreponham aos outros. Somos uma nação constituída por vários povos. Não há uma única região em nosso país onde se possa dizer que há somente um fenótipo racial ou cultural. Vemos em especial os afrodescendentes e os indígenas, mas se poderia muito bem ver outros povos que para cá vieram e constituíram a nação brasileira, como os alemães, italianos, japoneses, árabes, judeus e assim por diante. Pode-se praticamente dizer que temos em nosso país os mais diferentes grupos de pessoas que para cá vieram e se estabeleceram. Todos os que aqui chegaram foram sempre bem recebidos; por que, então, há exclusão e preconceito contra indígenas e negros, especialmente? Sem dúvida, a pátria tem uma dívida social com esses dois grupos. São urgentes e necessárias a consciência e a ação. Muito se tem feito no Brasil nos últimos anos no sentido de se resgatar os menos favorecidos socialmente, porém, com certeza, muito se tem ainda para fazer. O desafio está não só nas mãos das autoridades, mas também nas mãos de cada um de nós, em nosso modo de nos relacionarmos e de nos entendermos com cada pessoa e com cada povo aqui estabelecido. O certo é que todos nós formamos um só país que deve ser entendido de modo multicultural e, por isso, temos como nação uma característica diferente da maioria dos países que foram se formando no mundo, tanto no presente como no passado. Referências BOFF, Leonardo. América Latina: da conquista à nova evangelização. São Paulo: Ática, 1992. ______. Virtudes para um mundo possível. v. II. Petrópolis: Vozes 2006. BRASIL. Lei n. 3270 de 28 de setembro de 1885. Regula a extincção gradual do elemento servil. Disponível em: <http://legis.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=66550>.Acesso em: 17 out. 2015. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 15 ______. Questionário do Estudante. INEP, 2014. Disponível em: <http://portal.inep.gov.br/ enade/questionario-do-estudante>. Acesso em: 17 out. 2015. BRITANNICA ESCOLA. Ianomâmi. Britannica Escola. Disponível em: <http://escola.britannica.com.br/article/483290/ianomami>. Acesso em: 16 out. 2015. DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco, 1993. GOMES, Flávio dos Santos. Sonhando com a terra, construindo a cidadania. IN: PINSKY, Jaime. História da Cidadania. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2015. GOMES, Mércio Pereira. O caminho brasileiro para a cidadania indígena. IN: PINSKY, Jaime. História da Cidadania. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2015. KAUFMANN, Matthias. Em defesa dos direitos humanos: considerações históricas e de princípios. São Leopoldo: Unisinos, 2013. LACERDA, Gabriela; PESSOA, M. Agir bem é bom: ética ontem, hoje e amanhã. São Paulo: Editora Senac: São Paulo, 2018. NOVAES, Carlos Eduardo; LOBO, César. Cidadania para principiantes – história dos direitos do homem. São Paulo: Ática, 2008. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 05 Problemas éticos e morais na atualidade Objetivos Específicos • Relacionar ética e moral nas condições socioculturais da atualidade. Temas Introdução 1 Desafios éticos atuais 2 Sociodiversidade e universalidade Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução Existem muitos aspectos em nossa sociedade sobre os quais devemos refletir, talvez até mais do que em qualquer outra época da humanidade. São temas que correm o mundo rapidamente, circulam pelas redes sociais e estão acessíveis a todos, como o terrorismo, a questão dos refugiados, a miséria, a fome, as epidemias de doenças facilmente curáveis, filas à espera de um atendimento médico, corrupção, violência contra mulheres, comércio de armas etc. Essa infinidade de exemplos representa dificuldades e desafios a serem enfrentados e, por outro lado, nos leva a uma reflexão profunda sobre a eticidade de atos citados e apresentados diariamente pelos meios de comunicação. Esta aula tem o objetivo de trazer uma série de reflexões sobre nossa realidade para que possamos analisar tais temas sob um enfoque ético. 1 Desafios éticos atuais Existem inúmeros desafios éticos na atualidade. Podemos citar, por exemplo, o apego à novidade e o desprezo à autoridade da tradição, o declínio do papel da religião como fonte universal de valores de conduta, o declínio da esfera pública, os contatos com outras culturas intensificados pela globalização, as questões relativas às diferenças, como intolerância, relativismo cultural e moral, entre outras. Não se pode deixar de lado, também, os avanços da tecnologia e seus impactos nas condições de trabalho, nas relações humanas, na medicina etc. De todas essas situações, temos, como fator de alta gravidade, a degradação do meio ambiente, fruto do desenvolvimento econômico, e assim por diante. Marcondes (2009, p. 10-11) apresenta uma reflexão sobre a origem de um dos maiores desafios éticos atuais, a relatividade de valores: Talvez o sentimento de crise que vivemos hoje tenha sua origem mais remota, em grande parte, na perda de referência a determinados valores e normas que começa a ocorrer após o início do período moderno (séc. XVII), com o surgimento de sociedades complexas, caracterizadas pela diversidade e pluralidade de crenças, valores, hábitos e práticas. Nesse período, o cristianismo, que havia sido desde a Antiguidade a principal referência do ponto de vista ético, passa por uma cisão profunda com o advento da Reforma (início do séc. XVI) e das várias correntes do protestantismo que resultam desse processo. Encontramos a partir daí a defesa da necessidade de uma ética filosófica desvinculada da ética religiosa, que supõe a fé e a adesão a uma religião determinada. A descoberta da América (1492) contribui também para isso, revelando outros povos e sociedades com hábitos, práticas e valores radicalmente diferentes dos adotados pelos europeus daquela época. Temos aí provavelmente a primeira grande Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 experiência social de relatividade de valores e normas de conduta, deixando claro que o que é válido, ou considerado ético para alguns não o é para outros. Embora os filósofos gregos já houvessem discutido a questão da relatividade dos valores éticos, é talvez a partir desse momento que a questão se torna mais crucial e mais ampla, vindo a ser objeto central da reflexão filosófica. As mudanças refletidas em nosso contexto não são gestadas dentro de um só período. O mundo não se altera rapidamente de um momento para outro, mas as mudanças e os desafios organizam-se até que sejam efetivados. Na citação de Marcondes (2009) encontramos justamente isso: desde o mundo moderno, com todas as suas alterações, temos consequências reverberadas até hoje. Da mesma forma, fatos e situações de hoje terão reflexos no futuro. Pensar uma sociedade é buscar entender um dos fenômenos mais ricos em nosso mundo contemporâneo. Populações formam países, pátrias, e estas produzem situações profícuas em muitos aspectos. Precisamos fazer despontar o que há de melhor em nós, na aceitação de todos, nas riquezas e belezas minerais, entre outros. O Brasil se destaca em muitas coisas (tem tecnologias inovadoras e apresenta espetáculos únicos, como o carnaval) e não devemos nos desvalorizar e pensar que somos piores que outras pátrias (“o que se vê é corrupto”, somos um país excludente, a violência está generalizada etc.). Muitos dos nossos valores não são divulgados ou sequer percebidos por nós. Os povos representam dicotomias e, como não poderia ser diferente, pessoas também são dicotômicas, ou seja, têm dificuldades, defeitos e cometem erros, mas ao mesmo tempo podem ter sentimentos positivos, ser solidárias, amigas, companheiras etc. Por um lado, há aquelas que agem corretamente e, por outro, as que não o fazem, há pessoas responsáveis e outras irresponsáveis e assim sucessivamente. Nossa realidade é rica de elementos conhecidos e por conhecer – é preciso, então, estar atento e disponível para descortiná-la. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 Por sermos um mundo com as mais diversas e inimagináveis realidades, nossos desafios éticos e morais atuais não foram pensados em outras épocas. Vive-se um momento diferenciado em nosso contexto social, assim como ocorreu em outros momentos da história da humanidade. Por exemplo: os desafios do Império Romano de expandir-se territorialmente para uma população altamente urbanizada e o fim dos impérios antigos; a sociedade medieval e seus dilemas filosóficos, econômicos e sociais; o surgimento da moeda, a qual tomou o lugar do escambo; o reordenamento das cidades no mundo moderno; os desafios da ciência e da urbanização intensa. Todos esses momentos levaram a humanidade a defrontar-se com situações jamais imagináveis. Diante disso, cabe perguntar como encontrar um espaço para o bom convívio social. Onde pode-se estruturar o respeito, a responsabilidade e a alteridade de uns em relação aos outros? O que está em causa, fundamentalmente, é a metamorfose da população em povo, entendendo-se a população como uma pluralidade de raças e mesclas, e povo como uma coletividade de cidadãos. Uns querem circunscrever os membros da população à condição de trabalhadores:sem luxúria nem preguiça. Outros querem a transformação do negro, mulato, índio, caboclo, imigrante em cidadãos. E há aqueles que procuram mostrar as desigualdades sociais, econômicas políticas e culturais que constituem e reproduzem as desigualdades raciais. No conjunto, todos estão lidando com as condições de constituição e organização da sociedade civil (IANNI apud DIMENSTEIN, 2008, p. 63). Se analisarmos historicamente, podemos perceber que os direitos atuais não divergem daqueles já expressos nas antigas cidades e que tinham, no direito romano, sua justificativa, assim como as obrigações, o respeito e o entendimento sobre as diferenças. O que se tem hoje é a complexidade das sociedades, cada vez maiores, mais segregadoras e excludentes diante de conhecimentos que nos fazem pensar que a humanidade não pode agir e ser desse modo. As fontes dos direitos do homem: são três, pois, as coisas que temos: ‘a liberdade, a cidade, a família’. A liberdade era tida como a fonte radical dos direitos do homem; a posse de uma família e a posse da cidade (cidadania) requeriam, para cumprir a finalidade de outorgar direitos ao homem, a existência prévia da liberdade (ZERON, 2015, p. 97). Da forma como o texto está estruturado, percebe-se que os valores foram e são fundamentais para todas as pessoas: a liberdade, a família, pertencer a uma cidade ou ser cidadão. Cabe chamar a atenção para um fato significativo, que é a referência à família e Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 à cidade. Termos um nome, um lar, uma cidade onde habitar é fundamental para nossa identidade e para nosso desenvolvimento humano. Por outro lado, isso também nos traz questionamentos: com quantas pessoas nos deparamos na rua, moradores de rua, sem lar, sem família e até sem nome? São apenas mais um no rol dos tantos sem “rosto” ou nome, relegados a um ostracismo desumano. Segundo Dimenstein (2008, p. 177): As questões éticas e morais muitas vezes estão relacionadas com aquelas que o direito também prescreve. São as regras de comportamento, os códigos e as leis, com suas penas e punições. Há também questões bem simples. No convívio social, não é difícil ter noção de como agir [...]. Ter consideração pelos mais velhos, solidariedade com o próximo, gentileza no trato social, respeito pelo meio ambiente ou urbanidade, no trânsito e nas relações de consumo. Embora o texto coloque que muitas questões podem ser consideradas simples, a realidade humana é complexa, o que leva as pessoas a agirem de formas diferentes. As relações humanas geram situações muito difíceis de serem resolvidas e nem sempre a realidade que é expressa por uma pessoa é encontrada e vivida por outras. O desafio do convívio social é justamente chegar ao consenso de que conviver de forma pacífica é o melhor para todos. Quando pensamos em questões éticas, é sempre importante pensar o que se entende por esse termo: entenderemos ética como a reflexão sobre a realidade, o que se vive em determinado contexto e época, como o conhecimento do que é justo e injusto, certo e errado, e que visa determinar padrões de conduta, os quais denominamos de moral. A ética é uma reflexão sobre as ações humanas, e as ações humanas pautadas pela reflexão ética são chamadas de moral. A história do Brasil é rica em exemplos de homens públicos que agem em benefício de seus interesses particulares, desrespeitando as condutas éticas que deles se espera. Ao contrário do que muitas pessoas pensam, entretanto, as manifestações da população contra esse tipo de comportamento têm contribuído para afastar da vida pública muitas pessoas julgadas culpadas desses desvios (DIMENSTEIN, 2008, p. 157). Muitos movimentos têm tomado conta das ruas Brasil afora. Por exemplo, movimentos sindicais, estudantis, ecológicos, em defesa da Amazônia, pela reforma agrária, contra a corrupção etc. Para vivermos em sociedade, é necessário desenvolver um aspecto fundamental e que sempre foi priorizado pelos filósofos, em especial, aqueles que pensaram a ética, que são as virtudes. De acordo com Japiassú (2008, p. 182), “em um sentido ético, a virtude é uma qualidade positiva do indivíduo que faz com que aja de forma a fazer o bem para si e para os outros. [...] designa uma disposição moral para o bem. [...] As virtudes designam formas particulares dessa disposição para o bem: a coragem. A justiça e a lealdade”. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 A partir desse conceito, pode-se perceber que temos a possibilidade de desenvolver muitas virtudes em nosso convívio social. Elas são importantes e, até mesmo, imprescindíveis para a existência de uma sociedade que busca o convívio efetivo de todos. Cabe-nos destacar, por ora, algumas dessas virtudes ou valores, que são o respeito, a responsabilidade, a alteridade e a multiculturalidade. 1.1 Respeito e alteridade Respeito significa ser responsável por si, o que, consequentemente, é ser livre. O respeito deve fazer-se diante da consciência moral, da honestidade, para consigo e para com os demais. Sem o respeito à consciência moral não há dignidade e, portanto, não há um autêntico amor a nós. Mas não basta respeito se este não vier junto da responsabilidade. A humanidade, em muitos momentos da história, tratou pessoas e determinadas civilizações de modo diferenciado, o que as colocava em situações de superioridade/ inferioridade em relação às demais. Quem se encontra nesta última é considerado “menos digno” e quem se encontra em uma situação de superioridade – com trabalho, com direito a conquistas coletivas, por exemplo –, aparenta ser melhor e essa situação é colocada como verdade absoluta. Mas o que se vê é que essa sobreposição de uns sobre os outros fez-se, muitas vezes, com imposição de força e poder, e que, em condições de igualdade, as pessoas podem, de certo modo, desenvolver o mesmo comportamento. O entendimento sobre o que vem a ser respeito e alteridade exige que se busque uma conceituação e vamos iniciar pela origem da palavra em latim: “respectus: olhar para trás, vista (retrospectiva); consideração, refúgio, asilo. Respectus é o particípio passado do verbo respicere, isto é, olhar novamente. E a palavra respecto: olhar (muitas vezes) para trás; olhar fito, fitar, mirar. Aguardar, esperar” (KOEHLER, 1938, p. 385). Podemos também buscar o termo em um dicionário atual, no qual encontramos: “cumprir, acatar, observar. Considerar, reconhecer, admitir, aceitar. Respeito: consideração, deferência, reverência” (BECHARA, 2011, p. 115). E em um dicionário de filosofia, encontramos um conceito mais amplo: O respeito é sentimento da ordem fundadora que se impõe a todos e pela qual todos devem zelar: ele não é apenas temor, mas também contenção, pudor, vergonha modéstia, recusa de abusar de sua força ou de seu direito, escrúpulo, consideração, indulgência, piedade. O respeito dirige-se ao mesmo tempo à força a força a temer e à fraqueza a proteger, das quais reconhece o caráter sagrado. [...] Na sociedade moderna igualitária, o indivíduo tende a fazer respeitar seus direitos e explorar ao máximo seu direito, em vez de respeitar o direito de outrem, ou simplesmente, de respeitar outrem. No limite, o irrespeito é erigido como valor ao mesmo tempo em que é ironizada, em nome da igualdade, qualquer pretensão a uma diferença de condição ou de valor. [...] a sociedade moderna do indivíduo tende a valorizar [...] Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 um presente sempre renovado, sem espessura histórica, sem passado e sem futuro, efêmero, no qual tudo se equivalee nada tem valor, e onde a derrisão substitui o respeito (CANTO-SPERBER, 2003, p. 502). Em qualquer um dos sentidos, não se pode pensar em respeito sem a presença do outro (alteridade). A alteridade é a visão, a perspectiva do outro, e é justamente por causa da presença do outro que encontramos os motivos pelos quais podemos solicitar, pedir, lutar para que o respeito se instaure. É importante compreender que o respeito tem um significado especial provocado pelo conhecimento de um valor moral em uma pessoa em relação aos outros (em um sentido amplo, atualmente, esse outro pode ser entendido como qualquer ser vivo), e que atinge a todos. Ninguém está isento do respeito que deve ter por si e pelos demais. Esse respeito em relação ao outro dá-se pelo fato de sermos humanos. Essa relação é uma via de duas mãos, eu respeito e devo, do mesmo modo, ser respeitado; é uma relação mútua. Para desenvolvermos uma relação de respeito, precisamos ser criativos, acolher, corrigir, desenvolver uns aos outros, por isso a criatividade é importante. Se realizarmos apenas uma descrição dos outros e os olharmos como seres distantes – incapazes de desenvolver afetividade e proximidade –, torna-se impossível estabelecer uma relação capaz de nos completar plenamente como seres humanos. Se as pessoas permanecerem alheias umas às outras, elas não conseguirão desenvolver laços e relações. Ao mesmo tempo, se permanecerem unidas demais, perdem a sua identidade, porque anulam-se mutuamente ou tornam-se objetos da vontade das outras. É nesse sentido que entendemos a importância da criatividade, para que saibamos nos encontrar com os outros e, ao mesmo tempo, respeitá-los. Respeitar não é ser conivente com o que o outro tem de errado, concordar com o que normalmente é admitido como bom com o que tenha valor apenas para alguns. O respeito é um ato mais profundo e exige correção. Esta deve ser capaz de levar o outro a dar-se conta de seu erro e direcioná-lo a um novo rumo, que possibilite desenvolver suas capacidades o mais plenamente possível. É preciso compreender que cada pessoa é única e irrepetível, com suas peculiaridades, seus erros e defeitos, assim como valores positivos. Portanto, o respeito deve acolher o que não se pode alterar. Na dimensão da humanidade, isso não ocorre, pois tudo o que a constitui pode-se alterar e se adaptar à vontade das pessoas. O respeito à dignidade das pessoas está fundado em uma crença sobre a nossa capacidade e sobre o nosso potencial de ação. Muitas vezes, a falta de respeito está em uma Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 relação direta com a descrença em relação às capacidades do outro – o qual, quando não corresponde às expectativas sobre ele colocadas, passa a ser desprezado e desconsiderado. Quanto mais diminuímos o outro, mais e mais perdemos a nossa responsabilidade sobre nós mesmos. Se não sou responsável pelo outro, também não preciso respeitá-lo, o que é uma ilusão baseada em crenças, e não em uma realidade fatídica. Quando uma crença é divulgada como verdade e todos passam a crer nela, essa verdade universaliza-se e poucos conseguem desmitificá-la. Para Boff (2006, p. 54): “o respeito supõe reconhecer o outro em sua alteridade e perceber seu valor intrínseco. [...] reconhecer o outro como outro: tal atitude representa um desafio imenso para cada pessoa e para a sociedade”. A busca pelo respeito não deve se dar isolada de uma visão maior de mundo. As pessoas devem dar-se conta de que o respeito é um valor a ser aprendido e que se ensina. Ele surge da própria percepção de que todos os seres estão interligados, a criança, o jovem e o adulto de hoje são continuação de um idoso que também já foi e contém, em si, tudo o que as pessoas nas fases anteriores apenas estão desenhando em sua vida. Demócrito foi um dos primeiros filósofos a pensar sobre o respeito sob uma concepção de mutualidade, isto é, devemos nos respeitar do mesmo modo como respeitamos os outros e vice-versa, nem mais nem menos. Um dos fundamentos importantes para admitirmos o respeito é que, a partir desse conceito, conseguimos ordenar nossa vida em sociedade, mantendo vínculos essenciais para nós. O respeito torna-se, assim, fundamento de um bem maior para todos. Não podemos ser ingênuos e pensar que o respeito sempre foi praticado. Devemos ser claros e perceber que a falta de respeito sempre existiu e existirá, pois somos sempre capazes de transgredir; a transgressão nos leva a ter atitudes desrespeitosas em relação aos outros. Outro aspecto que não podemos deixar de salientar é que o respeito se refere às pessoas, não às coisas. Não respeitamos coisas, mas respeitamos pessoas, seres capazes de manter uma relação de plenitude, de nos constituir, de nos ajudar a nos desenvolver naquilo do que somos capazes. Perceber o modo de ser e agir respeitosamente nos toca de modo sensível, sentimento com o qual não nos deparamos quando nos defrontamos com as coisas. Coisas não são capazes de reciprocidade, de afeto, de relação de amor, de desenvolvimento ou de vínculos. Coisas são objetos com os quais estabelecemos uma relação de posse, domínio e uso, o que, em tese, não pode ser estabelecido com as pessoas. Assim, podemos dizer que agir com respeito é reconhecer nas pessoas ou em si mesmo Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 uma dignidade que se tem o dever de cuidar, para que ninguém venha a maculá-la, feri-la, destrui-la. Esse sentimento vem da consciência que devemos despertar em cada um de nós, seja por nossas ações, palavras, lutas ou organizações. Muito podemos alcançar se entendermos que somente atingiremos o que desejamos se fizermos, em primeiro lugar, o que desejamos que os outros façam e, em segundo lugar, se buscarmos formas de levar os outros a entenderem que, como diz o dito popular, “respeito é bom e todos nós gostamos”. Tal atitude não pode ser imposta por nenhum código, não se compra em balcão de supermercado, mas pode ser desenvolvida pelas pessoas, desde que se preparem e se comprometam a agir desta forma. 1.2 Responsabilidade e multiculturalidade É mais do que urgente que pensemos no papel dos cidadãos na construção de uma sociedade inclusiva e que defenda, em primeiro lugar, uma perspectiva de vida para todos e não apenas para alguns. Isso é responsabilidade de todos, não só dos políticos, dos empresários e das instituições. Cidadania sem participação não existe e a isso também se denomina sociedade multicultural. É importante perceber que temos um papel a desenvolver dentro da sociedade e que este papel pode enriquecer ou empobrecer o mundo. Tudo depende do modo como enfrentamos os problemas e vemos a sociedade, e é dessa compreensão que surge a necessidade de participação. A partir disso, podemos tornar o mundo melhor ou deixar que os outros o façam. Cada um realiza um papel social a partir de seu entendimento de mundo e de sua concepção de justiça. A capacidade de cada um deve ter um fundamento metafísico (ontológico). Ou seja, não se tira “o fundamento” de algo que o ser humano faz, ao contrário, ele está em algo que é maior que o próprio ser humano. Ou seja, é a capacidade de liberdade, de poder escolher de modo consciente e deliberadamente, ou seja, a responsabilidade. Conforme Gomes e Moretti (2007, p. 3): “O termo responsabilidade social, embora esteja em voga no novo vocabulário das empresas, não está plenamente definido e não encontrou ainda um grau de estabilidade semântica [...]”. Do mesmo modo, a multiculturalidade é tão ampla e rica em possibilidades que não se consegue visualizar em sua totalidade. A responsabilidadeestá no poder que temos de causar um dano ou um benefício a todo aquele que estiver dentro das possibilidades de ação. A palavra responsabilidade significa que eu tenho que responder por minhas ações, assim como respeitar ou não aquilo que é valioso. O contrário da responsabilidade é a irresponsabilidade porque não se responde pelo que é valioso. Por isso, exercer um poder sem a observância do dever constitui uma ruptura a uma fidelidade diante do que é importante. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 Segundo Mora (2001), uma pessoa é responsável quando está obrigada a responder por seus próprios atos. A grande maioria dos filósofos está de acordo que o fundamento da responsabilidade é a liberdade da vontade. Com efeito, em um mundo cujos fenômenos estivessem todos inteiramente determinados, a responsabilidade se desvaneceria. Temos visto um crescente desenvolvimento pautado pelo egoísmo e egocentrismo. Mas o que se deve buscar dentro de um princípio de responsabilidade é uma posição ética baseada na solidariedade, que é uma das primeiras fontes da ética, e na compreensão de uns para com os outros. Só pessoas que pensam a partir de um coletivo podem colocar, em sua reflexão e em sua ação, o outro como esse ser que busca uma justiça para poder viver em sociedade. Só tem essa compreensão quem entende ser sua responsabilidade a forma de viver em sociedade como uma forma de inserção de todos e para todos. Se algum dia houver uma sociedade politicamente engajada e empreendedora, poderemos dizer que se vive uma realidade ideal. Falar de responsabilidade é também falar de cidadania e do papel ativo que devemos ter como agentes sociais autônomos e solidários e garantidores dos direitos humanos e dos princípios democráticos desde nossos comportamentos e desde a exigência ética diante dos demais. Em definitivo, uma ética da responsabilidade deve ser uma ética da ação comprometida como a mudança social (MERINO, 2004, p. 6). O que devemos entender então por responsabilidade? O tema é complexo e, nesta aula, vamos apontar alguns indicativos para que possamos iniciar uma reflexão sobre nosso papel de responsáveis pelo social. Posso ser responsável pelo o que me é confiado e pelo o que emocionalmente estou empenhado. Se a responsabilidade tiver, como um de seus motivos, o amor, então, está além de um dever, pois está inspirada pela devoção da pessoa que estremece a coisa digna de ser amada. Existem dois tipos de responsabilidade: a natural e a contratual. A responsabilidade natural tem, como exemplo maior, a relação familiar; os pais, por exemplo, têm obrigação de buscar o desenvolvimento da capacidade e da vida dos filhos. A responsabilidade contratual, como diz a palavra, por outro lado, é aquela firmada entre as pessoas, em uma sociedade, em um acordo etc. Entre as duas, a responsabilidade natural é a mais forte e, ao mesmo tempo, menos definida, mas é fundamento original de qualquer outra forma de responsabilidade. Ela estabelece como princípio de toda responsabilidade a totalidade, a continuidade e o futuro. • Totalidade: porque não se vê nem se trabalha apenas com uma parte, se é responsável pelo todo (embora nem sempre consigamos fazer ações que envolvam a totalidade). • Continuidade: pois nosso existir deve garantir o direito à existência do outro. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 • Futuro: somos responsáveis pelo futuro; desta forma, não temos direito de exterminar no presente a vida e as possibilidades dos que nos sucederão. O viver é um exercício de responsabilidade e, ao mesmo tempo, condição impreterível para que ela seja exercida. A garantia de toda responsabilidade é a própria vida. Nossa primeira responsabilidade é para com o que foi feito pela natureza, ou seja, é nossa obrigação cuidar do meio ambiente e preservá-lo, para que não haja desequilíbrio no futuro. A segunda, mas não menos importante responsabilidade, é com os mais debilitados, mas isso exige que se faça uma transformação da realidade social geradora dessas exclusões, por isso, é preciso que se pense em ações políticas que visem essa mudança. É preciso tomar atitudes econômicas, o que pode ser, em um primeiro momento, retirar as pessoas de uma situação desumana, mas, especialmente, desenvolver atitudes de capacitação, para que as pessoas possam atuar socialmente e gerar o próprio sustento. Para chegar a esse ponto de consciência ou de ação, é preciso reconhecer o outro ou a realidade como recíproca. Responsabilidade social não deve ser confundida com altruísmo, filantropia ou realizar alguma atividade com vista a algum ganho futuro. Devemos nos interessar pelos outros de modo não interesseiro. Essa compreensão quebra a lógica de políticos que agem para ganhar votos e daqueles que gostariam de beneficiar-se socialmente e até fazer uma propaganda “barata” (de baixo custo) para seus produtos. Quem pensa desse modo não age em vista de um benefício social. Ser responsável socialmente é entender que quem está em primeiro lugar é a sociedade e que se a sociedade como um todo é beneficiada, todos em sua individualidade também o são. Por isso, a responsabilidade social é a ação que tomamos com o intuito de evitar danos e produzir o maior número possível de benefícios sociais. Adaptando o conteúdo expresso no Livro Verde da União Europeia, podemos conceituar a responsabilidade social da empresa como: conceito pelo qual as pessoas decidem contribuir voluntariamente para melhorar a sociedade e preservar o ambiente mais limpo. Ser socialmente responsável não se restringe ao cumprimento de todas as obrigações legais – implica ir mais além por meio de um “maior” investimento em capital humano, no ambiente e nas relações com outras partes interessadas e comunidades locais (COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS, 2001). Compreender a vida e a organização social, conforme expresso nessa publicação, leva à conscientização sobre o impacto da ação que se realiza em sociedade e, em especial, expressa o compromisso de contribuir para o desenvolvimento econômico, para melhorar a qualidade de vida das pessoas, das famílias e da comunidade local. A ação desenvolvida deve começar a partir dos menos favorecidos socialmente, até chegar àqueles que, não tendo a mesma consciência, possam despertá-la por meio de Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 um processo de desenvolvimento de políticas públicas, de empresas que incentivem seus trabalhadores e familiares a realizar ações, de partidos políticos, igrejas, ou seja, de toda a sociedade civilmente organizada. A responsabilidade social ocorre quando as pessoas tomam consciência de seu papel social, isto é, quando percebem que, com sua participação, podem contribuir para que as melhorias almejadas por cada um e por todos venham a concretizar-se. Quando se supera a visão egocêntrica, os outros são colocados como um parâmetro para a realização de ações de melhorias efetivas. Estabelecer quais valores são bons para a sociedade não pode ser feito isoladamente. É preciso buscar nas organizações, no público participante e contar com a ajuda dos envolvidos na situação-problema para que se possa efetivar uma ação socialmente ética com o devido equilíbrio. Desta maneira, a definição da responsabilidade como qualidade humana deve dar-se de forma contextualizada e em função de três atributos: o papel social que estamos desempenhando, a situação relacional na qual este se dá e as peculiaridades pessoais dos atributos que interagem na mesma (MERINO, 2004, p. 5). Quando a ação envolveseres humanos, é preciso estabelecer um diálogo, uma negociação entre os envolvidos, para que o que se realize seja o melhor. Isso é um entendimento amplo de responsabilidade, que só é efetiva porque é desenvolvida socialmente. Quem realmente entender esse conceito compreenderá que não se pode ficar de braços cruzados diante da realidade presente. Eis a nossa responsabilidade. 2 Sociodiversidade e universalidade Sabemos que as sociedades são resultantes de formações múltiplas, compostas por vários povos que se deslocam de um lugar para outro, com os mais diferentes propósitos. Os indígenas que aqui estavam quando da ocupação europeia, os africanos escravizados que se espalharam pelo mundo todo, os advindos do processo migratório atual (para fugir de guerras, conflitos e pobreza), os europeus, os árabes, os japoneses, chineses e, assim, sucessivamente, foram espalhando-se pelo mundo. No século XIX, havia a esperança de encontrar uma terra prometida. No século XX, há o princípio de globalização, quando as barreiras entre os países são cada vez mais efêmeras. E, no princípio do presente século, por motivos religiosos, econômicos, políticos etc., há o deslocamento de pessoas pelo mundo. Somos cada vez mais um planeta globalizado, isto é, um planeta no qual as fronteiras são cada vez menos rígidas. Dessa situação, formam-se novos contextos culturais e percebe- se, cada dia mais, que valores se universalizam, porém, admitidos geralmente pela classe dominante, que se estrutura para fazer com que seus valores sejam aceitos: consumo, difusão cultural, língua universal etc. são alguns exemplos. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 Com a vinda de diversos povos para o Brasil, são trazidos traços culturais, históricos e o anseio de atingir objetivos para a melhoria de sua situação social e econômica. Assim, alguns partem com o intuito de enriquecer e voltar para sua terra de origem, outros vão atrás do sonho da terra prometida, na qual possam encontrar abundância e possibilidade de crescimento. De acordo com Demanat (2015, p. 377), “o bom senso sugere que ‘quanto mais diferentes, mais difícil será a coexistência’ [...] Mais importante do que a distância cultural parece a existência de ‘tons de cinza’. [...] Existe no Brasil uma escala infinita de graus de cor de pele que mitigam (mas também mascaram) a questão racial”. A forma como cada um chegou ao país fez com que se formassem concepções errôneas e preconceituosas, algumas reproduzidas até hoje. Por exemplo, a crença de que os pobres permanecem nessa condição porque não querem trabalhar e estudar; e a ideia de que todos têm as mesmas oportunidades e são iguais perante a lei. Isso não se reflete, porém, na realidade. Há uma necessidade de praticar-se a inclusão social urgente em nosso país, que pode ser favorecida pela educação, uma forma de desenvolver as capacidades e potencialidades das pessoas. Uma vez tendo as mesmas oportunidades, existiriam as mesmas chances para todos. Na prática, não é isso que encontramos, pois nem todos têm as mesmas oportunidades e as discriminações são grandes. Uma coisa é certa e não podemos deixar de refletir: há um ditado popular no Brasil que todos já devem ter ouvido falar alguma vez em nossa realidade: “não adianta só dar o peixe, é preciso também ensinar a pescar”. O sociólogo Betinho (Herbert de Souza), após lançar a ação da cidadania contra a miséria e pela vida, em 1992, costumava dizer “quem tem fome, tem pressa”. Ou seja, “dê o peixe agora para evitar que a pessoa morra de fome”. Mas também ensine a pescar para que deixe de depender de quem lhe dá o peixe (DIMENSTEIN, 2008, p. 297). Segundo Luca (2015, p. 487-488): O direito de voto foi universalizado, por meio da extensão facultativa aos maiores de 16 anos e aos analfabetos, que tiveram sua cidadania política reconhecida. Ampliou- se a noção de democracia, entendida como ativa e participativa, tal como estipula o artigo 14. O ministério público, por sua vez deixou de ser parte do poder executivo para tornar-se uma instituição independente. Se observarmos o que foi dito anteriormente, já se poderia dizer o quanto é benéfica, por exemplo, a inclusão de cidadãos à margem da sociedade e que, por ora, são inseridos no contexto social. Mas Luca (2015, p. 488) vai além, citando alguns exemplos para reforçar essa ideia: Os direitos foram amplamente assegurados pelo artigo 52 e seus mais de setenta incisos, que inovaram ao criar o habeas data, que assegura aos cidadãos o Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 14 conhecimento de informações constantes em entidades de caráter governamental ou público; ao assegurar a prática do racismo como crime inafiançável, condenar expressamente a tortura. Ao estabelecer o mandato de injunção cabível quando a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades, e ao determinar a defesa do consumidor, cujo código passou a vigorar em março de 1991. Estamos tão acostumados com essa realidade em nosso cotidiano que tudo o que foi dito parece óbvio. Somos membros de uma sociedade que já passou por estágios e os mencionados também não são novos, embora se possa dizer que ainda não foram efetivamente realizados em sua totalidade. O intervalo de tempo entre a promulgação da Constituição de 1988 e os dias de hoje nos leva a entender que a realidade brasileira, por sua própria complexidade, ainda precisa enfrentar grandes desafios. Ainda é preciso um maior engajamento de todos em projetos educacionais. A melhora na distribuição de renda, por exemplo, está entre os maiores desafios que temos. E toda sociedade sempre os terá, pois, uma vez atingindo um patamar, surgirão outros, e está aí a dinâmica da vida e do ser humano. Durante um longo período os grupos étnica ou culturalmente diferenciados sofreram um processo de exclusão, sendo exterminados, marginalizados ou absorvidos pela sociedade nacional sem qualquer reconhecimento às suas formas peculiares de viver e de agir. Após a abertura dos espaços de reivindicação proporcionados pela afirmação da democracia, a expressão de identidades diferenciadas num mesmo cenário nacional passou a se tornar possível, ocasionando uma significativa transformação ocorrida no relacionamento entre o Estado e grupos sociais minoritários, baseada fundamentalmente no reconhecimento constitucional acerca do caráter pluricultural da composição de sua população (FERREIRA; FERREIRA, 2012, p. 151). A diversidade social surge pela própria constituição da sociedade. Cada indivíduo é diferente, tem suas características próprias e ao reunirem-se em sociedade, as diferenças entre as pessoas surgem como algo natural. A diversidade também pode ser criada pela forma como a sociedade se estrutura e organiza. Assim, criam-se as diversidades naturais e que são altamente positivas, pois, ao sermos diferentes, conseguimos fazer uma sociedade melhor. Quando, porém, observamos a diversidade excludente, identificamos problemas sociais sérios e que demandam a intervenção dos poderes constituídos para que essas diversidades não sejam motivos de conflitos maiores, porque, em si, já são conflituosas. Cabe às autoridades intervir para que essas diversidades sejam equacionadas da melhor forma possível. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 15 Leonardo Boff, em seu livro A águia e a galinha (2010), chama a atenção para a dicotomia e a diversidade do ser humano. Vivemos e, do modo como nos educamos, nos constituímos socialmente de forma que podemos agir de uma ou de outra maneira, mas nunca conseguimos destruiresses dois seres que habitam em nós: a galinha, que representa a acolhida, é a ave que sempre está junto ao ser humano. Já a águia tem a possibilidade de lançar voos cada vez mais altos, mas sem perder a dimensão, o objetivo e o que busca. Essa diferença entre os seres nos leva a viver de um modo ou de outro. Quando a diversidade é produzida socialmente, ela gera desigualdade, colocando as pessoas em diferentes realidades, por exemplo: níveis de escolaridade; falta de atendimento de saúde; falta de moradia; exploração pelo trabalho; uso dos bens da terra (enquanto em algumas regiões há desperdício de água, falta água potável em outras); falta de luz elétrica por carência de redes e assim por diante. Exemplos não nos faltam para mostrar que a sociedade produz os incluídos e os excluídos, e se essa exclusão é produzida pela sociedade para benefício de alguns em detrimento de outros, cria-se uma diversidade não aceitável e eticamente injustificável. Vamos nos aprofundar em um exemplo de diversidade para termos ainda mais clareza sobre o tema: a questão de gênero. 2.1 A questão de gênero Muito tem sido escrito e pensado sobre a questão de gênero e o enfoque que mais se destaca é em relação à mulher. Isso não é sem razão: em nossa sociedade, ainda impera uma cultura machista e de poderio do homem. Destaca-se aqui o que se deve entender pelo conceito de gênero: “Quando falamos de ‘gênero’, estamos nos referindo aos processos sociais e históricos nos quais os indivíduos se constroem e se reconhecem enquanto ‘homens’ ou ‘mulheres’” (MORAES; CAMARGO; NARDI, 2015, p. 148). O papel social desempenhado pelas mulheres foi sempre visto como inferior e essa realidade aparece no contexto social há muito tempo: o homem tem o poder e coordena e domina a sociedade, tudo é feito por ele e para ele. Nas cidades-estado, encontramos situações parecidas com as que se presencia atualmente: [...] embora a posição das mulheres variasse em cada cidade, em cada âmbito cultural, é fato que elas permaneceram à margem da vida pública, sem direito à participação política, restringidas em seus direitos individuais, tuteladas e dominadas por homens que consideravam o lar, o espaço doméstico, como o único apropriado ao gênero feminino. As mulheres eram, certamente, membros da comunidade – mas membros, por assim dizer, menores (GUARINELLO, 2015, p. 37). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 16 Esses conhecimentos históricos são importantes para fazermos uma análise da situação atual e verificarmos que a exploração de pessoas sobre pessoas não é fato recente. Nos serve ainda para constatar a importância do resgate e da inclusão de todos para dentro da sociedade. O ideal da domesticidade estipulou para as mulheres um modo de vida restrito à administração doméstica; na medida do possível, as filhas de ‘boa família’ deveriam ficar em casa. Entretanto, as práticas sociais nem sempre seguiam à risca os discursos. [...] Ao mesmo tempo em que as tradições relativas aos sexos se renovavam, mesmo mulheres das classes privilegiadas [...] encontraram formas de atuação no espaço público, nas cidades, e viram suas vidas transformadas (PINSKY; PEDRO, 2015, p. 273). Não basta que leis e direitos sejam reconhecidos, é preciso ações efetivas para que esses direitos sejam garantidos. Não adianta a Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhecer que todos nascemos iguais em direitos se estes não forem concretamente praticados. Esse é um dos tantos desafios éticos para nós atualmente. A liberdade e as possibilidades de expressão presentes podem ser manipuladas e aprisionadas por um tempo, mas não para sempre. Mais cedo ou mais tarde, elas aflorarão. O ser humano é um ser de liberdade. Esse é um exemplo visto aqui com as mulheres, mas pode-se ver isso na situação dos escravos que buscaram constantemente sua libertação, dos presidiários, que buscam a liberdade por meio da fuga, e assim sucessivamente. Ser livre é uma condição indispensável do humano. Considerações finais Diante de todas as situações que vimos no decorrer desta aula, poderia parecer que vivemos em um contexto não tão bom, mas não é isso. Se por um lado temos problemas sociais, como os apontados (pobreza, racismo, preconceitos, exploração da mulher etc.), por outro, há muito a sociedade vem se dando conta de que sua responsabilidade social é mais do que apenas exigir que alguém faça por nós. A grande pergunta que se coloca é o que nós podemos fazer por nós? Não se pode mais esperar que alguém o faça. A organização social e das pessoas em seus contextos traz grandes mudanças para o atual contexto social. O importante é percebermos que há saídas, que há avanços, que muito a sociedade andou para que vivamos hoje o que se tem diante de nós. E isso já basta? Claro que não. Como já foi dito anteriormente, o ser humano é dinâmico e, uma vez tendo atingido um patamar, outros se apresentarão para que ele os enfrente. Que bom que é assim, porque, se não o fosse, estaríamos ainda vivendo um período pré-social. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 17 Referências BECHARA, Evanildo (Org.). Dicionário escolar da Academia Brasileira de Letras. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 2011. BOFF, Leonardo. A águia e a galinha. Uma metáfora da condição humana. 51. ed. Petrópolis: Vozes, 2010. ______. Virtudes para um outro mundo possível. Vol. II: convivência, respeito, tolerância. Petrópolis: Vozes, 2006. CANTO-SPERBER, Monique (Org.) Dicionário de ética e filosofia moral. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003 (2v). COMISSÃO DAS COMUNIDADES EUROPEIAS. Livro Verde. Promover um quadro europeu para a responsabilidade social das empresas. Bruxelas, 2011. Disponível em: <http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/committees/empl/20020416/doc05a_pt.pdf>. Acesso em: 21 out. 2015. DIMENSTEIN, Gilberto. Dez lições de sociologia para um Brasil cidadão. São Paulo: FTD, 2008. FERREIRA, Natália Bonora Vidrih; FERREIRA, Gabriel Luis Bonora Vidrih. 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Diversidade sexual e relações de gênero nas políticas públicas: o que a laicidade tem a ver com isso?. Porto Alegre: Deriva/Abrapso, 2015. MERINO, Eduardo S. Vila. Pedagogía de la ética: de la responsabilidad a alteridad. Atenea Digital, n. 6, Málaga: outubro 2004. ZERON, Carlos. A cidadania em Florença e Salamanca. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi. História da cidadania. 6. ed. São Paulo: Contexto. 2015. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 06 Ética e violência na sociabilidade Objetivos Específicos • Analisar questões éticas na vida social. Temas Introdução 1 Tipos de violência e formas de encarar a realidade 2 A ética nas relações em rede 3 Formas de violência com o outro: bullying 4 A relação entre aspessoas e o ambiente Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução A violência é algo que acompanha a humanidade desde sempre. Se iniciássemos nossa aula a partir de estágios pré-humanos, poderíamos dizer que a ação contra os outros já se fazia presente. Mas devemos estabelecer uma clara diferença entre os atos realizados por animais racionais – o homem – e animais irracionais – todos os outros. A violência deve ter o princípio da intenção, ou seja, a vontade e a intenção de fazer algo para alguém. A concepção do que vem a ser violência ou não tem mudado historicamente. Antigamente, por exemplo, os pais batiam em seus filhos; hoje, leis impedem que se faça isso. Brincadeiras com a realidade e aparência das pessoas eram admitidas; atualmente, entendemos isso como bullying e, há ações que coíbem esses atos. Meios mais sofisticados de violência ocorrem atualmente, como o cyberbullying. A desigualdade social, gerada pela forma como a sociedade estrutura-se, poderia ser considerada uma forma de violência. Se, por um lado, temos várias compreensões sobre os fatos, por outro, existem muitos desafios a serem pensados e decisões a serem tomadas para tentar frear atos violentos. A xenofobia seria outra forma de violência praticada contra imigrantes, bem como a corrupção, que retira da sociedade parte que é de todos para o benefício de alguns. O propósito desta aula é justamente fazer uma reflexão sobre a violência e como trabalhar com essa realidade diante do entendimento ético e que aparecerá de modo indireto a partir das reflexões feitas. Pelo fato de vivermos em sociedade, não se podem admitir determinadas formas degradantes de ser e de agir. 1 Tipos de violência e formas de encarar a realidade É certo que a humanidade sempre conviveu com a violência, que pode ser apresentada de duas formas: física e social. A violência física é mais explícita e pode ser representada, por exemplo, por agressão, morte, expulsão e desestruturação familiar. A violência social, por outro lado, tem relação com a forma como a sociedade se estrutura, que pode levar a guerras, fome, exclusão escolar e imposição do medo, por exemplo. Negar a violência, como se ela não existisse, é algo muito grave. Ainda que as violências física e moral sejam explícitas, alguns imaginam um mundo no qual não há mal, violências e agressões de qualquer ordem, em que todos estão bem. Para algumas pessoas, basta que alguns fatores, especialmente os econômicos, sejam alterados, como Brym, Lie e Hamlin (2010, p. 28) alertam: Os otimistas preveem que o pós-industrialismo abrirá mais oportunidade para as pessoas, tendo em vista que possibilitará encontrar trabalhos criativos, interessantes, desafiadores e compensadores. Além disso, a era pós-industrial trará mais ‘igualdade Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 de oportunidades’, isto é, melhores chances de todas as pessoas adquirirem educação, influenciar as políticas governamentais e ter bons empregos. A perspectiva do “mundo encantado”, no qual a vida se torna uma dádiva pela própria construção social, tem sido sempre um desafio para a humanidade. Por outro lado, o que se vê é que a sociedade conseguiu isso para algumas pessoas, mas não para todas. Assim, passamos a ter vários elementos para que as pessoas desiludidas venham a agir violentamente. O mesmo ocorre com a falta de oportunidades sociais, como escolaridade, ascensão social etc. Assim, muitos seriam os motivos causadores da violência. A Teoria da Guerra Justa, por exemplo, foi admitida como uma forma de coibir a violência ou até mesmo extingui-la. Essa teoria tem suas origens no pensamento de Cícero, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Hugo Grotius. 1.1 “Violência gera violência” Muitas são as formas de violência e muitos são os motivos pelos quais as pessoas podem agir violentamente, mas nenhum deles se justifica. Há até quem defenda que a guerra possa ser justa e servir de solução para determinados problemas. Mas não se pode esquecer que violência é violência independentemente das justificativas e da intensidade em que é aplicada. O que se deve entender é que a violência não deve ser admitida e, se não combatida hoje, pode, amanhã, voltar-se contra nós. Devemos entender que aprovar violência é uma forma passiva de aceitação de que o que hoje se faz e pode, amanhã, resultar em algo maior. Há uma geração sistematizada de fatos que gerarão novas violências. A expressão “violência gera violência” tem caráter verdadeiro. Embora a ética seja universal porque o bem é uno, contudo, certo é que cada pessoa tem o seu próprio órgão ético. Isso faz que a consciência individual seja a jurisdição decisória de cada um. Cabe a cada um alcançar o bem e fazer o bem. O bem se alcança de maneira livre, e a liberdade existe precisamente para a ciência moral (ALONSO, 2002, p. 93). 1.2 O conflito como forma de desenvolvimento social Cada vez mais, se percebe como determinadas formas de violência têm alterado o caráter social e as relações que se estabelecem. Também devemos ter o devido cuidado para não classificar como violência toda e qualquer forma de desavença. As divergências e o conflito podem contribuir para o crescimento social. O conflito, sem resolução, pode gerar violência, mas não é, em si, uma violência; ao contrário, a divergência pode nos auxiliar em nosso desenvolvimento humano. A sociologia para superar a questão do mal social criou três tipos de resposta, segundo Brym, Lie e Hamlin (2010): Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 • normas de solidariedade exigem conformidade; • as estruturas de autoridade tendem a tornar as pessoas obedientes; • burocracias são estruturas de autoridade altamente eficientes. A solidariedade é um ato humano que nos aproxima uns dos outros e nos indica como o nosso comportamento deve ser. Já o modo como a autoridade é instituída faz com que se atue de forma obediente e não resistente às imposições que determinados grupos exercem sobre outros. Quanto mais burocratizada for a atuação de um grupo sobre o outro, menos se consegue reagir, pois como combater determinadas ações se as “armas” que se tem são rudimentares? Ficamos como que à mercê dos detentores de poder e das forças de opressão. É necessário ter conhecimento, coragem, destemor, e saber que, ao reagir contra todas as formas de bullying (conceito que conheceremos mais à frente), se está agindo em vista de uma sociedade melhor. O bullying ocorre justamente porque as pessoas temem enfrentá-lo e buscar melhoria de vida e de atuação social; quanto mais se reage, menos ele acontece. 2 A ética nas relações em rede As relações sociais, as conexões realizadas entre as pessoas a fim de se criar contatos, são cada vez mais estabelecidas em rede. A virtualização do mundo possibilitada pelos meios de comunicação, em especial, os trazidos pela internet, fez com que pudéssemos estar cada vez mais conectados em qualquer parte do mundo e em diferentes momentos. O objetivo de toda comunicação e da criação de redes é que as ideias sejam compartilhadas, que momentos sejam divididos com aqueles que fazem parte de sua rede. Em tese, a comunicação deveria ser direta e com o grupo participante, mas nem sempre se consegue fazer isso, pois uma vez colocada qualquer coisa em rede, ela pode ser partilhada por mais pessoas, que também participam de outras redes e assim sucessivamente. O que se perde com a partilha de determinadas situações é a privacidade, pois o que é divulgadodeixa de ser privado para se tornar público. Não é sem razão que o debate sobre um código de ética para as redes sociais tem estado em evidência. 2.1 O cyberbullying e o mau uso da internet A busca por um código de ética nas redes tem levado à discussão acerca do cyberbullying ou crimes de internet, entendido como a apropriação de algo ou da intimidade de alguém, até mesmo de uma empresa, que é divulgado na rede. Uma vez em rede, perde-se o controle sobre o que é colocado em público, pois as pessoas fazem a divulgação de situações particulares tornando o acesso público. O cyberbullying possibilita também a pirataria de dados e a invasão de privacidade. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 O Brasil criou uma lei própria para proteger o cidadão contra o mau uso da internet. Denominada de “marco legal da internet”, a Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil. É uma lei de fácil entendimento e da qual todos nós deveríamos nos apropriar, mas vamos pensar um artigo em especial que acredito ser muito importante para a nossa reflexão no momento. Em seu artigo 2º, a lei assim se expressa: Art. 2º A disciplina do uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: I - o reconhecimento da escala mundial da rede; II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; III - a pluralidade e a diversidade; IV - a abertura e a colaboração; V - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e VI - a finalidade social da rede. (BRASIL, 2014) Essa lei foi um grande avanço ao delimitar e delinear as ações possíveis de serem realizadas, e reconhece a manutenção da liberdade de expressão. Algumas pessoas temiam que, uma vez estabelecida uma lei, não se poderia ter o acesso a determinados dados disponíveis na rede mundial. Mas não é isso que a lei estabelece, pelo contrário: a lei veio colocar determinados limites, mas não impede o acesso às informações disponíveis na rede e a busca de fontes múltiplas de conhecimento. A colaboração é outro grande benefício destacado e possibilitado pela rede mundial de computadores. Hoje, pesquisas são feitas em rede, dados são trocados como forma de desenvolvimento e crescimento pessoal. Além disso, há a possibilidade de concorrência e de defesa do consumidor, pois, assim como existem os bons divulgadores de dados e informações e o comércio de produtos on-line, há também a divulgação de falsos dados e negócios. Por fim, a lei reconhece uma finalidade na rede e, por ser recente, muitas coisas vão ocorrer até que se possa ter a sua amplitude totalmente analisada e testada. Mas esse marco regulatório feito no Brasil tem seu caráter pioneiro no mundo e serviu de inspiração para outros países fazerem o mesmo. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 2.2 Ampliando o conceito de rede Todos nós estamos enredados em conjuntos sobrepostos de relações sociais, isto é, participamos de redes sociais. Embora qualquer indivíduo conheça um número relativamente pequeno de pessoas, seus familiares, amigos, colegas etc. conhecem um número muito grande delas, que se estende para além de sua rede pessoal. [...] Embora nossas redes pessoais sejam pequenas, elas rapidamente levam a redes muito mais amplas. É porque nossas redes sociais nos ligam ao mundo que muitas vezes nos surpreendemos com ele é pequeno (BRYM, LIE E HAMLIN, 2010, p. 161-162). Quando nos referimos às redes, muitas vezes falamos de mundo virtual ou da internet, mas as redes nem sempre são possibilitadas por tal meio; elas podem referir-se à proximidade das pessoas, quando também se estabelecem relações. Assim, o contato que as pessoas têm com as demais as torna participantes de soluções, problemas, dificuldades e desafios próprios de seus contatos. Rede é toda e qualquer forma de contato e interação entre as pessoas. Pode ser virtual, forma muito difundida pelos avanços da internet, e pode ser física, pelos contatos que se tem com aqueles que estão próximos de nós (conhecidos ou não). O que se deve ter em mente é que, em ambas as formas de rede, se deve ter o devido cuidado com o compartilhamento de dados e informações e, claro, com a convivência. Em nossa história, constata-se a necessidade das relações, mas não é toda forma de relação que se deve admitir. Um relacionamento social e pessoalmente admitido deve ser ético. Podemos dizer que a ética auxilia no estabelecimento de relações que nos levam a um convívio maior e melhor, orienta para viver e conviver buscando sempre o bem, que se materializa na solidariedade, na justiça, no amor, nas amizades, enfim, em todas as formas construtivas de convívio social. Toda e qualquer forma de relação que nos conduz e provoca algum mal, seja para um indivíduo ou para um grupo, deixa de ser ética. Porém, devemos ter cuidado ao fazer essa afirmação, pois, em muitos casos, as pessoas pensam e agem egoisticamente e alegam que estão sendo desrespeitadas. A eticidade de uma ação mede-se pelo bem que ela pode trazer para a pessoa e para a sociedade. É desse equilíbrio que surgem as ações éticas. [...] O que pode existir de mais valioso na vida, quer dos indivíduos, quer dos povos, senão alcançar a plena felicidade? Pois é disto exatamente que se trata quando falamos de ética. Podemos errar no caminho na nossa vida, e nos embrenharmos perdidamente, como Dante na selva da escuridão. Jamais nos enganaremos, porém quanto à escolha do nosso destino: nunca se ouviu falar de alguém que tivesse a infelicidade por propósito ou programa de vida (COMPARATO, 2006, p. 17). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 A partir dessa citação, temos um fato importante quando se trata das relações sociais e de nossas redes. Existimos para sermos felizes, para vivermos bem. Toda ética busca o bem, essa é a sua grande razão. Essas são formas que as pessoas descobriram e pelas quais entenderam que podem estabelecer sua parceria social. O desafio está na forma de ser e de agir socialmente. O que se quer parece claro e todos sabem, é viver bem e felizes, e a dificuldade que encontramos é em construir esse modo de ser e de se fazer a sociedade. Os problemas sociais existem e nos chamam a atenção para compreendermos que para chegar a esse bem social e a essa estabilidade ainda existe muito a ser buscado e realizado. Reflitamos sobre os atentados ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, e aos ataques em Paris, em novembro de 2015. Milhares de pessoas morreram sem saber por que, vítimas de uma forma de constituição social que vivemos e da qual participamos consciente ou inconscientemente. Isso não nos isenta de lutar por um mundo no qual haja espaço para todos. Não um espaço de violência, mas um espaço de convivência solidária. 3 Formas de violência com o outro: bullying Entre as formas de violência, uma das mais evidentes e que toma corpo na sociedade é o bullying, que vem sendo estudado principalmente no ambiente escolar (por isso também que o bullying tem uma literatura mais desenvolvida no aspecto estudantil) e que, depois, passou a ser visto em outros espaços, como nas empresas, na rua, em atividades sociais etc. Antes de adentrarmos mais profundamente na discussão sobre essa forma de violência, vamos conceituar o bullying pelas palavras de Constantini (2004) e Fante e Prudente (2015): Bullying é o nome dado a um tipo de violência entre pares que possui características próprias, tais como intencionalidade, frequência e ausênciade motivação que justifique o comportamento agressivo. Essas são características que diferenciam o bullying de outros tipos de violência [...] Não são conflitos normais ou brigas que ocorrem (...) mas verdadeiros atos de intimidação preconcebidos, ameaças, que sistematicamente, com violência física e psicológica, são repetidamente impostos a indivíduos particularmente mais vulneráveis e incapazes de se defenderem, o que os leva no mais das vezes a uma condição de sujeição, sofrimento psicológico, isolamento e marginalização (CONSTANTINI, 2004, p. 69 apud CAMARGO, 2015, p. 51-52). O termo bullying, de origem inglesa, é utilizado para determinar um fenômeno (uma forma de violência escolar) bastante peculiar, com características definidas e que está em expansão; não indica um conflito normal ou uma simples briga entre estudantes, mas sim um tipo de comportamento que dá origem a ataques físicos, psicológicos, sexuais), de forma intencional e repetitiva, contra alguém que, geralmente, não tem condições de se defender (FANTE; PRUDENTE, 2015, p. 9). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 Para trabalhar com o fenômeno do bullying, é necessário conhecê-lo e aprofundar estudos que já existem sobre ele. A partir dessa consciência desenvolvida, é possível buscar a implantação de políticas públicas preventivas antes de punir (FANTE; PRUDENTE, 2015). Porém, ao mesmo tempo, deve-se ter presente que, em muitos casos, a busca por prevenção pode também provocar efeitos mais difíceis de serem combatidos do que a ação de bullying propriamente dita (ROSA, 2015). Toda prevenção deve estar baseada em um grande conhecimento de causa, de profundo respeito e de que a defesa não pode expor as pessoas a uma situação que as possa levar a um problema maior do que o próprio problema. No dizer de Rosa (apud FANTE; PRUDENTE, 2015, p. 17-18), é o que se faz com as medidas socioeducativas, que no Brasil têm causado maiores danos a jovens e adolescentes, pois: “[...] desconsideram o sujeito e, especialmente, a existência de demanda para, em nome da salvação moral, do bem do adolescente, proceder-se o fomento de sua desubjetivação. De regra, impõem-se tratamento, educação, disciplina, independentemente do sujeito, então objetivação”. Deve-se ter cuidado para que se eleve a condição do ser humano, pois se por um lado combatemos o bullying, por outro, podemos causar injustiças ou gerar uma nova forma de prejudicar as pessoas. Toda ação deve ter como prioridade e centro o ser humano, pois assim não se reforça a linguagem corrente de que muitos menores ou pessoas que cometem atos infracionais têm “os Direitos Humanos para defendê-los” e que a população em geral, por outro lado, não tenha esses direitos. Não é esse o propósito. O que se busca é uma forma de reparar o dano, quando possível, remediar seus efeitos e levar o responsável ao cumprimento da legislação, na qual exista o direito à defesa, a uma real melhoria das condições de vida das pessoas e seja um motivo de não continuidade de opressão e desmascaramento. 4 A relação entre as pessoas e o ambiente Os motivos pelos quais uma pessoa se torna violenta nos levam a dois pontos de atenção: a relação entre as pessoas e o ambiente. Claro que o ambiente não é determinista, mas é fonte de influência comportamental. Não podemos cair no princípio da determinação, pois, se assim fosse, em ambientes nos quais existe a correção, as pessoas seriam sempre boas em suas ações, e em ambientes nos quais houvesse desvios sociais, as pessoas seriam todas infratoras. O que devemos entender é que nada nos garante que uma pessoa boa hoje o seja amanhã e vice-versa. A única garantia que se tem são os fatos presentes, a confiança que se pode depositar em quem ou com que convivemos. “Quando algum episódio de violência chega aos jornais, é como se passasse através de uma lente de aumento, que o torna um sinal Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 alarmante de degradação da sociedade. Na onda emotiva de um fato noticiado em um jornal é feito um juízo sumário sobre a degradação moral de uma geração” (MURATORI, 2007, p. 5). Essa é uma tendência humana, somos seres de juízo e de julgamento. O problema é quando nosso julgamento não permite espaço para errar e, com os erros, injustiças e formas de exclusão social podem ser cometidas. A sociedade deve buscar formas de, ao julgar, possibilitar a acolhida para seu meio, e que as pessoas acometidas de violência saibam entender que a violência não está fora de contexto, ela não surge do nada. Alguma coisa falhou na sociedade e fez com pessoas viessem a agir violentamente. Várias atitudes básicas vedam-nos a capacidade de julgamento. O fanatismo religioso, o fundamentalismo e a doutrinação ameaçam-nos de diversos lados [...] (LIBANIO, 2015, p. 33) Vivemos em sociedade em que as informações circulam com elétrica rapidez. Isso os dificulta a reflexão (Ibid, p. 93) O Brasil do futuro será sadio à medida que souber viver na ética a cidadania que lhe compete. Sem ética, a vida social perde o rumo. Sem cidadania, fica-se entregue ao intimismo vulnerável. Conjugando ambas, conseguir-se-á encontrar os rumos da vida. (Ibid, p. 171) As pessoas são falhas, têm suas dificuldades, são passíveis de sentimentos, e sua inserção social faz com que tenham uma tarefa de defesa. Mas isso não impede de acreditar que as pessoas, diante de situações de violência ou bullying, não possam agir. Isso é o que expressa Alonso (2002) ao fazer uma profissão de fé na capacidade do ser humano de fazer com que as ações saiam de uma possibilidade para uma ação. A ética deve sempre ser pautada na ação de cada um para que possa beneficiar a todos. 4.1 Princípios de relação e liberdade Somos seres relacionais e precisamos disso para viver. No entanto, mesmo precisando das relações, elas não são menos problemáticas para nós. Ao nos relacionarmos, temos o encontro de duas ou mais liberdades e, do mesmo modo que essa liberdade busca sempre expandir-se e abrir-se cada vez a mais horizontes, ela pode, quando em relação com outros, vir a fluir e a causar dificuldades nas relações. O bullying e o cyberbullying não são fatos normais e devem ser combatidos e desmotivados. Não se pode achar que seja um problema do outro o fato de ele estar sofrendo uma ação de bullying. Tal situação é social e não deveria ser compartilhada e admitida, pois o que uma pessoa passa hoje pode ser vivida por qualquer um de nós amanhã. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 O fenômeno do cyberbullying é recente, pois surge com a expansão da internet. Cada vez mais, a internet, o computador e os smartphones nos possibilitam o contato com o mundo. Isso é bom, pois podemos saber o que se passa em nosso contexto ou muito distante dele, quase que automaticamente ao acontecimento, mas, também, pode ser fonte de bullying e de flagelo para as pessoas, quando mal utilizado. A função de todos os meios de comunicação, como já foi dito, é realizar o contato entre as pessoas, e esse contato, em tese, deve ser positivo, ético. Mas a divulgação de intimidades, de fatos inverídicos, boatos, fotos não autorizadas, entre outros, caracterizam- se como mau uso da ferramenta. Trata-se de um desvio de função. Só pode-se utilizar o que é permitido, autorizado. Também por isso, ao tomar como referência alguma imagem ou algum texto da internet, mesmo que se possa retirar de um site de busca aberto, a fonte deve ser sempre ser citada. Neste texto, por exemplo, todas as citações estão referenciadas; da mesma forma, quando você se utilizar deste ou outros materiais devefazer a referência completa ao autor do conteúdo. A simples cópia pode ser considerada pirataria, plágio etc. 4.2 A perda de privacidade É muito comum, cada vez mais, as pessoas perderem a sua privacidade, pois tudo pode ser captado, difundido, divulgado. Os fatos podem ser distribuídos e nem ao menos consegue-se saber quem os divulgou, o que dificulta a reação da vítima. O pior é que se tem uma sensação de impotência diante de uma situação cada vez mais “comum”, até muitas vezes admitida como “normal ou corriqueira”. Ventura e Fante (2015, p. 25-26) afirmam: O cyberbullying, expressão criada pelo canadense Bill Belsey, ou bullying eletrônico, ou ainda crueldade social on-line, está elevando o perigo e os efeitos do bullying a um novo patamar, em que ninguém pode sentir-se em segurança. A internet e os celulares permitem a ubiquidade que pode verdadeiramente infernizar a vida das vítimas e expor a vexames 24 horas por dia. O que ainda pode causar maior desconforto é o fato de as pessoas, ao acharem “normal”, nada fazerem para combater esse tipo de violência, abandonando a vítima. Como dito, se determinados fatos não nos causarem indignação, passamos a pensar que tudo está bem quando não está. O normal é criarmos relações plenas, edificantes de nosso ser, e não relações que dificultem nosso convívio social; não criar relações que venham prejudicar uma, várias pessoas ou instituições sociais. Pesquisa realizada no Brasil pela ONG Plan International identificou que no ambiente virtual ocorre mais bullying do que no ambiente físico escolar: 31% contra 17%. Dos 5.168 estudantes participantes da pesquisa, 17% foram vítimas de cyberbullying, 18% foram autores e 4% foram vítimas e autores ao mesmo tempo (VENTURA; FANTE, p. 28). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 Para resolver tais situações, as pessoas devem se conscientizar que o bullying e o cyberbullying podem ser considerados crimes, que não são atos aceitáveis e, por isso, não devem ser difundidos. Por um lado, não se pode simplesmente condenar, mas, por outro, não se pode aceitar como algo normal. Não basta fechar os olhos para uma realidade que nos assola diariamente. Segundo a Anchor Youth Centre e NTCE (2007, p. 7 apud VENTURA; FANTE, 2015, p. 45), “a melhor estratégia é formar a consciência (das pessoas) e ensinar-lhes a usar bem a respectiva liberdade: escolher o que é benéfico e evitar o inapropriado e o que pode fazer-lhes mal”. Porém, não se deve admitir a teoria do caos total. O que vimos nesta aula nos traz dados preocupantes dos quais não podemos fugir e aos quais devemos estar atentos. No entanto, devemos ter sempre presente a perspectiva da esperança e colher o que as mídias sociais nos trazem de bom, como: livros, fotos, situações de bons exemplos e convívios. De qualquer modo, também sabemos que pornografia, violência, assaltos, assassinatos etc. são, muitas vezes, combinados pelas redes sociais. Podemos pensar e compreender as questões decisivas que estão em jogo em nosso mundo, mas também podemos traduzir [...] no que Edgar Morin, depois de outros, chamou de necessidade de encontrar um princípio de esperança. Princípio de esperança ao qual devemos atribuir a mesma importância que ao princípio de responsabilidade que, graças a Hans Jonas, esteve no cerne das conscientizações ecológicas dos últimos anos. Quanto mais se acumula os desafios, mais os fatores de angústia são importantes, e mais essa questão esperança torna-se decisiva (MORIN; VIVERET, 2013, p. 31). Antes de qualquer conclusão que se tenha sobre a violência e o bullying, é preciso refletir que, partindo de pressupostos éticos, uma vez que a ética é o conhecimento humano que nos leva a um convívio melhor, tanto uma situação de bullying como de violência nos descaracterizam como seres éticos. É preciso que a sociedade busque formas de convívio com tudo o que socialmente se conseguiu construir e que, antes de condenar um meio de divulgação e de difusão de ferramentas sociais que temos, devemos acolher seus benefícios. Pensando a ética como uma forma de nos possibilitar o bem e o bom convívio social, de modo algum ações de violência, de cyberbullying ou mesmo de bullying são ou podem ser admitidas. De nenhum modo essas ações nos levam a viver melhor socialmente ou nos auxiliam para um bom convívio social, razão última de qualquer ética. E no dizer de Libanio (2015, p. 168-169): A contingência humana se constrói de alegrias e sofrimentos, de dores e gozos, de vida e de morte. Todo um marketing mercadológico vem batendo na tecla do hedonismo Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 sem limites, da intensificação do prazer, da abolição total de qualquer sofrimento e renúncia. Quer chegar mesmo a superar a própria morte. Em contraposição, há o princípio da realidade. Não se trata de contemplá-lo unicamente no campo psicológico, na esteira de Freud, mas erigir um princípio ético. [...] A ética da realidade é também a ética do limite. Parece-nos esse o grande desafio que precisamos aprender e entender: que também temos limites e que estes devem ser vividos e aceitos por todos, para que possamos exigir a sociedade que desejamos para viver e conviver bem. Considerações finais Não podemos concluir nossa aula pensando que não há esperanças. Felizmente, se por um lado as relações humanas criam determinadas circunstâncias, por outro, a própria sociedade cria formas de aproveitar o que há de bom: redes sociais, internet, relações humanas etc., para que as pessoas possam viver bem ou até melhor do que se vive. Devemos aprender que as tecnologias e o que delas resulta deve beneficiar a sociedade. Tudo o que se produz ou se produziu vem com a chancela social e para ela deve retornar. Cabe a cada um e à coletividade fazer com que o que a sociedade tem e é um direito seu seja partilhado para o enriquecimento de todos. A internet serve de fonte de conhecimento, de divisão de dados, enfim, de enriquecimento de todos e da própria humanidade. Nessa perspectiva é que temos o enriquecimento ético de nossas relações sociais. Entender que todos “ganham” com o que é disponibilizado social e culturalmente e que o uso desses dados é de fundamental importância para todos nós é o grande desafio do início desse século e, quem sabe, no decorrer de todos esses próximos 100 anos. Não sabemos o limite do que temos, sabemos que existem perspectivas. Utilizar com o devido discernimento é o papel das leis e da ética. Cabe à sociedade entender essa forma de agir e fazer com que essas realidades sejam realmente para todos. Referências ALONSO. Féliz Ruiz. Revisitando os fundamentos da ética. In: COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Fronteiras da ética. São Paulo: Ed. SENAC. 2002. BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 abr. 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 15 nov. 2015. BRYM, Robert; LIE, Robert J.; HAMLIN, Cynthia Lins. Sociologia: sua bússola para um mundo novo. São Paulo: Cengage Learning, 2010. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 CAMARGO, Carolina Giannoni. Refletindo sobre o bullying na educação infantil. In: FANTE, Cléo; PRUDENTE, Neemias Moretti (Org.). Bullying em debate. São Paulo: Paulinas, 2015. COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companha das Letras, 2006. FANTE, Cléo; PRUDENTE, Neemias Moretti (Org.). Bullying em debate. São Paulo: Paulinas,2015. LIBANIO, João Batista. A ética do cotidiano. São Paulo: Paulinas. 2015. MORIN, Edgar; VIVERET, Patrick. Como viver em tempo de crise. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013. ROSA, Alexandre Morais da. Recreio às moscas Nota sobre o bullying nas escolas. In: FANTE, Cléo; PRUDENTE, Neemias Moretti (Org.). Bullying em debate. São Paulo: Paulinas, 2015. VENTURA, Alexandre; FANTE, Cléo. Flagelos da modernidade: Cyberbullying. In: FANTE, Cléo; PRUDENTE, Neemias Moretti (Org.). Bullying em debate. São Paulo: Paulinas, 2015. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 07 Duas teorias éticas Objetivos Específicos • Diferenciar os modos de tomar decisão em dilemas éticos na atualidade. Temas Introdução 1 Dilemas éticos e linhas de demarcação 2 Ética da convicção: situações comuns do dia a dia (princípios, valores e ideais) 3 Ética da responsabilidade: dilemas e análise circunstanciais Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução A existência de um dilema é sinal de que estamos entre duas ou mais posições complementares, desafiantes, indignantes, mas nem sempre conflitantes. Os dilemas nos levam a tomar decisões e, diante delas, nem sempre se sabe o que fazer. A partir dessas concepções, temos várias perspectivas de reflexão, e é nesse sentido que a ética nos importa, pois nos auxilia na tomada de decisões. Sem ética, nossos dilemas ficam sem uma solução adequada e nossas questões do dia a dia passam despercebidas, não resolvidas e sem um consenso definido. Esta aula tem o objetivo de nos auxiliar na resolução de dilemas importantes e, por isso, serão apresentadas duas teorias éticas: a ética da convicção e a ética da responsabilidade. Entenderemos o que são essas concepções e como elas podem nos ajudar na solução dos desafios impostos pelos nossos dilemas. Esses dois grandes princípios da ética (convicção e responsabilidade) foram postos na discussão ética por Max Weber (1864-1920). Posteriormente a Weber, Hans Jonas (1903- 1993) propõe o princípio da responsabilidade para dentro de perspectivas atuais, como na bioética, na vida, na tecnologia e nas ciências, visando a garantia das gerações futuras. 1 Dilemas éticos e linhas de demarcação Para chegar a um entendimento conceitual sobre dilema, precisamos realizar algumas perguntas fundamentais: • Qual é(são) o(s) problema(s)? Como se apresenta(m) à nossa individualidade? • Uma vez surgido o dilema, como superá-lo? E que valores são importantes para realizar essa superação? • Quais são os envolvidos nesses dilemas? • Diante da(s) possibilidade(s), qual(is) a(s) melhor(es) a serem realizadas? • Quais são as consequências de uma tomada de decisão ou de outra? Uma vez realizado o processo de delimitação e esclarecimento sobre os problemas, é possível ver quais alternativas foram criadas para sua superação. Assim, conforme Japiassú e Marcondes (2001, p. 75): Dilema (gr. dilemma, de di: duas vezes, e lemma: princípio, premissa) 1. Forma de alternativa da qual, dos dois membros aceitos como premissas ou princípios, só podemos tirar uma consequência. 2. Situação embaraçosa em que nos encontramos, devendo escolher necessariamente entre dois partidos ou pontos de vista rejeitáveis caso não fôssemos obrigados a escolher. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 A humanidade sempre se deparou com dilemas e sempre os vivenciará. Por isso, a reflexão ética ajudará a posicionar os dilemas para que eles sejam determinados e para que a humanidade avance e busque respostas. Sem um dilema, não há avanço, a ciência não evolui e o ser humano deixa de realizar descobertas importantes. Por isso, podemos compreender o que Weber1 nos propõe como reflexão sobre o papel da ética e as duas teorias estudaremos nesta aula: Para Weber, toda ação orientada pela ética pode se subordinar a duas máximas diversas e irredutivelmente opostas: ética da responsabilidade e ética da convicção. No entanto, uma ética não exclui necessariamente a outra, a ética da responsabilidade não é a ausência completa de convicção e a ética da convicção não é a completa ausência de responsabilidade. Ocorre que há uma relevante oposição, tendo em vista a irracionalidade ética do mundo, entre a atitude de quem se conforma, exclusivamente, pela ética da responsabilidade ou pela ética da convicção (WEBER, 1998 apud COSTA, 2009, p. 23). Questionar-se por si, pelo o que se é e como constituir a vida tem levado a humanidade desde sempre a dilemas, até o momento, irresolutos. Se um dia serão resolvidos, não podemos afirmar, mas isso em nada se traduz em deméritos para a humanidade. Esses dilemas estão aí a exigir respostas, sejam de que ordem forem. O que se pretende, nesta aula, é justamente oferecer uma forma de preencher os questionamentos do ser humano em duas vertentes. Pela ética da convicção, em que todos nós, em algum momento, nos pautamos; é por meio dela que em certas situações da vida encontramos a possibilidade de agir e a certeza sobre nossas ações; e pela ética da responsabilidade, que surge desde quando nos tornamos seres conscientes e livres que percebem que tudo o que existe atualmente depende de continuidade ou não, por decisão exclusiva do ser humano. Nossa responsabilidade é tanta que estamos com o “relógio da vida” em mãos. Cabe a nós preservar ou destruir o planeta; o ideal seria trabalhar para a sua preservação, para que as gerações futuras possam dispor dos mesmos benefícios que recebemos quando chegamos nesse planeta. Pensar em dilemas é pensar sobre a vida e o modo como cada pessoa pode lidar com as realidades que enfrentará. Nesse sentido, o dilema exige um pensamento ético para que seja possível encontrar diversas formas de responder aos desafios da vida. 1 Um dos fundadores da fase moderna das ciências sociais, Max Weber (1864-1920) não é apenas considerado um dos mais eminentes analistas da sociedade moderna, mas também um dos mais genuínos pensadores de todos os tempos. A discussão dos temas continua até os nossos dias, com um crescente vigor. Porquanto as teses de Weber são de relevância universal, a sua metodologia é tão importante quanto as suas conclusões. A sua obra é de permanente interesse, não apenas para o historiador, o economista e o sociológico, mas para todos aqueles que se preocupam com os mais profundos dilemas da sociedade moderna (WEBER, 1996, contracapa). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 O dilema torna-se ainda maior, pois é resultante da racionalidade, que tem suas limitações e suas dificuldades. Nem sempre o que é proposto após uma reflexão ou resposta tem o poder de convencimento e a devida certeza ou argumentação irretocável. Para uma resposta convincente, que seja uma alternativa de solução para o dilema, é necessário que se estabeleçam parâmetros ou possibilidades para os fins que se deseja alcançar. Pensar, raciocinar e fazer ciência é a forma por excelência que a humanidade conseguiu para buscar a verdade e superar seus dilemas. Por outro lado, este viés é limitado, pois nem sempre a resposta tem validade eterna. Nem mesmo hoje a ciência tem essa pretensão. O que ela busca e afirma tem sua validade, mas sabe-se que tal validade se aplica para responder perguntas determinadas e do tempo presente. Conviveremos, portanto, eternamente com dilemas, incertezas e dificuldades para responder às nossas questões. A racionalidade é um dos pontos-chave na obra weberiana, pois o autor procurou descrever e compreender o processo de racionalização no direito, na economia,na religião e na política. A racionalização no direito atingiu seu ápice no mundo ocidental e buscou adequar o direito à necessidade de um mundo previsível, calculável e cognoscível, não a partir do pensamento mítico mágico, mas pelo pensamento científico (COSTA, 2009, p. 23). Cabe a política um destaque especial no tocante aos dilemas, pois são um problema tanto no Brasil como no restante do mundo. A política gera incertezas, desiquilíbrios nos mais diferentes âmbitos sociais. Esses dilemas geram as diversas situações, pois candidatos, governos fazem promessas que muitas vezes não podem ser cumpridas, ou até mesmo são quase improváveis em seu cumprimento. Caberia a sociedade organização, por meio de seus mais diferentes grupos organizados: sindicatos, ONGs, igrejas, entre outros, pautarem uma forma de agir social em vista de beneficiar a todos e não somente alguns. Por política entendemos toda e qualquer forma de organização que as pessoas fazem com o intuito de tentar resolver seus problemas e viver da melhor forma possível. Nesse sentido, todos nós somos políticos e fazemos política. Dessa forma, os dilemas que enfrentamos passam a ser políticos, pois são resultantes de situações levantadas em nosso convívio e em nossas atividades sociais. Em ética, não há como ter uma posição única e uniforme – considerada correta e que possa ser usada por todas as pessoas em suas decisões. Deparamo-nos com diversos dilemas e vamos tomando decisões que nos conduzem a agir do modo mais correto para nós, naquele momento. Entendemos que existem muitas situações difíceis e que nem sempre temos a certeza absoluta sobre as decisões a tomar, mas acabamos aceitando e acatando essas realidades, como se elas fossem as únicas possíveis e “verdadeiras”. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 Por isso, vamos refletir um pouco sobre diferentes possibilidades de viver e pensar eticamente. 2 Ética da convicção: situações comuns do dia a dia (princípios, valores e ideais) A ética da convicção coloca a responsabilidade de escolha – tanto do que deve ser feito como da maneira como fazer – exclusivamente sobre os indivíduos, para que cada um em particular, escolha a partir do que crê, com base nos seus próprios valores e sem se preocupar com os resultados. Ou seja, não importa se isso é um bem ou um mal, o que importa é que a pessoa terá sempre como referencial os seus princípios, sem preocupar-se com os efeitos de suas ações. No entanto, como Srour (2013) analisa, podemos nos encontrar diante de uma situação em que não há somente duas escolhas, uma boa e uma má. Às vezes, nos deparamos com situações nas quais duas ou mais realidades podem ser boas ou más. Como o próprio autor exemplifica: “priorizar uma ascensão profissional ou a família? Comprometer-se com um colega injustiçado e correr o perigo de perder o emprego e o sustento da família? Pagar uma dívida ou emprestar para um amigo? Distribuir dividendos ou investir em pesquisa?” (SROUR, 2013, p. 97). Para alguns, as respostas para essas perguntas poderiam ser dadas com bastante tranquilidade, considerando um pensamento a partir de princípios individualistas. Mas pensemos além de situações puramente individuais e sigamos adiante, pensemos em princípios que devem servir a todos, isto é, universais. Para tanto, vale fazer a pergunta: e se fosse comigo a situação de pesquisa, emprego, família, filhos etc.? A resposta não pode ser dada de modo simplista. Age de maneira racional referente a fins quem orienta sua ação pelos fins, meios e consequências secundárias, ponderando racionalmente tanto os meios em relação às consequências secundárias, assim como os diferentes fins possíveis entre si: [...] Age de maneira puramente racional referente a valores quem, sem considerar as consequências previsíveis, age a serviço de sua convicção sobre o que parecem ordenar-lhe o dever, a dignidade, a beleza, as diretivas religiosas, a piedade ou a importância de uma ‘causa’ de qualquer natureza (WEBER, 1991, p. 15-16). A ética da convicção vai pautar-se por valores que levam o tomador das decisões a formas absolutas de posicionamento, isso porque suas consequências não são questionadas. Ou até melhor, as consequências são pouco relevantes para a tomada de decisão. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 Figura 1 – A ação de cada um Toda ação realizada por uma pessoa tem sempre um resultado. As consequências do que faço podem ter menor ou maior grau para a minha pessoa, mas sempre haverá alguma consequência. A ação terá maior dano se envolver outras pessoas, a natureza, a sociedade, a empresa e assim por diante. O importante é sabermos que não estamos isentos das consequências; no entanto, dentro dessa perspectiva ética, isso não é levado em consideração como critério para a tomada de decisão e de escolha do que será feito. O partidário da ética da convicção só se sentirá ‘responsável’ pela necessidade de velar em favor da chama da doutrina pura, a fim de que ela não se extinga de velar, por exemplo, para que se mantenha a chama que anima o protesto contra a injustiça social. Seus atos [...] visam apenas àquele fim: estimular perpetuamente a chama da própria convicção (WEBER, 1998, p. 114 apud COSTA, 2009, p. 25). Comparando as duas éticas, pode-se afirmar que: A base dessas duas modalidades de ética está nos tipos de ação social. A ação social racional orientada a fins é a base da ética da responsabilidade e a ação social racional orientada por valores está na base da ética da convicção. Convém advertir que esses tipos de ação social são tipos ideais, portanto, não são modelos ideais de conduta, mas conceitos puros (extraídos do mundo empírico) que procuram ordenar aspectos recorrentes da realidade, no entanto, não existem empiricamente na sua pureza conceitual. São ferramentas que possibilitam a pesquisa sociológica (WEBER, 1991, apud COSTA, 2009, p. 24). Há duas maneiras de pensar a ética que tomam impulso no nosso contexto e que se tornaram fundamentais para a tomada de decisões. Assim, se a ética da convicção nos ajuda a viver e conviver com o que temos para enfrentar, a ética da responsabilidade nos chama a atenção para os nossos valores, que nos auxiliam na tomada de decisões, mas levando sempre em conta as consequências das ações tomadas. Por meio da ética da convicção, a pessoa age porque assim está determinado ou preestabelecido no valor da ação conforme uma doutrina religiosa, política etc. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 Quando estamos convictos, temos que nos perguntar em que base se justificam nossas convicções. Ser convicto não é estar com a verdade nem com a ética, significa uma possibilidade de agir eticamente. A responsabilidade por nossos próprios critérios nos leva a uma maior possibilidade de acerto e de chegar à eticidade, por sua própria necessidade de ter critérios e valores universais. A ética da convicção leva o seu praticante à admissão de valores absolutos. Nesse sentido, as religiões são um dos parâmetros por excelência dessa forma de pensar e viver eticamente. Exceto que, nas religiões, há um fato que é visto pela ética da convicção que não se coaduna plenamente. Para a ética da convicção, os resultados são pouco relevantes. Para as religiões – por pregar-se o amor, a fraternidade, a vida eterna etc. –, os seres devem ser respeitados e não se pode depreciar a vida de maneira alguma, ou seja, não se pode tirar a vida ou elevá-la a uma condição de indignidade. A religião deve ajudar as pessoas a atingir uma forma de elevação deseu ser, uma condição superior; quando sair dessa condição, deixa de ser religião. Outra questão que deve ser analisada quando se pauta pela ética da convicção é que algumas pessoas tomam as decisões e fazem suas escolhas, mas não assumem a responsabilidade, isto é, atribuem-na sempre a outrem, isentando-se das consequências. Se admitíssemos esse princípio de ética, teríamos muitas dificuldades em termos um efetivo convívio social. Mas ele existe, é vivido por muitas pessoas e serve para a tomada das decisões. O problema é quando chegamos às consequências e estas são classificadas negativamente. Nesse caso, temos uma difícil solução, pois não é possível se isentar. Como ser livre e cidadão se não tomar decisões e como ser responsável se não assumir a responsabilidade por essas ações? Ao mesmo tempo, existe a convicção de que, ao tomar uma decisão, acredita-se ser ela a correta. Se nos isentarmos das consequências, não poderia haver a responsabilização legal (proveniente dos julgamentos jurídicos). A ética da convicção é uma ética do “tudo ou nada”, se funda exclusivamente a partir do aspecto valorativo dos objetivos, da “pureza das intenções”, pouco se importando com as condições objetivas para a realização da causa. É a-histórica por ser descontextualizada, não levando em consideração as particularidades conjunturais (ARGUELLO, 1997 apud COSTA, 2009, p. 25). Nesse conceito, existe uma declaração muito forte e que nos chama atenção para quando utilizarmos o argumento da ética da convicção na tomada de decisões, ou até mesmo buscarmos fazer uma defesa do que lutamos para realizar. O “tudo ou nada” expresso por Arguello (1997 apud COSTA, 2009) nos leva para a reflexão ética de que agimos de determinada forma porque estamos convictos de que esta é a maneira correta. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 3 Ética da responsabilidade: dilemas e análise circunstanciais Conforme a ética da responsabilidade, a preocupação consiste em ter atitudes coerentes, em que é possível visualizar as consequências das ações e cujos resultados favoráveis sejam passíveis a um maior número de interesses. A ética da responsabilidade tem como intuito uma finalidade. Um dos pensadores que despertou a consciência para grandes fins foi Hans Jonas. Esse teórico faz sua reflexão considerando o que a civilização tem produzido e analisa especialmente as produções da ciência e da tecnologia. Essas produções não são vistas por ele de forma negativa, mas o teórico salienta que é necessário ter a devida responsabilidade sobre elas, pois nem sempre consegue-se aferir o alcance de tudo o que é produzido com a tecnologia e suas consequências. Hans Jonas escreveu um livro sobre a responsabilidade e pode-se apreciar de seu pensamento ideias muito importantes para o que temos a refletir tanto nesta aula como em nossa vida, em especial sobre conhecimento, progresso, ciência, técnica, a vida e seus fundamentos e especialmente a decisão ética. Ser responsável significa agir com prudência, a fim de não alterar o que se construiu historicamente e retroceder ao estágio originário. Por isso, a responsabilidade exige o temor como uma forma de cautela. O agir funda-se em uma máxima que garanta o bom convívio como um todo e, especialmente, o futuro. A ética da responsabilidade, nesse sentido, terá, como tarefa, a análise de situações reais, buscando formas de antecipar o que as ações tendem a provocar. “Quem atua injustamente se danifica a si mesmo e envelhece sua alma” (JONAS, 1995, p. 275). Como resultado, é possível, então, atingir um bem maior ou evitar um mal maior: “onde está o limite, isso é uma coisa que por este momento não se pode dizer, porém não se deve chegar a ele [...]. Porém, está muito claro – e este é um problema fundamental” (JONAS, 1995, p. 295-296). A responsabilidade diante do que se constrói deve ser muito bem balanceada para que decisões não sejam tomadas sem fundamentação. O objetivo com a ética da responsabilidade é que os riscos sejam calculados ao máximo e que se atue com prudência e precaução, porque vive-se na incerteza e, diante dela, deve-se administrar as ações. A legitimidade dependerá sempre dos resultados positivos, da eficácia alcançada. A ética da responsabilidade (Verantwortungsethik) é aquela que o homem de ação não pode deixar de adotar; ela ordena a se situar numa situação, a prever as consequências das suas possíveis decisões e a procurar introduzir na trama dos acontecimentos um ato que atingirá certos resultados ou determinará certas consequências que Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 desejamos. A ética da responsabilidade interpreta a ação em termos de meios fins [...] se preocupa com a eficácia, e se define pela escolha dos meios ajustados ao fim que se pretende. [...] O problema da escolha dos valores nos introduz a ética da convicção (Gesinnungsethik), que incita a agir de acordo com nossos sentimentos, sem referência, explícita ou implícita, às consequências (ARON, 2000, p. 470-472 apud COSTA, 2009, p. 24). Diferentemente da ética da convicção, a ética da responsabilidade busca sempre o entendimento de que, para a elaboração do pensamento ético, é necessário compreender os meios utilizados para chegar a ele e quem são os responsáveis pelo que se faz e pelo o que está ocorrendo. Conforme Srour (2013, p. 99): A máxima da teoria ética da convicção indaga: as ações condizem com as obrigações? Procura verificar se existe ou não conformidade com deveres universalistas, com prescrições ou virtudes consensuais. [...] A teoria ética da responsabilidade, por sua vez resulta de outro molde. Indaga: quais as consequências premidas dos atos? Opera com base em um cálculo racional: avalia os riscos, os custos e os benefícios envolvidos para atingir fins universalistas, ou objetivos consensuais que também interessam a tosos os seres humanos. São legítimos então os resultados que são objetivamente positivos. (SROUR, 2013, p. 99) A teoria ética deve estar fundamentada ontologicamente na existência de alguns bens objetivos e antropologicamente no sentimento humano. A lei moral converte em dever aquilo que a inteligência mostra que é algo por si mesmo digno de ser e que necessita de minha ação. É preciso ser tocado pelo sentimento e dele brota o dever. Eis de onde surge, para Jonas (1995), essa visão de responsabilidade ética. A responsabilidade será maior ou menor, dependendo do poder e da influência que a ação humana pode causar. Ela depende também do saber, porque este determina a previsão de futuro. É sobre a responsabilidade que se funda não só em relação ao que aí está, mas especialmente em relação ao que virá. Uma ética da responsabilidade é, portanto, uma ética da reciprocidade, pois leva em conta, também, o interesse dos outros. A responsabilidade é o fundamento seguro sobre o qual se instaura a reflexão. Essa responsabilidade só pode ser exercida pelo homem, pois ele é quem age, e somente ele é capaz de tomar decisões e atuar sobre outros entes da natureza. A ética da responsabilidade, especialmente em nosso contexto, nos chama para uma reflexão profunda sobre a possibilidade de destruição do mundo e da natureza, e isso é algo recente na história da humanidade. Assim, Jonas (1995) diz que estamos em uma situação Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 mais próxima do perverso fim. Se, por um lado, a capacidade de pensar do ser humano tem aumentado, também, como nunca visto até então, por outro lado, sua capacidade de agir conforme uma razão conservadora não acompanhou a velocidadedo pensar. É preciso um resgate do uso da natureza, mas com cuidado para que não se chegue a uma destruição total. Caso isso aconteça, a responsabilidade daria lugar à irracionalidade. Figura 2 – Os dilemas da vida: decidir e decidir SOLUÇÃO A ética da responsabilidade tem uma grande e profunda possibilidade para desafiar o ser humano, pois exige que ele se desdobre em atenção para não cair em armadilha e pensar que os fins podem justificar os meios. Ou seja, que algo seja universal, mas, no fundo, é altamente individualista. Pensar, aprofundar, retomar todos os princípios assumidos é o desafio da responsabilidade. Robert Henry Srour (2013) apresenta vários exemplos que nos levam a pensar em ética da convicção e da responsabilidade. Sendo assim, façamos um breve exercício de reflexão: Vejamos o caso da queimada de cana-de-açúcar: Ao lado dos ecologistas que defendem o meio ambiente por uma questão de princípio e em nome das gerações futuras, uma vez que as queimadas emitem gases estufa, empobrecem o solo e matam animais silvestres [...], existem ecologistas de orientação utilitarista [...] para quem a fumaça das queimadas deixa no ar um mar de fuligem que afeta a saúde da população e agride a camada de ozônio. Não traz, pois o máximo de bem ao maior número, além de favorecer economicamente apenas uma minoria (plantadores e boias-frias) As duas teorias, aqui, confluem para a mesma posição (SROUR, 2013, p. 115). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 Antes de dar uma resposta, pense no que segue na primeira parte do problema: a. Ecologistas que defendem o meio ambiente por uma questão de princípio e em nome das gerações futuras, uma vez que as queimadas emitem gases estufa, empobrecem o solo e matam animais silvestres (SROUR, 2013, p. 115). Para você, essa primeira parte da citação faz parte de qual tipo de ética? O trecho a seguir, extraído da citação, representa que tipo de ética? a. Existem ecologistas de orientação utilitarista [...] para quem a fumaça das queimadas deixa no ar um mar de fuligem que afeta a saúde da população e agride a camada de ozônio. Não traz, pois o máximo de bem ao maior número, além de favorecer economicamente apenas uma minoria (plantadores e boias-frias) (SROUR, 2013, p. 115). As respostas estão no rodapé da página, mas, antes de consultá-las, tente exercitar-se com base no que foi visto em teoria até aqui em nossa aula2. Considerações finais Os dilemas existem e sempre existirão. Isso, por um lado, nos desafia a enfrentar uma situação de insegurança diante de uma série de atitudes que devemos e temos que tomar. Mas, tal insegurança torna-se motor propulsor de nossa vida e de nossa reflexão nas mais diferentes realidades que se apresentam em nosso dia a dia. Antes de ficarmos apavorados ou desanimados, devemos ter presente que a humanidade só saiu de estágio mais primitivo porque foi lançada a enfrentar desafios. O mesmo pode-se dizer com as duas teorias éticas que trouxemos para nossa reflexão. A ética da convicção, tão importante para a solução de nossos problemas e, ao mesmo tempo, a humanidade não tem a sua tranquilidade porque não tem “a verdade absoluta”. Que bom seria se tivéssemos encontrado uma resposta que pudesse nos dizer “é isso” e fosse aceita por todos e tida como base da verdade. Mas, quanto mais estudamos, mais vemos o que foi eternizado pela frase atribuída a Sócrates: “só sei que nada sei”. Isso não significa que o estudioso fosse ignorante, ao contrário, sua frase se refere a não existência de verdades absolutas e que as pessoas não podem agarrar-se às suas verdades como se elas fossem comuns a todos. Já para a ética da responsabilidade, encontramos outros aspectos que nos são caros na ética do século passado e, em especial, neste que estamos vivendo. A responsabilidade é um dos pilares da ética, pois não se pode pensar em alguém ético se não tiver condições para ser responsável. É a partir da responsabilidade de cada um que se pode construir um mundo melhor e, no dizer de Jonas (1995), um mundo que possa garantir a vida no presente e no futuro. 2 A primeira parte refere-se à ética da convicção e, a segunda, da responsabilidade. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 Essas duas éticas apresentadas são frutos ou resultados dos milhares de anos vividos pela humanidade. No decorrer desse tempo, muitos aprendizados foram adquiridos e assimilados; com isso, temos o discernimento para diferenciar as ações permitidas das ações ilícitas e o que é conveniente para as pessoas individualmente e para a coletividade. O querer é um ato livre e todas as pessoas têm seus desejos e vontades, os quais nem sempre podem ser realizados; devemos ter o devido equilíbrio para agir em conjunto. Os dilemas possibilitados pela ética da convicção e da responsabilidade são muitos, mas é justamente por isso que existe a ética, para enfrentar os desafios e para que eles possam ser tomados, revistos e assumidos. A grande questão é que se vive em um clima de liberdade. Ela existe – não porque um ser superior nos deu para agirmos de um ou de outro modo –, para podermos desfrutar, errar, mas também acertar. Devemos partir sempre do pressuposto de que o ser humano busca e tenta promover atos benéficos e isso deve ser sempre considerado em primeiro lugar. Ao chegarmos ao final desses dilemas éticos, temos que reconhecer que a busca por dias melhores também representa um dilema – e que bom que ele existe, pois podemos crescer, nos desenvolver, encontrar alternativas e um mundo melhor, o qual, com certeza, aparecerá, pois nós não desistimos da verdade e a verdade não nos isenta de a buscarmos. Temos o compromisso como seres racionais, como seres desafiados por nossa liberdade, pela ética, enfim, por nós mesmos, a partir em busca do tão esperado paraíso, que não sabemos se algum dia existiu. Se ele existe, sabemos que é somente de modo muito fragmentado (quando há harmonia, paz, vida digna etc.) e, em especial, o que mais se anseia é que ele venha existir. Os questionamentos levantados na reflexão feita no decorrer deste texto são intensos e desafiantes. Nada, porém, está perdido, como vimos ao estudar essas duas teorias éticas. O importante é não fecharmos os olhos para a realidade e para os desafios que ela nos propõe. Ainda, é necessário ter esperanças, perspectivas e saber que podemos melhorar, pois, assim como a humanidade levou tempo para chegar aonde chegou, precisamos também ter a devida paciência histórica, para que todos ou aqueles que têm a capacidade e o poder para tomar as decisões o façam, seja socialmente ou agindo em sua individualidade. Referências COSTA, Maurício Mesurini da. Ética da responsabilidade e ética da convicção: proposta de uma racionalidade para o controle judicial de políticas públicas. Maringá. Revista Urutágua – acadêmica multidisciplinar – DCS/UEM, nº 19, set/dez-2009. JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. JONAS, Hans. El principio de responsabilidad. Ensayo de una ética para lá civilización tecnológica. Barcelona: Herder, 1995. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 11.ed. São Paulo: Pioneira, 1996 Objetivos Específicos Temas • Analisar as morais organizacionais. José Antônio Fracalossi Meister Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 08 Professor Autor Ética nas organizações públicas e privadas Introdução 1 Ética e cidadania no mundo dotrabalho 2 Ambivalência das morais empresariais 3 Ética no setor público e nas relações com entidades da sociedade civil Considerações finais Referências Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução Quando nos propomos a pensar uma ética em situações e realidades específicas, como no trabalho, nas organizações, nos setores públicos e privados, devemos nos questionar sobre o entendimento que circula entre as pessoas e o que especialistas no assunto debatem sobre esses conceitos. E, nesse sentido, pode-se levantar uma série de perguntas sobre os temas. Como iniciar um entendimento do conceito de ética nas organizações? Temos clareza do valor do bem público? Sabemos diferenciar o privado e o público e seus fins? Talvez a reposta mais fácil de ser elaborada seja a última, pois todos nós temos clareza do que nos pertence e do que pertence ao outro. No entanto, mais importante do que entender essas diversas realidades, precisamos compreender como intervir nelas para criar situações verdadeiramente éticas que levem à efetivação do nosso ser enquanto membros de diferentes realidades ou esferas de nossa vida pessoal e social. Vivemos também em um contexto global no qual as atitudes podem afetar não só a realidade local de uma empresa ou governo, mas da sociedade como um todo. Em casos de desastres ecológicos e políticos, por exemplo, as consequências podem ser para um país, um continente e até mesmo para o planeta. Vivemos em rede, estamos interligados e, por isso, o que afeta um pode afetar muitos, senão todos. A partir dessa perspectiva devemos pensar eticamente nesses variados contextos. O mundo do trabalho passa por mudanças significativas. A alta tecnologia tem exigido das pessoas cada vez mais capacitação e preparo; quando isso não ocorre, gera-se um alto grau de desemprego. A sociedade e as relações trabalhistas precisam ser repensadas, já que a realidade atual não é a mesma de tempos atrás. O que se vê em termos de perspectivas são mudanças, indefinições e novas situações. Talvez as pessoas devam estar preparadas para outros contextos e para outras realidades além do emprego. O conceito de trabalho deve necessariamente ser outro e não mais o de simplesmente “ter um emprego”. Temos vivido um tempo de descrédito, em especial quanto ao que denominamos público. Nosso conceito do termo infelizmente é falho: em geral, o público é considerado “de ninguém”. Ao entender o público desse modo, temos dificuldades em assumir o que é nosso. É preciso assimilar que todos os bens públicos são nossos e estão sob nossa responsabilidade, pois são coletivos. Assim, temos a possibilidade de deles desfrutar e a obrigação de cuidar para que todas as pessoas possam ter os mesmos benefícios de uso. Quando um bem coletivo é danificado ou destruído, o prejuízo é de todos. Essa consciência e responsabilidade devem, então, ser carregadas e difundidas por todos, visando sempre o bem comum. Vamos agora pensar o conceito de público, por duas vertentes: o público como o espaço no qual se convive e o público como a instituição, que é mantida pelos poderes constituídos. Assim, público pode ser entendido como: Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 • lugar no qual as pessoas circulam, andam e convivem; e • poder socialmente instituído, pelas formas de governança, de defesa da ordem e da segurança jurídica. Para o primeiro, os princípios éticos são mais difusos e vale, como regra, aquilo que vale para o convívio geral. Para o poder público, aos poucos vão instituindo-se códigos de ética e leis que estabelecem momentos em que as pessoas vão construir suas relações e suas obrigações. 1 Ética e cidadania no mundo do trabalho Se perguntarmos para as pessoas se elas gostam de trabalhar, muitas poderiam dizer que não, outras diriam que sim, porque gostam do que fazem etc., mas, se perguntássemos se as pessoas prefeririam trabalhar ou não, a resposta poderia ser outra; talvez fosse que prefeririam não trabalhar. O trabalho frequentemente esteve ligado à história da humanidade como algo que não traz muitos prazeres e alegrias. No mundo greco-romano, por exemplo, o trabalho, em especial o trabalho braçal, era visto como não meritório e deveria ser realizado por escravos. O cidadão não deveria trabalhar. “A palavra trabalho tem origem no vocábulo latino tripalium, que era um instrumento de tortura, ou seja, três paus entrecruzados para serem colocados no pescoço de alguém e nele produzir desconforto” (CORTELLA, 2012, p. 17). Infelizmente, até hoje ainda não estamos livres do trabalho escravo. Segundo a Organização Internacional do Trabalho – OIT (2015), 168 milhões de crianças continuam vítimas de trabalho escravo e 75 milhões de jovens, entre 15 e 24 anos, estão desempregados. Esses dados são sobre o trabalho infantil, que é algo chocante. Mas quantos adultos ainda são mantidos em trabalho escravo? Quantas pessoas pelo mundo trabalham em troca de moradia e alimentação, apenas? Quantas pessoas não têm espaço e liberdade para poder usufruir o que o trabalho em si deve proporcionar (lazer, realização, segurança etc.)? O trabalho sempre existiu e sempre irá existir. Seja o mínimo (se pensarmos em uma sociedade totalmente tecnificada), seja o trabalho altamente braçal e que exige esforço físico e pode ser desgastante. Com o trabalho, as pessoas conseguem atender suas necessidades básicas (alimento, vestimenta, moradia etc.). Nesse sentido, é importante distinguirmos trabalho de profissão. Toda profissão está imbuída de trabalho, mas nem todo trabalho é uma profissão. A profissão exige que se tenha preparação, estudo, especialização e tem como intuito o ganho, geralmente econômico. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 São exemplos de profissões: professor, estivador, médico, advogado, enfermeiro, entregador etc. e aquele que faz disso sua forma de manter-se o faz em troca de um salário. No Brasil, as profissões têm um reconhecimento legal e possuem um código de ética profissional. Isso é comum a todas as profissões reconhecidas como uma atividade pela qual o governo federal e a sociedade atribuem uma determinada responsabilidade legal. Essa situação é referendada pela Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 5º, XIII: “É livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer” (BRASIL, 1988). O reconhecimento legal da profissão existe, entre outros, para médicos, engenheiros, psicólogos e assistentes sociais. Para essas profissões há um código de ética instituído a partir de uma lei que as reconhece e que cria um Conselho Federal e Conselhos Estaduais, com sede na capital federal e em cada capital dos estados brasileiros. Cabe aos conselhos estaduais fiscalizar o exercício profissional. Esse poder fiscalizador fora outorgado pelo executivo federal para os casos de infração em primeira instância. Ocorrências de segunda instância para recursos em casos de não satisfação do punido ficam sob a responsabilidade dos conselhos federais. 2 Ambivalência das morais empresariais Quando nos referimos a morais empresariais, devemos ter dois aspectos fundamentais em mente. O primeiro refere-se à ética que as organizações estabeleceram como regra para todas as pessoas que nelas atuam e, o segundo, à ética profissional. Atualmente, pela forma como a produção está estruturada, raramente conseguimos pensar em uma empresa que produza tudo o que necessita para lançar no mercado seu produto final. Ela estabelece parcerias com outras empresas que fabricam componentes (partes)do produto, faz controle de qualidade, exigindo determinado padrão e, finalmente, monta o produto que irá oferecer, colocando-o à disposição no mercado. Portanto, a palavra atual do mercado produtivo é parceria, realizada com outras empresas ou ONGs. Segundo Naves (2015, p. 554): Muitas empresas têm realizado parcerias e estabelecido acordos com organizações não governamentais (as denominadas ONGs). Muitas empresas optaram por parcerias com ONGs em ações que visam minimizar os danos às comunidades e ao meio ambiente. De acordo com o teórico americano do terceiro setor Lester Salamon, entrou em jogo a própria reputação das empresas, que estão se envolvendo nessas parcerias não simplesmente por altruísmo. Ao contrário, elas estão começando a entender que esta é uma parte das estratégias globais de seus negócios. É justamente para isso que existem as morais empresariais, para avaliar as práticas das empresas naquilo que realizam tanto em relação ao que oferecem ao mercado quanto ao Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 modo como tratam a natureza, a sociedade local e seus diferentes públicos. Quando nos referimos a empresas, há a necessidade de um padrão de conduta que independe da vontade de qualquer liderança, do que a empresa faz e do que oferece à sociedade, pois toda a ação desenvolvida tem repercussões sociais. Não se pode esquecer que vivemos em um sistema capitalista e que este molda nossas relações e nosso modo de viver. Tudo o que se realiza atualmente, seja na constituição das cidades, na forma de ensinar ou estabelecer relações sociais, na constituição dos bairros, das atividades geradoras do capital etc., tudo gira em torno do capital e este tem poder, capacidade de barganha e interfere no modo como as pessoas e as empresas estabelecerão suas relações. “Com acréscimo da importância do capital, também foi necessária a criação de meios para proteger esse precioso bem. Bancos, seguradoras e instituições de investimento nasceram com esse intuito e passaram a gozar de um alto status na montagem da sociedade contemporânea” (GALVÃO, 2014, p. 17). Para entendermos como a moral de uma sociedade se constitui, é necessário entender a história dessa sociedade, as relações construídas por ela, além de entender que a moral de uma determinada realidade é constituída como resultado de sua tradição e cultura. Para Laisinger e Schmitt (2001, p. 9): “A atividade econômica de um povo constitui somente uma parte do todo, a parte que está voltada para a sobrevivência material. Por isso pessoas que atuam na economia são marcadas pela cultura e, por conseguinte, também pelos conceitos morais do seu contexto”. Sociedade e moral abrangem mais do que o aspecto econômico, muito embora este tenha um caráter preponderante em nossas relações. Ao lado disso, surgem também as responsabilidades que cada segmento tem e, entre elas, a responsabilidade social das empresas tem sido um dos aspectos colocados no foco das reflexões éticas. Para tanto, convém conceituarmos moral e ética: Na linguagem coloquial, os conceitos de ‘moral’ e ‘ética’ são em larga escala empregados como sinônimos, apesar de não o serem. Por ‘moral’ entendemos determinadas normas que orientam o comportamento prático (sobretudo para com o próximo, mas também para com a natureza e para consigo mesmo). A ética, como ciência, ocupa-se com o tema de uma maneira descritiva e comparativa, mas também como uma avaliação crítica da moral (LEISINGER; SCHMITT, 2002, p. 18). Portanto, quando nos referimos à moral empresarial, falamos de práticas que estão constantemente a desafiar as empresas em um mundo globalizado, no qual as organizações devem aprender a enfrentar a concorrência, ter funcionários cada vez mais capacitados em Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 condições e habilidade de inovação e saber respeitar o que busca a sociedade, a cultura organizacional e a razão de ser da vida em sociedade. Por isso, cada dia mais, carecemos de boas práticas e da implantação de ações morais eficazes em vista de um bem coletivo. Ainda que o papel de uma empresa seja a geração de riquezas, isso não deve ser feito a qualquer custo. O lucro deve ser atingido como uma forma de as empresas sobreviverem, mas não pode sobrepor-se ao uso correto dos recursos naturais, relações trabalhistas justas e estabelecimento de momentos positivos socialmente. Uma empresa é composta por muitas pessoas: acionistas ou investidores, consumidores e trabalhadores, mas podemos considerar aqui também transportadores, lojistas etc. Há ainda aqueles que se relacionam com a empresa porque têm seus interesses em relação a ela, como fornecedores, sindicatos, prestadores de serviços, mídia, governos, concorrentes, comunidades etc. Todos têm interesses (obter lucro, adquirir produtos, fornecer matéria- prima) quando se relacionam com a empresa e disso não se pode ter dúvida. Imaginemos uma comunidade próxima a uma empresa altamente poluidora: o quanto essa comunidade pode perder com a desvalorização de suas casas? Quantas doenças podem ser adquiridas pelos moradores? Quais são as consequências da poluição da água consumida pela comunidade? Por outro lado, quantos empregos e quantas melhorias para a comunidade local esta empresa pode trazer? Assim, pode- se dizer que a empresa pode ser vista de modos distintos: uns a veem como uma forma de ganhos econômicos ou até como possibilidade de trazer melhorias sociais, desenvolvimento comunitário etc. Por outro lado, ela também pode trazer dificuldades para as pessoas que vivem em suas proximidades. Observamos, assim, que nada do que se faz é inofensivo, ou seja, tudo pode trazer ganhos e perdas, conforme o desenvolvimento das ações. Existem várias compreensões morais que se apresentam dentro das empresas, mas nos cabe chamar a atenção para duas. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 Figura 1 – Morais empresariais 2.1 Moral da parcialidade As empresas, como organizações sociais, estão sujeitas a muitas realidades originadas pelo capitalismo, pela globalização, pela concorrência, pelos consumidores, pelas compreensões de seus gestores etc. Para fazer frente a essas realidades é que surgem os posicionamentos e, a partir disso, as ações morais ou imorais das empresas. Nas economias competitivas, os empresários ficam à mercê de um jogo de foras que só leva a estabelecer distinções entre os vários públicos de interesse. Aqueles que dispõem de maior cacife – seja a capacidade de retaliar, seja a de agregar valor ao negócio – são tratados com cautela e deferência. Os demais não recebem essa atenção. O favorecimento de certos stakeholders1 deriva da necessidade de assegurar uma base de apoio para obter a ‘licença social para operar’ (SROUR, 2013, p. 83). Diante desse quadro, surgem os diversos modos de agir e, entre as possibilidades, a moral da parcialidade se coloca definindo a empresa como o “centro do mundo” e, com isso, um contexto de cinismos passa a ser aceito por quem dele faz parte (SROUR, 2013). Srour (2013) também destaca como características desse princípio moral: • as “normas” estabelecidas e aceitas como modos de ação; • a “lealdade” de quem faz parte dessa organização; • certa malícia com quem está fora da rede de interesses; • certa desonestidade; 1 Stakeholder é entendido como a pessoa ou o grupo de pessoas que tem participação ou interesses em uma determinada empresa e que com ela mantém relações. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 • dois pesos e duas medidas– os que utilizam a lei quando lhes convêm e a rejeitam quando não lhes é conveniente; • prática de ações desonestas, expressas por Srour com a expressão “rouba, mas faz”. Outro ponto importante destacado sobre esse modo de agir das empresas: “rotula depreciativamente os governantes, os partidos políticos, os tribunais, os sindicatos, a mídia, as organizações não governamentais – aqueles ‘inúteis que não sabem o que riscos’, ‘ não entendem de negócio’ ou nunca meteram a mão na massa” (SROUR, 2013, p. 84). Por fim, esse mesmo autor chama a atenção para mais dois aspectos desse modo de ver: “homenageia a prevaricação” e alega que só é possível conseguir competir com os produtos estrangeiros e a economia informal sonegando impostos. Observando as características da moral da parcialidade, podemos compreender a existência de empresas criadas como fachada para sonegar impostos ou “esquentar notas frias”. Tudo isso serve para fazer com que todas as pessoas envolvidas estejam sempre em um conluio de “lealdade” entre si e de colocar os de fora em certo compasso de desconfiança, porque quem não faz correto, sempre irá pensar que outros também agem do mesmo modo. Quando há parcialidade, quem sai beneficiado é justamente quem participa das empresas, os que nela ou dela têm interesse. Assim, Srour (2013, p. 85) afirma que: Consiste em burlar as formalidades legais, costurar conluios em licitações, arquitetar espionagens econômicas, especular com os preços, traficar influências, subordinar agentes públicos, eleger parlamentares de confiança com recursos do caixa 2, manipular a contabilidade, contratar terceiros que não respeitam direitos trabalhistas, adquirir insumos nocivos ao meio ambiente, conceder empréstimo mediante “venda casada”, participar de lobby para aliciar autoridades, superfaturar obras para financiar campanhas políticas, submeter-se à extorsão praticada por fiscais, lançar efluentes industriais in natura nos cursos d’água, sonegar impostos, participar de cartel, negociar informações confidenciais, espalhar boatos maldosos a respeito de concorrentes, manobrar o tempo todo com a justificativa de que é preciso baixar o ‘custo Brasil’[...] Quem está um pouco atento ao que acontece no Brasil e no mundo já teve ter ouvido falar ou visto situações como essa em algum momento. Por isso, essa moral é entendida como a da parcialidade, isto é, serve a uma parte da sociedade, não a todos, e não deve servir como regra de conduta, pois a sociedade tornar-se-ia um caos se todos agissem desse modo. 2.2 Transição para uma moral da parceria Vivemos em um período de transição social em todo o mundo. É preciso aprender com situações que não devam ser eticamente justificadas, assim como melhorar algumas que ainda possam ser qualificadas. Mas há transições marcantes e que precisam ser mais bem pensadas e revistas, pois, conforme Srour (2008, p. 113): Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 Condutas deixaram de ser justificadas, ainda que sejam praticadas, como a falta ao trabalho sem motivo, o furto de pequenos objetos em hotéis, restaurante e aviões, o comparecimento em atraso a compromissos profissionais, o barulho que incomoda os vizinhos, a conduta mesquinha de quem guia nas ruas, a endêmica falta de troco com seus substitutos indesejáveis, o hábito de furar a fila ou a falta de modos que consiste em buzinar nos túneis das estradas, para curtir com a cara dos demais motoristas. A mudança de práticas tem demonstrado que, entre as pessoas e empresas, é preciso um padrão ao estabelecer relações. Não basta viver e deixar as coisas acontecerem simplesmente, porque a sociedade nem sempre age conforme condutas previamente agendadas e estabelecidas. Após serem estabelecidas pelas empresas, as descobertas e estratégias têm sido cada vez mais absorvidas e implantadas dentro de perspectivas sociais. Ter estratégias é conhecer seus concorrentes, o que eles fazem, propõem e buscam; saber quais produtos são lançados ou serão, e assim por diante. Em tese, tudo isso deveria ser feito com clareza e transparência, porém, como sabemos, as pessoas podem ter diversas possibilidades de atuação. Em muitos desses casos, as empresas ferem normas e princípios éticos, sendo necessário que se faça um exercício de resgate da sua posição social. Mas pautemo-nos sob o aspecto de que não se pode sempre ver as pessoas e as empresas agindo erroneamente. As empresas estão em busca de parcerias que podem melhorar os produtos e serviços que oferecem, sem necessariamente fundamentar-se pelo imoral. Muitas empresas têm, hoje, seus códigos de conduta ou de ética ou, até mesmo, os chamados códigos de integridade moral, que visam levar as pessoas que nela atuam ou que com ela possam relacionar-se a trabalhar com integridade e correção. A moral da parceria, como a própria palavra nos diz, é justamente perceber que uma empresa não consegue abranger sozinha toda a cadeia de que necessita para desenvolver seu produto e serviço; assim, acordos são estabelecidos. Os compromissos assumidos permitem o relacionamento com outras empresas e serviços, a fim de que todos ganhem. Para que se possa estabelecer uma boa relação de parceria nos negócios, a confiança é fator fundamental. Além de constituírem-se em relações confiáveis, as parcerias também devem ter a transparência como característica. Logo, fraudes, malogros e manipulações precisam estar fora desta relação. É importante que as estratégias adotadas, os programas, as técnicas desenvolvidas e experiências adquiridas nessas relações sejam preservados entre os parceiros. A parceria traz muitas vantagens, pois possibilita um aprendizado mútuo. Cada um com sua especialidade e com seus conhecimentos, pode enriquecer a outra organização e aprender Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 com o que outro tem especialmente de bom e desenvolvimentista, trazendo os desafios para o estabelecimento dessas parcerias. Nisso, reside, também, a compreensão ética e moral das parcerias, pois é nesse processo de transparências, conhecimento mútuo e confiança que se edifica todo esse complexo de relações entre empresas, pessoas e comunidades. Quem sai ganhando com tudo isso, além das empresas envolvidas, é a própria sociedade. Cabe às comunidades e à sociedade favorecer o desenvolvimento da empresa e ajudar a cuidar para que ela não produza malefícios sociais. A moral da parceria e da responsabilidade surge como um fator para estabelecer o ponto de equilíbrio entre o pretendido e o conseguido. É necessário que as empresas tenham sempre e cada vez mais presente que estão inseridas em uma sociedade e, assim como certas atitudes, determinadas práticas também deixam de ser aceitas pelas empresas e pelos consumidores. Que bom seria se, cada vez mais, pudéssemos ter esse tipo de consciência e cobrássemos das pessoas e das empresas uma postura cada vez maior de correção ética. Com isso, poder-se-ia, sim, ter um papel social cada vez maior. Consumidores devem se atentar cada vez mais e ser seletivos em relação ao que compram e consomem. Nem sempre temos a visão de todos os negócios que ocorrem quando se adquire um produto, mas empresas com um compromisso social deveriam ser privilegiadas em detrimento daquelas que deixam de ter cuidados especiais com pessoas, meio ambiente e que tomam atitudes antiéticas. A internet atualmente é um bom campo de informações sobre os produtos e a forma de atuação das empresas. 3 Ética no setor público e nas relações com entidades da sociedade civil Como dito anteriormente, o público pode ser tratado e entendido de dois modos: como espaço aberto e de convívio livre, e comopoder instituído. Roberto DaMatta (1993, p. 23) nos chama a atenção para a realidade da casa e da rua, este último sendo o espaço no qual “teoricamente ocorre o trabalho, o movimento, a surpresa e a tentação”. Poderíamos dizer que é o espaço em que, de certa forma, ocorre a cidadania, no qual as pessoas podem demonstrar como sua aprendizagem de convívio é exercida, pois terão a possibilidade de exercer as boas maneiras na relação com os outros, no cuidado do patrimônio público, na divisão do espaço com as demais pessoas. E o funcionamento geral do aparelho de Estado pode ser traduzido em poucas palavras: O Estado cobra impostos e, em troca, oferece aos cidadãos uma série de serviços. Uma forma de entender o “interesse público” é considera-lo equivalente à própria esfera das instituições nas quais o Estado se organiza: o sistema Judiciário, o Legislativo e o Executivo, cada qual administrando, em suas respectivas atribuições, as prestações de serviços garantidos pelas leis históricas de cada país. De acordo com a nossa Constituição, devem ser oferecidos pelo Estado a todos os brasileiros saúde, educação, transporte, segurança, previdência, entre outros benefícios (NAVES, 2015, p. 548). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 Muito temos que aprender para que esses direitos sejam alcançados em todos os lugares do mundo. Um passo importante é fazer com que as leis que já reconhecem esses direitos sejam efetivadas na prática. Ou seja, fazer com que o espaço e o serviço púbico sejam restituídos ao povo. Vendo o que nos é proposto nessa reflexão, consegue-se notar o quão longe estamos da realidade de construção de uma sociedade com tais pressupostos. Como exemplos disso, temos o caos que ocorre na saúde pública (as dificuldades em conseguir atendimento, a falta de especialistas e especialidades, entre outros) e a ausência de saneamento básico em algumas localidades – ainda nos dias de hoje, pessoas morrem por falta de água tratada. A educação que visa atender a todos, mas ainda precisa ser ampliada. Vendo a população efetivamente ocupada (empregada e atuando no mercado de trabalho), percebe-se que estamos longe de alcançar outros países, em especial países mais desenvolvidos. Não é sem razão que o processo migratório no mundo tem ocorrido em grande escala. Pessoas procuram outros lugares, cidades maiores e até outros países como uma forma de obter uma vida melhor. Outros exemplos, específicos da sociedade brasileira, podem nos ajudar a compreender realidade de outros países. Conforme dados da EBC – Agência Brasil (2015): A escolaridade do brasileiro subiu 8 pontos percentuais na última década, mostra pesquisa divulgada hoje (30) pelo Instituto Data Popular. Em 2003, 28% da população ocupada tinham o ensino médio incompleto ou completo. Em 2013, o percentual subiu para 36%. Já o total de trabalhadores com formação universitária completa aumentou de 12% para 14% em dez anos, enquanto o de trabalhadores com ensino fundamental incompleto ou completo diminuiu de 50% para 43% (GANDRA, 2015). A educação não é a salvação de todos os “nossos males”, mas abre portas para as pessoas qualificarem-se, adquirirem conhecimento e despertarem interesse pelo que é público. É preciso investir muito em educação em todos os níveis e, em especial, provocar a inserção das pessoas no contexto social. Quem não tem escolaridade recebe menos, tem ofertas de trabalho mais restritas, as quais não oferecem remuneração suficiente para garantir seu sustento e sua qualidade de vida. Também é preciso investir em transporte, principalmente nos menos poluentes e mais baratos (fluviais, ferroviários), para um desenvolvimento social efetivo e de preservação do bem público. Alguns países priorizaram investimentos em algumas formas de transportes, o que gerou um grande desenvolvimento das comunidades. Já o Brasil, desde a década de 1970, primou apenas pelo transporte rodoviário e esqueceu-se de oferecer outros meios que não afoguem tanto o trânsito nas cidades. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 Isso é reflexo de nossa busca por uma forma mais ética de viver e conviver no espaço público. Alguém poderia questionar, mas o que isso tem a ver com ética? Tudo, pois é preciso que nos voltemos a pensar no sentido de um bem, uma ética que atinja a todos globalmente, fundamentando em novos modelos de convivência. Então, pode-se dizer que cabe, aos poderes públicos (embora não só a esses), além do que está estabelecido em lei, agir eticamente, pois assim foram constituídos: para que mantenham a sociedade. Mas os entes públicos, só atuarão se houver uma forma de pressão social. A sociedade necessita se organizar para dizer ao poder público quais são suas necessidades, seus anseios e no fundo demonstre a esse ente qual é no fundo a vontade e a finalidade de suas buscas a fim de que esses possam realizar as ações almejadas pela sociedade como um todo. Afora isso, estaremos sempre a mercê do que o grupo que está no poder fará em vista aos interesses a que defende. A ética pública deve estar atenta a tudo o que envolve a sociedade e as pessoas nela inseridas e, como o papel do Estado, segundo Naves (2015), é arrecadar impostos para devolver em serviços, é esse, no fundo, o grande objetivo ético dos administradores públicos. Não “se esconder” atrás de um não fazer; pelo contrário, cabe aos poderes instituídos possibilitar as condições para o efetivo desenvolvimento social, para que as pessoas e as organizações sociais possam exercer seus papeis e incentivar a sociedade, para que esta chegue a um estágio de efetivo convívio social. Para saber mais, tomemos, como exemplo, outra realidade brasileira para ilustrar o que expressamos sobre a ética pública. O Brasil, em 2009, efetivou o “Código de Conduta da Alta Administração Federal – normas complementares e legislação correlata” (disponível na midiateca). Se olharmos esse código de ética que foi aprovado há poucos anos e o compararmos com a realidade de corrução, desvios e inatividade dos fins de um governo, vemos que há um grande contraste entre o que está muito bem escrito nesse código de conduta e o que observamos acontecer atualmente. Isso nos chama a atenção para o fato de que não basta termos boas leis, código ético ou de condutas, é preciso muito mais, é preciso que as letras saiam do papel e transformem-se em palavras vivas, isto é, sejam transformadas em ação. A ética em si não muda as pessoas, o que o faz é a consciência, a tomada de decisão tanto de cunho individual como coletivo ou social. As pessoas e as organizações devem ser a grande voz daqueles que não têm possibilidade de evocar seus direitos, isto é, ser a possiblidade de agregação em torno de ideias que sejam mobilizadores sociais. Para tal, as organizações sociais também devem ser ilibadas. Citamos, anteriormente, o exemplo de código de conduta no âmbito federal, mas existem inúmeros códigos espalhados por outras instâncias governamentais, tanto estaduais como municipais, e em muitos países do mundo, assim como em empresas transnacionais Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 ou multinacionais. A ética é uma forma como a sociedade entendeu que deve atuar para proteger-se e utilizar-se do espaço público para a sua efetivação e o seu desenvolvimento. Para reafirmar que a ética, por si só, não muda as pessoas ou a sociedade, mas, sim, que as pessoas se convencem de que tal prática é correta e que, ao agir assim, todos saem ganhando, a carência de ética é geradora de desvios sociais, roubos, mortes, assassinatos, acidentes de trânsito,obras mal construídas etc. Nesse momento de desnorteio, câmbio e agitação, porém, aquilo que aparece é a carência quase absoluta de ética. Ela brilha pela ausência, tanto na empresa privada, quanto na pública e no Estado. Os escândalos – corrupção, crime organizado, pobreza – continuamente vêm à tona em todo o mundo, e todos sabem que aquilo que a mídia investigativa mostra é apenas a ponta do iceberg. A voz da ética, neste momento é demasiado tênue, embora soe clara dentro de todas as pessoas. Sem ética nada se constrói (ALONSO, 2002, p. 112). E parece que o desafio que se lança tanto para as empresas como para os governos seja esse mesmo. Sem a voz da ética, tudo se torna possível, tudo parece ser normal, e tanto faz agir bem ou mal, o que importa são os interesses defendidos. A ética existe não como algo de fora ou impositivo para as pessoas e organizações, mas como uma necessidade que brota do próprio ser humano, quando os valores de dignidade são defendidos e respeitados. Quanto ao exercício de uma ética na administração pública, quanto aos fins dos atos dos governantes, pode-se admitir que esses atos devam ter um fim e se ele for em vista a uma melhor qualidade de vida, de realização dos direitos estabelecidos nas constituições e tratados de âmbito internacional, como por exemplo o dos direitos humanos (entre outros), se tornando assim uma obrigação a ser executada, porque quem detém o poder, seja em que esfera for, tem compromisso de fazer com que os princípios legais e éticos sejam cumpridos e executados por todos, inclusive por ele como governante. Chama a atenção para um fato fundamental, de fazer uma política que gere a qualidade de vida para as pessoas. Um governante deve ter essa preocupação no mais amplo sentido possível, não só no que está expresso nos direitos humanos, mas em uma circunstância que leve as pessoas a terem políticas sociais eficazes e faça com que as pessoas estejam reunidas em sociedade e saibam a razão disso. Isto é, que a sociedade seja a realizadora dos fins buscados por todos e razão última do que gera o estar em sociedade, que são as garantias – de vida, de trabalho, de bens e serviços. Cabe citar outro exemplo para ilustrar o quanto a busca por uma conduta ética é colocada como tema de fundamental importância. No Decreto nº 1.171/1994, que discorre sobre o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal, temos: Deixar o servidor público qualquer pessoa à espera de solução que compete ao setor em que exerça suas funções, permitindo a formação de longas filas, ou qualquer outra espécie de atraso na prestação do serviço, não caracteriza apenas atitude contra a ética ou ato de desumanidade, mas principalmente grave dano moral aos usuários dos serviços públicos (BRASIL, 1994). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 14 Considerações finais Os desafios apresentados por uma reflexão ética em relação ao mundo do trabalho são amplos e complexos. Saber como se estabelecem as relações sociais tem levado as pessoas e as organizações aos mais diferentes tipos de reflexões e questionamentos, tanto de ordem econômica como de ordem social. Ainda precisamos, e muito, que nossas relações de trabalho sejam pautadas por leis, o que não é garantia de que realmente aconteça conforme é estabelecido. Por isso, a ética está constantemente nos alertando para que assim se façam as relações. Se tudo o que estivesse na lei fosse cumprido, muitas ações, tanto por parte das empresas como por parte das pessoas, não aconteceriam, e esse texto apresenta bons exemplos nesse sentido. Quando nos referimos à questão pública e às relações com as entidades da sociedade civil, vemos que o desafio é ainda maior, pois temos construído uma difícil relação com o que é público e com o que é privado. É importante que olhemos o espaço da sociedade como um espaço no qual temos a possibilidade de nos desenvolver e construir relações edificantes e como um espaço nosso, assim como é o privado. Éticas que sejam construtoras do espaço humano e das “boas” relações sociais são um verdadeiro desafio para qualquer um de nós e para a sociedade. Com todos os fatos que temos, a corrupção que se espalha pelo mundo todo tem efeitos tanto no setor público como no privado, e tudo isso nos mostra que o resgate de uma ética é urgente. É necessário que a sociedade se veja, retome-se e busque construir relações sociais fortes, capazes de enfrentar os mandos e desmandos, seja de quem for. É preciso buscar padrões éticos cada vez mais fortes, não apenas por parte dos governantes, patrões, enfim, dos que detêm maior poder na sociedade. A mudança inicia-se em cada indivíduo, para que o comportamento se faça correto desde ações pequenas até as grandes. O comportamento ético inicia-se com a proposta, passa por seu aceite e culmina na ação ética. Quanto à relação que as empresas estão construindo, temos visto que muito se tem avançado e realizado, mas não podemos nos conformar com isso. Acidentes, desastres ambientais, exploração de trabalhadores, falências forjadas etc. são situações que têm levado empresas boas e socialmente responsáveis a serem colocadas no mesmo patamar de empresas pouco responsáveis. A inversão de uma realidade social passa, cada vez mais, pela mudança de uma realidade na qual não se aceitem mais malogros sociais e beneficiamento de alguns em detrimentos de outros. Nesse sentido, a ética e as leis concorrem para que a sociedade se repense e atue de modo mais correto. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 15 Referências ALONSO, Félix Ruiz. Revisitando os fundamentos da ética. In: COIMBRA, José de Ávila. Fronteiras da Ética. São Paulo: SENAC. 2002. BRASIL. Código de Conduta da Alta Administração Federal. Normas complementares e legislação correlata. 4. ed. Brasília: 2009. Disponível em: <http://etica.planalto.gov.br/arquivos/ legislacao/livro-do-codigo-de-conduta-2009-atualiz-em-06-de-maio.pdf>. Acesso em: 27 nov. 2015. ______. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 27 nov. 2015. ______. Decreto nº 1.171 de 22 de junho de 1994. Aprova o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Federal. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 nov. 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d1171.htm>. Acesso em: 27 nov. 2015. CORTELLA, Mário Sérgio. Qual é a tua obra? – Inquietações sobre gestão, liderança e ética. Petrópolis: Vozes, 2012. DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil? 6. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1993. GANDRA, Alana. Escolaridade do brasileiro sobe 8 pontos percentuais em 10 anos, mostra pesquisa. EBC – AGÊNCIA BRASIL. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/ noticia/2015-04/data-popular-escolaridade-do-brasileiro-sobe-8-pontos-percentuais-em- dez>. Acesso em: 27 nov. 2015. LEISINGER, Klaus M.; SCHMITT, Karin. Ética empresarial: responsabilidade global e gerenciamento moderno. Petrópolis: Vozes, 2001. OIT. Informe mundial de 2015 sobre el trabajo infantil. 2015. Disponível em: <http://www.ilo. org/ipec/Informationresources/WCMS_372648/lang--es/index.htm>. Acesso em: 27 nov. 2015. NAVES, Rubens. Novas possibilidades para o exercício da cidadania. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). História da Cidadania. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2015. SROUR, Robert Henry. Ética empresarial. 4. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 09 Ética e cidadania Objetivos Específicos • Contextualizar os conceitos de cidadania. TemasIntrodução 1 Cidadania: conceitos e suas relações 2 Estado, sociedade civil, organizações do setor privado e sujeito como agentes políticos Considerações finais Referência José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução Viver em sociedade implica em participação e desempenho de papéis. Essa condição é chamada cidadania. O conceito de cidadania é múltiplo, com vários enfoques e possibilidades. Aqui, vamos conceituá-la como um exercício realizado em sociedade pelas pessoas que nela se encontram e atuam. Ser cidadão não é somente “ter” direitos e deveres, é mais do que isso. Até porque direitos não realizados são “palavras mortas” e não se edificam socialmente; e deveres, quando não cumpridos, dificultam a vida em sociedade. Portanto, ser cidadão em seu sentido pleno é muito mais do que estar em sociedade, é preciso ser um membro participante dela. É certo que não participar ativamente não exclui ninguém do direito à cidadania, porém, torna a sociedade mais pobre e com menos possibilidade de se constituir plenamente. 1 Cidadania: conceitos e suas relações O conceito de cidadania não é unânime e, se o recuperarmos historicamente, poderemos destacar que há vários modos de entendê-lo. Mas é importante termos uma conceituação geral para, ao menos, partirmos para uma possibilidade de diálogo. Assim, para Cortina (2005, p. 31): “cidadania é primordialmente uma relação política entre um indivíduo e uma comunidade política, em virtude da qual o indivíduo é membro de pleno direito dessa comunidade e a ela deve lealdade permanente”. Essa colocação nos ajuda a entender bem o que vem a ser cidadania, especialmente quando vivemos situações políticas conturbadas e, muitas vezes, confundimos as referências a essa palavra. É importante, portanto, também compreender que a política tratada aqui se refere à relação que as pessoas estabelecem entre si quando numa coletividade, seja ela em pequenos ou grandes grupos (família, amigos, trabalho e convívio social em geral). Assim, como diz Guarinello (2015, p. 29), “pensar a cidadania no âmbito de nosso próprio Estado-nacional ou globalmente é um imperativo imposto pela realidade em que vivemos”. Ademais, analisemos, a seguir, as diversas concepções de cidadania na história. 1.1 Cidadania na antiguidade greco-romana O conceito de cidadania, nesse período, estava estritamente ligado aos ambientes urbanos. As cidades-estado eram “geograficamente localizadas e circunscritas. [...], sendo uma região específica do planeta: as margens do mar Mediterrâneo” (GUARINELLO, 2015, p. 30). E é sobre essas concepções presentes no mundo greco-romano que surgirá o conceito de cidadania que, segundo Guarinello (2015, p. 29), se constituiu a partir da ideia de Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 “democracias, da participação popular nos destinos da coletividade, de soberania do povo, de liberdade do indivíduo”. Porém, é imprescindível destacar que essa concepção foi montada pelo mundo europeu moderno, sendo assim uma ilusão, algo idealizado quando se refere a uma concepção antiga, que foi assim criada para se fazer um paralelo com o mundo moderno. Precisamos perceber, sobre esse contexto, que, para o surgimento dos Estados, é necessário que haja um desenvolvimento econômico. As cidades, ou Estados, não se aglutinam sem a presença de um fator econômico que os mantenha. Assim, esse modelo de organização se espalhou: Pelo Mediterrâneo a partir de núcleos originais da Grécia Continental, da Ásia Menor (hoje Turquia) e da Fenícia (atual Líbano). Pelos séculos seguintes até bem adentrado o Império Romano, representaram um modelo vitorioso, em contínua expansão, de um modo de organização da coletividade humana, construído sob a égide da progressiva integração das costas do Mediterrâneo (GUARINELLO, 2015, p. 32). A expansão do Império Romano unificaria essas formas de organização, pois a ideia de democracia se espalhou a partir da concepção de uma cidadania mais aberta, embora pautada sob a força das armas (o que gerava conflitos) e por quem detinha mais riqueza. Portanto, essa abertura era apenas para alguns e se constituía uma forma de discriminação – considerando a linguagem moderna. “A cidadania deixou de representar a comunidade dos habitantes de um território circunscrito, para englobar os senhores de um império, fossem ricos ou pobres, habitassem em Roma, na Itália, ou nos territórios conquistados” (GUARINELLO, 2015, p. 43). Cabe assim, concluir, a partir do que esse mesmo autor afirma sobre esse período da história da cidadania: A história da cidadania antiga só pode ser compreendida como um longo processo histórico, cujo desenlace é o Império Romano. De pertencimento a uma pequena comunidade agrícola, a cidadania tornou-se, com o correr dos tempos, fonte de reivindicações e de conflitos, na medida em que diferentes concepções do que fossem as obrigações e os direitos dos cidadãos no seio da comunidade se entrechocaram. Participação no poder, igualdade jurídica, mas também igualdade econômica foram os termos em que se puseram, repetidamente, esses conflitos, até que um poder superior se estabeleceu sobre o conjunto das cidades-estado e suprimiu da cidadania comunitária, progressivamente, sua capacidade de ser fonte potencial de reivindicações (GUARINELLO, 2015, p. 45-46). O conceito de cidadania está fortemente atrelado ao de política, pois visa a participação nos negócios públicos e, nesse sentido, o conceito é similar tanto na Grécia como em Roma (no período da República). Daí porque é comum encontrar a expressão cidadania “greco- romana”. Entretanto, com o Império Romano e sua expansão territorial, a ideia de participação política direta e localizada é substituída por cidadania enquanto proteção jurídica. Conforme Cortina (2005, p. 42-43): Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 A extensão de Roma e de seu império tornou inviável qualquer ideia de participação nos assuntos públicos. Em contrapartida, Roma certamente podia proporcionar proteção jurídica para aqueles membros do império que desejava reconhecer como seus cidadãos [...] a cidadania é, então um estatuto jurídico, mais que uma exigência de implicação política, uma base para reclamar direitos e não um vínculo que pede responsabilidades. Assim, o conceito de cidadania passa por uma dupla raiz que está na origem do conceito de cidadania, isto é, cidadania enquanto participação política (mais da ordem dos deveres – origem grega) e enquanto proteção jurídica (mais da ordem dos direitos – de origem romana, mais especificamente na fase do Império). Daí por que “convém lembrar às vezes a dupla raiz da qual se origina o conceito de cidadania para entender por que frequentemente deu lugar a confusões e, sobretudo, para tomar de cada uma dessas raízes o melhor, superando suas limitações” (CORTINA, 2005, p. 43). 1.2 Cidadania no mundo moderno e contemporâneo A discussão dos conceitos sobre a cidadania se faz presente há muito na história da humanidade. O que é ser realmente um cidadão em cada um desses contextos? E no contexto atual não seria um desafio para o pensamento filosófico e ético? “O principado inaugurou uma nova era, na qual a cidadania mudou, mais uma vez de caráter. Com o desaparecimento da participação política, o espaço público restringiu-se. Os novos polos do poder passaram a ser o imperador, símbolo da unidade do Império, e o exército, esteio de uma dominação” (GUARINELLO, 2015, p. 44). Pinsky (2015) nos para traz uma segundagrande divisão intitulada os alicerces da cidadania e nos conduz a três grandes momentos nos quais essa cidadania se faz presente. Todos eles fazem parte do mundo moderno: Revolução Inglesa, Revolução Americana e Revolução Francesa. Existe um hiato entre o mundo antigo e o moderno, com exceção da situação de Florença e Salamanca e das comunidades cristãs. O cristianismo se espalhou pelo mundo conhecido no período antigo e medieval; a óptica cristã se unificou e se tornou o conceito desse mundo e por meio dela praticamente tudo era pensado e entendido. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 Pode-se afirmar que o conceito de cidadania nunca deixou de ser um tema importante em todas as épocas da história humana. O ser cidadão é um desafio e, portanto, também não é uma unanimidade entre os pensadores. O certo é que a cidadania se dá em sociedade e para o convívio social e, a partir daí, o que se tem são conjecturas sobre o conceito e sobre a realidade cidadã. Para Giron (2000), não há uma coincidência entre o pensamento sobre cidadania dos pensadores do século XVIII com a situação pré-revolucionária da França. Mas o que isso nos chama a atenção é que quando passamos a pensar nesses conceitos especialmente no mundo moderno, percebemos que estamos em uma situação de efervescência social. Há uma necessidade de os pensadores da época em refletir sobre o tema, sobre o papel do Estado e das pessoas. O desafio era esse e, por isso, temos vários autores tratando do que é ser cidadão e do conceito de cidadania. Hobbes (1588-1679), dentro do contexto da época em que a filosofia se encontrava, discutindo o papel do sujeito a ser desenvolvido dentro da sociedade, escreveu o livro “De Cive: elementos filosóficos a respeito do cidadão” (publicado em 1642 em Paris, totalmente em Latim1). No De Cive, ele descreve os deveres dos homens, como indivíduos, como cidadãos e como cristãos: “nesses deveres estão contidos seja elementos do direito natural e direito das gentes e a origem e força da justiça, como também, dentro dos limites desta obra, a essência da religião Cristã” (HOBBES, 1993, p. 7). O autor faz todo um estudo exploratório sobre a questão das cidades, seu surgimento, os direitos dos cidadãos e do que eles devem abrir mão em detrimento da vida nas cidades. Pois se as pessoas não abrirem mão de alguns direitos, segundo ele, a vida nas cidades se torna inviável, independente do número de pessoas que nela habitam. Segundo essa ótica, uma vez constituídas as cidades, todos passarão a ter direitos. Daí vem a importância de contextualizar o período em que este estudo foi gestado, século XVII, quando as cidades não tinham o tamanho e as estruturas conhecidos hoje. Talvez até tenhamos certa dificuldade em pensar as cidades da época se as compararmos com as cidades atuais. O poder conhecido nessas cidades era a monarquia, aristocracia e democracia. Hoje, em alguns lugares do mundo, temos as monarquias democráticas, onde, apesar de haver um rei, as pessoas também escolhem representantes e seus governantes em diversas esferas, como é o caso da Inglaterra, Holanda, Austrália etc. Voltando ao século XVII, para Hobbes 1 Não é esse o único livro de Hobbes de grande repercussão e valia para nós. Há também o livro Leviatã, de 1651. Neste, o autor apresenta a ideia de que os homens são egoístas e isso vem desde o estado natural. A existência do Estado torna-se fundamental para garantia a riqueza, segurança e a glória. Daí a expressão a “guerra de todos contra todos”. Segundo ele, isso existe por causa do guia humano que é egoísta, segundo o qual cada um segue seus interesses. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 (1993), a destruição das cidades é um perigo, pois essa é a forma pela qual as pessoas têm a possibilidade de viverem e conviverem. Da forma como o mundo da época era constituído, e isso vale até hoje, não era possível pensar sociedade sem pensarmos as cidades e, dentro delas, o papel de cada um e de todos. Pensando um pouco sobre a realidade atual, temos a criação dos Estados modernos e cada um desses com suas constituições. Essas dão a visão que cada um tem para si, como instituição e para seus cidadãos. Vejamos como exemplo a Constituição Brasileira de 1988, que, em seu artigo 1º, expressa os princípios fundamentais que a regem: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Munícipios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III- a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição (Brasil, 1988). Nossa Constituição e outras leis complementares nos ajudam entender a visão que o Brasil tinha e tem de si e do papel de seus cidadãos. Para Naves (2015, p. 545): “em nosso país, a promoção da cidadania depende do poder do Estado de programar políticas públicas, assegurando a todos os brasileiros o exercício de seus direitos”. Dentro dessa visão, a cidadania é uma forma de como se estabelece essa relação entre o indivíduo e o setor público. Política e cidadania, como é evidenciado, estão interligadas. A ação social e política são atividades do cidadão, que deve conquistar os espaços de participação efetiva, que em absoluto se restringem à obediência passiva ou ao exercício do voto – onde ele existe, já que esse é um instrumento presente apenas em alguns países do mundo e em períodos de democracia. Nas ditaduras, as pessoas não têm o voto como possibilidade de manifestação. O voto é, portanto, apenas um dos instrumentos da cidadania na sociedade democrática (ARANHA; MARTINS, 1998, p. 152). Vale destacar que as sociedades e nações não são realidades ou entidades uniformes. No seio de cada sociedade, há uma série de jogos políticos, de múltiplos interesses, de enfrentamentos, enfraquecimentos de “superpoderes” de outros grupos. A cidadania é uma eterna busca de reafirmação de interesses dentro de uma realidade ampla e, para que possa realmente ocorrer, é necessário que existam organizações fortes em seu meio, a fim de fazer com que as pessoas possam sentir-se amparadas e protegidas para terem seus direitos e suas necessidades atendidos. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 O homem não nasce cidadão; o homem se torna cidadão. A formação de um cidadão não é tarefa fácil: a família, a escola e mesmo o Estado não se sentem responsáveis pela sua formação. Transferindo-se a responsabilidade de uma instância para outra, quem sai perdendo é o indivíduo e a sociedade (GIRON, 2000, p. 7). É importante perceber que a cidadania é uma condição social adquirida. Ela não é nata, mas vamos obtendo-a por fatores externos e que nos levam a uma inserção social. Também é importante perceber que a cidadania não é uma situação que se passa a adquirir pelo fato de saber ou conhecer o que é ser cidadão. Conforme Giron (2000, p. 7-8): “para se tornar cidadão, o indivíduo tem que se comprometer com a mudança e com as transformações. Cidadão é aquele que entende seu papel no Estado e realiza sua parte na melhoria da sociedade”. Os cidadãos são formados pelas diversas organizações de uma sociedade: a família, a escola, a religião e o Estado em suas relações sociais e nos diferentes ambientes em que se encontra. Todas as instituições sociais têm um papel importante na formação do cidadão e têm como objetivo levá-los a adquirir o desenvolvimento desse papel. Vamosaprofundar a reflexão acerca do conceito de cidadania: uma criança, por exemplo, não contribui para mudança ou transformação social e nem mesmo tem um entendimento do que é cidadania. Ela, então, não seria uma cidadã? Se não for cidadã, também não tem direitos e, se não os tem, está excluída da sociedade? E o que se poderia dizer em relação a uma pessoa com deficiência mental? E um mendigo, que está à mercê da sociedade, vivendo de favores e sem um espaço próprio para morar? Todos esses estariam fora desse conceito de cidadania? Claro que esse conceito de cidadania é um conceito proativo, tem sua validade e não pode ser desconsiderado. Mas temos de pensar a cidadania em um sentido mais amplo possível. Isto é, cidadão é todo aquele que vive na cidade ou na sociedade independente de sua condição. Ao ser gerado, ao nascer, tem e deve ter seu espaço social. Claro que atuar, agir, buscar aprofundar as relações sociais é o ideal de cidadania e deve ser buscado por todos. Mas ao mesmo tempo, não se podem descartar aqueles que não vivem essa situação. Na década de 1990, voltou a ser atual um termo tão antigo como o de ‘cidadania’ nessa área do saber que os anglo-saxões designam com o vocábulo de Morals, e que tem por objeto refletir tanto a moral como sobre os diretos e a política. Multiplicam-se então as ‘teorias da cidadania’, e nos discursos morais, no amplo sentido mencionado, são abundantes as referências a ela [...] (CORTINA, 2005, p. 17). Mais do que nunca, a sociedade exige que seus participantes primem por uma ação cidadã e ética. A ética sempre teve um papel importante socialmente, mas numa sociedade globalizada, na qual valores e ações geram repercussão, a cidadania vai se efetivando rapidamente, na medida em que exige determinadas situações até então ainda não vistas. Não é mais possível às pessoas e instituições, como o Estado, e às organizações dos setores Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 públicos e privados estarem de fora de um papel cobrado de todos e o qual envolve todos. As pessoas passaram a se dar conta das necessidades sociais. As ciências como filosofia, sociologia, psicologia, serviço social, direito, entre outras, cresceram socialmente em muitas dimensões e passaram a ditar padrões de comportamento. 1.2.1 Cidadania de Marshall Ao se analisar o conceito de cidadania na perspectiva do século XX, um conceito que não podemos nos furtar em analisar é o de cidadania de Marshall, muito importante na história da cidadania e poderosamente influente no decorrer do século XX, pois é uma abordagem vinculada ao Estado de Bem-Estar Social. Para esse autor, a cidadania tem sua importância devido à desigualdade social. Como economista, o autor segue um modo bastante direcionado para o problema e, em especial, no que isso influi na realidade da vida das pessoas. Uma efetiva cidadania se daria no momento em que as pessoas participam socialmente, envolvendo a realidade jurídica local. Nesse sentido, se consegue estabelecer a cidadania como um direito e como um patrimônio comum. É em comunidade que se adquirem direitos e deles se pode usufruir. As classes sociais seriam uma forma de organização dentro dessa sociedade, mas as diferentes classes estariam dentro de uma perspectiva de justiça social. Assim, Marshall, ao estabelecer o conceito de cidadania, divide-o em três partes: civil, política e social. Frise-se que Marshall utilizou, em seus estudos e reflexões, o desenvolvimento da cidadania na Inglaterra. O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual – liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, direito à propriedade e de concluir contratos válidos e o direito à justiça. Identifica os tribunais de justiça como as instituições mais intimamente associadas com os direitos civis. Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo. As instituições correspondentes são o parlamento e os conselhos do governo local. Já o elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem- estar econômico até a segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. O sistema educacional e os serviços sociais são as instituições que mais representam esses direitos (OLIVEIRA, 2016). 1.3 Ser cidadão e viver dignamente Sobre os partícipes da cidadania, Guarinello (2015, p. 46) pondera que: Todo cidadão é membro de uma comunidade, como que este se organiza, e como esse Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 pertencimento, que é fonte de obrigações, permite-lhe também reivindicar direitos, buscar alterar as relações no interior da comunidade, tentar redefinir seus princípios, sua identidade [...] residiria precisamente nesse caráter público, impessoal [...] Há, certamente, na história, comunidades sem cidadania, mas só há cidadania efetiva no seio de uma comunidade concreta, que pode ser definida de diferentes maneiras mas que é sempre um espaço privilegiado para a ação coletiva e para a construção de projetos para o futuro. Apesar de se ter feito muito atualmente em termos de cidadania, um aspecto central desse conceito é o que vamos entender como vida digna. E, sobre isso, não vale dizer que cada um tem a sua concepção sobre o tema, que é um conceito pessoal. Para que exista um diálogo conforme já citamos, é importante que os conceitos formados sejam o mais uniformes possível. Nesse sentido, Cortina (2005, p. 36-37) nos traz uma representação de vida digna: A legislação e administração de uma boa poli, deliberando junto com seus concidadãos sobre o que é para ela o justo e o injusto, porque todos eles são dotados de palavra e, em consequência, de sociabilidade. A sociabilidade é a capacidade de convivência, mas também de participar da construção de uma sociedade justa, na qual os cidadãos possam desenvolver suas qualidades e adquirir virtudes. Como dito, conceituar cidadania ainda é complexo, mas, se por um lado, o conceito não é de fácil coadunação, por outro, não se pode esquecer que a ação das pessoas, independentemente da esfera em que estejam inseridas (da mais ampla à mais particular), deve acontecer. Isso quer dizer que não podemos nos alienar do mundo que vivemos e muito menos delegar tarefas desse âmbito para os outros. Agir é uma condição humana, assim como ser cidadão também nos humaniza. 2 Estado, sociedade civil, organizações do setor privado e sujeito como agentes políticos No Brasil, a sociedade tem seu amparo no Estado, na forma como o governo estrutura as relações, e na própria sociedade. Além disso, desde o processo de redemocratização, diversas instituições e organizações surgiram, inserindo um cunho valorativo na sociedade; elas também passaram a dar sustentação à vontade dos cidadãos. Cabe a cada Estado realizar internamente políticas públicas que visem o benefício de sua população e ao que é comum a todos. Organismos internacionais como a ONU tendem cada vez mais chamar a atenção para a responsabilidade de cada Estado e de todos pelos benefícios comuns. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 Mesmo quando a repressão tomou corpo através da política ditatorial implantada no Brasil, as pessoas tentaram se agrupar em determinados setores que lhes dessem sustentação e apoio. Assim, na visão de Naves (2015), é possível referenciar vários movimentos, como das igrejas (Comunidades Eclesiais de Base– CEBs), organismos que se fortaleceram e ganharam importância muito grande na sociedade brasileira, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), a ABI (Associação Brasileira de Imprensa), entre outros. O movimento atual, maciço e quase universal, no sentido de maior participação e influência dos cidadãos, é um fenômeno novo. Não está sendo promovido por uma estrutura universal. Não possui endereço fixo. Não busca convertidos nem militantes políticos. Seu alvo não é o poder do Estado. Em seu centro está a figura do cidadão (NAVES, 2015, p. 549). A partir dos anos 1980, os governos conscientes de sua impossibilidade em atender todas as demandas sociais passaram a criar incentivos para que diversas organizações surgissem e que outras pudessem atuar. Assim, surgiu também o conceito de responsabilidade social e responsabilidade social empresarial. Como as empresas são as grandes geradoras da riqueza, elas teriam, então, a possibilidade de fazer aportes de recursos. Em um primeiro momento, isso era feito de modo filantrópico: se solicitava e, se a empresa desejasse, efetuava doações a pessoas ou organizações. Na medida em que o tempo foi passando, se percebeu que também era necessária uma profissionalização nesse sentido e, assim, muitas empresas chegaram a criar suas próprias organizações ou instituições para aplicar os recursos necessários para as demandas sociais. “As associações promovem a sociabilidade num contexto individualista. Em suas atividades, os fins coletivos e os bens coletivos são percebidos como interesse individual do que estão envolvidos. A vida pública insere-se nas iniciativas privadas. A cidadania é personalizada” (FERNANDES apud NAVES, 2002, p. 552). Se, por um lado, vemos positivamente todos esses movimentos da sociedade civil em vista da sua melhor organização e luta por melhorias sociais, por outro, isso tudo ocorre porque a sociedade em algum momento também falhou. As falhas se dão pela desestruturação das famílias, a falta de cuidados com o meio ambiente, as guerras, a falta de participação e consciência do que seria o papel de cada um e de todos. Muitos são os motivos pelos quais a sociedade deixou de cumprir seu papel. Se, por um lado, temos essa não ação, por outra, também temos uma boa perspectiva de que a mesma sociedade tenta recuperar um espaço que ficou em aberto por faltas de ações que ela mesma negligenciou. Segundo Naves (2015, p. 548-549): “a expansão da consciência cidadã deu origem a um sentimento mais vasto de ‘cidadania global’. O ‘cidadão do mundo’ não atua apenas nas questões localizadas, mas faz parte de redes internacionais ligadas a grandes temas como ecologia, justiça e democracia”. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 Além disso, surgiram organismos que buscaram estabelecer seus selos ou critérios de credibilidade, como o Instituto Ethos, o qual tem uma vasta lista de critérios para as organizações e para os investidores produzirem ou doarem recursos e para que esses sejam aplicados da melhor forma possível. O mesmo ocorre com o GIFE – Grupo de Institutos, Fundações e Empresas, que tem caráter privado e visa formar, estabelecer parcerias e desenvolver a linha da responsabilidade social. E, assim, poderíamos citar outros organismos sociais que vêm se desenvolvendo com o intuito de estabelecer parâmetros para medir a eficiência e eficácia das ações realizadas pelas empresas e pelas organizações da sociedade civil. O papel da sociedade tem ou deve ter um fator de acompanhamento: Além de avaliar o modelo econômico, todo o movimento social, público e privado deveria participar ativamente da elaboração e acompanhar a execução dos orçamentos públicos (...). Passar a debater e influir no modelo econômico e nos orçamentos públicos fará o movimento social passar do papel de quem tenta remediar a pobreza para quem promove mudanças nas estruturas que sustentam o modelo de exclusão social no Brasil (GRAJEW, 2002, p. 563). Até o próprio título “Trabalho social: remediar ou transformar?”, proposto por Grajew (2002), em seu texto original, nos chama a atenção, pois ele expressa uma situação que deve ser o foco da ação social, a qual consiste em não é remediar o problema, mas transformar a situação. Trata-se daquilo sintetizado no seguinte ditado popular: “não dê o peixe, ensine a pescar”. Essa é a grande verdade de toda a ação social: ao invés de somente remediar, ela deve buscar uma efetiva mudança da realidade, levando as pessoas a serem partícipes da transformação, que busquem fazer por si e não esperar que os outros o façam. Claro que quando a situação é de profunda calamidade ou de impossibilidade de se fazer sozinho ou em pequenos grupos (como em enchentes, alta miserabilidade, abandono etc.), num primeiro momento deve-se fazer atos de remediação da situação, mas posteriormente, as pessoas devem ser capacitadas a agirem por si. O poder público será pressionado a atender à demanda dos direitos sociais e econômicos. No estado estratégico, a maneira de fazer isso serão as parcerias. Quando falamos em ações sociais, não temos em mente paliativos contra a miséria, mas uma transformação genuína da sociedade brasileira. Nesse sentido que as ONGs cumpram um papel transformador, propondo formas de tornar as políticas públicas mais eficientes e capazes de abarcar os direitos de todos os brasileiros (NAVES, 2015, p. 563-564). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 Embora Naves (2015) trate em seu texto das questões das ONGs, sua visão pode ser ampliada. A própria sociedade deve se dar conta de que a sua participação é necessária e que ela tem um papel fundamental na mudança e na estruturação de um mundo diferente e melhor. As pessoas devem se dar conta de que votar não é suficiente para se construir uma democracia. Além do voto, é necessário haver uma efetiva participação social – que pode se dar por meio de organizações de classe (sindicatos, organizações de bairro, de condomínios etc.). Não se deve, então, esperar que as mudanças ocorram de cima para baixo, isto é, que venham dos políticos (embora esses tenham um papel importante e devem cumpri-lo), mas esses só farão se a sociedade os pressionar. Figura 1 – A participação e o desenvolvimento social Cortina (2005) alerta para a necessidade de fazer com que as pessoas se sintam membros partícipes da sociedade e, somente na medida em que assim o fizerem, poderão criar uma identidade. Este tem sido um dos maiores problemas pelos quais as pessoas deixam de atuar, pois se vive uma realidade individualista que, segundo a autora, foi denominada por hedonista por Daniel Bell: “os indivíduos movidos unicamente pelo interesse de satisfazer todo tipo de desejos sensíveis no momento presente não sentem a menor afeição por sua comunidade e, em última instância, não estão dispostos a sacrificar seus interesses egoístas em nome da coisa pública” (CORTINA, 2005, p. 18). Em sociedades cada vez maiores, tornar os interesses uma realidade comum ou colocar o que cada indivíduo deseja em um nível de interesse social e coletivo não parece tarefa fácil. Pelo contrário, é um desafio difícil de ser colocado em prática. Tal constatação nos deve chamar a atenção para que aqueles que conheçam a realidade consigam transformá-la positivamente. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 2.1 Organizações do setor privado As pessoas e as empresas têm tomado consciência de que devem ser atuantes e que não podem mais estar à mercê de um Estado que não tem condições de dar contade todas as demandas da população. O Estado em parte nenhuma do mundo conseguiu suprir as necessidades apresentadas pela sociedade e nesse sentido foram surgindo organizações que visam dar atenção especial aos cidadãos. Incialmente, esse movimento foi muito forte dentro das igrejas de diversas denominações e posteriormente passou a ser uma ação social – na qual as pessoas passaram a dar-se conta da importância de sua participação para suprir essas demandas. Embora no Brasil as organizações não governamentais (ONGs) tenham um caráter privado, elas funcionam e agem com o acompanhamento do Estado. Existem, no país, diversos tipos de organizações, fundações e institutos que desempenham esse papel. Vejamos alguns exemplos importantes de organizações no Brasil: as santas casas de misericórdia, os asilos, os orfanatos e as escolas fazem um papel sem dúvida muito importante e, se não existissem, teríamos com certeza muito mais pessoas abandonadas e à mercê da própria sorte, pois não há uma política pública para todos. Organismos internacionais também fazem um papel importante, como, por exemplo, a Cruz Vermelha Internacional, os Médicos sem Fronteiras, o Greenpeace, entre tantos outros, que estão atentos às situações que ocorrem em todo o mundo e buscam socorrer as diversas realidades as quais surjam como necessidade. A sociedade não está desatenta às demandas sociais e temos visto também um elevado crescimento de pessoas que atuam ou desejam atuar como voluntários. São inúmeras as pessoas que dedicam parte de seu tempo para atuar em situações fundamentais para sua realidade. A educadora brasileira Maria da Glória Gohn, autora do livro Movimentos e lutas sociais na história do Brasil, classifica as ONGs em três grandes grupos: “caritativas” (atuam na assistência ao menos favorecidos, mulheres e idosos, por exemplo); “ambientalistas” (relacionadas às questões do meio ambiente e do patrimônio histórico); e “cidadãs” (voltadas para a reivindicação dos direitos da cidadania têm grande atuação junto às políticas públicas, fornecendo subsídios para a sua elaboração, fiscalizando-as ou fazendo denúncias, no caso de violações ou omissões) (NAVES, 2015, p. 553). A partir dos anos 1980, esses movimentos passaram a ser mais organizados, por conta da própria exigência de definirem seu papel social e dos conhecimentos que se tem em relação aos cuidados para tal. Ou seja, não se pode apenas “fazer as coisas por fazer”, ao contrário, é preciso haver uma metodologia de caráter científico para atender as realidades que se Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 14 apresentam a essas organizações. Por exemplo, não basta ter um idoso ou uma criança “albergados”, é preciso que além da acolhida se tenha atenção. Por isso, cresceu a necessidade de profissionalização do atendimento, por meio do trabalho de profissionais habilitados em atendimento ao idoso (geriatria e gerontologia) ou à criança (educadores e assistentes sociais), por exemplo. O mesmo ocorre em relação ao meio ambiente: estudos foram desenvolvidos para que a atenção às diversas realidades sociais pudesse ser mais efetiva. Surgem cuidados, exigências e preparação de pessoas para atuarem nessas diversas áreas de atenção. 2.1.1 As empresas cidadãs Conceitos como responsabilidade social, balanço social e empresa cidadã fazem com que as empresas mudem o foco de sua atuação. Um dos motores de uma empresa é o lucro, mas, mais do que isso, a empresa atualmente deve perceber-se como um conjunto de pessoas, que visam à produção de bens com o intuito de satisfazer as necessidades das pessoas que dela se aproximam com o intuito de buscar o que produz, seja em produtos ou serviços, e que esses devem ser da mais alta qualidade. O âmbito da atividade empresarial se amplia notavelmente, já que inclui não apenas bens de consumo, mas também outras necessidades, como a de emprego em uma sociedade organizada em torno do trabalho (CORTINA, 2005, p. 83). Além disso, as empresas atualmente se importam com tudo o que as cerca: “uma ‘empresa cidadã’ é a que, em sua atuação, assume essas responsabilidades como algo próprio e não negligencia o entorno ou ecológico, limitando-se a buscar o máximo benefício material possível” (CORTINA, 2005, p. 93). O resultado disso é que as empresas passam a ganhar legitimidade e reconhecimento da sociedade justamente pelo que fazem e pela forma como olham a realidade onde estão inseridas. A essa concepção se denomina cidadania econômica. Ela leva as organizações da sociedade a assumirem um papel que até a pouco tempo não era visto como uma tarefa das empresas. Essa nova compreensão tem despertado nas empresas uma consciência social que até então não se poderia imaginar. E tem levado muitas pessoas a entenderem um papel que é importante de ser desenvolvido e para tanto mobilizam colegas, direções e parceiros para aturem em conjunto. Considerações finais Nesta aula, compreendemos o quanto carecemos e o quanto precisamos de uma participação efetiva nas questões sociais. A sociedade só existe por causa de nossa participação – tanto de cada um em seu sentido bem particular, quanto em um sentido mais amplo, por meio da participação de todos. Cada um com seus interesses, com seus objetivos e com a finalidade a qual a sociedade é constituída. É por isso que as sociedades existem e se fazem historicamente. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 15 É necessário que cada setor social (Estado, organizações da sociedade civil e indivíduo) cumpra seu papel. Pensar sociedade é pensar nesse conjunto, é pensar em formas de inserção social em que cada um, de seu modo e com a finalidade a qual essa mesma associação foi constituída, realize sua tarefa. Isso não é fácil, mas parece que não há alternativa para que a sociedade venha a se compor, existir e realizar a sua finalidade. O importante, ao finalizar esta aula, é entendermos o que é ser cidadão, que a civilidade só se desenvolve e produz os resultados esperados se as realidades que a compõem atuarem em concordância, isto é, se pessoas e os organismos sociais agirem em conjunto. É da composição desses dois grupos que se produzirão os resultados esperados e que se cumprirão as finalidades e os motivos pelos quais se criam as organizações e as sociedades. Referência ARANHA, Maria Lúcia de Arruda; MARTINS, Maria Helena Pires. Temas de filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1998. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em: 12 dez. 2016. CORTINA, Adela. Cidadãos do mundo: por uma teoria da cidadania. São Paulo: Loyola, 2005. GIRON, Loraine Slomp (Org.). Refletindo a cidadania. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. GRAJEW, Oded. Trabalho social, remediar ou transformar. Folha de São Paulo, 20 de junho de 2002. GUARINELLO, Norberto Luiz. Cidades-estado na Antiguidade Clássica. IN: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). História da cidadania. 6. ed., 2ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2015. HOBBES, Thomas. De Cive: elementos filosóficos a respeito do cidadão. Petrópolis: Vozes, 1993. NAVES, Rubens. Novas possibilidades para o exercício da cidadania. IN: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs). História da cidadania. 6. ed., 2ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2015. OLIVEIRA, Paula Julieta Jorge de. A Cidadania é para todos. Direitos, deveres e solidariedade. OAB – 148ª Subseção de Santo Anastácio. Artigo. Disponível em: <http://www.oabsp.org. br/subs/santoanastacio/institucional/artigos/a-cidadania-e-para-todos.direitos-deveres-e>. Acesso em: 9 mar. 2016. PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (orgs). História da cidadania. 6. ed.,2ª reimpressão – São Paulo: Contexto, 2015. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 10 Democracia e Cidadania Objetivos Específicos • Compreender o processo de democratização do Brasil. Temas Introdução 1 Democracia e seus desafios 2 A construção da democracia no Brasil 3 Democracia, cidadania e direitos humanos Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução A democracia é um sistema social e político em constante reformulação e reinvenção, pois, assim como as pessoas e suas necessidades, a sua evolução é uma constante e, uma vez atingindo um determinado estágio, parte-se em busca de outro. O sistema democrático tem sua origem na Grécia, de onde também vem sua nomenclatura: demos = povo e kratos = poder. Por isso, a sua máxima é definida como o governo do povo e para o povo. Como construir um governo por pessoas e para as pessoas dentro de sociedades cada vez mais complexas e com anseios diversos? Nesse caso, o símbolo máximo da democracia é o voto, o qual pode acontecer de diversas maneiras. Nesta aula, abordaremos o processo democrático brasileiro, em especial, a redemocratização no Brasil. 1 Democracia e seus desafios Segundo Dimenstein, Strecker e Giansanti (2008, p. 225), a política, assim como é constituída nas formas de governo, é um conceito estudado e buscado pela filosofia. Como expresso na introdução, a democracia é uma das formas na qual os cidadãos têm a maior possibilidade de exercer o poder social de forma direta. E o símbolo desse poder é o voto que representa, conforme Canêdo (2015, p. 518): Um ato de cidadania, um direito e um poder, uma garantia livre de opinião política, símbolo da democracia. Ou, segundo as definições mais conceituais dos dicionários: ‘modo de manifestar a vontade ou opinião num ato eleitoral ou numa assembleia; sufrágio’; ‘ato ou processo de exercer o direito a essa manifestação, e seu resultado. A democracia é a forma de governo na qual a vontade da maioria impera. Nesse sentido, se difere de outras formas de governo, como a ditadura e a tirania, nas quais a vontade de um ou de apenas de um pequeno grupo se impõe sobre a vontade da maioria. O voto também possibilita alternância no poder. No sistema democrático, o governo instituído conforme desejo da maioria dura o tempo estabelecido na legislação e cada pessoa tem direito a um voto, o qual é contado somente uma vez – por isso, considera-se o governo de igualdade. Já que este poder não é eterno, é importante que as pessoas tenham consciência e se articulem para fazer/rever suas escolhas – quando erradas e quando a figura eleita não cumpre o prometido. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 Para saber um pouco mais sobre democracia, acesse a midiateca.. 1.1 Democracia direta e indireta Existem duas categorias de sistema democrático: o direto e o indireto. A democracia direta é mais fácil de existir em pequenos agrupamentos, com a possibilidade de que as decisões tomadas envolvam a todos. A forma como a democracia se estrutura tem suas origens nas cidades-estado gregas. Segundo Romano (2002, p. 52), “Platão, no livro das Leis [...] dizia que um Estado só pode existir, e persistir no tempo, se no seu interior reinar a amizade entre os cidadãos”. Os termos utilizados por Platão ao se referir às relações mantidas para que um Estado exista, não podem ser tomados ao pé da letra ou como entendemos hoje, já que, por exemplo, a palavra amizade no vocábulo grego tem várias conotações. Romano (2002) nos traz a ideia de que o amor do filho à sua pátria é muito importante (estratégico) no pensamento grego, pois é a base de sustentação das pessoas dentro de uma sociedade, fazendo com que ela se mantenha. Se as pessoas não se perceberem como parte da sociedade, dificilmente pensarão no bem comum. Além disso, Platão ressalta a relação de igualdade entre o bem coletivo e o bem individual. A ausência dessa relação direta faz com que uma república desapareça, levando a uma situação de violência e morte (ROMANO, 2002). Na Grécia, ela era direta, exercida por uma menor quantidade de pessoas e excludente (mulheres, escravos, estrangeiros e menores de idade não podiam votar), isto é, uma democracia altamente seletiva. “A cada dez dias, aproximadamente, havia reunião na ágora1, e o povo deliberava sobre as mais diversas questões” (DIMENSTEIN; STRECKER; GIANSANTI, 2008, p. 225). A constituição dos Estados modernos provocou uma mudança profunda no exercício da democracia. Atualmente, há uma grande alteração no modo de se exercer a democracia, pois ela passou de direta para representativa, isto é, representantes são eleitos para em nosso nome estabelecer as perspectivas políticas que essas pessoas ou seus partidos defendem e com as quais seus eleitores concordaram. Nesse sistema, também há uma maior universalização do voto, mais pessoas podem votar. 1 Nome dado às praças públicas na Grécia Antiga. Nessas praças, ocorriam reuniões em que os gregos – em especial os atenienses – se reuniam para discutir assuntos ligados à vida da cidade, isto é, a justiça, obras públicas, leis, cultura etc. Também podiam ter finalidades religiosas com eventos e cerimônias, assim como decidir situações econômicas, como negociações, acordos econômicos e comércio de mercadorias. Pode-se dizer que a vida da cidade circula por aí. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 Vale a pena ver o filme As Sufragistas (2015), dirigido por Sarah Gavron, que conta a história da luta das mulheres para participarem das eleições na Inglaterra. O filme tem início no ano de 1912, com os primeiros movimentos, e se encerra em 1928, quando esse direito passa a efetivar-se na Inglaterra e mostra historicamente como o direito a voto das mulheres foi se implantando no mundo. O processo democrático vai além da conotação política eleitoral e por isso devemos entendê-lo num contexto mais amplo. Democracia é a forma de participação do povo nas diversas instâncias sociais, não apenas nas eleições para escolha de representantes políticos. Participação política é geralmente usada para designar uma variada série de atividades: o ato de voto, a militância num partido político, a participação em manifestações, a contribuição para certa agremiação política, a discussão de acontecimentos políticos, a participação num comício ou em reunião de seção, o apoio a um determinado candidato no decorrer da campanha eleitoral, a pressão exercida sobre um dirigente político a difusão da informação políticas [...] (BOBBIO, 1997, p. 888). Democracia é fundamentalmente participação, isto é, são as pessoas assumindo seu papel na sociedade e sendo protagonistas de sua história. Entretanto, essa participação não é perfeita, porque as pessoas também não são perfeitas. Sempre há o risco de nos acostumarmos com uma situação e, com isso, surgirem manipulações – como com a utilização dos meios de comunicação para transformar o que é de todos na vontade de alguns, o que seria tirania, o inverso da democracia. A democracia expressa pelo voto fez com que se perdesse um pouco o princípio democrático da aclamação, retificação e nomeação, mas, nisso, não há demérito algum. O que vale é a escolha das pessoas e a expressão de suas vontades. Há grandes experiências de democracia direta circulando pelo mundo e que tentam de certo modo descortinar e reverter a experiência do mundo grego e que visam integrar as pessoas para que elas interajam na vida social. Uma dessas formas é o orçamento participativo, no qual as pessoas podem, poruma escolha direta, direcionar parte dos recursos arrecadados para obras que consideram fundamentais. 1.2 Universalização do voto Segundo Canêdo (2015), para evitar que o poder de escolha fosse somente de alguns, se adotou uma forma universalizada na expressão “cada pessoa um voto”. Porém, cabe lembrar Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 que, em muitos locais, até mesmo no Brasil, em alguns períodos, só votavam pessoas com uma renda mínima estabelecida, do sexo masculino, e assim por diante. A universalização do voto até hoje ainda é uma dificuldade em muitos lugares do mundo. Como exemplo, podemos citar a Arábia Saudita que somente permitiu o voto feminino em dezembro de 2015. Figura 1 – Votar e votar eis a aclamação O ato de votar se apresenta de muitos modos, depende do local e da circunstância onde é praticado; ele pode ser por aclamação, voto eletrônico, por cédulas etc. Cada sociedade estrutura-se para que esse exercício se efetive. A prática do voto é a mesma em todas as formas, isto é, escolha direta ou por meio de representação, e tem sido em muitos casos a única forma de participação política dos cidadãos. O orçamento participativo, como dito anteriormente, se expandiu por muitos lugares como uma forma de as pessoas escolherem o que desejam que seus governantes façam, não só com base nos programas de governo apresentados previamente em uma campanha eleitoral, mas durante o período de governo, variável, em geral, de quatro a cinco anos. “O significado que hoje damos à democracia – soberania do povo – deveria nos fazer refletir mais profundamente sobre o que se tornou possível, e determinar os modos de construção dessa instituição” (CANÊDO, 2015 p. 519). O sufrágio universal (voto estendido a todos os cidadãos) foi uma conquista lenta das democracias contemporâneas. [...] O voto para os negros nos Estados Unidos foi conquistado apenas em 1965. O voto para mulheres no Brasil foi conquistado em 1934, e na África do Sul em 1994 (DIMENSTEIN; STRECKER; GIANSANTI, 2008, p. 225- 226). A democracia tornou-se tão importante que passou a ser um valor social e político fundamental, a ponto de poucas pessoas defenderem formas diferentes de governo que não as democráticas. No Brasil, ainda há pessoas que defendam o retorno da ditadura, mas são poucas, felizmente. E mesmo que ela viesse a ser instalada, seria muito difícil de sobreviver. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 Governos não democráticos sofrem cada vez mais resistência por parte da população. Por exemplo, a Primavera Árabe, que se iniciou em 2010, a reação contra o governo da Venezuela, em especial, após a morte de seu líder, Hugo Chaves, a luta em Cuba por uma abertura maior, de maior participação e acesso a espaços sociais de liberdade. Em todos esses casos, os países têm se pautado por formas cada vez maiores de liberdade, característica básica dos governos democráticos. 2 A construção da democracia no Brasil A democracia no Brasil tem suas peculiaridades. Por isso, buscamos a compreensão de quem somos, em primeiro lugar, como povo. Quem é esse povo chamado brasileiro? Que país é esse que chamamos de Brasil? Por nossas características culturais e de formação étnica, temos, nesse sentido, fatores históricos e sociais bem diferentes do que qualquer outro país no mundo. Um pensamento que se venha a ter em relação ao Brasil, nos faz afirmar sentimentos e esses se dão sempre com base nas experiências que passamos, tanto no sentido individual como coletivo. É a partir desses sentimentos que com o auxílio dos avanços de elaborados a partir de uma reflexão que se poderá enfrenta-los e avançar coletivamente. O importante é termos claros que uma indignação, uma reflexão que seja apenas individual, não nos levará a avanços significativos. Esses avanços ocorrerão quando pudermos ter um poder de mobilização, de influência, de indignação coletiva. Quando isso brotar, quando isso vier a ocorrer, teremos condições de construirmos uma sociedade democrática ou se quisermos reafirmar verdadeiramente democrática. A história brasileira é rica de ensinamentos, pois desde o período colonial a população dos municípios se habituou a eleger os representantes de suas Câmaras, e antes mesmo da Independência, em 1821, participou das primeiras eleições gerais para a escolha de seus representantes na Corte de Lisboa (CANÊDO, 2015, p. 519). A história da democracia no Brasil tem “altos e baixos”, a participação tinha sua importância, mas não era universal, por isso, pode-se dizer que hoje há democracia no Brasil, mas nem sempre foi assim. Até mesmo nos períodos de ditadura, utilizou-se do nome de democracia para manipular a vontade das pessoas e dar um cunho democrático ao que na realidade não existia. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 Por exemplo, no período Vargas, bastava não acontecer o que era de sua vontade que um novo partido era criado por ele: UDN = União Democrática Nacional, PTB = Partido Trabalhista Brasileiro etc. Tudo com a intenção de fazer com que suas propostas fossem aprovadas (embora se deva a esse período também a instituição da CLT = Consolidação das Leis do Trabalho, do salário mínimo, entre outros). O mesmo ocorria no período da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) quando, para se atribuir que o sistema era democrático, foram criados dois partidos: um de situação, o ARENA – Aliança de Renovação Nacional –, e outro de oposição, o MDB – Movimento Democrático Brasileiro, esse último criado e incentivado para que algumas pessoas aderissem a ele para se “plantar” a ideia de que havia democracia no Brasil. “No Brasil, prefeitos, governadores e presidentes da República (poder executivo) são eleitos pelo povo, bem como vereadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores (poder legislativo)” (DIMENSTEIN; STRECKER; GIANSANTI, 2008, p. 225). A cada dois anos, eleições livres e diretas eram realizadas para a escolha desses representantes da sociedade. Exceção feita no período da Ditadura Militar, em que Estados, capitais, cidades de fronteira, os mandatários do executivo eram indicados pelo poder central e geralmente eram escolhidas pessoas alinhadas com a ideologia do poder. A realidade do Brasil, atualmente, se expressa por ser democrática. Temos uma imprensa livre, a possibilidade das pessoas se manifestarem, o direito à escolha dos representantes das esferas legislativa e executiva, uma série de valores os quais podemos louvar como de grande valor para a vida em sociedade. Mas nem sempre foi assim, como mencionado anteriormente, entre os anos de 1964 e 1985 estabeleceu-se sobre o Brasil um governo forte, de caráter autoritário, comandado pelas forças armadas. Durante esse período, os direitos de manifestação e organização eram restritos. Os meios de comunicação como jornal, rádio e televisão eram controlados e, para divulgar determinadas notícias, tinham de passar por censura. Havia censura social, nas universidades, nos centros de convívio, nos bares etc., pois esses lugares eram tidos como perigosos para o poder instituído. Muitas universidades foram invadidas, quartéis eram construídos ao lado delas, pessoas eram plantadas nas salas de aula para ouvir o que os professores e alunos pensavam e difundiam. Muitos professores, em especial das universidades públicas, foram cassados (banidos de sua atividade de ensino) e exilados (tiveram de se refugiar em outros países). Levando em conta as características básicas de um regime democrático, que é a escolha livre dos governantes e a clara divisãoentre os poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário, pode-se afirmar que o Brasil, em especial, após se tornar república (em 15 de novembro de 1889), viveu somente dois períodos classificados como realmente democráticos: 1945-1947 e a partir de 1988 até hoje. E, segundo Dimenstein, Rodrigues e Giansanti (2008), é interessante observar também que esses períodos democráticos surgiram depois de ditaduras, períodos em que a participação popular não existia, pois governos ditatoriais não permitem que as pessoas se manifestem livremente. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 Não são as eleições que garantem uma democracia. Tanto os processos eleitorais como o voto são importantes e necessários para que as pessoas possam manifestar-se, mas não são sinônimos de democracia, apenas a simbolizam. Por exemplo, no período de 1964-1985, havia eleições para o legislativo em todas as esferas (municipal, estadual e federal) e para o executivo municipal (com exceções de cidades de fronteira) e nem por isso se pode dizer que se vivia uma democracia. Outro fator importante que garante uma democracia são as leis; no Brasil, a lei maior é a Constituição. Três anos após o fim da ditadura militar, em 1988, o Brasil estabeleceu a sua Constituição e ela está em vigor até hoje, com uma série de alterações, mas ainda vigente. Seu lançamento foi recebido com grande euforia pela população da época. Durante o regime militar, vários Atos Institucionais - AI2 foram colocados em prática para justificar a ação realizada pelo presidente-ditador e sobre esses atos institucionais é que muitas perseguições foram feitas e muitas liberdades suspensas. Quem viveu esse período sabe bem como eram as possibilidades de vida e ascensão social. Claro que muitos, ainda influenciados pela propaganda difundida pelo regime, ainda acham que houve grande desenvolvimento e grandes benesses sociais. Mas tudo isso com um alto custo social. Segundo Dimenstein, Rodrigues e Giansanti (2008, p. 228): Graças aos direitos estabelecidos pela Constituição de 1988, conquistados com a participação de milhões de pessoas, hoje é possível para qualquer cidadão falar o que pensa, reunir-se com outras pessoas que tem opiniões semelhantes, manifestar- se e exigir o atendimento de suas reivindicações. Milhões de pessoas atuam em movimentos ecológicos, sindicatos, entidades estudantis, partidos políticos, associações profissionais, grupos de pressão e fiscalização dos órgãos públicos e dos parlamentares. Várias causas fazem pessoas participarem de alguma forma, das lutas por mudanças em relação a problemas de segurança pública, saúde, educação, transporte, habitação, carga tributária, reforma agrária. Apesar de todas essas perspectivas que se abriram na sociedade brasileira, nem todos os nossos problemas foram resolvidos. A democracia política é uma das formas de se constituir um governo, mas ainda existem outras que precisam ser resgatadas, como a democracia econômica, com a maior participação das pessoas nos lucros auferidos socialmente, tanto pelos governos, como pelas empresas. Ainda temos, em relação a muitos países, salários mais baixos para a realização das mesmas atividades. Democracia social de respeito a 2 Atos Institucionais (AI) são “normas elaboradas no período de 1964 a 1969, durante o regime militar. Foram editadas pelos Comandantes- em-Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica ou pelo Presidente da República, com o respaldo do Conselho de Segurança Nacional. Esses atos não estão mais em vigor” (BRASIL, 2016). Foram elaborados 17 ao todo, durante a ditadura militar no Brasil. Sendo o que mais se notabilizou foi o AI 5. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 crianças e idosos, respeito religioso, étnico, racial e de gênero. Muitos aspectos importantes e fundamentais ainda precisam ser buscados pela sociedade brasileira. Os avanços democráticos proporcionados neste século na sociedade brasileira são grandes, como a maior universalização da educação e moradia, o combate à corrupção, entre outros. No entanto, a democracia é um regime que deve se reinventar sempre, nunca está pronto. Uma vez atingindo um estágio, precisa partir para outro e assim sucessivamente, quando não, dependendo do governo instituído, pode haver retrocessos. Não são as divergências em relação às questões políticas que devem nos fazer pensar que a democracia não é boa. A divergência é uma forma de crescer e se desenvolver. Os partidos políticos formam concepções ideológicas importantes para que se realize a adesão ou a participação em um ou outro grupo partidário. Infelizmente, vivemos um momento histórico conturbado no âmbito político – muito pelo conhecimento em relação à corrupção –, mas devemos ter clareza que isso só foi possibilitado porque se vive em uma democracia. Se estivéssemos em uma ditadura, na qual os amigos dos ditadores e aqueles que recebem as benesses desse regime convivem, nada saberíamos do que é praticado em nosso governo. É necessário compreender que a democracia não é um regime pronto, fechado e que tudo o que se faz ou se deve fazer esteja estabelecido. É um regime constituído pela liberdade das pessoas e, como tal, passível de que essas cometam deslizes. Por mais que se queira ou se deseje afirmar qualquer coisa contra a democracia, devemos reafirmar que é melhor viver em regimes democráticos do que de outra forma, só neles se tem garantida as liberdades de expressão, de ir e vir, de busca de melhorias sociais. Precisamos aprender a participar, seja numa reunião de colégio, faculdade, condomínio, de associação de bairro, seja em que momento da vida social for. Normalmente, as pessoas se isentam da participação ou até mesmo participam porque é obrigatório e com isso deixam exercer seu direito. Isentar-se também é uma escolha e, como tal, as decisões que tomamos são fruto da participação ou não participação de cada um de nós nas atividades que nos são proporcionadas. Ao participar ativamente, podemos fazer escolhas certas e erradas. O bom da democracia é a possibilidade de corrigir um ato praticado erroneamente em outro momento de reunião ou numa próxima votação. No Brasil, a participação democrática ainda tem sido pautada pela obrigatoriedade. Isso é fruto de um período no qual as pessoas “deviam” participar do voto para caracterizar a Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 10 democracia. Ainda temos muito a aprender sobre democracia no Brasil, mas, como já dito, nada disso invalida essa forma de viver e conviver em sociedade. Temos uma realidade democrática de apenas 30 anos. Pode parecer muito, mas para a sociedade ainda é pouco. É nos erros e acertos que se constitui uma sociedade. A canção “Pra não dizer que não falei das flores”, que representava o que não era uma realidade democrática no Brasil, foi composta e interpretada por Geraldo Vandré, ficou em segundo lugar no Festival Internacional da Canção de 1968 e se tornou, muito tempo depois, um símbolo da resistência contra o regime ditatorial brasileiro: Quadro 1 – Pra não dizer que não falei das flores Caminhando e cantando E seguindo a canção Somos todos iguais Braços dados ou não Nas escolas, nas ruas Campos, construções Caminhando e cantando E seguindo a canção Vem, vamos embora Que esperar não é saber Quem sabe faz a hora Não espera acontecer Pelos campos há fome Em grandes plantações Pelas ruas marchando Indecisos cordões Ainda fazem da flor Seu mais forte refrão E acreditam nas flores Vencendo o canhão Há soldados armados Amados ou não Quase todos perdidos De armas na mão Nosquartéis lhes ensinam Uma antiga lição De morrer pela pátria E viver sem razão Nas escolas, nas ruas Campos, construções Somos todos soldados Armados ou não Caminhando e cantando E seguindo a canção Somos todos iguais Braços dados ou não Os amores na mente As flores no chão A certeza na frente A história na mão Caminhando e cantando E seguindo a canção Aprendendo e ensinando Uma nova lição de Geraldo Vandré, 1968. Essa música foi sintomática para o momento no qual vivia o Brasil e serviu de tomada de consciência para muitas pessoas, que passaram a perceber sua realidade. Ou seja, de “soldados armados”, o “ensinamento de antigas lições”, pelas “ruas a fome em grandes plantações”, nas ruas marchando indecisos cordões, mas em especial chama a atenção para que as pessoas tenham a história na mão. Isso é altamente democrático. Devemos lembrar que, em 1964, foi instalada a ditadura militar no país, e essa música aparece pouco depois, quando se viviam os piores momentos do arrocho sobre a população. Perseguições, imposição de silêncio, controle sobre a sociedade e em especial grande medo das pessoas pelo que se divulgava; pouco se sabe sobre o que realmente ocorria. Vivemos outro período de nossa história. A luta de muitas pessoas pela democracia fez com que conseguíssemos fazer uma passagem gradual da ditadura para a democracia. Não se pode dizer que ela exista em sua plenitude, pois ainda precisamos avançar em consciência de participação, de não obrigatoriedade de voto, melhorar padrões de distribuição econômica e da educação etc. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 Ser democrático não é apenas votar, embora esse seja um símbolo desse sistema, ele é mais amplo do que isso. Caminhamos, com certeza, no sentido de uma melhoria das condições sociais, mas precisamos ainda fazer mais. Não basta apenas melhorar em alguns aspectos, precisamos decidir que caminho tomar, que rumos dar ao país e, para tal, precisamos de maior grau de verdade e honestidade. É preciso transparência dos governos com relação à arrecadação e de como o dinheiro é gasto, além dos resultados produzidos para a população e para o país. Não podemos mais ser marionetes de jogos de interesses partidários e os partidos devem exercer com eficiência seu papel de defender suas posições ideológicas. Por isso, há muito a se fazer, e só depende da participação das pessoas. Se deixarmos que os outros façam por nós, isso não ocorrerá, pois, embora sempre tenhamos uma grande possibilidade de exercer a democracia visando a um bem coletivo e social, também temos uma visão individualista. Precisamos desenvolver a concepção de que os nossos interesses também devem ser interesses de todos. Ser democrático é um exercício sem fim. Caminhamos para isso, mas precisamos fazer mais e participar mais. Esse é o grande desafio do momento, a sociedade, na medida em que participa, exige de seus representantes que o façam, o que pode não ser totalmente consensual. Vejamos um exemplo claro de democracia e não consensual. Não é um exemplo brasileiro, mas um exemplo de democracia, de debate, que o Brasil já passou e passa, em relação ao estatuto do desarmamento, Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003. Com o título de “Vendas de armas”, o jornal Zero Hora (2016) escreveu: O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, anunciou um pacote de medidas que não passará pelo congresso. Entre elas, a checagem mais rigorosa dos antecedentes de quem compra armas e a exigência de licenças de todos que as vendem. Durante o anúncio, Obama chorou ao lembrar o massacre que deixou 28 mortos numa escola do Estado de Connecticut em 2012, sendo 20 crianças. Tanto nos Estados Unidos, quanto aqui, o tema é controverso. Há pessoas que apoiam e que discordam dessas medidas, mas isso representa a democracia. Só um debate aberto e propositivo levará a sociedade a um posicionamento e a uma tomada de decisão. O que ocorrerá não se sabe. Mas, se observar pela própria reportagem, já se tem um parecer: a medida “não passará no congresso”. Essas são as belezas e os desafios da democracia, só a participação, o aprofundamento do debate e o próprio debate possibilitarão uma tomada de decisão que não é eterna, serve para o momento e para a situação atual. Posteriormente, entenderemos se acertada ou não e, em caso negativo, há sempre a possibilidade de mudança e reafirmação. 3 Democracia, cidadania e direitos humanos Ao pensarmos sobre democracia, cidadania e direitos humanos, devemos, em primeiro lugar, ter claro que são temas interligados e inseparáveis. Não há democracia sem cidadania, Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 do mesmo modo que não há democracia e cidadania sem direitos humanos, ou seja, um exige a presença do outro. Para que a democracia exista, é necessário que o Estado a institua e isso sempre é feito por meio da Constituição, e se efetiva na prática pela participação das pessoas, a cidadania. Tomemos como exemplo a Constituição brasileira de 1988: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel do Estado e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos: I- a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – O pluralismo político (artigo 1º) (BRASIL, 1988). Nesse primeiro artigo da Constituição, temos claramente a direção de toda legislação brasileira e dos sinais da democracia; primeiro, porque já está expresso: somos um Estado democrático de Direito. Um Estado verdadeiramente cidadão é um Estado democrático e para constituir-se deve sê-lo sobre a concordância de seus cidadãos e pautado por leis que partam da vontade da população. O que significa que as ações tomadas devem ser regidas pela própria legislação. Não se faz de modo baderneiro, desorganizado ou à revelia da lei. A lei é um parâmetro para o que se vier a executar. Com isso, poderíamos perguntar: mas se a lei rege, existe liberdade? Sim, ser livre não se é fazer o que bem quiser e entender, até mesmo porque isso não existe – sempre fazemos e agimos dentro do que é estabelecido pela sociedade e por aquilo que as pessoas aceitam como razoável. Esse artigo, primeiramente, é complementado pelo Art. 4 ao expressar como o Brasil vai reger suas relações internacionais, em especial no inciso II, que afirma os direitos humanos como uma forma de se estabelecer as relações; o mesmo serve em relação ao inciso VI que afirma a defesa pela paz, repúdio ao terrorismo e ao racismo no artigo VIII. É nesse sentido que afirmamos a importância de uma legislação para a defesa dos direitos das pessoas como uma garantida de que sejam respeitados. Partindo desse pressuposto, cabe ao Estado e de certo modo a todas as pessoas, a serem os controladores das ações que podem se tornar violentas atingindo a todos. Também, se torna importante para um Estado que ele por meio de sua constituição e de suas leis, julgar as atitudes praticadas pelas pessoas. E, por fim, cabe também cobrar taxas, impostos e obrigações econômicas aos cidadãos. Aqui, já temos um bom debate a ser feito sobre as maneiras (corretas) de ver o Estado, mas o quanto a sociedade realmente tem tido de acesso a tudo isso que é o plano ideal e papel do Estado? É para isso que ele se estrutura e para isso que recolhe parte da renda social, para redistribuir em benefícios aos cidadãos. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 Talvez devêssemos recuperar esse conceito de Platão, citado no primeiro itemdessa aula, para nosso contexto, pois temos visto em muito do que ele diz que, em não havendo uma relação profícua (amizade) na sociedade, desaparecem seus fundamentos. Para que um povo persista, ou pereça devorado pelo ódio coletivo, é preciso conhecer a alma de sua cidade, a polis ou res publica. O que faz com que um povo repita seus gestos, reproduzindo-se como violento ou ainda não civilizado, durante um período curto ou longo de tempo? O que o torna distinto de outros? [...] a alma de um povo surge nas suas realizações, nos costumes, nas artes e ciências, nas religiosidades, na cultura. Ou seja, apenas na vida social e nas formas políticas podemos captar esse ser fugidio (ROMANO, 2002, p. 53). Defender os direitos humanos é defender a igualdade entre as pessoas. Essa igualdade é uma característica das democracias modernas, pois foi a partir delas que se passou a admitir que uma democracia se fundamente e se justifique quando os direitos subjetivos estão garantidos. Mas sem dúvida é no século XX que aprendemos realmente a instaurar democracias cidadãs, pautadas em direitos humanos. Isso se efetiva quando há uma participação para todos, forma só possível dentro de um sistema democrático, mas como também vimos isso foi se estabelecendo de modo gradual e, a partir do século passado, se intensificando. Isso quer dizer que toda pessoa que vive sob uma forma de governo democrático deve ser participante desse governo. Ninguém pode ser excluído e nem mesmo alguns serem privilegiados em detrimento de outros. Assim, pode-se dizer que há uma: Necessária participação de todos no governo democrático, portanto, da ideia de que a lei a qual estou de acordo ou pude recusar será, por direito, aplicada a mim. Esse fundamento, diferentemente de uma concepção de legitimidade que coloca no centro a paz e a prestação de assistência, é o consentimento das pessoas afetadas pela decisão, isto é, dos que fazem parte do povo (KAUFMANN, 2013, p. 79). As vantagens do sistema democrático podem ser destacadas em muitos aspectos – podemos, por exemplo, citar a defesa de seus cidadãos. Na democracia, a ação dos governos tem controle, pois se estabelece um equilíbrio de poder, constituído por: Legislativo, Executivo e Judiciário. O mesmo deve-se afirmar em relação às garantias que as pessoas têm em viver dentro de um regime democrático. As pessoas têm garantidos os seus espaços sociais e particulares, sem serem molestadas por mecanismos de imposição do Estado (como nas ditaduras), assim como têm o direito à privacidade. Nas sociedades democráticas é que se podem estabelecer os direitos no campo econômico, pois é possível realizar discussões e ter o exercício de possibilidades de atividades que o Estado venha a fazer para os cidadãos e em seu nome. A vantagem de exercermos política desse modo, além de ser uma garantia de cidadania, ajuda a contar com a participação das pessoas como uma forma de garantir os direitos humanos, pois são as pessoas que estabelecem as formas de viver e conviver socialmente, tanto em nível econômico como político. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 14 Aqui, cabe lembrar o que diz o primeiro parágrafo do preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948: “Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ONU, 1948, p. 2). Para estabelecer essa declaração e elencar seus 30 artigos, a ONU (Organização das Nações Unidas) considerou uma série de aspectos. A relação entre democracia e direitos humanos também está fortemente indicada na Declaração e Programa de Ação de Viena de 1993: A democracia, o desenvolvimento e o respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades fundamentais são interdependentes e reforçam-se mutuamente. A democracia assenta no desejo livremente expresso dos povos em determinar os seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e a sua participação plena em todos os aspectos das suas vidas. Neste contexto, a promoção e a proteção dos Direitos Humanos e das liberdades fundamentais, a nível nacional e internacional, devem ser universais e conduzidas sem restrições adicionais. A comunidade internacional deverá apoiar o reforço e a promoção da democracia, do desenvolvimento e do respeito pelos Direitos Humanos e pelas liberdades fundamentais no mundo inteiro (ONU, 1993, p. 4). Logo, falar em democracia, cidadania e direitos humanos nos coloca diante de uma série imensa de possibilidades e desafios, que são frutos e resultados de umas das melhores formas, se não a melhor forma, de a sociedade se organizar. Considerações finais A democracia é uma das mais desafiadoras criações humanas. Em especial no Brasil, temos muito a fazer e aprender em nosso desafio democrático e de convívio social. Considerando o tempo de República, é possível comparar o quão pouco tempo temos vivido sobre as regras democráticas. A beleza e o bom de tudo isso é que nada recebemos pronto e podemos observar como as experiências históricas são fundamentais para o que se vive hoje e o que se planeja em termos de futuro e de país. O Brasil vive um momento histórico único, em que as liberdades estão em seu pleno auge. Isso é possibilitado pela forma como a democracia está se solidificando e tem sido fortalecida no país. Podemos participar, nos manifestar, expressar nossa satisfação ou insatisfação em relação ao que está ocorrendo e isso é democracia. Além disso, devemos avançar em muitos aspectos e se houver a efetiva participação social, com certeza, vamos progredir. Se retrocessos surgirem, não devemos nos deixar abater, pois na democracia temos a certeza de que avanços e recuos podem ser corrigidos, diferentemente do que ocorre em regimes autoritários, em que essas possibilidades não existem. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 15 Referências BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. 9. ed. Brasília: Editora da UNB, 1997. BRASIL. Atos institucionais. Portal da Legislação. Disponível em: <http://www4.planalto.gov.br/ legislacao/portal-legis/legislacao-historica/atos-institucionais>. Acesso em: 10 jan. 2016. CANÊDO, Letícia Bicalho. Aprendendo a votar. In: PINSKY, Jaime; PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). História da cidadania. 6. ed., São Paulo: Contexto, 2015. DIMENSTEIN, Gilberto; RODRIGUES, Marta M. Assumpção; GIANSANTI, Álvaro Cesar. Dez lições de sociologia. São Paulo: FTD, 2008. DIMENSTEIN, Gilberto; STRECKER, Heidi; GIANSANTI, Álvaro Cesar. Dez lições de filosofia para um Brasil cidadão. São Paulo: FTD, 2008. JORNAL ZERO HORA. Obama anuncia medidas de controle de armas. Disponível em: <http:// zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2016/01/obama-anuncia-amanha-medidas-de-controle- de-armas-4944450.html>. Acesso em: 10 jan. 2016. KAUFMANN, Mattias. Em defesa dos Direitos Humanos: Considerações históricas e de princípios. São Leopoldo: Unisinos, 2013. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.dudh.org.br/ wp-content/uploads/2014/12/dudh.pdf>. Acesso em: 15 nov. 2015. ______. Conferência de Direitos Humanos – Viena – 1993. DHNET. Disponível em: <http:// www.dhnet.org.br/direitos/anthist/viena/viena.html>. Acesso em: 24 fev.2016. ROMANO, Roberto. Ética e Brasil 500 anos – história, ideias e fatos. In: COIMBRA, José de Ávila Aguiar. Fronteiras da ética. São Paulo: Senac, 2002. Ética, Cidadania e Sustentabilidade Aula 11 Cidadania na vida pública e privada Objetivos Específicos • Problematizar questões de liberdade e democracia. Temas Introdução1 Ética, cidadania e seus contextos de aplicação 2 Ação política, ativismo político, democracia e competência democrática Considerações finais Referências José Antônio Fracalossi Meister Professor Autor Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 2 Introdução A proposta desta aula não será conceituar o que ética e cidadania significam, e sim como elas acontecem e nos apresentam dificuldades e benefícios. Esses conceitos provocam reações, entendimentos e, de modo muito especial, tornam a vida em sociedade mais dinâmica, levando, inclusive, as pessoas, a partir do seu entendimento, a buscar fazer com que elas sejam colocadas em pratica e provoquem mudanças nas relações sociais. Os conceitos devem ter sua validade nas práticas efetivas. As pessoas, por sua vez, precisam perceber tais práticas na medida em que sentem o bem-estar pessoal e social, e podem notar que, ao participarem, podem fazer a sociedade melhor, como um espaço no qual todos possam conviver democraticamente. A existência da democracia depende da ética. Quando ambas são efetivas, encontramos a cidadania. Se, por um lado, isso é um desafio, por outro, temos muitos exemplos de situações na sociedade que nos gratificam com a participação, com momentos de realização humana e da vida em sociedade. Muitas atitudes excludentes (como preconceito de raça ou sexo) já não são mais aceitas. Outros aspectos, porém, ainda precisam ser mais incentivados e reafirmados – como as experiências democráticas (na área política, nas empresas, nas organizações em geral) e a solidariedade (tanto individual como coletiva – em situações do dia a dia, como ao ajudar alguém, lutar por justiça, a fim de que não falte comida, moradia e trabalho etc.). Esses exemplos e os que veremos no decorrer desta aula tornam-se um convite para que se viva essas três dimensões: ética, democracia e cidadania. 1 Ética, cidadania e seus contextos de aplicação Quando pensamos ou buscamos expressar a cidadania, devemos ter presente que ela é resultante de um aprendizado. Aprendemos a ser cidadãos. Ao nascermos, a legislação nos garante cidadania, pois é papel da lei garantir a todos “um lugar” o qual possamos identificar como nosso (pátria e lar, com garantias sociais etc.). Para que a cidadania possa existir, primeiro ela vem garantida legalmente e, depois, efetiva-se com a participação social de cada um e do conjunto da sociedade. A civilidade não nasce nem se desenvolve, se não produz uma sintonia entre os atores sociais que entram em jogo, entre a sociedade correspondente e cada um de seus membros. Por isso a sociedade deve gerar em cada um o sentimento de pertencimento a ela, de que essa sociedade se preocupa com ele e, em consequência, a convicção de que vale a pena trabalhar para mantê-la e melhorá-la (CORTINA, 2005, p. 29). O conceito de cidadania e esse modo de ser socialmente engajado tornou-se um padrão para as pessoas. Mais do que isso, deve-se pensar em uma sociedade globalizada e não somente na cidadania nacional, como diz Cortina (2005), cosmopolita, isto é, que vai além do contexto de nosso país, pensando em problemas e em situações maiores do que os que estão próximos a nós. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 3 Não se pode mais pensar de modo restritivo. Por exemplo, um problema ambiental em determinado lugar pode atingir um amplo espectro, não delimitado por barreiras territoriais. Da mesma forma, acontece quando uma crise econômica ou política atinge um país ou região. Várias situações nos fazem entender que o mundo, nesse sentido, não tem “fronteiras” e que devemos aprender a conviver e a ver os problemas de uns como sendo de todos. Outro ponto a considerar sobre a cidadania é que se por um lado, ela é uma aquisição que se faz pelo pertencimento social, por outro, também é resultante de um aprendizado que se adquire desde a educação formal (escolar) até a educação informal (família, amigos, meios de comunicação, ambiente social). Com isso, deve-se ter presente que se aprende a ser ético, democrático, assim como aprende-se a ser cidadão. Segundo Cortina (2005, p. 27- 28): “cidadania é um conceito mediador porque integra exigências de justiça e, ao mesmo tempo, faz referências aos que são membros, une a racionalidade da justiça com o calor do sentimento de pertença”. 1.1 Ética e cidadania da vida privada Vivemos em uma sociedade na qual somos desafiados constantemente a nos adaptar ou a alterar nossa realidade, pois, ao nascer, recebemos um contexto pronto, que não fora escolhido por nós, mas desenhado por terceiros. A cada dia, temos que aprender a conviver, a lutar por nossa sobrevivência, a estudar, a trabalhar, a nos relacionar etc. Ao embarcar em um ônibus, metrô ou trem, por exemplo, temos sempre que dividir nossos espaços com outros. E, sobre isso, Cortina (2005, p. 29) afirma: A sociedade civil [...] apresenta-se hoje como a melhor escola de civilidade, a partir do que se denominou ‘o argumento da sociedade civil’. [...] É nos grupos da sociedade civil, gerados livremente e espontaneamente, que as pessoas aprendem a participar e a se interessar pelas questões públicas, já que o âmbito político na verdade está vetado. A sociedade civil será, portanto, sob essa perspectiva, a autêntica escola de cidadania. É na sociedade civil que as pessoas acabam interessando-se pelas questões públicas, pois é a partir da real participação, que a autora afirma ser espontânea, que as pessoas passam a aprender e a exercer seu papel de cidadãs. Politicamente, o desenvolvimento do papel da cidadania fica mais difícil, pois em geral está fechado/vetado para a maioria das pessoas. É em sociedade que se vive a liberdade. Esta até pode ser suprida quando, por exemplo, as pessoas não têm emprego e o pão de cada dia falta. Não se resolve o problema da cidadania se as pessoas não estiverem incluídas socialmente e com possibilidades reais de atuarem, Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 4 atuação essa que, como diz Cortina (2005), se efetiva quando espontânea, pois, “[...] em última instância, cada indivíduo que precisa estar convencido de que essas leis são as que ele daria a si mesmo, mesmo que as tenha aprendido em seu contexto social” (CORTINA, 2005, p. 15). A partir daí, passa-se a ter uma compreensão ética da cidadania, não uma ética que parte do universal para o particular, mas do particular para o geral. Não é uma lei impositiva, mas um entendimento de que somos parte de um todo e que, como tal, é necessário estender a todos os benefícios que se deseja para cada um. A grande vantagem de conseguir aprender a viver desse modo é que o aprendizado se dá no processo de socialização e de validade para as leis a serem estabelecidas, para que sejam compreendidas por todos e socialmente. Esse desafio nos leva a entender a cidadania em seu sentido mais amplo possível, não só no sentido político, mas também na compreensão econômica e civil, ou seja, em uma compreensão mais holística/completa da cidadania. O mais instigante em todos esses aspectos é o entendimento de que as pessoas precisam sentir-se membros da comunidade; só aí são despertadas para a sua valorização e para a importância da sua atuação dentro dessa sociedade. 1.2 Ética e cidadania das instituições de ensino Este item pode ser pensado de dois modos. Um deles seria como as instituições de ensino estabelecem suas relações com seus diferentes públicos: funcionários, professores, alunos, pais, Estado etc. e como elas se estabelecem e reconhecem dentro da perspectiva social. O segundo modo, não menos importante e que parece que sedesperta para uma questão-fim, é o papel formador da instituição de ensino. Vamos nos prender mais a esse segundo aspecto, que parece ser uma questão de fundamental importância para as instituições de ensino na formação intelectual e moral do cidadão. Assim, pode-se estar em consonância com o que expressa a nossa Constituição Federal de 1988, em seu Artigo 205: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988). É a partir da formação intelectual e moral que se tem a grande possibilidade de formação de cidadãos. Nesse sentido, pode-se afirmar que a instituição escolar tem um papel central na formação das pessoas. A família, a mídia, o mundo do trabalho não são mais os mesmos de alguns anos atrás. Em geral, dão-se conotações positivas a essas transformações. Afinal de contas, passou-se a viver em um mundo mais flexível, mais democrático. O mesmo pode ser dito com relação aos padrões de um comportamento de sexualidade, de consumo, Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 5 educação dos filhos, de relação entre as pessoas. Entretanto, não se pode negar que essas mesmas transformações ocasionaram rachaduras nos modos de funcionamento dessas instituições clássicas, e por consequência tem-se a crise familiar, a crise das relações de trabalho, a crise educacional e até mesmo da democracia (PEREIRA, 2008, p. 27). A dinâmica das relações e das instituições leva a sociedade, em determinados momentos, a ver alguns padrões diferenciados em seus modos de ser e de viver. Por exemplo, dentro da perspectiva educacional, temos professores e famílias diante de situações as quais eles não sabem como resolver, situações que não são lineares e, como tal, exigem respostas, posicionamentos e ações que não estão prontos. A vivência da cidadania precisa ser construída e elaborada, por isso, não é sem razão que muito se tem afirmado que a escola vive um período fora de sua época, isto é, ela pratica ensinamentos para os quais os alunos não conseguem encontrar serventia. Por um lado, ela tem um papel (inserção no mundo intelectual) e dele não pode prescindir. E, para esse fim, ela recorre ao passado para que as pessoas possam saber o que já foi feito e pensado e, a partir daí, buscar a inovação. Quando nos defrontamos com o papel inovador é que estão os grandes problemas educacionais e sociais. A ética na educação visa formar as pessoas com o intuito de constituir seres que se entendam como membros da sociedade e que, como tal, assumam responsabilidades que são próprias de cada um e de todos. Cabe à ética orientar as pessoas para que os conhecimentos adquiridos estabeleçam relações entre competências para atuarem socialmente. E isso deve resultar em uma possibilidade de convívio social responsável. Citemos um exemplo brasileiro nesse sentido: É preciso reconhecer que alguns esforços concretos vêm sendo formalizados com intuito de inserir a discussão ética no contexto educacional. São exemplos os temas transversais dos PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) que se referem a um conjunto de temáticas sociais, presentes na vida cotidiana, que deverão ser tangenciadas pelas áreas curriculares específicas, impregnando dessa forma transversalmente os conteúdos em cada disciplina (PEREIRA; SILVA, 2008, p. 29). Os Parâmetros Curriculares Nacionais trouxeram para a sala de aula uma situação que fez com que todos os cursos de graduação, inclusive tecnólogos, levassem até seus alunos essa temática ética e cidadã, como uma tarefa a ser pensada. Nossa aula é um exemplo disso. Estamos refletindo sobre ética, cidadania e democracia porque isso foi estabelecido como uma das competências que cabe à instituição escolar trazer para os três níveis de ensino (fundamental, médio e superior). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 6 A temática deve ser discutida e proposta no currículo dos alunos e é isso que se está fazendo: a reflexão sobre a realidade ética e seus desdobramentos sociais, como a cidadania e a democracia. Não podemos também nos furtar de perguntar se as instituições estão cumprindo esse papel de refletir e levar seus educandos a um engajamento. O que se constata é que estão se esforçando para isso e que, dentro de um mundo de temas que devem ser pautados nas escolas, muitas vezes, alguns são negligenciados. Para alguns alunos, talvez essa seja uma oportunidade única de refletir de forma sistemática sobre isso; para outros, é apenas mais um estágio, pois continuarão seus estudos em níveis cada vez mais elevados. Nem uma nem outra situação é garantia de que as pessoas sairão dos bancos escolares éticas e cidadãs, porque esse é um papel de formação constante e a escola é apenas mais uma formadora. E, hoje, mais do que em outros tempos, talvez os meios de comunicação tenham formado mais em alguns aspectos do que a escola, na medida em que o conteúdo e as temáticas estão facilmente acessíveis por esses meios. Entre os vários aspectos com os quais a educação se defronta, o acesso à informação tem sido um desafio constante, tanto para as instituições como para os educadores. As informações circulam muito rapidamente e têm levado desafios cada vez maiores para a sala de aula. Assim, aqui, nos deparamos com duas realidades. Nas escolas particulares, essa tecnologia está mais disponível e acessível; já nas escolas públicas, geralmente, ela está equidistante e, muitas vezes, não é muito acessível para os alunos e professores. Com isso, criam-se dois mundos na educação: os incluídos e os excluídos do mundo tecnológico- globalizado, o que é preocupante. É fundamental não realizar pré-julgamentos, pois eles causam danos aos indivíduos, à sociedade e às instituições. Vamos observar, a seguir, um exemplo concreto, com dados oficiais, sobre a inclusão e o acolhimento de crianças com deficiência nas escolas. A inclusão cresce a cada ano e, com ela, o desafio de garantir uma educação de qualidade para todos. Na escola inclusiva, os alunos aprendem a conviver com a diferença e se tornam cidadãos solidários. Para que isso se torne realidade em cada sala de aula, a participação do professor é essencial [...]. O número de estudantes com algum tipo de necessidade especial cresce a cada ano na rede regular de ensino. Em 1998, havia apenas 43,9 mil matriculados nas redes pública e privada. Em 2003, eram 144,1 mil e, no ano passado, chegaram a 184,7 mil — um crescimento anual recorde de 28,1%. Os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) não deixam dúvidas de que o movimento de inclusão no Brasil é irreversível (CAVALCANTE, 2005). Outro exemplo que se pode citar como uma questão altamente ética, cidadã e democrática é a luta por mais vagas em creches públicas. De acordo com as leis brasileiras, toda criança tem sua vaga garantida nas creches públicas. [...] ‘ninguém na creche estava me fazendo um favor’ [...]. Na verdade, os governantes são obrigados a assegurar vagas para todas as crianças na escola. É para isso que pagamos impostos. Quando as autoridades se recusam a cumprir suas Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 7 obrigações, devemos recorrer à Justiça para garantir nossos direitos! (RÉGENER, 2014). Desses dois exemplos desprende-se, em especial, que os direitos desde o nosso nascimento existem para que possamos assumi-los como nossos. Eles devem também ser asseguradospelo Estado, pois esse é seu papel e essa é sua função. Para isso, são pagos impostos, ou seja, cada um entra com sua contrapartida: o cidadão paga seus impostos em todas as operações de compra que realiza e o Estado fornece aquilo que é garantia dos cidadãos, conforme a legislação. São vias de duas mãos; as duas estão sob a guarda e a vigilância da lei. Se cada um cumprisse seu papel, não haveria necessidade de famílias terem que recorrer à justiça, por exemplo, para garantir aquilo que lhes é devido. O papel coercitivo da lei é uma forma de garantir que os direitos que deveriam ser tácitos sejam cumpridos. Vivemos em uma sociedade em que as leis passam a ser necessárias como uma forma de garantia e de obrigação para que os direitos sejam executados e efetivados. Por isso, cabe a cada um de nós fazer com que esses direitos valham. E, se isso não ocorrer de modo “natural”, os próprios mecanismos que a sociedade criou precisam ser ativados. Toda vez que se toma uma realidade de forma parcial, é possível cometer injustiças e praticar ações que ferem a ética e a cidadania. É importante perceber o quanto uma ação pode ser perigosa e causar prejuízo quando não se faz, por exemplo, um levantamento cuidadoso dos fatos. A educação, nesse sentido, pode nos ajudar a obter métodos de conhecimento e de levantamento importantes para evitar erros. Aprendemos socialmente a estabelecer maneiras e a formular princípios éticos para que sejamos cada vez mais cautelosos e façamos de nossa ação algo fundamental para que o convívio social seja efetivamente pautado pela ética. Poder-se-ia perguntar: isso existe? Sim, em muitas situações, e não, em outras. O que devemos aprender é que somos eternos errantes em busca de verdades e que estas sejam as mais corretas possíveis. Os meios de comunicação ou a mídia assumem determinados fatos e os tornam manchete. Alguns desses fatos têm recursos que podem chocar a pessoas e levá-las a agir de um determinado modo que, posteriormente, deveria ser repensado. Mas, uma vez lançado ao ar determinado fato, é muito difícil resgatá-lo, até mesmo porque um levantamento ou inquérito leva tempo para ser concluído, e as pessoas poderão já ter cometido atos equivocados em relação ao assunto em questão. Essa posição é reforçada por Srour (2013, p. 17): Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 8 Embora seja um valioso instrumento de vigilância democrática, a mídia tem um enorme potencial para causar prejuízos à imagem das empresas e das pessoas quando ignora o princípio da presunção de inocência e quando propaga investigações policiais e administrativas que se deveriam pautar pelo sigilo e pela discrição. Quando se reafirma a participação social, a cidadania, o papel da democracia e da ética, o que se visa é chamar a atenção para fatos que são de nosso dia a dia e que estão muito presentes na realidade. Viver uma realidade democrática é ter a possibilidade de erro, exceto quando cometido por atos de imprudência, por julgamentos apressados e que levam as pessoas a agir de modo precipitado e sem fundamento. 1.3 Ética e cidadania da vida política Para Ribeiro (2002), a ética política tem relação com a ética da responsabilidade, pois leva em conta as consequências previsíveis de seus atos. É a ética que leva a pessoa a entender que responde pelos resultados do que fez, tendo presente sempre uma questão futura; pensar nos efeitos e nos resultados que serão de produzidos. Os problemas de governo relacionam- se mais com a ética da responsabilidade. A política prioriza uma ética da responsabilidade e está em vista ao que os governantes do executivo e parlamentares pensam. A Constituição Federal de 1988 tem, em si, um cunho ético, especialmente quando vem ao encontro dessa defesa de uma sociedade que visa seu bem-estar, que visa melhorias sociais, e isso aparece de forma muito clara e expressa no Art. 3º, que afirma: Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (BRASIL, 1988). Assim, poder-se-ia questionar: haveria forma mais ética de ser um cidadão do Brasil ou de qualquer outro país do que a partir do que está expresso, por exemplo, no artigo citado da Constituição? Mesmo que não fosse apenas de nossa constituição, mas da constituição de qualquer país do mundo? As leis brasileiras, em muitos casos, estão muito próximas de um alto grau de acerto. O problema não está na lei, mas na sua execução. Esse é, sem dúvida, o principal problema ético de nossa sociedade hoje. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 9 Ribeiro (2002) ainda chama a atenção para um fato importante que, felizmente, foi aprovado e está em execução no Brasil, que é a lei da responsabilidade fiscal (Lei complementar nº 101, de 4 de maio de 2000). Um pouco antes dessa lei, surgiu a lei de responsabilidade ambiental (Lei nº 9605, de 12 de fevereiro de 1998). Ambas são, sem dúvida, leis que trouxeram grandes avanços no tocante à responsabilidade, pois estabelecem limites de gastos e tarefas do poder executivo em relação ao que deve realizar. No entanto, falta uma grande lei e que deveria ser pensada com muita urgência e presteza, que é a lei de responsabilidade social, que “[...] medisse a ação dos governantes no tocante a uma cesta de indicadores sociais” (RIBEIRO, 2002, p. 139). O que os governos têm buscado fazer é estabelecer um equilíbrio orçamentário, mas, como diz Ribeiro (2002, p. 139): “[...] equilibrar as contas é meio, promover a justiça é fim. Os fins são mais importantes que os meios. Infelizmente, não tem sido esse o caso”. Nesse sentido, deve-se seguir para que a sociedade se conscientize a respeito da responsabilidade social. A vivência da cidadania na vida política ou pública exige, de cada um de seus partícipes, cada vez mais transparência e correção das ações. Vivemos um momento ímpar no mundo, possibilitado pela comunicação e divulgação de dados pela internet. É importante, portanto, perceber que muitas das ações sociais realizadas são consequências dos direitos humanos e trouxeram grandes avanços e importantes inovações no tocante ao papel dos governantes, pois passaram a estabelecer que: “os fins de seus atos devem estar direcionados a um aumento da qualidade de vida, que não se esgota na linguagem dos direitos humanos, mas têm nela, ao menos, sua condição necessária (ainda que não suficiente)” (RIBEIRO, 2002, p. 140). Mesmo dentro de um regime democrático, o foco de atuação dos governantes pode ser estabelecido, segundo Ribeiro (2002), em duas vertentes: a liberal e a de solidariedade, que não podem limitar-se aos direitos humanos. Se fosse liberal, buscar-se-ia uma forma de maior liberdade de iniciativa e consumo, fechando-se para políticas de distribuição de renda e redução da desigualdade, que é uma busca constante da solidariedade. O rumo da política será dado por escolhas que se faz, por meio de eleições, as quais irão estabelecer as políticas a serem praticadas pelos governantes. Mas, mais do que isso, toda e qualquer ação política deve sempre ter, como metas, a redução da miséria e a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, e é para isso que os governantes devem estabelecer os devidos caminhos e as políticas que visem esses rumos. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade10 Toda forma de governo deve estar atenta à redução da pobreza e da miséria, ou seja, pensar em formas de inclusão social, visando atender sempre aos socialmente marginalizados. Para isso, cabe à política, em suas formas, estabelecer suas ações em vista a uma cidadania efetiva e uma realidade ética. Assim, deve-se considerar ainda o que Ribeiro (2002, p. 142) enfatiza, ao afirmar que: “o século XX foi marcado por forte investimento no avanço administrativo, basicamente por meio de procedimentos que, há um tempo, aumentassem a eficiência do Estado e garantissem a justiça de sua atuação”. Segundo Ribeiro (2002), pensar ética na política é ir além do que é bom e correto ou até mesmo além da honestidade, pois isso não é suficiente. É preciso que se faça mais e realize-se a efetiva cidadania, isto é, que as pessoas sejam de fato membras da sociedade e entendam quais são as metas necessárias para que os governantes ajam com o mais alto grau de correção possível. É a partir dessa efetiva participação social que se pode dizer que uma sociedade é participativa ou cidadã e que age eticamente. E, mais ainda, não adianta a sociedade dizer que os políticos são corruptos; eles só o são porque a sociedade os aceita ou tolera. E, uma vez os tolerando, os elege e reelege; com isso, continuam fazendo e reafirmando políticas que deixam a desejar e não são aceitas. Mas, por outro lado, a sociedade também não age para impedir essas ações da classe política; assim, o ciclo se repete. Figura 1 – A eleição como troca de favores Oselka (2002), citando Volnei Garrafa, que deve ser realizada uma política altamente importante em localidades em que haja realmente uma cidadania crescente. Essa cidadania crescente pode ser denominada como cidadania da igualdade. Ou seja: Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 11 A igualdade é consequência desejada da equidade, sendo esta o ponto de partida para aquela. Ou seja, é somente através do reconhecimento das diferenças e das necessidades dos sujeitos sociais que se pode alcançar a igualdade. A igualdade não é mais um ponto de partida ideológico que tendia a anular as diferenças. A igualdade é o ponto de chegada da justiça social, referencial dos direitos humanos e onde o próximo passo é o reconhecimento da cidadania (GARRAFA apud OSELKA, 2002, p. 171). A cidadania não tem preço, mas tem um valor inimaginável. Não se vende e não se empresta nem que seja para obter qualquer benefício individual ou até mesmo que venha a favorecer um momento oportunista ou um princípio de ganho egoísta. O importante é entender que ser cidadão é um direito e isso não pode ser desfeito, nem mesmo pode-se abrir mão dele em vista de qualquer benesse. Sabemos que vivendo em uma sociedade altamente capitalista, que visa o lucro e o ganho, a solidariedade só pode existir quando de modo gratuito, sem exigências ou trocas. Viver de modo cidadão é viver sem “vender” sua consciência ou sua maneira de agir em vista de um bem coletivo e que visa a inserção cada maior de pessoas. 2 Ação política, ativismo político, democracia e competência democrática No Brasil, a participação cidadã em sentido político sempre foi muito restritiva. Somente após a implantação da democracia efetiva, após 1985, a participação política pôde realmente firmar-se e abrir espaços para a população manifestar-se e demonstrar se gosta ou não do que acontece ao seu redor. Devemos, assim, entender que a cidadania política, estatal é: O espaço público é o setor da administração dos rendimentos e dos gastos do Estado que satisfaz as necessidades e aspirações públicas, e se situa além do espaço doméstico e da economia de mercado. Sua promoção assegura uma certa economia comum, que incide em uma distribuição mais justa da riqueza (CORTINA, 2005, p. 19). A questão que desafia o pensamento é buscar um ponto de contato no qual as leis e os valores possam ser humanizadores a partir do que as pessoas admitem como próprio para si e para os outros. A união da vida política/democrática com a cidadania é uma forma de fazer com que ambas se efetivem. Não se pode encontrar formas de estabelecer a democracia sem que haja espaço para a participação e vice-versa. Segundo Ribeiro (2002), as democracias modernas, além do aspecto ético, têm outro parâmetro importante a ser destacado, que, nesse sentido, se tornou altamente positivo e inovador: os direitos humanos. Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 12 Os direitos humanos, a grande conquista moderna, procede de ideia de que o governo está a serviço dos cidadãos, e não o contrário. Cada indivíduo, antes mesmo de fazer parte do poder político, já detém direitos que são seus, pelo simples ato de nascer. É esse vínculo do direito ao nascimento que permite dizer que eles são direitos naturais. Já o Estado é um instrumento para realizar fins comuns às pessoas (RIBEIRO, 2002, p. 134). É importante entender esse modo de conceber a realidade e a própria sociedade. O grande desafio que se tem é justamente buscar fatores de igualdade entre desiguais. Por exemplo, uma pessoa que vive no Japão atinge uma média de idade em torno de 80 anos; já em países como Serra da Leoa ou Burkina Fasso, a média de idade é metade da de um japonês. Esses são exemplos de países pouco relevantes para o contexto mundial e, neles, está um alto grau de pessoas excluídas e que não contam como importantes para o sistema capitalista mundial. O que vamos entender, então, por ativismo político? Trata-se de uma doutrina que nos leva a uma prática ou ação com o intuito de transformação da realidade e que pode efetivar-se em várias possibilidades, como a civil, na busca de cumprimento do direito de atendimento à saúde para todos, garantido pela constituição, por exemplo; a social, com melhorias no transporte público; a econômica, com uma greve ou uma negociação de dissídio; a política, na busca de ética na política. Claro que nenhuma dessas corre sozinha; em determinados momentos, todas essas dimensões podem estar juntas; em outros, só uma ou outra. Por isso é que, em muitos casos, os ativistas são vistos como as pessoas que fazem manifestações, protestos, atrapalham o andamento da cidade – pensemos, por exemplo, nas passeatas, paralisações e marchas. Por isso, muitas vezes, os ativistas políticos são encarados como militantes (= pessoas que seguem determinada ideologia). O ativismo político, além dos exemplos citados, pode ser uma rebelião feita por presos ou por trabalhadores diante de uma situação injusta. Pode ser dentro da legalidade ou da ilegalidade, como na invasão de um terreno ou de propriedades para fazer uma ocupação. O que é essencial ao ativismo não é simplesmente haver mais do que uma pessoa, como em um cinema, mas um sentido de solidariedade em busca da transgressão. Deve haver um sentido de identidade compartilhada, que pode ser entendido nesta etapa como pessoas reconhecendo, umas nas outras, a raiva, o medo, a esperança ou outras emoções que sintam quanto a uma transgressão (JORDAN, 2002, p. 11-12). Senac São Paulo - Todos os Direitos Reservados Ética, Cidadania e Sustentabilidade 13 Tem-se privilegiado o uso do termo ativista para não se utilizar revolucionário e radical, pois essas palavras sofreram desgaste em seu significado no decorrer da história. O ativista é uma pessoa que busca revolucionar determinada ordem porque não concorda com ela ou a considera injusta. São também exemplos que trouxeram grande mudança: A Primavera Árabe, movimento que ocorreu no Oriente Médio e no norte da África, em que a população foi às ruas para buscar melhorias de condições de vida e derrubar