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Artigo Paraná Eleitoral v.7 n.2 p. 235-256 235 A (in)existência do abuso de poder religioso no Direito Eleitoral: uma revisão jurisprudencial sobre o tema Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto Resumo - religiosa, erigindo-a na categoria de direito fundamental. Entretanto, no ordenamento jurídico brasileiro nenhum direito possui caráter absoluto, sendo necessária a imposi- ção de limites a seu exercício. Inobstante a inexistência uma espécie autônoma desse tipo de abuso na legislação pátria, tal fato não pode servir como escudo para a prá- tica de abusos por parte de autoridades religiosas. Objetiva-se, portanto, a partir de aportes doutrinários sobre o tema, fazer uma análise da controvertida jurisprudência dos tribunais eleitorais brasileiros, no sentido da (im)possibilidade de sindicar a ocor- rência do abuso de poder religioso no processo eleitoral e, por conseguinte, aplicar as e jurisprudencial como procedimento metodológico, conclui-se pela possibilidade de - so de poder expressamente previstos na legislação (infra)constitucional. Palavras-chave: abuso de poder religioso; ações eleitorais; legitimidade das eleições; laicidade; liberdade religiosa. Sobre os autores: Pedro Henrique Costa de Oliveira é mestrando em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional no Centro Universitário do Pará (Cesupa). Especialista em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e em Direito Eleitoral pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Professor Assistente de Direito Administrativo do Cesupa. Ex-presidente da Comissão de Direito Eleitoral da OAB/PA (2015-2018). Membro-fundador da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep). Advogado. E-mail: pedrohco.adv@gmail.com Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto é mestrando em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional no Cesupa. Especialista em Direito Eleitoral pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Professor Assistente de “Introdução ao Estudo do Direito” e “Direito Internacional Público” no Cesupa. Membro do Grupo de Pesquisa Democracia, Poder Judiciário e Direitos Humanos. Advogado. E-mail: ridivan@hotmail.com 236 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder Abstract controversial jurisprudence of the Brazilian electoral courts, in the sense of (not) Keywords: Artigo recebido em 15 de março de 2019; aceito para publicação em 20 de março de 2019. Introdução Sabe-se que a vedação ao abuso de poder é um tema muito caro para o Direito Eleitoral, tendo em vista que essa prática por parte do candidato acaba por gerar anomalias no procedimento demo- crático. Em razão disso, houve uma preocupação tanto constitucio- nal quanto infraconstitucional em vedar tais tipos de conduta, com o objetivo de garantir a lisura eleitoral e a legitimidade das eleições. A vedação ao abuso de poder nas eleições consta do artigo 14, § 9º, da Constituição Federal de 1988 (CF/1988). Nesse disposi- tivo constitucional são expressas a vedação ao abuso de poder eco- nômico e ao abuso de poder político. No primeiro caso, busca-se impedir a utilização de recursos 6nanceiros com o 6to de obter vantagens eleitorais, enquanto no segundo a intenção nada mais é do que impossibilitar a utilização da máquina estatal com a mesma 6nalidade. Entretanto, é cediço que a sociedade evolui rapidamente e, em razão disso, novas formas de abuso podem se fazer presentes no jogo eleitoral. Nesse sentido, o presente estudo de casos tem entre Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 237 uma de suas 6nalidades analisar a 6gura do chamado “abuso de poder religioso” e a possibilidade de aplicação de sanções cons- tantes na legislação vigente, por exemplo, as do artigo 22 da Lei Complementar 64/1990 (LC/1990) – Lei de Inelegibilidades –, que são: a declaração de inelegibilidade e a cassação de registro ou diploma do candidato. Trata-se de um tema extremamente controvertido, tendo em vista que não há previsão expressa da existência desse tipo de vedação. Portanto, o problema que se apresenta neste artigo é justamente se há possibilidade de aplicar as sanções constantes da legislação elei- toral a uma espécie de abuso que não possui previsão legal. Além disso, os casos são passíveis dos mais variados debates, pois envolvem a necessidade de sopesar direitos fundamentais, como a liberdade de religião constante do artigo 5º, VI e VIII, da CF/1988, com outros princípios ou valores, como o da lisura elei- toral insculpido do próprio artigo 23 da LC 64/1990. Deve-se destacar também o caráter de laicidade do Estado pautado na própria Constituição, bem como a impossibilidade de o Estado impedir o funcionamento de cultos religiosos e igrejas, conforme artigo 19, I, da CF/1988. Sendo, assim, necessário que se proceda, a partir dos fundamentos trazidos pela doutrina, à análise jurispruden- cial para que, ao 6nal, se apresente a conclusão de qual entendimento melhor se aplica sob a perspectiva de haver a possibilidade de aplicar sanções constantes da LC 64/1990 para uma espécie de abuso que não se encontra, autonomamente, na legislação de regência. Discurso religioso e abuso de poder O princípio constitucional do pluralismo político possibilita a participação política dos mais variados segmentos da sociedade no processo eleitoral, inclusive dos religiosos. Assim como qual- quer direito, o princípio da liberdade religiosa não é absoluto. Seu exercício pressupõe a existência de limites para que não haja abuso. No entanto, a utilização do discurso religioso como ele- mento propulsor de candidaturas, propiciando que a orientação política adotada por líderes religiosos – personagens centrais carismáticos que exercem fascinação e imprimem con6ança em seus seguidores – tutele a escolha política dos 6éis, induzindo o voto não somente pela consciência pública, mas, primordialmente, 238 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder pelo temor reverencial, o que não se coaduna com a laicidade do Estado brasileiro (Brasil, 2018b). Trata-se, em verdade, da necessidade de discutir a legitimidade desse tipo de prática diante da utilização intencional do poder caris- mático do sacerdote e de uma espécie de “subordinação” sacra do eleitor aos dogmas religiosos. Questiona-se, principalmente, se isso não estaria por afetar o livre convencimento do cidadão. Logo, “não é democrático impor vedação para que os segmentos religiosos participem do processo eleitoral. De igual modo, não é democrático a utilização do aparato e da estrutura religiosa para de6nir o resultado de uma eleição” (Azevedo, 2017, p. 8). Nesse contexto, dissertando sobre o aumento da participação das igrejas no processo eleitoral e a necessidade de imposição de limites a essa participação, Ana Santano e Geovane Silveira (2018, p. 66) asseveram: A participação crescente das igrejas no processo eleitoral resul- tou em questionamentos doutrinários sobre quais seriam os limites da participação das entidades religiosas no processo de escolha dos representantes. Isto porque as igrejas são fonte de forte in>uência junto aos cidadãos, que ao escolherem determinada fé, passam a professar os preceitos ali estabelecidos. A partir disso, surgiram os primeiros casos junto à Justiça Eleitoral, requerendo-se a invalida- ção dos votos obtidos por meio do uso indevido das igrejas, seja por meio de coações morais ou pela in>uência indevida exercida junto aos eleitores. Após as primeiras decisões, surgiu-se a concepção de que essa seria uma nova forma de abuso, caracterizada por meio do poder religioso. Insta, precipuamente, consignar que o que se está a tratar aqui é algo extremamente caro para a democracia, visto que sempre se deve buscar garantir a legitimidadeda eleição por meio da tentativa de vedar condutas que possam solapar a proteção do voto livre e garantido a cada cidadão, conforme a proteção prevista pela pró- pria Carta Magna de 1988. Sobre essa necessidade de garantir a liberdade de voto sem a existência de eventuais coações ou in>uências na escolha de cada cidadão, é importante observar o que diz Kufa (2016, p. 116): Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 239 Tem-se, então, que da obrigatoriedade de votar decorre a liberdade de escolha como garantia constitucional do cidadão e defesa do Estado Democrático de Direito, devendo este, através da Justiça Eleitoral, asse- gurar que a opção eleitoral seja alcançada, pelo voto secreto, sem coações morais ou materiais sobre a formação da vontade do eleitor e que seu exercício se dê de forma plena, sem qualquer tipo de interferência. Assim, entende-se que o abuso de poder religioso pode ser de6- nido como intimidação carismática ou ideológica, com base na con6ança que as pessoas depositam em alguém que tem a tarefa de guiá-los. Além do mais, haveria plena possibilidade de tal conduta se con6gurar como uma espécie de coação moral sobre a escolha do indivíduo acerca de seu candidato. O desvirtuamento das práticas e crenças religiosas, visando a in>uenciar ilicitamente a vontade dos 6éis para a obtenção do voto, para a própria autoridade religiosa ou terceiro, seja através da prega- ção direta, da distribuição de propaganda eleitoral, ou, ainda, outro meio qualquer de intimidação carismática ou ideológica, casos que extrapolam os atos considerados como de condutas vedadas, previstos no art. 37, § 4º, da Lei nº 9.504/97. (Kufa, 2016, p. 123) Logo, de extrema importância que se discuta sobre a presente celeuma, tendo em vista que as condutas ora analisadas possuem o condão de in>uenciar diretamente o voto de cada cidadão, por meio da coação religiosa. Silva (2015, p. 75) identi6ca o abuso de poder religioso como uma quarta modalidade de abuso de poder, a6rmando: Partidos políticos e candidatos, valendo-se da estrutura eclesiás- tica e do apoio de ministros religiosos com discursos carregados de conotação religiosa e moral, estariam subvertendo a legitimidade do pleito e in>uenciando diretamente o resultado das eleições, ao arrepio da legislação eleitoral. Já se vislumbra, portanto, a possibilidade de existência da 6gura do abuso de poder religioso diante dos argumentos apre- sentados. Entretanto, a questão não é de simples solução, tendo 240 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder em vista a ausência de previsão especí6ca da modalidade na legislação (infra)constitucional. Impede-se sua aplicação isolada, ou seja, dissociada das demais espécies de abusos previstos em lei, em função da incidência do princípio constitucional da legalidade especí6ca em matéria eleito- ral, o qual impossibilita a criação pretoriana de direitos e obriga- ções, sobretudo para limitar direitos políticos. As regras eleitorais se referem à concretização do princípio de legi- timação do exercício do poder político. Exige-se, para a sua imposição, ampla discussão parlamentar […]. A legitimidade para a restrição de direitos – direitos políticos, como a elegibilidade, ou liberdades, como a liberdade de expressão – está, por força do princípio do Estado de Direito, no órgão representativo. Apenas o parlamento pode ditar nor- mas sobre a disputa eleitoral (SALGADO, 2015, p. 251, grifo nosso). Nessa esteira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) optou pela ado- ção do princípio da tipicidade das ações eleitorais: “não há como se admitir ilimitado exercício de ação na Justiça Eleitoral porque isso implicaria a insegurança dos pleitos, comprometendo o processo elei- toral como um todo […], daí decorrendo a tipicidade dos meios de impugnação que vigora nesta Justiça Especializada” (Brasil, 2004). Frederico Alvim (2011, p. 211), entretanto, critica esse modelo de tipicidade cerrada das ações eleitorais que visam sindicar ocorrên- cia de abuso de poder, uma vez que “a regra de tipicidade estreita a via do questionamento judicial, expondo as eleições a ações dani- nhas não antevistas pelo legislador”: Subsistem as hipóteses em que o poder religioso opera, isola- damente, como elemento de supressão da liberdade para o exercí- cio do sufrágio e de quebra da paridade eleitoral, tornando-se um inegável fator de risco para a legitimidade das eleições. Para esses casos, urge uma adequação legislativa: o conhecimento sociológico clama por uma recon6guração das hipóteses de cabimento da ação de investigação judicial eleitoral. […] tem-se falado na possibilidade de enquadramento da modali- dade religiosa no conceito de abuso de poder de autoridade, previsto no caput do art. 22, LC 64/1990. Trata-se de visão, sem dúvida, pos- sível, sobretudo quando se toma a expressão no sentido oferecido por Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 241 Bourricaud, para quem o termo designa o ascendente exercido pelo detentor de um qualquer poder, que leva aqueles a quem se dirige a reconhecer-lhe uma superioridade que justi6que o seu papel de comando ou de orientação. (Alvim, 2011, p. 211) A teoria do abuso de poder se desenvolveu a partir da teoria do abuso de direito. Para con6guração do deste é necessário o exercício de um direito subjetivo, é dizer, ele pressupõe uma ação prima facie permitida. Porém quando, pela intenção do autor, pelo objeto ou pelas circunstâncias nas quais se realiza uma ação, se ultrapassa de forma manifesta os limites normais do exercício do direito, tem-se o ato abusivo (Atienza e Ruiz Manero, 2014, p. 35). A teoria do abuso de poder no Direito Eleitoral 6xa-se sob as premissas do abuso de direito, porém não se encerra nelas, eis que dotada de peculiaridades (Alvim, 2011, p. 20). Nessa senda, leciona Garcia (2006, p. 5-6): A grande massa de atos lesivos ao procedimento eletivo e que serão aleatoriamente enquadrados sob a epígrafe do “abuso de poder”, em verdade, não caracteriza abuso de direito. São atos que desde o nascedouro carregam a mácula da ilegalidade, pois prati- cados em frontal e >agrante dissonância do ordenamento jurídico. Como não se trata de exercício irregular de um direito, pois direito nunca houve, impossível será falar-se em abuso de direito. Por tais motivos, o abuso de poder pode ser conceituado como o uso exor- bitante da aptidão para a prática de um ato, que pode apresentar-se inicialmente em conformidade ou desde a origem destoar do orde- namento jurídico. Destaca-se que o Direito Eleitoral possui um entendimento pró- prio acerca do que seja abuso de poder, visto que em geral a utili- zação desarrazoada de determinados meios acaba por resultar na modi6cação do resultado de determinada eleição. Nesse sentido, no Direito Eleitoral, por abuso de poder: Compreende-se o mau uso de direito, situação ou posição jurídicas com vistas a se exercer indevida e ilegítima in>uência em dada elei- ção. Para caracterizá-lo, fundamental é a presença de uma conduta 242 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder em desconformidade com o direito (que não se limita à lei), podendo ou não haver desnaturamento dos institutos jurídicos envolvidos. No mais das vezes, há a realização de ações ilícitas ou anormais, deno- tando mau uso de uma situação ou posição jurídicas ou mau uso de bens e recursos detidos pelo agente ou bene6ciário ou a eles disponi- bilizados, isso sempre com o objetivo de se in>uir indevidamente em determinado pleito eleitoral. (GOMES, 2016, p. 311) Note-se, portanto, que o conceito de abuso de poder é >uído e aberto. Sua delimitação semântica ocorrerá na análise de um caso concreto pelo intérprete. O abuso, assim, desvia o exercício dos direitos subjetivos dos justos e verdadeiros 6ns da ordem jurídica(Ribeiro, 2001, p. 20). Nesse contexto: Haverá abuso sempre que, em um contexto amplo, o poder – não importa sua origem ou natureza – for manejado com vistas à concre- tização de ações irrazoáveis, anormais, inusitadas ou mesmo injusti- 6cáveis diante das circunstâncias que se apresentarem e, sobretudo, ante os princípios e valores agasalhados no ordenamento jurídico. (Gomes, 2015, p. 258) Ao tratar da ideia de abuso de poder religioso, José Jairo Gomes (2015) não o apresentou como espécie de abuso de poder, tendo apenas tratado das espécies previstas em lei. Porém, o que chama atenção é sua de6nição de abuso ao a6rmar que haverá abuso de poder sempre que a conduta for anormal, desarrazoada e afetar os valores garantidos no ordenamento jurídico. Ora, é evidente que situações de utilização da in>uência religiosa se enquadrariam perfeitamente nessa conceituação. Entretanto, o autor não apresenta essa “novidade” da entidade da in>uência reli- giosa enquanto instituto autônomo de abuso de poder. Por outro lado, Rodrigo López Zilio (2016) sustenta que os conceitos de abuso de poder são de natureza indeterminada e, portanto, não se faz necessário o instituto da taxatividade para a con6guração de eventual abuso que possa vir a surgir. O autor diz: O que a lei prescreve e taxa de ilícito é o abuso de poder, ou seja, é a utilização excessiva – seja quantitativa ou qualitativamente – do Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 243 poder, já que, consagrado o Estado Democrático de Direito, possível o uso da parcela do poder, desde que observado o 6m público e não obtida vantagem ilícita. O abuso de poder econômico, o abuso de poder político, o abuso do poder de autoridade, a utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social e a transgressão de valores pecuniários se caracte- rizam como conceitos jurídicos indeterminados que, necessariamente, passam a existir no mundo jurídico após a recepção fática. Portanto, para a caracterização de tais abusos na esfera eleitoral, prescinde-se do fenômeno da taxatividade. (Zilio, 2016, p. 557, grifo nosso) Nesse sentido, existe a possibilidade de aceitar a caracteriza- ção da espécie de abuso de poder religioso mesmo com a ausên- cia de previsão legal, tendo em vista que por se tratar de con- ceito indeterminado haveria evidentes chances de que o mundo dos fatos 6zesse surgir uma nova forma de abuso que viria a se enquadrar na interpretação dos termos do que se encontra vigente. Ademais, o que Zilio (2016) busca de6nir diz respeito ao fato de que os próprios tipos previstos em lei, como o abuso de poder eco- nômico e abuso de poder político, são de textura aberta e, portanto, necessitam ser interpretados em cada caso, afastando a incidência do fenômeno da taxatividade. Em realidade, é interessante observar que o próprio entendi- mento de qual seja o conteúdo das espécies de abuso de poder pre- vistas em lei é incerto. Isso ocorre porque a legislação apenas indica a existência do abuso, sem de6nir seus parâmetros. Alvim (2012, p. 410) aduz que “inexiste, em nosso ordenamento, um conceito jurídico-legal a respeito do abuso de poder nas elei- ções. Constituição Federal e legislação esparsa ocupam-se do insti- tuto, entretanto sem conceituá-lo”. Resta evidente, portanto, que há di6culdade em estabelecer o próprio conteúdo das espécies de abuso de poder já previstos na legislação e na Constituição. Isso se deve principalmente ao que já foi indicado anteriormente em razão de serem conceitos jurídicos indeterminados, passando a ser função da jurisprudência interpre- tar e aplicar tais institutos. Por isso, há claríssima margem para que se proceda com a pos- sibilidade de, em que pese não existir a 6gura do abuso de poder 244 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder religioso, haja a con6guração desse tipo de prática desde que anali- sada a partir da interpretação das espécies já existentes. Além do que foi apresentado, é preciso destacar que a doutrina levanta argumentos pautados na ideia de laicidade do Estado ver- sus a possibilidade de manifestação religiosa. Há a formação de argumentação, inclusive no RE 189-04 TRE-RS, no sentido de que seria temerária a impossibilidade de que cidadãos comuns possam se reunir para eleger representantes. Entretanto, sobre esse ponto faz-se mister que se leve em consi- deração outras fundamentações, tais como o fato de que o Estado brasileiro, por ser laico, conforme o art. 5º, inciso VI, da CF/1988, não pode permitir que instituições religiosas in>uenciem indevi- damente no processo democrático de escolha dos representantes do povo. Além do mais, destaca-se que a própria legislação eleitoral veda que haja qualquer espécie de 6nanciamento, com dinheiro em espé- cie ou equivalente, desse tipo de entidade ou a realização de eventos em ambientes públicos tais como templos ou igrejas. Sobre o papel das instituições religiosas dentro da lógica da campanha eleitoral é interessante observar o que a6rma Caramuru Afonso Francisco (2002, p.48): A utilização de tais entidades para 6ns de publicidade de candi- daturas ou de partidos políticos, seja pelo aproveitamento de espaços para 6xação de cartazes ou distribuição de propaganda, para monta- gem de escritórios políticos ou comitês de propaganda, seja pelo apro- veitamento de reuniões para divulgação de ideias e de plataformas, a utilização de sinais, símbolos, logotipos são indisfarçáveis formas de contribuição para candidatos e partidos. Luiz Eduardo Peccinin (2018, p. 145) aponta a possibilidade de sindicar o abuso de poder religioso sob a ótica da proteção à liber- dade do voto, “nos casos especí6cos em que o discurso religioso se coloca como argumento de temor reverencial, recompensa ou ameaça divinas para a conquista do apoio do 6el eleitor”, impe- dindo a formação de seu livre convencimento e vontade política. O que enseja, inclusive, o manejo de representação por capta- ção ilícita de sufrágio, prevista no art. 41-A da Lei 9.504/1997 (Lei das Eleições). Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 245 Outrossim, Auracyr Cordeiro (2014) assinalando pela necessi- dade de reprimir tal prática, aduz que “é abuso manejar as igre- jas como escada para vencer eleições, e por elas tornar-se agente público. A6nal, todos sabem que às igrejas cabe o estudo, a difusão e o culto do sagrado, tarefa incompatível com a lida do Estado”. Apresentados estes apontamentos doutrinários, abordar-se-á, doravante, a evolução jurisprudencial da 6gura do abuso de poder religioso no processo eleitoral, analisando decisões antagônicas de tribunais regionais eleitorais para, após, analisar o entendimento 6rmado pelo TSE sobre a matéria. O abuso de poder religioso na jurisprudência dos tribunais eleitorais Ante a patente controvérsia acerca do tema, faz-se necessário que se apresente os posicionamentos divergentes, bem como seus fundamentos. Como dito, o entendimento sobre a existência ou não da 6gura do abuso de poder religioso é de complexo entendimento na juris- prudência. Por consequência, a compreensão acerca da possibili- dade de aplicação ou não das sanções, tais como as constantes do artigo 22 da LC 64/1990, acaba por não ser uniforme. O primeiro precedente no país que determinou a cassação de mandatário – in casu, vereador – foi um recurso eleitoral (RE 49381/RJ) julgado pelo Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (TRE-RJ), o qual trata de situação ocorrida nas eleições municipais de 2012. Segue o escólio: Recurso Eleitoral. Ação de investigação judicial eleitoral. Eleições 2012. Uso indevido dos meios de comunicação. Abuso do poder religioso. Utilização da igreja para intensa campanha eleitoral em favor de can- didato a vereador. Pregações, apelos e pedidos expressos de votos. Citações bíblicas com metáforas alusivas ao bene6ciário. Pesquisas deintenção dentro dos cultos. Discursos do candidato no altar. Distribuição de material publicitário na porta da igreja. Pressão psicológica relatada em depoimentos testemunhais. Violação a moralidade, a liberdade de voto e ao equilíbrio da disputa ao pleito. Potencialidade lesiva irrele- vante. Gravidade da conduta con6gurada. Manutenção da cassação ou 246 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder denegação do diploma do candidato e da inelegibilidade de todos os representados. Desprovimento do recurso. (Brasil, 2013, grifo nosso) O referido caso, oriundo do município de Magé, foi julgado pelo TRE-RJ em razão de campanha realizada dentro de entidades reli- giosas em favor de candidato a vereador. Naquela oportunidade, os pastores se utilizaram do culto religioso para fazer ostensiva campa- nha eleitoral, bem como distribuir material de campanha, além de garantir fala ao candidato no altar durante a celebração religiosa. Em razão disso, foi apresentada Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) com o objetivo de investigar tal conduta durante o período eleitoral, a6rmando-se que esse comportamento seria espé- cie de violação à liberdade de voto e à igualdade de oportunidade entre os candidatos. O posicionamento (ratio decidendi) do TRE-RJ, em sede de recurso eleitoral apresentado pelos investigados, foi no sentido de que este tipo de abuso, em que pese não ter regulamentação expressa, merece a mesmo reprimenda das demais categorias legal- mente previstas. Sendo assim, o recurso fora desprovido, manten- do-se a decisão zonal que determinou a cassação do vereador. Apesar do posicionamento 6rmado pelo TRE-RJ, deve-se des- tacar que o tema é controverso na jurisprudência, visto que ante a inexistência de uma 6gura típica denominada “abuso de poder religioso”, há argumentos em sentido contrário a6rmando pela impossibilidade de sanção por tal prática. Representando essa segunda linha de entendimento, veja-se recurso eleitoral do TRE-RS (RE n.º 189-04) sobre a 6gura do abuso de poder religioso: Recurso. Ação de investigação judicial eleitoral. Abuso de poder eco- nômico. In>uência religiosa. Prefeito e vice. Eleições 2016. Interposições contra sentença que julgou improcedente a ação de investigação judi- cial eleitoral instaurada para apuração de abuso de poder. Evento em igreja evangélica com apresentação de candidato a prefeito, menção ao número da legenda e pedido de apoio aos presentes. 1. A normalidade e a legitimidade das eleições devem ser protegi- das contra a in>uência do abuso de poder econômico ou do poder de autoridade, assim como a utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social em benefício de candidato ou de partido político. A Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 247 legislação eleitoral não relaciona especi$camente a in%uência religiosa como uma daquelas espécies de poder cujo abuso deva ser reprimido, ainda que exista, na Lei das Eleições, restrição à interferência de enti- dades religiosas na vida política, em especial no tocante à propaganda eleitoral e no $nanciamento de partidos e candidatos. 2. Os tribunais eleitorais, ao se manifestarem sobre o abuso do poder religioso, por vezes o colocam em categoria própria, por vezes o inserem em categoria diversa, como abuso do poder econômico ou uso indevido dos meios de comunicação. 3. A con6guração do abuso exige a comprovação da ocorrência de conduta excessiva, irrazoável, estranha ao contexto que lhe é próprio. No caso da in>uência religiosa, a conduta que merecerá reprimenda será aquela que ocorra de forma reiterada e que atinja número expres- sivo de eleitores, sendo que, em investigação judicial, tenda a ser consi- derada no contexto do abuso do poder econômico. 4. No caso concreto, a realização do evento da Igreja Evangélica Assembleia de Deus não se tratava de culto propriamente dito, mas de uma “campanha de orações” ou “reunião de líderes”, que ocorrem eventualmente, com a presença estimada de duzentas pessoas. Inviável a caracterização do abuso, seja de poder econômico, dos meios de comunicação ou de poder religioso, visto que ocorreu em único episódio, com duração de dois minutos e quarenta segundos, onde apresentado candidato a prefeito para avalia- ção dos ouvintes. Ademais, resta temerário a$rmar que cidadãos que comungam das mesmas crenças não possam se organizar para eleger representantes que defendam as mesmas convicções. 5. Inexistência de previsão no ordenamento jurídico para amparar a tese de ocorrência de abuso de poder de autoridade religiosa. A autoridade mencionada no art. 22 da Lei Complementar n. 64/90 é aquela decorrente da liga- ção com a Administração Pública. 6. No tocante à alegada prática de captação ilícita de recursos, não há nos autos qualquer prova de que tenha ocorrido oferecimento ou promessa de vantagem, ainda que de cunho religioso, aos eleitores presentes no encontro realizado na igreja. Provimento negado a ambos os recursos. (Brasil, 2017, grifo nosso) Pela decisão acima se percebe que o posicionamento do TRE-RS gira em torno do entendimento de que a legislação não trata da in>uên- cia religiosa como uma das espécies de abuso que deve ser reprimido. Desse modo, o posicionamento desse tribunal foi restritivo em relação ao adotado pelo TRE-RJ, tendo em vista que 6rma entendimento em 248 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder sentido contrário ao a6rmar ser impossível aplicar as sanções cons- tantes do art. 22 da LC 64/1990 por entender inexistir esse tipo de vedação legislativa (6gura do abuso de poder religioso). No caso do RE 49381/RJ, houve entendimento pela necessidade de reprimenda em razão do abuso de poder religioso, pois essa prá- tica realiza uma espécie de pressão psicológica para que o indivíduo vote em determinado candidato e, como consequência, restando induvidosos o comprometimento do equilíbrio na disputa e a liber- dade do voto. Já no acórdão do RE 189-04/RS, o que se constata é a preva- lência da argumentação da necessidade de garantir que um grupo com interesses comuns, em especial religiosos, possa se reunir para eleger representantes. Ademais, como dito anteriormente, 6rmou- -se a interpretação pela inexistência da 6gura do abuso de poder religioso impedindo que fossem aplicadas as sanções constantes do artigo 22 da LC 64/1990. A6rmou, ainda, que haveria necessidade de, para eventual con6- guração de abuso de poder religioso, ser realizado pedido com base em nome de Deus ou algum outro aspecto religioso com o 6to de afetar decisivamente o comportamento das pessoas ali presentes. Resta claro, portanto, a ocorrência da controvérsia em dois aspec- tos: existência ou não da 6gura do abuso de poder religioso (ainda que não haja previsão legal especí6ca); e possibilidade de aplicação de sanções como a inelegibilidade dos candidatos ou a cassação do registro ou diploma por um tipo de abuso de poder não positivado. Por outro lado, cumpre frisar que a presente decisão do TRE-RS se encontra superada, tendo em vista que já houve decisões do TSE entendendo pela existência da possibilidade de abuso de poder reli- gioso, por meio da conexão com os diversos matizes de abusos de poder existentes no ordenamento jurídico. A primeira decisão da Corte Superior Eleitoral, analisando caso referente às eleições gerais de 2010, foi proferida nos autos do Recurso Ordinário (RO) n.º 2653-08/RO, o qual teve como relator o Ministro Henrique Neves da Silva. Veja-se a ementa do referido acórdão: Eleições 2010. Recursos ordinários. Recurso especial. Ação de investigação judicial eleitoral. Abuso do poder econômico. Uso indevido dos meios de comunicação social e abuso do poder polí- tico ou de autoridade. Não con6guração. 1. Os candidatos que Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitorale ciência política 249 sofreram condenação por órgão colegiado pela prática de abuso do poder econômico e político têm interesse recursal, ainda que já tenha transcorrido o prazo inicial de inelegibilidade 6xado em três anos pelo acórdão regional. Precedentes. 2. Abuso do poder reli- gioso. Nem a Constituição da República nem a legislação eleitoral contemplam expressamente a $gura do abuso do poder religioso. Ao contrário, a diversidade religiosa constitui direito fundamental, nos termos do inciso VI do artigo 5º, o qual dispõe que: “É invio- lável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. 3. A liberdade reli- giosa está essencialmente relacionada ao direito de aderir e propa- gar uma religião, bem como participar dos seus cultos em ambientes públicos ou particulares. Nesse sentido, de acordo com o art. 18 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, “toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozi- nho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos”. 4. A liberdade religiosa não constitui direito absoluto. Não há direito absoluto. A liberdade de pregar a religião, essencialmente relacionada com a manifestação da fé e da crença, não pode ser invocada como escudo para a prática de atos vedados pela legislação. 5. Todo ordenamento jurídico deve ser interpretado de forma sistemática. A garantia de liberdade religiosa e a laicidade do Estado não afastam, por si sós, os demais princípios de igual estatura e relevo constitucional, que tratam da normalidade e da legitimidade das eleições contra a in>uência do poder econô- mico ou contra o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta, assim como os que impõem a igualdade do voto e de chances entre os candidatos. 6. Em princípio, o discurso religioso proferido durante ato religioso está protegido pela garantia de liberdade de culto celebrado por padres, sacerdo- tes, clérigos, pastores, ministros religiosos, presbíteros, epíscopos, abades, vigários, reverendos, bispos, pontí6ces ou qualquer outra pessoa que represente religião. Tal proteção, contudo, não atinge situações em que o culto religioso é transformado em ato ostensivo ou indireto de propaganda eleitoral, com pedido de voto em favor dos candidatos. 7. Nos termos do art. 24, VIII, da Lei nº 9.504/97, 250 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder os candidatos e os partidos políticos não podem receber, direta ou indiretamente, doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclu- sive por meio de publicidade de qualquer espécie proveniente de entidades religiosas. 8. A proibição legal de as entidades religiosas contribuírem 6nanceiramente para a divulgação direta ou indireta de campanha eleitoral é reforçada, para os pleitos futuros, pelo entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal no sentido de as pessoas jurídicas não poderem contribuir para as campanhas eleitorais (ADI nº 4.650, rel. Min. Luiz Fux). 9. A propaganda elei- toral não pode ser realizada em bens de uso comum, assim conside- rados aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como os templos, os ginásios, os estádios, ainda que de propriedade privada (Lei nº 9.504/97, art. 37, caput e § 4º). 10. O candidato que pre- sencia atos tidos como abusivos e deixa a posição de mero expec- tador para, assumindo os riscos inerentes, participar diretamente do evento e potencializar a exposição da sua imagem não pode ser considerado mero bene6ciário. O seu agir, comparecendo no palco em pé e ao lado do orador, que o elogia e o aponta como o melhor representante do povo, caracteriza-o como partícipe e responsável pelos atos que buscam a difusão da sua imagem em relevo direto e maior do que o que seria atingido pela simples referência à sua pes- soa ou à sua presença na plateia (ou em outro local). 11. Ainda que não haja expressa previsão legal sobre o abuso do poder religioso, a prática de atos de propaganda em prol de candidatos por entidade religiosa, inclusive os realizados de forma dissimulada, pode carac- terizar a hipótese de abuso do poder econômico, mediante a utili- zação de recursos $nanceiros provenientes de fonte vedada. Além disso, a utilização proposital dos meios de comunicação social para a difusão dos atos de promoção de candidaturas é capaz de carac- terizar a hipótese de uso indevido prevista no art. 22 da Lei das Inelegibilidades. Em ambas as situações e conforme as circunstân- cias veri6cadas, os fatos podem causar o desequilíbrio da igualdade de chances entre os concorrentes e, se atingir gravemente a normali- dade e a legitimidade das eleições, levar à cassação do registro ou do diploma dos candidatos eleitos.12. No presente caso, por se tratar das eleições de 2010, o abuso de poder deve ser aferido com base no requisito da potencialidade, que era exigido pela jurisprudência de então e que, não se faz presente no caso concreto em razão de suas circunstâncias. (Brasil, 2017, grifo nosso) Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 251 A ratio decidendi desse caso parte da seguinte premissa: em que pese não haver a 6gura do abuso de poder religioso na legislação, a prática de atos em favor de candidatos durante cultos religio- sos pode, ao se utilizar da estrutura da igreja, con6gurar hipóteses como, por exemplo, o abuso de poder econômico. A decisão sustenta que, de fato, não existe a 6gura “típica” do abuso de poder religioso na legislação brasileira. Entretanto, há um modus operandi durante a campanha eleitoral que demonstra a utilização da estrutura religiosa, como os templos e a realização de cultos, para a execução de campanha eleitoral. Sendo assim, frisa-se haver vedações expressas na legislação em relação ao recebimento de doações (em dinheiro ou estimáveis) de entidades religiosas. Tal conduta é proibida por meio do artigo 24, VIII, da Lei n.º 9.504/1997. Logo, conclui-se pela necessidade de uma interpretação siste- mática, no sentido de que mesmo não havendo uma vedação explí- cita o abuso de poder religioso se concretizaria quando estivesse conectado com os abusos já previstos na legislação eleitoral. Nessa senda, o TSE, nos autos agravo regimental em RO 8044-83/RJ, estatuiu que: [o] abuso de poder econômico con6gura-se por emprego despro- porcional de recursos patrimoniais, públicos ou de fonte privada, vindo a comprometer valores essenciais a eleições democráticas e isentas, o que também pode ocorrer mediante o entrelaçamento com o instituto do abuso de poder religioso. (Brasil, 2018a, grifo nosso) Consectariamente, a orientação pretoriana do TSE tem se assen- tado no sentido de que, embora não exista no ordenamento jurídico a 6gura autônoma do abuso de poder religioso, tal constatação não obstaculiza a tutela da lisura, da normalidade e da legitimidade das eleições sob o viés do abuso de poder econômico, disciplinado nas legislações constitucional (art. 14, § 10, CF/1988) e infraconstitu- cional (art. 22 da LC 64/1990). Para paci6car tal entendimento, o TSE, no julgamento do RO 5370-03/MG, determinou a cassação dos mandatos do depu- tado federal Franklin Roberto Souza (PP-MG) e do deputado esta- dual Márcio José Oliveira (PR-MG) em virtude de pedido expresso de voto, pelo líder da igreja, durante a realização de evento religioso. 252 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder O voto condutor, de relatoria da ministra Rosa Weber, diferente- mente do assentado pelo TRE-RS no RE 189-04 – que consignou, seguindo entendimento anteriordo TSE, que o abuso de poder de autoridade do art. 22 da LC 64/1990 refere-se à autoridade com ligação com a administração pública –, estatuiu que é possível a con6guração de abuso de poder de autoridade religiosa a partir da evolução semântica dos preceitos normativos, superando, portanto, a antiga jurisprudência. Nesse contexto, parece-me de todo inadequada interpretação da expressão “autoridade” que afaste do alcance da norma situações fáti- cas caracterizadoras de abuso de poder em seus mais diversos mati- zes – reveladoras de idênticas e nefastas consequências –, sabido que a alteração semântica dos preceitos normativos deve, tanto quanto possível, acompanhar a dinâmica da vida. (Brasil, 2018b) Com efeito, o TSE, nesse caso, procedeu à releitura do conceito de autoridade, à luz da Constituição e da teleologia subjacente à AIJE, que “consiste em proteger a legitimidade, a normalidade e a higidez das eleições, de sorte que o abuso de poder a que se refe- rem os arts. 19 a 22 da LC 64/90 deve ser compreendido de forma ampla, albergando condutas fraudulentas e contrárias ao ordena- mento jurídico-eleitoral” (Brasil, 2016). É inexorável o poder de persuasão que sacerdotes, pastores, padres, diáconos e demais membros de comunidades religiosas têm sobre os 6éis. Nesse viés, caso haja extrapolação dessa ascendên- cia, tal conduta deverá ser sancionada sob a ótica do abuso de autoridade. Constata-se, portanto, ampla controvérsia a respeito do tema, tendo em vista que existem juízos que decidem pela impossibilidade de serem aplicadas sanções em razão do abuso de poder religioso e, ao mesmo tempo, outras que entendem a necessidade de aplica- ção de penalidades, como cassação e inelegibilidade, quando esse tipo de abuso, em que pese não encontrar previsão legal especí6ca, estiver vinculado com outras 6guras típicas de abuso de poder. Realizada a apresentação da controvérsia jurisprudencial e do entendimento doutrinário acerca do problema tratado neste estudo, impende proceder à análise crítica, bem como às respectivas conclu- sões a respeito do tema. Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 253 Conclusão Preliminarmente, é de se reconhecer que o abuso de poder reli- gioso não existe enquanto 6gura típica prevista na legislação. Mas reconhece-se a previsão do abuso de poder econômico e do abuso de poder político nos termos do art. 14, § 9º da CF/1988, além dos abusos previstos na legislação ordinária por delegação consti- tucional. Entretanto, esta análise é muito mais complexa do que a simples veri6cação da existência ou não de uma 6gura típica acerca do tema. Nesse sentido, acredita-se correta a decisão tomada pelo TRE-RJ no julgamento do RE 49381, na esteira do entendimento 6rmado pelo TSE, uma vez que que houve reconhecimento de que a utiliza- ção da igreja e sua estrutura con6gura espécie de abuso ao realizar uma forma de pressão psicológica nos 6éis para que votassem de acordo com os interesses da instituição. Além disso, a decisão paradigmática deixa claro o fato de que, apesar de não haver previsão desse tipo de abuso expressa em lei, há a necessidade de reprimenda da mesma forma que para as demais categorias. Logo, não se deve entender como correta a deci- são tomada pelo TER-RS no RE 189-04, analisada no tópico da controvérsia judicial, tendo em vista que um de seus fundamentos, além da ausência de previsão legal, seria o eventual perigo de haver limitação à liberdade religiosa ante suposta tentativa de vedar que pessoas se reunissem para eleger alguém com interesses comuns. Ora, sabe-se que a liberdade religiosa, prevista no artigo 5º, VI e VIII da CF/1988, é garantia fundamental. Entretanto, enten- de-se também que inexiste direito absoluto, e, no presente caso, o con>ito que se constata é entre direitos e liberdades fundamentais. No caso, há, em sentido oposto à liberdade religiosa, a necessidade em proteger o princípio democrático, a lisura eleitoral e o exercício pleno da cidadania. Assim, resta evidente “que a in>uência do discurso religioso na formação da vontade do eleitor deve estar sujeita a limites, pois a violação desses limites pode comprometer a legitimidade do processo democrático do Estado de direito” (Almeida e Costa, 2015, p. 384). Nos casos analisados não se discutiu se os cidadãos podem vir a votar com base em suas convicções e entendimentos religiosos. As justi6cações e parâmetros para voto devem ser do foro íntimo de 254 Pedro Henrique Costa de Oliveira e Ridivan Clairefont de Souza Mello Neto: A (in)existência do abuso de poder cada um, podendo ser de cunho religioso desde que não seja por meio de pressão ou in>uência externa. Logo, o que se discute é se a utilização da estrutura e das cele- brações religiosas e os discursos proferidos por clérigos, ministros etc. podem persuadir o cidadão a votar em quem não votaria com base em uma espécie de “dominação carismática” que impede que o voto re>ita a real vontade do eleitor. Sendo assim, é de se concordar que o abuso de poder religioso, em que pese não esteja previsto na lei, é ato cotidianamente praticado no país e que merece a mesma reprimenda dos demais tipos de abuso. Com efeito, observa-se que essa espécie de in>uência religiosa se coaduna perfeitamente com o conceito de abuso apresentado por Gomes (2015), no sentido de ser uma prática desarrazoada, anormal e injusti6cável dentro de determinado conceito. Ora, um ato que realiza pressão psicológica em um indivíduo e que possui a capacidade de alterar sua intenção de voto se caracteriza como desarrazoado e injusti6cável. Como contra-argumento neste tema, e na tentativa de evitar punição por essa prática, pode-se alegar a ausência de lei vedando tal conduta. Porém, a conclusão do RO 265308/RO, de relatoria do Ministro Henrique Neves da Silva, é extremamente coerente e necessária para possibilitar a punição para esse tipo de comporta- mento e dar uma solução temporária para o problema. O RO 265308/RO reconheceu que, em que pese não haja previ- são legal, a prática de atos de propaganda em favor de candidatos por entidade religiosa, inclusive de forma dissimulada, pode vir a caracterizar abuso de poder econômico por meio da utilização de fonte vedada nos termos do art. 24, VIII, da Lei 9.504/1997. Nessa senda, no julgamento do RO n.º 5370-03/MG, o TSE con6r- mou sua jurisprudência, analisando o abuso de poder religioso sob a ótica do abuso de poder econômico, abrindo, inclusive, a possibilidade para sindicar tal conduta também sob o viés do abuso de autoridade. De fato, ao se realizar uma análise mais aprofundada das condu- tas praticadas pelas entidades religiosas e seus representantes, o que se veri6ca é que essa conduta está de certa forma ligada com abu- sos de cunho econômico e de autoridade já previstos na legislação. Logo, torna-se escorreita a decisão de se reconhecer a 6gura do abuso de poder religioso, desde que ligada aos abusos previstos em lei, enquanto tal forma não for tipi6cada na legislação. Paraná Eleitoral: revista brasileira de direito eleitoral e ciência política 255 Destaca-se, entretanto, a preocupação que se tem pela necessidade de positivar essa prática rotineira nas campanhas eleitorais. O que está tipicamente coadunado com o posicionamento bibliográ6co apresen- tado, visto que abuso de poder possui natureza indeterminada e, em razão disso, não há necessidade de se buscar uma espécie de rol taxa- tivo. Esse posicionamento, conforme já indicado, é defendido por Zilio (2016) e atende perfeitamente o problema que aqui se discute. Nesse sentido, em resposta ao problema proposto no início do presente estudo, entende-se pela possibilidade de aplicação das san- ções constantes da LC 64/1990, em especial do seu art. 22, é dizer, cassação do registro ou do diploma e imposição de inelegibilidade. Entende-se ser possível, para o momento, a aplicação dessa san- ção, desde que observado o requisito exigido pelajurisprudência, qual seja, que o ato praticado por meio do abuso de poder religioso esteja em conexão com as espécies de abuso prevista em lei. Fato é que o TSE, nos dois casos analisados neste artigo, não enfrentou a 6gura do abuso de poder religioso como sendo uma espécie autônoma de abuso de poder, mas atrelou-a a outras moda- lidades, como o abuso de poder econômico. Por 6m, é importante frisar que se faz mais do que necessário que se tipi6que esse tipo de abuso com a 6nalidade de oferecer segurança jurídica no processo decisório e no campo da disputa eleitoral, sem- pre buscando garantir a lisura eleitoral e legitimidade do voto. REFERÊNCIAS ALMEIDA, F. R. M.; COSTA, R. A. (2015). Abuso de poder religioso: os limites do discurso religioso no processo democrático. Paraná Eleitoral, vol. 4, n. 3, p. 365-86. ALVIM, F. F. (2012). Manual de Direito Eleitoral. Belo Horizonte: Fórum. ______. (2011). O abuso de poder político por omissão. Verba Legis, n. 6, p. 19-28. ATIENZA, M.; RUIZ MANERO, J. (2014). Ilícitos atípicos: sobre o abuso de direi- to, fraude à lei e desvio de poder. Tradução Janaina Roland Matida. São Paulo: Marcial Pons. AZEVEDO, A. F. (2017). Abuso do poder religioso nas eleições. Verba Legis, n. 7, p. 1-9. BRASIL. (2004). Tribunal Superior Eleitoral. AAG n.º 4598/PI, de 03/06/2004, Relator(a) Min. Fernando Neves. 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