Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Comênio, o pai da didática moderna O filósofo tcheco combateu o sistema medieval, defendeu o ensino de "tudo para todos" e foi o primeiro teórico a respeitar a inteligência e os sentimentos da criança. Comênio Quando se fala de uma escola em que as crianças são respeitadas como seres humanos dotados de inteligência, aptidões, sentimentos e limites, logo pensamos em concepções modernas de ensino. Também acreditamos que o direito de todas as pessoas - absolutamente todas - à educação é um princípio que só surgiu há algumas dezenas de anos. De fato, essas ideias se consagraram apenas no século 20, e assim mesmo não em todos os lugares do mundo. Mas elas já eram defendidas em pleno século 17 por Comênio (1592-1670), o pensador tcheco que é considerado o primeiro grande nome da moderna história da educação. A obra mais importante de Comênio, Didactica Magna, marca o início da sistematização da pedagogia e da didática no Ocidente. A obra, à qual o autor se dedicou ao longo de sua vida, tinha grande ambição. "Comênio chama sua didática de ‘magna’ porque ele não queria uma obra restrita, localizada", diz João Luiz Gasparin, professor do Departamento de Teoria e Prática da Educação da Universidade Estadual de Maringá. "Ela tinha de ser grande, como o mundo que estava sendo descoberto naquele momento, com a expansão do comércio e das navegações." No livro, o pensador realiza uma racionalização de todas as ações educativas, indo da teoria didática até as questões do cotidiano da sala de aula. A prática escolar, para ele, deveria imitar os processos da natureza. Nas relações entre professor e aluno, seriam consideradas as possibilidades e os interesses da criança. O professor passaria a ser visto como um profissional, não um missionário, e seria bem remunerado por isso. E a organização do tempo e do currículo levaria em conta os limites do corpo e a necessidade, tanto dos alunos quanto dos professores, de ter outras atividades. Comênio era cristão protestante e pertencia ao grupo religioso Irmãos Boêmios, ao qual se manteve vinculado por toda a vida, tornando-se, em 1648, bispo. Embora profundamente religioso, o pensador propôs uma ruptura radical com o modelo de escola até então praticado pela Igreja Católica, aquele voltado apenas para a elite e dedicado primordialmente aos estudos abstratos. Ainda vigoravam as doutrinas escolásticas da Idade Média, pelas quais todas as questões teóricas se subordinavam à teologia cristã. Comênio não foi o único pensador de seu tempo a combater o pedantismo literário e o sadismo pedagógico, mas ousou ser o principal teórico de um modelo de escola que deveria ensinar "tudo a todos", aí incluídos os portadores de deficiência mental e as meninas, na época alijados/excluídos da educação. "Ele defendia o acesso irrestrito à escrita, à leitura e ao cálculo, para que todos pudessem ler a Bíblia e comerciar", diz Gasparin. Comênio respondia assim a duas urgências de seu tempo: o aparecimento da burguesia mercantil nas cidades europeias e o direito, reivindicado pelos protestantes, à livre interpretação dos textos religiosos, proibida pela Igreja Católica. A obra de Comênio corresponde também a outras novidades, entre elas "o despertar de uma nova concepção de criança", como diz Gasparin. "Ele a trata em seus livros com muita delicadeza, num tempo em que a escola existia sob a égide (amparada) da palmatória", continua o professor. "A educação era vista e praticada como um castigo e não oferecia elementos para que depois as pessoas se situassem de forma mais ampla na sociedade. Comênio reagiu a esse quadro com uma pergunta: por que não se aprende brincando?" Salvação da alma Sob influência de seitas protestantes e do filósofo inglês Francis Bacon (1561-1626), Comênio acreditava que a salvação da alma poderia ser alcançada durante a vida terrena e que o caminho para isso poderia ter a ajuda da ciência. Para ele, a criatura humana correspondia ao ideal de perfeição. Comênio acreditava que, por ser dotado de razão, o homem pode entender a si e a todas as coisas. Portanto, deve se dedicar a aprender e a ensinar. Seguindo esse pensamento, Comênio conclui que o mais importante na vida não é a contemplação e sim a ação, o "fazer". No pensamento humanista do pedagogo tcheco, a instrução e o trabalho diferenciavam o homem burguês do homem feudal. Em sua trajetória, o novo indivíduo deveria imitar a natureza, porque, emulando (seguindo/imitando) Deus e respeitando as aptidões de cada um, não haveria possibilidade de erro. De Bacon, Comênio adotou o método empírico (Método empírico é um método feito através de tentativas e erros, é caracterizado pelo senso comum, e cada um compreende à sua maneira. O método empírico gera aprendizado, uma vez que aprendemos fatos através das experiências vividas e presenciadas, para obter conclusões) de explorar o mundo, em contraposição às verdades impostas pelo ensino medieval. Pela experimentação, ele acreditava que todos poderiam vir a enxergar a harmonia do universo sob o caos aparente. "Comênio queria mudar a escola com a didática e a sociedade com a educação", diz Gasparin. "Era um grande idealista." Biografia O nome Comênio é o aportuguesamento da assinatura latina (Comenius) de Jan Amos Komensky, nascido em 1592 na Morávia (então domínio dos Habsburgos, hoje República Tcheca). O pensador Comênio foi filho único de um casal de membros do grupo protestante Irmãos Boêmios. Na Universidade de Heidelberg (Alemanha), se entusiasmou com as ideias de filósofos que criavam uma concepção de ciência baseada no empirismo. Seguiu carreira religiosa e teve de fugir para a Polônia quando, no início da Guerra dos 30 Anos, em 1618, o rei Ferdinando II decidiu reimpor o catolicismo na Boêmia. Sua revolta com a situação o levou a escrever obras filosóficas e pedagógicas satirizando a ordem vigente e propondo mudanças radicais. Essas ideias seduziram pensadores da Inglaterra, que o convidaram a trabalhar no país, mas o projeto foi abortado pela eclosão da Guerra Civil Inglesa, em 1642. Tentativas de reforma escolar a pedido dos governos da Suécia e da Hungria acabaram fracassando - em parte por causa da insistência do pensador em divulgar sua "pansofia" (João Comenius tinha como conceito básico de sua pedagogia Pansofia. Pan significa tudo e sofia, sabedoria. Pansofia refere-se à intenção humana de saber tudo que existe para saber no universo), sem sucesso - e ele voltou para a Polônia. Comênio teve novamente de fugir de uma guerra civil e estabeleceu-se em Amsterdã, onde permaneceu até morrer, em 1670. Por essa época, seus livros de texto ilustrados para o aprendizado de línguas e ciências tinham se tornado bem-sucedidos, novidade nas escolas da Europa. Em busca da harmonia universal Comênio viveu a maior parte da vida cercado de guerras. Algumas delas, como a Guerra dos 30 Anos, envolvendo protestantes e católicos, lhe diziam respeito diretamente. Toda sua obra foi marcada profundamente por isso, uma vez que o fim último de seu pensamento era a compreensão universal, que uniria toda a humanidade. Ele perseguiu desde a juventude a unificação da totalidade do conhecimento humano, porque imaginava que o conhecimento era finito e imutável. A construção de uma enciclopédia do saber e sua adaptação às capacidades infantis são o grande tema da pedagogia de Comênio, e para sustentá-la ele criou uma base filosófica que denominou "pansofia", a procura de um princípio básico que harmonizasse todo o saber. Ao contrário de seu pensamento educacional, que suscitou interesse pela Europa afora, a pansofia não teve seguidores. A maior contribuição de Comênio para a educação dos dias de hoje é, segundo o professor Gasparin, a ideia de "trazer a realidade social para a sala de aula, fazendo uso dos meios tecnológicos mais avançadosà disposição". De tão fascinado pela invenção da imprensa (alemão Johannes Gutenberg, no século XV, provocou uma enorme revolução na modernidade: o processo de aceleração da produção de livros. Após a invenção da imprensa, imprimir e compor livros deixaram de ser práticas manuais e artesanais e tornaram-se uma produção em série mecanizada) e pela possibilidade de disseminação de conhecimento que ela representava, Comênio criou a expressão "didacografia" para designar o método universal de ensino que ele pretendia inaugurar. https://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental- arquivo/o-pai-da-didatica O pai da didática por João Luiz Gasparin — publicado 30/07/2010 15h54, última modificação 30/07/2010 16h28 Comênio, pensador tcheco do século XVII, defendeu o ensino de “tudo para todos” e fundamentou um método para ensinar e aprender “Didática significa arte de ensinar.” Este é o grande e solene anúncio de Comênio na saudação que faz aos leitores em Didáctica Magna, um tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Como um pensador atento a seu tempo, reúne nesta obra sua proposta metodológica que as escolas deveriam seguir no processo de ensino e de aprendizagem. Trata-se de uma expressão e uma resposta aos desafios sociais e educacionais do século XVII, em que se vivia a passagem da Idade Média para a Idade Moderna. Tudo estava em processo de mudança. Surgiam gradativamente uma nova forma de trabalho, a ciência, a filosofia, a literatura e a educação; realizavam-se grandes viagens; novas terras eram descobertas; tudo se universalizava. Tornava-se necessário que todas essas conquistas sociais e científicas passassem a ser parte do conhecimento escolar. Isso somente poderia acontecer se houvesse um processo pedagógico-didático que fosse do mesmo tamanho dos novos inventos universais humanos. https://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental-arquivo/o-pai-da-didatica https://www.cartacapital.com.br/educacao/carta-fundamental-arquivo/o-pai-da-didatica Comênio preocupou-se em apresentar os fundamentos sobre os quais se pudesse edificar um método de ensinar e de aprender com tal segurança que seria impossível não obter bons resultados. Esse método devia ter um fundamento tão sólido que conduzisse, com certeza e sem erro, ao progresso intelectual. As fontes principais desse método eram duas: a natureza e a tipografia,, conjunto de procedimentos artísticos e técnicos que abrangem as diversas etapas da produção gráfica (desde a criação dos caracteres até a impressão e acabamento) A natureza como modelo de ensino Em Didáctica Magna, Comênio faz um paralelo entre as coisas naturais e as coisas artificiais para apresentar sua nova arte de ensinar e aprender. Ele sugere: “servindo-nos do exemplo de uma ave que faz sair dos ovos os seus filhos; e, observando como os jardineiros, os pintores e os arquitetos seguem felizmente os vestígios da natureza, facilmente veremos como é que eles devem também ser imitados pelos formadores da juventude”. O primeiro fundamento sobre o qual Comênio assenta seu novo modo de ensinar é o da natureza perfeita. Os que seguirem os passos da natureza produzirão obras igualmente perfeitas. O modelo adotado é a ave. Como exemplo dos que seguem o proceder da ave ou da natureza encontram-se os artesãos: carpinteiros, jardineiros, pintores etc. Ao eleger a natureza como modelo de sua didática, Comênio expressava seu tempo e a ele respondia pedagogicamente. Neste período, a ciência da natureza apresentava um grande desenvolvimento. O homem começava a passar do teocentrismo para o antropocentrismo, colocando o ser humano como centro do universo. Ao conhecer a natureza, o homem podia mais facilmente dominá-la, por isso se tornava senhor dela. A concepção de natureza que está subjacente na obra de Comênio não é a natureza em si mesma, mas o conhecimento científico que o homem adquiriu sobre ela. Portanto, se os artesãos imitavam a natureza é porque haviam observado e descoberto como ela agia. Por isso, podiam imitar-lhe os passos em suas novas obras artificiais. Assim, ao tratar dos requisitos gerais para ensinar e aprender, Comênio apresenta quatro passos: 1º. Mostra o fundamento, segundo o qual a natureza nada faz fora de seu tempo. Para exemplificar, toma a ave como modelo. Ela, para multiplicar sua raça, começa a trabalhar na primavera, quando o sol dá vida e vigor a todos os seres. 2º. Aponta que o procedimento da natureza é imitado pelos artesãos, como o jardineiro que aguarda a hora certa para o plantio das flores. 3º. Explicita o desrespeito à natureza por aqueles que não seguem seus passos. Contrariando a natureza e os artesãos, que a imitam em suas obras, existe a aberração da natureza: os professores. Esses não seguem o modelo da ave, por isso os resultados de seu trabalho são, em sua maioria, desastrosos para a aprendizagem. Entre as muitas aberrações apontadas, apresentamos algumas: os professores não aproveitam o momento favorável para exercitar as inteligências; não organizam sequencialmente os exercícios; não se preocupam em preparar antecipadamente todos os objetos de que necessitam para o ensino; querem meter na cabeça dos alunos muitas coisas ao mesmo tempo; exigem que os alunos decorem as lições sem tê-las compreendido; obrigam as crianças a aprender pela força; constrangem as inteligências quando obrigam as crianças a fazer coisas superiores à sua idade ou à sua capacidade. 4º. Apresenta a correção para cada uma das aberrações assinaladas, mostrando como os professores devem imitar os artesãos, que, por sua vez, imitam a natureza que é perfeita. É uma tríplice correção: que a formação deve iniciar-se na primavera da vida, isto é, na puerícia (período desde que nasce até a puberdade, ou seja, a infância); as horas da manhã são mais propícias para os estudos; tudo deve dispor-se segundo a idade, para que as crianças aprendam apenas aquilo que são capazes de entender. A tipografia como modelo de ensino Se, num primeiro momento, Comênio elege a natureza, numa segunda fase o centro de processo escolar passa a ser a imprensa. Assim se expressa: “Desejamos que o método de ensinar atinja tal perfeição que, entre a forma habitualmente usada até hoje e a nossa nova forma, apareça claramente a diferença que vemos entre a arte de multiplicar os livros, copiando-os à pena, como era uso antigamente, e a arte da imprensa, que depois foi descoberta e agora é usada”. Como a arte tipográfica é mais adequada para escrever livros com rapidez, precisão e elegância, assim também o novo método servirá para ensinar a um maior número de alunos com maior proveito e prazer. Comênio mostra todas as vantagens que a imprensa tem sobre a arte dos copistas, a tal ponto que deseja até mudar o nome da didática para didacografia. O pensador compara a arte da tipografia, quanto aos materiais que utiliza e os trabalhos que são necessários para operar o novo invento, com o novo método didático. Assim, na tipografia os materiais são: papel, tipos, tinta, prelo; os trabalhos: preparação do papel, composição, paginação, colocar tinta nos tipos, a tiragem das folhas etc. Os procedimentos da tipografia e da nova didática são os mesmos: “Na didacografia, as coisas se passam precisamente da mesma maneira. O papel são os alunos, em cujos espíritos devem ser impressos os caracteres das ciências. Os tipos são os livros didáticos e todos os outros instrumentos propositadamente preparados para que, com a sua ajuda, as coisas a aprender se imprimam nas mentes com pouca fadiga. A tinta é a viva-voz do professor que transfere o significado das coisas, dos livros para as mentes dos alunos. O prelo é a disciplina escolar que a todos dispõe e impele para se embeberem dos ensinamentos”. Comênio, na sequência da citação acima, analisa, comparativa e detalhadamente, cada um dos procedimentos do tipógrafo e do professor, evidenciando sua nova arte e desejandoque ela se instaure quanto antes em todas as escolas. O professor já não necessita imitar os artesãos, mas os tipógrafos, que não imitam diretamente a natureza natural, mas a natureza artificial. Tanto no modelo da natureza quanto da tipografia, Comênio faz uma leitura cuidadosa e perspicaz de seu tempo. Percebeu que o bom professor não se faz em sala de aula com os métodos tradicionais de ensino. O bom professor é aquele que vive o seu tempo histórico-social, o registra e o leva para a sala de aula dando-lhe uma forma didática adequada para que os alunos aprendam de forma sistematizada o conteúdo e o constituam como parte de resposta aos problemas postos pela sociedade. O modelo de professor que Comênio nos apresenta é o de um clássico, ou seja, de alguém que lê o seu tempo, o registra numa determinada perspectiva pessoal e social e o comunica à sociedade. Comênio é um clássico da educação e da didática. Foi um revolucionário educacional do século XVII. Por isso imortalizou-se com suas obras. Elas expressam seu tempo e a ele respondem pedagogicamente. Os clássicos devem ser lidos e entendidos dentro de seu momento histórico. A eles é necessário retornar, mesmo que vivamos imersos na imensidão de obras de grandes pensadores atuais. Os clássicos nos ensinam a ler o mundo e a registrar de maneira original sua apreensão. Eles não resolvem nossos problemas, mas nos ensinam a captar e responder ao nosso momento, com instrumentos e tecnologias de nossa época.
Compartilhar