Prévia do material em texto
FILOSOFIA BIOÉTICA Prof. Sebastião Donizeti Bazon http://www.unar.edu.br BIOÉTICA Prof. Ms. Sebastião Donizetti Bazon 2 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA .............................................................................................. 3 PROGRAMA DA DISCIPLINA ..................................................................................................... 4 UNIDADE 1. O QUE É BIOÉTICA ................................................................................................ 6 UNIDADE 2. A ÉTICA E A BIOÉTICA ........................................................................................ 10 UNIDADE 3. CONTEXTO HISTÓRICO DO NASCIMENTO DA BIOÉTICA ............................ 15 UNIDADE 4. A FILOSOFIA DA BIOÉTICA ................................................................................ 20 UNIDADE 5. O PROGRESSO CIENTÍFICO E A BIOÉTICA ....................................................... 25 UNIDADE 6. O RELATÓRIO DE BELMONT ............................................................................. 30 UNIDADE 7. A TEORIA PRINCIPIALISTA ................................................................................. 35 UNIDADE 8. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: H. TRISTAM ENGELHARDT40 UNIDADE 9. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: PETER SINGER ................. 45 UNIDADE 10. A VOLTA DAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS NA BIOÉTICA ................................ 50 UNIDADE 11. A BIOÉTICA PERIFÉRICA ................................................................................... 55 UNIDADE 12. A BIOÉTICA BRASILEIRA ................................................................................... 60 UNIDADE 13. BIOÉTICA DE INSPIRAÇÃO FEMINISTA .......................................................... 65 UNIDADE 14. TEMAS DA BIOÉTICA: O ABORTO................................................................... 70 UNIDADE 15. TEMAS DA BIOÉTICA: DISCUSSÃO SOBRE O ABORTO ................................ 75 UNIDADE 16. ABORTO: O DIREITO DE NASCER ................................................................... 80 UNIDADE 17. ABORTO: O DIREITO SOBRE A VIDA .............................................................. 85 UNIDADE 18. TEMAS DA BIOÉTICA: A EUTANÁSIA .............................................................. 90 UNIDADE 19. A EUTANÁSIA NO BRASIL ................................................................................ 95 UNIDADE 20. A CLONAGEM E A BIOÉTICA ......................................................................... 100 3 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA A Bioética (grego: bios, vida + ethos, relativo à ética) é um ramo da Filosofia moral que se interage com outras disciplinas como Medicina e Direito, e tem como objetivo discutir as questões relativas ao avanço das ciências da saúde e suas consequências para a vida humana. A disciplina tem como objeto de estudo, as polêmicas geradas pelo avanço das ciências da saúde que muitas vezes não acompanha uma reflexão sobre a vida humana e a dignidade do homem, questões como aborto, eutanásia, clonagem, suicídio assistido, são debatidos sob uma ótica científica e também filosófica, propondo assim uma profunda reflexão sobre o valor da vida e os avanços científicos. A bioética se apresenta sob três formas de estudos: a abordagem historicista, filosófica e temática. A abordagem historicista se remete aos conteúdos e eventos ocorridos no passado, e que têm relação com os abusos cometidos contra a vida humana, tanto pela parte da ciência, como pela parte do homem, por exemplo, as pesquisas realizadas nos campos de concentração nazistas e as duas guerras mundiais. A abordagem filosófica exige que os seus debatedores tenham certo conhecimento da história da filosofia, principalmente da filosofia moral e por último e a mais utilizada é a abordagem temática, que se utiliza de casos do cotidiano e da vida para propor uma reflexão sobre determinados assuntos. 4 PROGRAMA DA DISCIPLINA Ementa Introdução a temas e problemas da filosofia, no tratamento referente à Bioética. Explicação dos fundamentos filosóficos da ética e da bioética. Reflexão teórica e prática sobre os aspectos e consequências morais da interação humana em diferentes contextos que envolvem a vida. Objetivo Explicar a origem da bioética e seus primeiros estudos dessa nova disciplina. Metodologia Disciplina oferecida na modalidade a distância (EAD). Incentiva-se a formação de grupos de estudo autônomos, orientados pelo professor. Avaliação No sistema EAD, a legislação determina que haja avaliação presencial, sem, entretanto, se caracterizar como a única forma possível e recomendada. Na avaliação presencial, todos os alunos estão na mesma condição, em horário e espaço pré-determinados, diferentemente, a avaliação a distância permite que o aluno realize as atividades avaliativas no seu tempo, respeitando-se, obviamente, a necessidade de estabelecimento de prazos. A avaliação terá caráter processual e, portanto, contínuo, sendo os seguintes instrumentos utilizados para a verificação da aprendizagem: Trabalhos individuais ou a partir da interatividade com seus pares; Provas realizadas presencialmente; Trabalhos de pesquisa. 5 As estratégias de recuperação incluirão: Retomada eventual dos conteúdos abordados nas unidades, quando não satisfatoriamente dominados pelo aluno; Elaboração de trabalhos com o objetivo de auxiliar a vivência dos conteúdos. Referências Bibliografia Básica ENGELHARDT, H.T. Fundamentos da bioética. SP: Loyola, 2008. ENGELHARDT, H.T. Bioética Global. SP: Paulinas, 2012. MARINO, JR, R. Em busca de uma bioética global. SP: Hagnos, 2009. Bibliografia Complementar CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem. SP: Martins Fontes,2001. DURAND, G. Introdução geral à bioética. SP: Loyola, 2003. GILES, T. R. Ramos Fundamentais da Filosofia: lógica, teoria do conhecimento, ética profissional. SP: EPU, 1995. GOZZO, D. Bioética e direitos fundamentais. SP: Saraiva, 2012. PEGORARO, O. Ética é justiça, Petrópolis, vozes 1999. 6 UNIDADE 1. O QUE É BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Definir, de modo geral, o termo bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A primeira aparição do termo bioética ocorreu em um artigo publicado em 1927, na Alemanha, pelo filosofo Fritz Jahr. Para o filósofo, o pensamento separatista entre o homem e o restante dos seres vivos só ocasionou um estado de imoralidade perante à natureza e a si próprio. Esse tipo de pensamento que começou desde a antiguidade e teve a sua crise no final do século XVIII, ocasionou o surgimento de um tipo de pensamento unificador; o pensamento romântico, que por causa do seu contexto histórico e intelectual não vigorou por muito tempo, fazendo com que suas ideias não se desenvolvessem em tempo suficiente. Vários pensadores, segundo Jahr, fizeram referências à criação de uma ética que englobasse os não humanos e o respeito à vida sob todas as suas formas. Por exemplo, o filósofo e teólogo Schleiermacher condenava toda ação que infligisse a vida de qualquer ser, independente da sua espécie, sem nenhuma justificação racional. Outro filósofo, que denunciava os abusos cometidos contra qualquer tipo de vida, era o pensador alemão Schopenhauer que, através de suas influências indianas, falava que a compaixão pelos animais e plantas era uma característica especial e sublime da ética. A esperança para Jahr está no século XX, pois segundo ele, a sociedade adquiriu outra forma de pensamento, por causa das guerras, da expansão das ideias socialistas e das críticas que Nietzsche fez ao sistema moral. A sociedade ocidental começou a se 7 abrirpara novas ideias que fugissem do seu espírito conservador, pois houve a necessidade de mudanças de seus padrões morais e comportamentais. No entanto, a bioética, como conhecemos hoje, é resultado de um estudo iniciado pelo filósofo americano Van Rensselaer Potter. Seu livro Bioética: uma ponte para o futuro, publicado em 1971, se tornou um marco histórico importante para os estudos da nova disciplina. Potter era um cancerologista estadunidense preocupado com questões sobre a preservação do planeta e a democratização do conhecimento científico.. Embora sendo autoridade histórica da institucionalização da palavra bioética, muitos pesquisadores questionam a originalidade do termo empregado por ele. Essas críticas apontam para dois locais, onde provavelmente o termo se originou: o primeiro local seria a Universidade de Wisconsin, em Madson, com Potter; o segundo lugar a Universidade de Georgetown, em Washington, com Andre Hellegers. Mas, diante desse questionamento, Potter continua a ser aclamado como uma referência histórica no campo da bioética, por suas ideias contidas em sua famosa obra. Van Rensselaer Potter, criador do termo moderno de bioética. (Fonte: http://abioetica.blogspot.com.br/2011/06/potte r.html) http://abioetica.blogspot.com.br/2011/06/potter.html http://abioetica.blogspot.com.br/2011/06/potter.html 8 A obra Bioética: uma ponte para o futuro, livro baseado em artigos feitos pelo filósofo entre os anos de 1950 e 1960, tem como principal preocupação a existência de uma assimetria entre a ética humana e o desenvolvimento da ciência que estuda a vida. Muitas vezes o resultado dessa assimetria ocasiona uma separação da esfera dos valores humanos com a esfera da ciência. Para Potter, os valores éticos não podem estar separados de fatos biológicos. Para que isso não ocorra, o filósofo propõe que haja uma democratização nos estudos científicos, pois o especialista pode entender muito sobre determinado organismo de um animal ou uma planta, mas, por causa desse condicionamento técnico, ocorre uma ausência na área humana, que são os valores. A ponte que Potter está propondo em seu livro é uma disciplina capaz de acompanhar o desenvolvimento cientifico (principalmente a ciência aplicada a questões sobre a vida e a saúde), com uma vigilância ética, que muitas vezes a ciência acaba deixando de lado. Para que essa vigilância ocorra, é necessário que exista uma abertura no campo cientifico, proporcionando uma interação com outras disciplinas como, por exemplo, a Filosofia e o Direito. A crítica feita por Potter ao sistema fechado das ciências não é totalmente sua, pois antes dele existiram outros pensadores que já questionavam essa atitude da ciência e sua arrogância perante outras disciplinas. Karl Popper foi um dos principais filósofos que criticou as bases da ciência que se desenvolvia, pois, segundo o filósofo, uma teoria que se fecha e não oferece meios para uma possível resposta empírica, deve ser reconhecida como mito. BUSCANDO CONHECIMENTO De Newton até o século XX ocorreu uma mistificação da ciência, tornando-se algo elevado, pois os ocidentais reconheciam nas ciências a verdade sólida, completamente e definitivamente confiável. Quando era 9 descoberto um novo fato ou uma lei científica, o sistema científico se fechava e não dava espaço para que ocorresse qualquer mudança. Dessa forma o conhecimento científico era considerado o mais confiável dos conhecimentos que os seres humanos podiam possuir. Com Popper, o pensamento científico teve uma importante transformação, pois, ao criticar o princípio de verificabilidade – princípio utilizado pelo círculo de Viena, que estabelecia o significado de uma proposição e suas condições empíricas de verdade –, o filósofo propôs a falseabilidade como princípio para a ciência evoluir. Esse princípio consiste em afirmar que teorias que não podem ser refutadas não são teorias científicas, ou seja, teorias que não oferecem possibilidades de respostas, não são consideradas teorias científicas. A excentricidade no pensamento de Potter está em criticar as ciências da saúde e biológicas, pois a crítica feita por ele na primeira metade do século XX afetou somente as ciências naturais, como a física e a química, deixando quase intactas as ciências biológicas. O que Potter apresenta como proposta em seu livro é a ideia da constituição de uma ética aplicada às situações de vida pois, para ele, esse seria o caminho para a sobrevivência da espécie humana. Todavia, para que ocorra essa nova disciplina, não é preciso um rigoroso conhecimento da técnica, mas sim respeito aos valores humanos. Os ingredientes necessários para que se realize essa nova disciplina com prudência, que segundo o filosofo julga necessário, está na junção do conhecimento biológico associado a valores humanos. Os efeitos dessa união resultarão no espírito da bioética. 10 UNIDADE 2. A ÉTICA E A BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o relacionamento da ética com a bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A bioética surge da necessidade de refletir atitudes científicas de uma maneira mais humanizada. Por isso, a ética contribui de forma significativa para fundamentar os pressupostos da bioética e também por guiá-la em suas análises. Para ajudar nesta reflexão, trago um excerto do artigo do pesquisador e doutor em clínica médica José Roberto Goldim1. A Bioética e a Ética Atualmente, a ética passou a fazer parte do discurso da população, dos meios de comunicação, de profissionais de várias áreas, com seu significado nem sempre utilizado de forma correta. Talvez devido ao pouco conhecimento formal que a maioria das pessoas tem da ética, muitas não sabem propriamente o que é a ética, qual a sua finalidade e como ela atua. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada também como adjetivo, com a finalidade de qualificar uma pessoa ou uma instituição como sendo boa adequada ou correta. Esse uso pode ter sido influenciado pela definição de ética proposta por George Edward Moore, de que ela é “a investigação geral sobre aquilo que é bom” O ideal é sempre utilizá-la na forma adverbial, ou seja, ela própria merecendo ser qualificada – eticamente adequada ou eticamente 1 Disponível: <http://www.ufrgs.br/bioetica/complex.pdf>, acesso em: 02/08/2014. 11 inadequada –, mas não pressupondo que a ética, no seu sentido substantivo, sempre se associe ao bom, ao adequado e ao correto. Ricardo Timm de Souza afirmou que a maior revolução epistemológica do pensamento ocidental foi à proposta por Emanuel Lévinas, ao postular que a ética fosse considerada como filosofia primeira, invertendo a subordinação tradicional à lógica e à ontologia. Três autores contemporâneos podem auxiliar na compreensão adequada dessas questões fundamentais. Adolfo Sanches Vasques caracterizou a ética como sendo a busca de justificativas para verificar a adequação ou não das ações humanas. Joaquim Clotet afirmou que a “ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Que o ser humano chegue a realizar-se a si mesmo como tal, isto é, como pessoa”. Complementando, Robert Veatch dá uma boa definição operacional de ética ao propor que ela é “a realização de uma reflexão disciplinada das intuições morais e das escolhas morais que as pessoas fazem”. A Bioética e a Humildade A humildade é uma virtude, ou seja, um traço adequado do caráter de uma pessoa. Potter definiu humildade como sendo a consequência apropriada que segue a afirmação “posso estar errado” e exige responsabilidade de aprender com as experiências e conhecimentos disponíveis. Durante um longo período da história da humanidade, pensou-se que seria possível conhecer a totalidadedas informações sobre um determinado tema. Ao atingir esse nível de conhecimento, seria possível conhecer todo o seu passado e também o seu futuro. A essa possibilidade, foi dado o nome de “demônio de Laplace”, pois quem detivesse todo esse conhecimento tudo poderia prever. 12 Werner Heisemberg, na década de 1930, formulou o princípio da incerteza, demonstrando a impossibilidade de conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula. Essa impossibilidade de poder conhecer tudo provocou, em consequência, o “exorcismo do demônio de Laplace”. Atualmente, é aceito que o tempo é uma variável fundamental em todo e qualquer processo. Ele provoca mudanças, e mais do que isso: associando-o à indeterminação, os processos não só mudam como podem mudar a sua própria maneira de mudar. A inclusão das noções de indeterminação e de mudanças provocadas pelo tempo alterou definitivamente as discussões científicas. Contudo, não houve a esperada contrapartida de humildade de grande parte dos cientistas e de outros profissionais envolvidos com a geração e aplicação do conhecimento. Hans Jonas, já em 1968, disse que “a humildade seria necessária como um antídoto para a ruidosa arrogância tecnológica atual”. Na Bioética, a humildade é uma característica fundamental. Ao assumir que a incerteza e a mudança são componentes sempre presentes, assume-se, igualmente, que os resultados das reflexões são sempre passíveis de discussão. A humildade permite reconhecer que não são definitivos nem imutáveis. BUSCANDO CONHECIMENTO A Bioética e a Responsabilidade Os conhecimentos e discussões gerados pela Bioética e pela ecologia contribuíram para ampliar a noção de responsabilidade. Durante muito tempo, ela era associada apenas aos deveres existentes entre seres humanos contemporâneos e geograficamente próximos. Peter Singer desencadeou, no início da década de 1970, um grande debate sobre os direitos dos animais. Fritz Jahr, em 1927, já havia proposto, 13 segundo suas próprias palavras, um imperativo bioético: “Respeita, em princípio, cada ser vivo como uma finalidade em si e trata-o como tal, na medida do possível”. O próprio título de seu artigo propunha uma visão da Bioética como sendo um “panorama sobre as relações éticas dos seres humanos para com os animais e as plantas”. A inclusão das plantas na discussão bioética é ainda altamente inovadora, mesmo nos dias atuais. Em 1948, Aldo Leopold, em seu texto sobre ética da terra, fez outra ampliação dessa discussão, quando postulou o direito das gerações futuras a receberem um ambiente preservado. Nessa mesma tradição, Hans Jonas, em 1968, propôs um outro imperativo, com a finalidade de prevenir possíveis consequências das ações humanas: “Nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do ser humano entre os objetos da tua vontade”. A expansão dessa discussão sobre direitos e deveres com a inclusão de todos os seres vivos, tanto contemporâneos quanto ainda não existentes, amplia a responsabilidade e a perspectiva atual da Bioética, como já haviam antecipado Fritz Jahr e Van Rensselaer Potter. A ecologia profunda, de Arne Ness, que serviu de base para a terceira definição de Bioética de Potter, já havia rompido com a perspectiva usual da relação dos seres humanos com a natureza, no sentido de domínio sobre a mesma – em que o ambiente natural era visto apenas como um recurso para ser desfrutado, considerando os demais seres vivos como inferiores – e de centrar essas discussões políticas apenas no âmbito nacional. A sua proposta visava gerar uma relação harmoniosa com a natureza, reconhecendo-a como tendo valor intrínseco e buscando o reconhecimento da igualdade entre as diferentes espécies, e esta perspectiva deveria ser discutida na abrangência de biorregiões, além de reconhecer as tradições das minorias. Atualmente, discutir apenas a preservação do ambiente natural passou a ser uma tarefa difícil e até mesmo ultrapassada. A diferenciação entre objetos 14 artificiais e objetos naturais, que pode parecer imediata e sem ambiguidade, na realidade não o é. Essas diferenças não são nem imediatas nem estritamente objetivas, tamanho o grau da intervenção humana e das inter-relações existentes. A preservação apenas de ambientes naturais intocados por si só os tornaria artificiais, pois, ao protegê-los, estariam sendo impostas barreiras artificiais de acesso e utilização. As reservas e parques naturais são exemplos dessa ambiguidade entre o natural e o artificial, entre o natural e o naturalizado (Lenoir). Na área da saúde, essa questão também está cada vez mais presente. Distinguir os processos de ação naturais do organismo humano dos provocados por intervenções externas a ele pode ser difícil e, em determinadas situações, impossível. As intervenções, quando avaliadas de uma perspectiva ecológica, deixam de ter apenas uma conotação individual, passando a merecer uma discussão com as demais pessoas direta ou indiretamente envolvidas. A ética da razão comunicativa de Karl-Otto Apel deu uma importante contribuição nesse sentido. Ao levar em conta as consequências diretas e indiretas das ações realizadas e por utilizar o discurso argumentativo exercido por todos os indivíduos para obter normas consensuais, torna-os corresponsáveis por todas as ações. 15 UNIDADE 3. CONTEXTO HISTÓRICO DO NASCIMENTO DA BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o contexto histórico do nascimento da Bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO Para melhor entender os princípios da bioética, é necessário entender o contexto histórico e social que Potter viveu, pois as transformações sociais, políticas e tecnológicas que ocorreram na década de 60, impulsionaram o nascimento da bioética que conhecemos hoje. Houve importantes processos de transformações da sociedade que marcaram profundamente o espírito do filósofo, tanto no campo das ciências, como no campo da moralidade. Os avanços científicos e tecnológicos fizeram surgir dilemas morais inesperados à prática da biomédica. A causa desses dilemas está nos eventos ocorridos nos anos da década 1960, nos Estados Unidos e no mundo, que são: as conquistas dos direitos civis, o que fortaleceu o ressurgimento de movimentos sociais organizados, como o feminismo, o movimento hippie e o movimento negro, entre outros grupos de minorias sociais. O resultado disso foi o manifesto de diferentes opiniões na sociedade, que buscavam respeito, proteção das leis e o pluralismo moral. Outro resultado dessas manifestações sociais foram as transformações em instituições já tradicionais, como os padrões de família, as crenças religiosas, e até mesmo a socialização das crianças por meio das escolas. As transformações não se restringem ao campo moral. Neste período ocorreram transformações significativas no campo tecnológico, desenvolvendo-se tecnologias que privilegiavam o bem estar das pessoas e a qualidade de vida 16 das populações. Enfim, a década de 1960 foi sem dúvida um marco para as transformações da sociedade em todos os seus sentidos, por isso, o surgimento da bioética pode ser visto, então, como a principal resposta no campo ético a essas grandes mudanças. Martin Luther king, líder do movimento negro que lutava por direitos civis na década de 60. (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Luther_King,_Jr.) Em 1967, acontece o primeiro transplante de coração, pela equipe do cirurgião sul-africano Christian Barnard, no Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo, África do Sul. (Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-76382011000400029) 17 Ainda nesse período de transformações, ocorreram dois outros acontecimentos que contribuíram para que a bioética fosse definida como um novo campo disciplinar:as denúncias cada vez mais assíduas, relacionadas às pesquisas científicas com seres humanos, um tema fortemente impulsionado pelas histórias de atrocidades cometidas por pesquisadores nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial; e a abertura gradual da medicina, que, de uma profissão fechada e autoritária, passou a dialogar com os estrangeiros que são os filósofos, teólogos, advogados e, posteriormente, com os sociólogos, psicólogos que passaram a opinar sobre a profissão médica, porém sob outras perspectivas profissionais. Essa invasão, por outras áreas do conhecimento em medicina, tem como causa a especialização cada vez mais direcionada dos médicos e com isso ocorre uma despersonalização do exercício médico. O efeito desse processo foi uma perda significativa de confiança na relação médico e paciente. A imagem do médico como amigo e confidente – no antigo modelo do médico de família – foi perdendo a força, até chegar a um estado de distanciamento e estranhamento entre o paciente e o médico. Esses fatores contribuíram para que a ética clássica médica de inspiração hipocrática fosse perdendo a força e que causassem o nascimento de outra ética. BUSCANDO CONHECIMENTO O filósofo americano Albert Jonsen, em 1993, escreveu um livro intitulado O Nascimento da Bioética, onde ele relata fatos que ocasionaram a consolidação da bioética. Dentre os fatos mencionados no livro, o filósofo ressalta três acontecimentos que foram cruciais para a consolidação da disciplina. O primeiro fato foi à divulgação do artigo da jornalista Shana Alexander, intitulado “Eles decidem quem morre”, publicado na revista Life, em 1962, que contava a história e os desdobramentos da criação de um comitê de ética hospitalar em 18 Washington, nos Estados Unidos (Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle). O Comitê de Seattle, como ficou conhecido, tinha o objetivo de definir prioridades para a alocação de recursos em saúde. Uma das primeiras medidas foi a seleção, dentre os pacientes renais crônicos, daqueles que poderiam fazer parte do programa de hemodiálise recém-inaugurado na cidade. O problema está em que não havia disponibilidade para todos os pacientes, pois o número de internados era muito grande. A solução que os médicos encontraram foi delegar os critérios de seleção para um pequeno grupo de pessoas, basicamente todos leigos em medicina. O grupo elegia os critérios não-médicos de seleção para o tratamento, resultando em um processo de transferência de responsabilidade da decisão médica para o domínio publico. Para a jornalista, esse evento marcou a necessidade de pensar uma ética nova para os profissionais da saúde, pois esse fato ocorrido mostrou que as noções de valores e responsabilidade da ética médica estavam equivocadas. O segundo evento ocorreu em 1966, com a publicação de um artigo do médico anestesista Henry Beecher. O médico colecionava publicações que envolvessem seres humanos em condições pouco respeitosas, extraindo os dados de jornais de grande prestígio internacional, como por exemplo, o New England Journal of Medicine, Journal of American Medical Association, Journal of Clinical Investigation, entre outros. O resultado dessa união de artigos gerou o livro, Ética e pesquisa clínica, que reúne 22 relatos de pesquisas realizadas com recursos provenientes de instituições governamentais e companhias de medicamentos em que os alvos de pesquisa eram os chamados “cidadãos de segunda classe”. Adultos com deficiências mentais, idosos, recém-nascidos, crianças com retardos mentais, pacientes psiquiátricos, presidiários, mendigos, são considerados os cidadãos de segunda classe, por não poderem assumir 19 uma postura moralmente ativa perante os pesquisadores ou autoridades dos experimentos. O terceiro e ultimo evento considerado crucial para a consolidação da bioética, segundo Jonsen, foi a resposta do público a uma atitude médica arbitrária que ocorreu na África do Sul, em 1967, com o cirurgião cardíaco Christian Barnard. O médico transplantou o coração de uma pessoa quase morta em um paciente com doença cardíaca terminal. Esse acontecimento repercutiu na mídia internacional, gerando repulsa dos cidadãos em relação à atitude do médico. O problema central dessa atitude está em como o médico pode garantir que o doador esteja realmente morto no momento do transplante. A situação levou a Escola de Medicina da Universidade de Harvard, em 1968, a procurar definir critérios para a morte cerebral, a fim de controlar casos semelhantes a esse. Os preceitos foram divulgados somente em 1975, mas ainda hoje é referência para o debate internacional sobre morte encefálica. 20 UNIDADE 4. A FILOSOFIA DA BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender os pressupostos filosóficos existentes na bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A bioética necessitou importar vários conceitos da filosofia para definir suas bases e fundamentos. Para refletir sobre a colaboração da filosofia na bioética, trago um excerto do doutor em filosofia Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto2 A Bioética pode ser entendida como uma amálgama de três concepções filosóficas modernas: o jusnaturalismo, o princípio da dignidade kantiano e o utilitarismo. O jusnaturalismo ou direito natural O Direito Natural é um direito espontâneo que surge da própria natureza social do homem. É constituído por um conjunto de princípios de caráter universal, eterno e imutável. São direitos naturais: reproduzir-se, constituir família, os direitos à vida e à liberdade. Estes direitos refletem exigências sociais comuns a todos os homens. O Direito Natural é um direito legítimo, que nasce da própria vida humana, no seio do povo. O adjetivo natural, aplicado a um conjunto de normas, já evidencia o sentido da expressão, qual seja, o de preceitos de convivência criados pela própria Natureza e que, portanto, precederiam às leis 2 Disponível <www.unioeste.br/cursos/cascavel/pedagogia/eventos/2008/2/Artigo%2010.pdf>, acesso em: 03/08/2014. 21 escritas ou ao direito positivo que são normas criadas e impostas pelo Estado (jus positum). O fundamento do Direito Natural reside na própria natureza humana. Para além da legislação positiva há um Direito Natural formado por princípios imutáveis e verdadeiros que o homem descobre graças a sua razão. A dignidade humana Para Immanuel Kant (1724-1804) cada ser humano é dotado de dignidade. A dignidade humana consiste nas particularidades únicas do ser humano: razão, inteligência, sentimentos e vontade de decidir. Nossa dignidade está dada pela capacidade de pensar, refletir, inventar e executar nossos projetos. Nós podemos aprender, memorizar, dominar nossos impulsos, isto é, somos capazes de dirigir nossa conduta ou comportamento. Também possuímos a afetividade que nos permite amar a outros seres, comunicar-nos, aderir-nos a valores e, sobretudo, nos dá consciência de nós mesmos e de nossa existência. Para Kant, a Dignidade Humana é o conceito primordial que não distingue idade, sexo, etnia, cor, crença religiosa ou política, situação civil ou econômica. Todos nós queremos ser tratados como “alguém” e não como “algo”. Ninguém quer ser instrumento de outro. O homem deve sempre levar uma vida digna e de autodomínio, uma vida de ser humano. Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes nos diz: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outra, sempre e simultaneamente como fim e nunca como um meio” (KANT, 2003, p.59). Em outras palavras, nunca trates ao outro como meio, mas sim como fim. 22 O utilitarismo O utilitarismo filosófico, de origem britânica, admite como útil tudo o que serve à vida ea sua conservação, mediante acréscimo de felicidade e bem- estar. Cada ação deve atingir a felicidade máxima, não só para o agente, mas para o conjunto da humanidade. Jeremy Bentham (1748-1832) acreditava que a natureza dos homens é regida por dois princípios: o prazer e a dor. A felicidade é o objetivo de todas nossas ações e, para unir nossa felicidade pessoal com a felicidade geral, existe o critério em medir a ação por suas consequências individuais e sociais. Bentham considerava que o princípio da utilidade pode proporcionar um critério científico para nossas ações e, com isso, reformar a sociedade. O “cálculo felicíssimo” de Bentham permite valorizar nossas ações pela quantidade de pessoas afetadas na ação. Assim, se queremos avaliar uma ação, basta calculara quantidade de felicidade ou dor que esta produziu, este cálculo nos permite estabelecer a retribuição justa, segundo Bentham, dando ao autor da ação a mesma quantidade de prazer ou de dor. Na Bioética, o utilitarismo serve para calcular os riscos e benefícios nos pacientes, avanços na biologia e os efeitos das biotecnologias. BUSCANDO CONHECIMENTO Os fundamentos da Bioética Os fundamentos da Bioética têm natureza pragmática, útil e são, a não maleficência, a beneficência, a autonomia e a justiça. A Bioética considera-os em todos os casos submetidos a sua avaliação. Os fundamentos da Bioética constituem o referencial teórico para justificar suas normas. a) O fundamento da não maleficência. 23 Foi extraído do Juramento de Hipócrates e que realizam ainda hoje os médicos (primum non nocere) “Nunca prejudicarei ou farei mal a quem quer que seja. A ninguém darei remédio mortal nem conselho que o induza à destruição”. A não maleficência indica que devemos evitar causar qualquer dano às pessoas. É dever de todo cidadão proteger os indivíduos ou a sociedade de todos os danos e evitar expô-los ao perigo. Na área das ciências da vida, o pesquisador deve garantir que os prejuízos previstos sejam evitados. Em algumas situações, o fundamento de não maleficência obriga causar o menor dano aos pacientes e aos sujeitos de uma pesquisa. b) O fundamento da beneficência. Extraído também do Juramento de Hipócrates: “Aplicarei a medicina para o bem dos doentes, segundo o saber e minha razão”. Este fundamento da Bioética significa agir em beneficio dos outros, em fazer o bem de outrem. Não só fazer o bem, mas fazer o maior bem possível e ao maior número de pessoas. A Beneficência nos exige, por um lado, evitar causar o mal e, por outro lado, maximizar os benefícios e minimizar os danos. No contexto médico, é um dever agir no interesse do paciente. c) O fundamento da autonomia. Refere-se ao livre arbítrio das pessoas: cada indivíduo é soberano sobre seu corpo e sua mente. Pela Autonomia exige-se, que os indivíduos devam ser tratados como agentes autônomos e, em segundo lugar, que os indivíduos sejam protegidos quando tenham autonomia diminuída (crianças, doentes, anciãos etc). A pessoa autônoma é capaz de deliberar sobre suas metas pessoais e ser capaz de agir segundo essas metas. Respeitar a autonomia é considerar as 24 opiniões e escolhas de uma pessoa, evitando a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para si mesmo ou para os outros. Duas condições são essenciais à Autonomia: a liberdade e a ação. A liberdade é a independência do controle de influências e a ação é a capacidade de agir intencionalmente. A Autonomia exige igualdade de direitos ao cidadão: educação básica, moradia, segurança, assistência médica, trabalho, entre outras, que são as condições básicas para o exercício da cidadania. d) O fundamento da justiça. Desde Aristóteles a Justiça é considerada a maior das virtudes porque envolve todas as ações. A Justiça exige que se trate aos seres humanos de maneira equitativa, no sentido de dar a cada qual o que lhe corresponde. A Justiça é interpretada através da visão da justiça distributiva. Esta é considerada como sendo a distribuição correta, equitativa e apropriada para a convivência na sociedade. Pela justiça distributiva se trata às pessoas de acordo com suas necessidades e suas capacidades: os que precisam mais devem receber mais. A injustiça ocorre quando um benefício que uma pessoa merece é negado sem uma boa razão. 25 UNIDADE 5. O PROGRESSO CIENTÍFICO E A BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender a relação existente entre o progresso científico e a bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO O progresso científico trouxe impactos para a sociedade moderna nos últimos séculos. Várias áreas foram afetadas, inclusive a vida, por isso, a bioética busca compreender esses impactos científicos e morais causados pela ciência. Para ajudar nesta reflexão, trago um excerto dos pesquisadores João Rui Duarte Farias Nogueira, Rui Pedro Cardoso Loureiro e Ernestina Mª V. Batoca Silva3 O Progresso Científico e a Bioética A medicina mudou mais nos últimos cinquenta anos que nos cinquenta séculos precedentes. Sucederam-se duas revoluções: a revolução terapêutica que começou em 1937 com as sulfamidas e a revolução biológica que a seguiu de perto com a engenharia genética e patologia molecular. Estas duas revoluções não só diminuíram o sofrimento dos Homens como vieram igualmente colocar novos problemas éticos (BERNARD, 1992). Na atualidade, como refere BERNARDO (1992), ocorreu uma extraordinária explosão científica e especialmente tecnológica que abalou e perturbou o ritmo da Vida Humana e a capacidade de adaptação a esta terceira revolução comandada pela informática, pela robótica, pela telepática e a biotecnologia. É neste contexto que surge um novo domínio da ética. O progresso já realizado e previsível nos domínios da biologia, e nomeadamente a 3 Disponível: <http://www.ipv.pt/millenium/millenium30/2.pdf>, acesso em: 30/07/2014. 26 biologia humana, põe questões e lança grandes desafios à reflexão ética. No campo da genética há amplas perspectivas de novos conhecimentos. As pesquisas, as experiências, as intervenções sobre os genes, os processos de fecundação, a ação sobre o cérebro, a programação e a reorientação da personalidade estão em voga. Em Fevereiro de 1997, foi anunciado o primeiro caso bem sucedido de clonagem reprodutiva de mamífero, realizada por transferência nuclear a partir de células somáticas do adulto. Este acontecimento fez cair o dogma de irreversibilidade da diferenciação celular em animais superiores e abriu a nossa imaginação às possibilidades perturbadoras de clonar seres humanos. Pouco depois, surgiu a possibilidade de desviar o processo de clonagem na sua fase pré-implantatória para a produção de células e tecidos com potencialidade terapêutica. Em Novembro de 1998 foi anunciado o isolamento de células estaminais humanas a partir de embriões e fetos, a possibilidade de as cultivar indefinidamente in vitro sem alteração das suas características e, mais tarde, a sua capacidade de serem indiferenciadas in vitro, de modo a originarem células e tecidos de enorme interesse terapêutico. Em Junho de 2000, o anúncio da sequenciação quase completa do genoma humano veio marcar o início de uma nova forma de fazer biologia e de entender quem somos, como ficamos doentes, e como envelhecemos (OSSWALD, 2001). Em 2003 sucedem-se as notícias ao nível dos media sobre o nascimento de seres humanos clonados. Perante estas novas possibilidades de pensar a ciência, e o próprio futuro da espécie humana, o meio científico necessitou do contributo da bioética. Segundo NEVES (2001), a bioética é um dos novos saberes da contemporaneidade que mais tem evoluído. A sua história é extremamente recente, tendo tido início formal e institucionalem Dezembro de 1970, quando o oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter introduz o neologismo ª 27 bioéticaº, no seu texto ª Bioethics the Science of Survivalº. No entanto, qualquer que seja o nosso horizonte de reflexão, retomando a história ou recuando à pré-história da bioética é evidente o curto espaço de tempo que medeia entre a total inexistência do que hoje entendemos por bioética e a sua extraordinária divulgação. SERRÃO (2001) refere que na proposta inicial de Potter, a bioética seria uma nova disciplina do conhecimento humano, na qual se cruzassem os conhecimentos sobre a natureza da vida e sobre a essência de todas as manifestações da vida. O bios contribuía com os dados da biologia científica, estrutural e molecular, da genética, enquanto genoma e fisioma, e outros dados científicos que definem a vida como natureza. O ethos contribuía com os saberes específicos sobre as peculiaridades das diferentes formas de vida construídas com e sobre a natureza ± a vida vegetal, a vida animal e a vida humana. ARCHER (1995) cit. in ANTUNES (1998:13) realça a importância da bioética ao afirmar ªo conceito de bioética, tal como foi apresentado por Van Potter (1970), tornou-se avassalador ao abranger não apenas as questões éticas relacionadas com o exercício clínico ± a ética em cuidados de saúde ± mas também tudo o que interfere com o fenômeno vital. De fato, apesar de todas as inovações que a ciência tem proporcionado ao homem, permitindo-lhe viver mais e melhor, é indiscutível a necessidade de imposição de limites à sua ação. Consideramos, nesta perspectiva, pertinente a afirmação de OSSWALD (2001:10) ªperdida a sua inocência nas câmaras de gás de Auschwitz ou no braseiro de Hiroshima, a ciência encara, hoje como nunca antes, o problema da sua fundamentação ética. Também NEVES (2001) concorda com esta perspectiva, referindo que o irreprimível progresso técnico científico, especialmente o biotecnológico, passa a conhecer limites que lhe são afinal impostos exteriormente pelo Homem, na sua interrogação sobre o dever 28 ser, sobre o dever fazer. A dinâmica do poder que estimula o progresso da ciência cede então ao sentido do dever que constitui a ética. Conclui-se então que o conhecimento não constitui por si só um valor absoluto, mas que se deverá subordinar invariavelmente às finalidades humanas. Apenas sob esta orientação se poderá vir a assegurar que o desenvolvimento histórico e o progresso científico em particular protagonizem um bem, tomando a preservação do humano como o único referencial universal. Transdisciplinar na sua estratégia, a bioética pretende descortinar e propor, em cada nova encruzilhada que a biologia abre à Humanidade, caminhos que conduzam à felicidade genuína e sustentável tanto da pessoa como da sociedade (OSSWALD, 2001). BUSCANDO CONHECIMENTO A Declaração de Helsínquia, apresentada pela Associação Médica Mundial, afirma de forma peremptória que os interesses da pessoa humana, nomeadamente os respeitantes à vida e saúde, se sobrepõem aos interesses da ciência. Nesta declaração surge igualmente a noção da imprescindibilidade do respeito pela autonomia e pela dignidade humana. Este consenso não resolve, obviamente, todos os problemas de interpretação e aplicação do princípio fundamental. De fato, a ofensa da dignidade humana, configurada pela experiência cruel, causadora de lesão ou morte, de sofrimento ou perda de função, não é posta em causa; mas há quem questione a dignidade do ser humano em determinados estados da vida (por exemplo no embrionário) ou condições de saúde (por exemplo demência ou estado vegetativo persistente). A Ministra da Saúde da Alemanha, Nida Rumelin, e o filósofo N. Hoerster defenderam a tese de que a dignidade humana só tem de ser respeitada quando o ofendido está consciente da sua própria dignidade, isto é, tem 29 autoestima. Hoerster propõe mesmo que a expressão direitos humanos seja substituída pela de direitos pessoais, reservando o conceito de pessoa para os seres humanos capazes de consciência e de autoestima. As consequências deste conceito são claras: o número dos excluídos do círculo das pessoas seria gigantesco e abrangeria uma parte considerável da Humanidade, incluindo os fetos, os bebês, os débeis mentais, os dementes, os escravizados e oprimidos. De resto, a fundamentação da polemica asserção é extremamente frágil, já que a dignidade humana é um princípio que o Homem se outorga a si mesmo e que só pode sobreviver se for extensivo a todos os representantes da espécie, por fazer parte da sua essência (OSSWALD, 2001). A bioética surge assim como uma renovada consciência do dever nas circunstâncias descritas de acelerado progresso biotecnológico. Por isso, ela emerge primeiramente no mundo ocidental, científico - tecnologicamente mais desenvolvido. 30 UNIDADE 6. O RELATÓRIO DE BELMONT CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender os pressupostos do relatório de Belmont. ESTUDANDO E REFLETINDO Vimos à origem do termo bioética e seu significado, e também o contexto histórico que gerou a nova disciplina. O motivo do seu desenvolvimento está nas transformações sociais e nas denúncias feitas pelos jornais sobre a arbitrariedade e imoralidade existentes nas pesquisas médicas. As consequências desses fenômenos foram gigantescas, gerando revolta popular e pressão sobre o governo para que se tomasse alguma atitude. Nesse período o governo e o congresso estadunidenses decidiram instituir, em resposta a essas acusações e pressões, um comitê nacional com o objetivo de definir princípios éticos norteadores para pesquisas. A elaboração do relatório de Belmont foi de grande importância para a consolidação da bioética e seu funcionamento, estabelecendo princípios que vão guiar as pesquisas cientificas, fazendo que o abuso médico não volte a acontecer. Em 1974, formou-se, a “Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental”, fruto de muitas reivindicações e pressões da população que se organizava e exigia uma posição do governo perante essas denúncias de abusos médicos. O comitê foi responsável pela ética das pesquisas relacionadas às ciências do comportamento e à biomedicina. Após quatro anos, o resultado do trabalho da comissão ficou conhecido como relatório Belmont, um documento que ainda hoje é um marco histórico e normativo para a bioética. Através desse relatório, foi possível elaborar três princípios, tidos como universais, que seriam as bases 31 para todos os debates, formulações, críticas e dilemas que envolvessem assuntos morais e pesquisas cientificas. Os elaboradores desse relatório julgaram entre todos os princípios analisados, três que mais se aproximavam da universalidade e que possuíam um profundo fundamento moral. Para eles, esses princípios escolhidos pertenciam à historia das tradições morais do ocidente, existindo uma inerência muito grande entre eles, fazendo com que garantissem a sua harmonia e funcionamento quando aplicados. Os princípios escolhidos foram: 1. Respeito pelas pessoas: este princípio carrega consigo outros dois pressupostos éticos: que as pessoas devem ser tratadas como agentes autônomos e que as pessoas com autonomia diminuída (os socialmente vulneráveis) devem ser protegidas de qualquer forma de abuso. Isso significa que a vontade da pessoa é inviolável em relação a pesquisas científicas, sendo somente possível a realização da pesquisa, com o consentimento do paciente depois da compreensão da totalidade desta e suas consequências. 2. Beneficência: entre os três princípios escolhidos, esse é o que mais faz referência à história das regras médicas no ocidente. Esse princípio deve ser visto como um compromisso do pesquisador na pesquisa científica para garantir o bem-estardas pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o experimento. 3. Justiça: esse princípio está intimamente relacionado às teorias da filosofia moral que atuam nos Estados Unidos. Esse princípio exige que os bens de saúde sejam distribuídos igualmente e sem peso indevido para qualquer uma das partes. Em uma época que vigorava a incerteza nas pesquisas médicas, o relatório de Belmont representou um marco divisório para os estudos de ética aplicada. A estruturação feita através dos três princípios foi o início para que as 32 universidades se posicionassem e se organizassem para a produção de artigos e teses sobre a bioética. O relatório Belmont trouxe a formalização definitiva da bioética, fazendo que os centros universitários reconhecessem a bioética como uma nova disciplina. O marco da década de 1970 foi a definição de bioética como uma nova disciplina a ser estudada. A produção de livros e propostas teóricas específicas começa a intensificar-se, mas, dentre as muitas publicações desse período, duas vêm sendo particularmente importantes e, por isso, abordaremos a seguir. O livro Problemas Morais na Medicina, organizado pelo filósofo Samuel Gorovitz, publicado em 1976, trouxe uma série de reflexões sobre situações médicas conflituosas, como o aborto e a eutanásia. A iniciativa desse livro foi expor suas ideias e argumentações a respeito de assuntos clássicos de conflito moral na saúde. Gorovitz em seu livro faz críticas ao tradicionalismo da ética médica. Para o filósofo, é necessário romper com o senso comum que o médico é especialista em decisões médicas, e também em decisões éticas. Para acabar com o autoritarismo médico, era preciso primeiro colocar em dúvida a responsabilidade e arrogância médica diante de situações de conflito. Por isso, Gorovitz propõe a autonomia do sujeito como princípio regulador, pois o valor da vida está relacionado com determinada visão de mundo, ou filosofia de vida, e só o sujeito particular pode decidir, de acordo com a sua perspectiva, o rumo de sua vida. Além dessa postura vanguardista do livro, a opção por temáticas já apontava para os assuntos que viriam com o tempo, sendo posteriormente o campo analítico preferencial da bioética: a relação médico-paciente, consentimento livre e esclarecido, paternalismo, eutanásia, suicídio assistido, aborto, além de questões relacionadas à justiça social foram exaustivamente discutidos. Com Gorovitz, a bioética recebe os primeiros estudos críticos e uma atenção maior para a disciplina. 33 S. Gorovitz, responsável por introduzir temas na bioética. (Fonte: http://asnews.syr.edu/newsevents_2011/releases/sam_gorovitz_speech.html) No entanto, foi só com a publicação de Princípios da Ética Biomédica, de autoria do filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, em 1979, que a bioética consolidou sua força teórica, especialmente nas universidades estadunidenses. Beauchamp e Childress fizeram a primeira tentativa bem sucedida de regular os dilemas relativos às opções morais das pessoas no campo da saúde. Seu objetivo era fornecer uma análise sistemática dos princípios morais que devem ser utilizados na biomedicina. BUSCANDO CONHECIMENTO A trilha aberta, deixada pelo relatório de Belmont, possibilitou a ideia de mediação dos conflitos morais, tendo como referência, certos princípios que irão regularizar as atitudes no campo da saúde. De acordo com os princípios definidos pelo relatório de Belmont, cuja elaboração teve como participante o http://asnews.syr.edu/newsevents_2011/releases/sam_gorovitz_speech.html 34 próprio Beauchamp, o livro Princípios da Ética Biomédica estabeleceu um quarto princípio como base para a teoria da bioética. O novo princípio era da não-maleficência, que, para muitos estudiosos, seria uma derivação do mandamento hipocrático de beneficência. Ocorreu também uma mudança de princípio estabelecido pelo relatório de Belmont: a mudança seria a substituição do primeiro princípio do respeito às pessoas pelo principio de autonomia; essas alterações causaram grande impacto para a bioética dos anos de 1970. 35 UNIDADE 7. A TEORIA PRINCIPIALISTA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender a teoria principialista. ESTUDANDO E REFLETINDO As mudanças ocasionadas pelas as ideias de Beauchamp e Childress fizeram com que a teoria principialista, termo genérico pelo qual ficou conhecida a teoria dos quartos princípios éticos, constituísse a teoria dominante da bioética por duas décadas, confundindo-se, inclusive, com a própria disciplina. Alguns conceitos do relatório Belmont receberam críticas da obra Beauchamp e Childress, sendo o princípio de respeito às pessoas o mais criticado. Segundo os autores, o relatório teria colocado sobre a mesma base dois princípios que não têm uma ligação clara e possível: o princípio do respeito à autonomia e o princípio de proteção e segurança às pessoas incompetentes. Por isso, o primeiro princípio do relatório foi substituído pelo princípio da autonomia, que se refere somente à decisão do sujeito como centro nas decisões médicas. Se o princípio da autonomia gerou tantas discussões e deliberações em relação ao proposto pelo relatório Belmont, as modificações no princípio de beneficência ocorreram de uma forma mais tranquila em relação ao anterior, pois era preciso diferenciá-lo do princípio de não-maleficência. A obra apresentou também um tripé básico de ética aplicada, que ligava a ideia de beneficência, autonomia e não-maleficência ao respeito à autonomia das pessoas e a proteção e segurança de seus interesses, mesmo em situações de vulnerabilidade física ou social. 36 O princípio que menos sofreu alterações foi o princípio da justiça. Os autores esclarecem que esse princípio permaneceu quase intocável, porque o seu referencial de maior peso argumentativo e teórico habita em outras áreas do conhecimento, como, a economia, a política e a saúde pública. Esse vazio existente nos debates sobre o princípio de justiça não foi apenas uma característica da teoria principialista, mas também de toda a bioética durante duas décadas. Enfrentar o paradigma da justiça no campo dos conflitos morais é uma tarefa mais dura e dramática do que a defesa dos três outros princípios citados. Só recentemente o tema da justiça começou a ser debatido no campo da bioética, por pensadores que estão fora do círculo tradicional da produção do pensamento bioético. A obra escrita por Beauchamp e Childress é direcionada a um público bastante eclético: médicos, enfermeiros, professores, pesquisadores, responsáveis pela elaboração de políticas públicas de saúde, estudantes, teólogos e cientistas sócias, entre outros. A causa dessa grande variedade está no espírito multidisciplinar que a obra pode alcançar, e também na falência de autoridade técnica no campo ético, permitindo que estrangeiros (profissionais de outras áreas) tenham acesso à obra e a seus debates. Para os autores, a bioética, por ser um exercício de ética aplicada, deveria interagir-se com o seu conteúdo teórico em, pelo menos, três esferas da realidade: a prática terapêutica, a oferta de serviços de saúde e a pesquisa médica e biológica. Para que essa iniciativa se realizasse, os autores buscaram embasamento em algumas das ideias clássicas da filosofia ocidental, como o utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, a deontologia dos gregos antigos, como a filosofia de Aristóteles e Hipócrates, e também pegaram influências do imperativo categórico de Immanuel Kant. 37 Para que se possa fazer uma análise dos quarto princípios da teoria principialista, é necessário ter em mente a composição e a origem dos elementos que fazem parte dos princípios estabelecidos. Por isso é preciso ter conhecimentodas escolas citadas. O primeiro princípio e o mais significativo na bioética, o da autonomia, estabelece, como pré-requisito para o exercício das moralidades, a existência da pessoa autônoma; mesmo que para o exercício da autonomia seja necessário que o indivíduo seja autônomo, o princípio aponta para dois outros valores fundamentais do pensamento liberal, especialmente o de inspiração estadunidense: a competência e a liberdade individual. Esse princípio tem como pressuposto a democracia e a igualdade dos indivíduos na sociedade como pré-requisitos para que diferentes morais possam coexistir. Nessa construção ideal de sociedade, entramos em alguns problemas analíticos, pois não sabemos até que ponto o indivíduo pode exercer a sua autonomia sem ser barrado ou impedido por forças exteriores a ele. A ideia de consentimento foi à saída formal encontrada para que se pudessem garantir os interesses e a proteção dos pacientes. No entanto, para os autores, a validez de um consentimento só é possível, a partir do momento que o indivíduo demonstre competência para decidir; domínio de informações detalhadas a respeito do seu caso e das diferentes possibilidades terapêuticas a ele relacionadas; capacidade para compreender as informações recebidas para que pudessem embasar o processo de tomada de decisões; e oportunidade para escolher livre e voluntariamente a opção mais adequada para o caso, sem estar submetido à coerção de outras pessoas ou instituições. A autonomia se torna algo relativo, pois depende do caso e da situação para que ela possa ser exercitada, tanto pela própria pessoa ou grupo, como ao respeito à autonomia que as “protegem”, sejam elas os cuidadores ou os profissionais da saúde. 38 O princípio da não-maleficência tem, como herdeira, uma tradição existente desde a antiguidade, com o médico Hipócrates (460 a.C.) e sua máxima primum non nocere – “acima de tudo, não cause danos”. Por ser um princípio negativo, ele vai contrapor o princípio da beneficência que tem um caráter positivo, por isso o princípio da não-maleficência em sua aplicação sofre fortes críticas e algumas situações de sua prática vêm sendo contestada. As críticas se fundamentam na má definição entre os dois princípios, beneficência e não-maleficência. Alguns exemplos irão esclarecer esse problema no campo da bioética: o caso da suspensão de tratamentos extraordinários para pacientes, com morte física iminente; o tratamento de recém-nascido com sérias limitações físicas; o aborto de crianças com anomalias fetais graves; o processo decisório de pessoas incompetentes. A dúvida moral desses e de outros casos é causada pelas indefinições dos valores que existem nos princípios de beneficência e não-maleficência. Sendo assim, não é possível fazer uma clara distinção desses dois princípios; por exemplo, não é possível dizer se a interrupção da gestação em casos de graves anomalias fetais será sempre uma atitude baseada no princípio da beneficência ou da não- maleficência. A fragilidade desses dois princípios não é derivação de um deslize da teoria principialista, mas decorrente da impossibilidade de encontramos saídas boas ou más universalmente válidas. E por último, o princípio da justiça que se difere dos três outros princípios comentados, por mostrar maior ênfase para o papel das sociedades e dos movimentos sociais organizados na bioética. A justiça distributiva traz à luz um problema que já existe um bom tempo: os conflitos existentes entre reivindicações e interesses particulares e com a vida coletiva e o bem para a sociedade. O princípio da justiça serviria para sanar e equilibrar essas diferenças conflituosas que existem na sociedade, sendo, entre os princípios, este o de maior grau de importância na década de 1990 no campo da bioética. 39 Todavia a sua aplicabilidade é ainda bastante limitada, pois a sua dificuldade está nas sérias dúvidas sobre o que pode ser necessário para a sociedade e que, ao mesmo tempo, também garantiria os interesses individuais. Por isso, o princípio da justiça foi, entre os princípios da teoria principialista, o que menos se repercutiu no cenário da bioética, tendo só a sua importância maior na década de 1990 BUSCANDO CONHECIMENTO A teoria principialista escrita pelos autores Beauchamp e Childress tratava de assuntos que basicamente estavam ligados à relação médico-paciente. Isso ocasionou uma hegemonia acadêmica nas universidades e na bioética por quase duas décadas, sendo a principal ética estudada nos Estados Unidos e nos países periféricos, importadores das teorias bioéticas. Mas, a partir da década de 1980, vários críticos e pesquisadores da teoria principialista, empenharam-se em demonstrar a existência de falsas ideias na teoria principialista. O que fascinava os pesquisadores em relação à teoria principialista era seu idealismo universalizante, tornando-a a principal técnica ética, facilmente propagada em congressos, seminários, e encontros. O suposto espírito transcultural da teoria principialista fazia seus seguidores defenderem que os valores éticos propostos serviam para toda a humanidade. E foi exatamente esse espírito universalista que caiu e ocasionou a segunda crítica dos teóricos pós-principialista. 40 UNIDADE 8. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: H. TRISTAM ENGELHARDT CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o período pós-principialista da bioética e o pensamento de H.Tristam Engelhardt (1941 -) ESTUDANDO E REFLETINDO No final da década de 1980 e durante a década de 1990, a bioética passou por grandes transformações nos Estados Unidos. As críticas sobre o caráter universalizante da teoria Principialista se torna algo mais frequente, resultando em um abalo nas bases da bioética que tinha se estabelecido. Com a crise interna no campo da bioética, ocorreu uma abertura para vários pensadores que, por terem um pensamento diferente da teoria hegemônica, não tinham voz perante as universidades e congressos. A quebra de tabus e uma análise nas estruturas da bioética tornam-se a principal característica desse período. O relativismo moral também tomou conta do novo cenário da bioética, pois a ideia de constituir uma ética de caráter universalizante, como a teoria principialista, só causou opressão em culturas ditas como periféricas. Esse relativismo a que os filósofos aderiram em suas teorias tem como propósito pensar o respeito à vida de uma forma que não imponha sobre a cultura de determinado país, certos padrões de outra cultura, possibilitando assim, o desenvolvimento e a liberdade do individuo com a sua cultura. H.Tristam Engelhardt é um dos autores que demonstrou, muito precocemente, uma preocupação com a relatividade moral em relação à saúde e a doença dos seres humanos. Sua obra mais famosa, Os Fundamentos da 41 Bioética, publicada em 1986 e revista em 1996, se tornou de grande importância para os estudos bioéticos e constitui uma referência obrigatória para os iniciantes na disciplina. Engelhardt, responsável por introduzir o relativismo na bioética. (fonte: http://www.svots.edu/events/st-ambrose-society-hosts-public-lecture-dr-h-tristam-engelhardt) A base do pensamento de Engelhardt é a constatação da falência de modelos éticos universalizantes, como por exemplo, a teoria principialista. Por expor uma teoria de cunho relativista, o autor, que possui fortes influências cristãs e liberalistas, acaba se tornando alvo de muitos pesquisadores que, por não entenderem o que realmente o autor quer mostrar, acabam fazendo juízos equivocados, afirmando que Engelhardt propõe um “modelo libertário’ para a bioética, muitas vezes comparando-o com os princípios do filósofo Paul Feyerabend, que propõe um tipo de “tudo vale” para as ciências. Embora o autor não consiga esconder a suainspiração libertária, a sua proposta teórica vai muito além da mera defesa da liberdade ou individualismo na bioética. No modelo engelhardtiano, o limite de uma aplicação prática ocorre no momento que aquela aplicação irá agredir um inocente, ou seja, a http://www.svots.edu/events/st-ambrose-society-hosts-public-lecture-dr-h-tristam-engelhardt 42 aplicação só é válida quando a pessoa estiver ciente de todos os efeitos da aplicação, e estiver previamente consentido em participar. O inocente, para Engelhardt, é aquele que desconhece o que está sendo feito e, portanto, não é capaz de exercer sua autonomia. A permissão seria a condição básica para que ocorra a sobrevivência de diferentes morais, pois somente com o consentimento individual, as decisões poderiam ser julgadas eticamente aceitáveis ou não. Segundo o autor, não existe bom ou mau definidos, ambos são relativos em cada comunidade moral e seu período histórico e social. Somente com a permissão, começa a autoridade moral, podendo avaliar os casos sob uma visão estreita e concedida, que foi dada a uma pessoa para avaliar a situação. A combinação entre o respeito e a permissão determina inicialmente o discurso ético secular, que deverá intermediar pacificamente o encontro entre os estranhos morais. Outro conceito estudado na bioética depois de Engelhardt foi a ideia de estranhos morais, que, para o autor, seriam as pessoas que não compartilham as mesmas ideias morais relacionadas ao bem-viver. Para que exista conflito moral entre os estranhos morais, não é necessário que eles tenham que ser inimigos, pois basta apenas que exista uma discordância entre os seus valores e crenças, fazendo surgir uma desarmonia suficiente para ocasionar um distúrbio de convivência. Em contrapartida, existem os amigos morais que são aqueles que dividiriam uma mesma moralidade essencial, que é o pleno acordo quanto à menção de julgamento moral para os seus atos na sociedade. Segundo Engelhardt, o nascimento e consolidação da bioética teriam se fortalecido do caos e da fragmentação, que o contexto histórico oferecia, pois as sociedades contemporâneas são herdeiras das ideias e valores iluministas, no entanto, esses valores entraram em decadência no inicio do século XX e a bioética se apoiou nessa base insegura. 43 Só através do reconhecimento da diferença moral e cultural dos povos, e a perda do referencial absoluto para que ocorra uma avaliação moral, é que se deu o renascimento da bioética como um discurso de ética aplicada às situações de saúde e doença. BUSCANDO CONHECIMENTO A proposta de uma ética universalizante e absoluta como um referencial para os conflitos morais não funcionaria mais hoje, pois houve uma grande mudança na mentalidade das pessoas e no contexto histórico. Para o autor, o modelo que mais se adequaria com a atual sociedade e com o projeto da bioética é aquele que mantém os valores particulares do indivíduo e da comunidade. Com o quadro relativista, a bioética se depara com problemas de enfrentamento de situações concretas da vida cotidiana. A saída para Engelhardt quanto aos encontros que ocasionam os conflitos no cotidiano, seria a difusão de tolerância como um valor mediador para a sobrevivência humana na diferença moral. A prática da liberdade moral seria a condição de existência da diversidade. Tolerância e liberdade seriam dois valores capazes de suportar o encontro entre moralidades, dando base para o relativismo conceitual. A associação entre relativismo e tolerância fez com que o modelo teórico do autor assumisse para si a lógica cultural como a única e legítima instância de julgamento sobre as crenças sociais, rompendo-se assim, a fronteira para o relativismo nas práticas sociais. Essa linha de pensamento, muito comum com os antropólogos culturais, tem uma fragilidade enorme quando transferida para os limites de cada cultura, que, em última instância, se converte em dominação e opressão. É nesse imobilismo prático que a teoria de Engelhardt nos limita a viver e que reside a sua obra. A não conclusão dos conflitos morais se torna algo pouco aceitável para os pesquisadores que buscam tranquilidade e segurança 44 em uma teoria. A verdade para o autor está inerentemente ligada com os interesses e jogos de poder característicos de cada cultura. A autoridade moral passa, então, a substituir a ética universal, pois a autoridade moral de cada grupo e cultura são responsáveis por determinar as mudanças dos agentes do imperativo moral. 45 UNIDADE 9. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: PETER SINGER CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o pensamento de Peter Singer (1946 -). ESTUDANDO E REFLETINDO O filósofo australiano Peter Singer é conhecido por suas grandes contribuições teóricas e conceituais no campo bioético. Conceitos como, ideologia especista, ou seja, convicções que os seres humanos são superiores aos outros animais são de sua autoria e conceitualização, e são hoje de uso corrente entre pesquisadores do mundo inteiro. Singer foi, durante muito tempo, presidente da associação internacional de Bioética (IAB), a entidade mais importante no mundo nessa área. Os livros de Singer, em especial Liberdade Animal (1975), Ética Prática (1979) e Deve o Bebê Viver? A Questão das Crianças Deficientes (1988) vêm sendo largamente discutidos e, muitas vezes rejeitados por pessoas pertencentes a movimentos sociais, como: pessoas portadoras de deficiência, grupos religiosos, defensores dos direitos humanos, entre outros. O que faz com que Singer tenha tantos questionadores é o fato de o autor tocar em temas considerados tabu, especialmente em assuntos como eutanásia, suicídio assistido e infanticídio. 46 Singer quebrou vários tabus no campo bioético e introduziu novos conceitos, que são estudados até hoje (Fonte: http://www.anda.jor.br/20/12/2013/filosofo- peter-singer-fala-obra-liberta) Esses temas são reconhecidamente, entre outros, os mais intimamente que provocam reações na sociedade, e fazem as comunidades morais expressarem suas crenças, muitas delas conflitantes entre si. Na sociedade existem comunidades religiosas e laicas. As religiosas defendem o princípio da heteronomia e as laicas defendem o princípio de autonomia, mas o problema está no momento que esses dois princípios se cruzam e entram em conflito nas questões relacionados ao aborto ou à eutanásia, impossibilitando qualquer forma de diálogo pacífico. Para resolver esse problema, o autor se apoia nas teorias utilitaristas do século XIX. O utilitarismo foi uma teoria desenvolvida pelos filósofos Jeremy Bentham e John Stuart Mill, durante o século XIX. O utilitarismo se baseia nos princípios de dor e prazer, que servirão como guia para a ação humana, tendo como máxima a seguinte frase “maior felicidade para o maior número de indivíduos”. Esse princípio tira do centro o egoísmo ético e propõe uma abrangência como forma de resolver os problemas morais. Singer se autodefine consequencialista no campo moral. A sua preocupação está nos resultados das ações consideradas boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas, e não com a definição do que venha ser o certo, a bondade ou a justiça. Singer se fundamenta na premissa clássica do utilitarismo para resolver os problemas morais na bioética, tendo como reflexão, as ações que devem ser 47 consideradas éticas; se ela está aumentando ou diminuindo a felicidade coletiva. Para o autor, o limite da sensibilidade seria o referencial para as ações éticas ou não. O limite da sensibilidade, para Singer, é o entendimento de sofrimento, de alegria ou felicidade, sendo o único limite defensível de interesses alheios. Valores como autonomia passa para segundo plano, pois princípios como felicidadee diminuição do sofrimento são valores emergenciais, e que, necessitam de uma atenção maior. É nessa parte entre a liberdade e a felicidade que muitos pesquisadores se apoiam para formular criticas contra a teoria de Singer. Em resposta a essas criticas, Singer defende que jamais propôs alguma forma de subordinação dos interesses dos indivíduos à lógica do Estado, ou mesmo jamais traduziu suas convicções éticas em regulamentações totalitárias perante comunidades de deficientes, propondo qualquer forma de extermínio. Quando afirma que um embrião ou um feto pode ser considerado substituível, isto é, que deve ser considerada eticamente legítima a interrupção da gestação em casos de má-formação fetal, Singer está partindo de algumas premissas que devem ser sempre explicitadas ao discutir suas ideias. A primeira delas, é a crítica ao princípio da santidade humana que, para o autor, é um erro especista, por afirmar que a vida é um dom, uma vez que cotidianamente dispomos de centenas de vidas de animais não-humanos em pesquisas e experimentos científicos. Exibir a ideologia especista na ciência foi um projeto específico de Singer. No livro Liberdade Animal, o foco é sobre os direitos dos animais não-humanos, pois segundo o autor, os racistas violam o principio de equidade ao favorecerem os interesses da própria raça, os sexistas violam esse mesmo princípio por favorecer os interesses do próprio sexo, e os especistas fazem o mesmo, favorecendo os interesses da sua espécie em relação a outra espécie. A meta do autor não é diminuir a dignidade e respeito ao ser humano, mas sim abalar nossas convicções e certezas a respeito do ser humano e sua 48 tirania diante dos animais não-humanos. Em contraste com os maus-tratos sofridos pelos animais em laboratório ou pelo exagero de nossa dieta carnívora, Singer põe por terra que o princípio de que a vida seja um bem inviolável ou santo. A vida humana é assim considerada, um desrespeito à vida de outros animais. Esse discurso sobre a santidade humana causou um grande alvoroço na comunidade científica e ética mundial. Para diversos críticos, o filósofo estaria igualando esferas separadas pela ética, humanos e os não-humanos, indicando assim, que a realização de pesquisas com ratos seria o mesmo que realizar pesquisas com os seres humanos. Essas comparações que Singer faz dos humanos com os não humanos, chegando a até afirmar que algumas pesquisas são eticamente mais defensáveis, quando realizadas com fetos órfãos, portadores de anomalias incompatíveis com a vida extra-uterina, como por exemplo, a anencefalia do que com gorilas ou macacos, dado o grau de consciência e senso de si que os animais teriam em detrimento dos fetos sem cérebro, tem uma justificativa. Considerando que o limite da sensibilidade é a base para as ações éticas, Singer não hesita em afirmar que não podemos atribuir o valor maior a vida de um feto, em relação à vida de um animal do mesmo nível de autoconsciência, racionalidade e capacidade de sentir, pois nenhum feto é uma pessoa e não tem o mesmo direito à vida que uma pessoa tem. BUSCANDO CONHECIMENTO Para o autor, o fato de um feto anencéfalo ser membro da espécie humana não lhe garante automaticamente o titulo de pessoa humana. O que determina o status de pessoa humana é a capacidade de se relacionar-se socialmente com outras pessoas, ter a noção de tempo histórico, a linguagem, ou seja, somente atributos que um ser vivo poderia desenvolver naturalmente, 49 do que o mero pertencimento a uma espécie. Na busca de diferenciar pessoas de membros da espécie, Singer não cai na tentativa de enumerar “indicadores de humanidade”, isto é, uma sequência de qualidades que diferenciariam os humanos de outros animais, tal como inúmeros autores da bioética fizeram. A proposta de Singer é aumentar a dignidade dos animais não-humanos, desmascarando a supremacia irrefletida dos humanos. Pouco importa quais sejam os indicadores, apenas a constatação que animais não-humanos sentem mais prazer e sofrimento que alguns fetos portadores de graves anomalias são válidos para o referencial de sua teoria. Por causa dessas ideias, a imagem de Singer começou a ser vinculada com adjetivos de nazista, preconceituoso, ou até mesmo de assassino. Em efeito disso, muito das aparições públicas em congressos e em mídias, é para esclarecimentos de suas ideias e pressupostos, e menos para debates e trocas de conceitos. 50 UNIDADE 10. A VOLTA DAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS NA BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender a importância das perspectivas críticas na bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A bioética teve seu campo demarcado no final da década de 1970. A teoria principialista representou para muitos pesquisadores a base necessária que a bioética precisava para se desenvolver e tornar-se uma nova disciplina. Mas a prática dessa nova disciplina mostrou algo diferente de suas perspectivas anteriores. A proposta progressista da disciplina: a possibilidade de mediar dilemas morais em saúde de forma abrangente e pluralista não teve correspondência nas publicações e na prática dos primeiros pesquisadores da bioética. O erro estava em confundir a disciplina da bioética com uma das suas correntes teóricas, como por exemplo, a confusão da teoria principialista com a própria bioética. Por muito tempo, a teoria principialista ficou colada à própria bioética provocando sérios mal-entendidos à disciplina. As consequências disso resultaram em marcas profundas na proposta teórica e social da disciplina, fazendo que alguns críticos desenvolvessem ideias contrárias à teoria predominante. Com a proposta de renascer o pensamento crítico no campo da bioética, os filósofos Danner Clouser e Bernard Gert foram de grande importância para essa fase. Após analisarem o livro Princípios da Ética Biomédica, os filósofos encontraram dois grandes problemas. O primeiro deles foi de origem 51 epistemológica, sendo o de importância maior para os primeiros estudos críticos. Segundo Clouser e Gert, o problema existente está na infração que a teoria principialista fez a qualquer estrutura de uma teoria moral. Pois, segundo os autores, o ciclo realidade e conflito, moral e resolução, exige a referência de uma teoria moral, e a teoria principialista nada mais fez do que recortar várias teorias éticas da história da filosofia e costurar todas elas juntas em sua própria teoria. Para os críticos, o status teórico das ideias de Beauchamp e Childress pode ser considerado uma compilação grosseira e reduzida de quatro grandes teorias da filosofia moral em quatro princípios: a autonomia de Kant; a beneficência de John Stuart Mill; a não-maleficência da tradição hipocrática; e a justiça de John Rawls. Os críticos da teoria principialista afirmam que os filósofos Beauchamp e Childress realizaram uma “costura” de conceitos sem se importar com o contexto histórico. (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Im manuel_Kant) Eis o resultado dessa mistura de teorias: os quatro princípios da teoria principialista não se encontram unidos por um corpo forte teórico, pois, já que não existe uma teoria moral que ligue os princípios, não existe também um guia http://en.wikipedia.org/wiki/Immanuel_Kant http://en.wikipedia.org/wiki/Immanuel_Kant 52 que promova a ação através de ideias claras e coerentes que as justifiquem. A dificuldade em instrumentalizar os princípios diante de casos concretos de conflito moral tem como causa, a soberania que cada princípio exerce sobre o outro, existindo uma espécie de disputa. Como não existem prioridades e nem procedimentos específicos sobre qual valor deve predominar, as soluções dependem de julgamentos particulares sobre a importância de cada princípio. Uns dos exemplosmais significativos desse conflito existente entre os princípios da teoria principialista é a dependência do fumo. O que deve ser mais importante: respeitar a autonomia do indivíduo e não proibi-lo de fumar, mesmo diante de um quadro de infecção pulmonar, ou, em nome da beneficência, impedi-lo de comprar cigarros? Em casos de lista de espera por um pulmão, deve-se considerar a pessoa não-fumante prioritária em respeito ao princípio da justiça social? A escolha entre qualquer um dos valores exige reflexão sobre que tipo de moralidade e sociedade que queremos para nós e para as futuras pessoas que virão. Não existe fundamentação quanto à natureza da dependência do fumo, ou mesmo quanto à pessoa que determine o porquê de escolher qualquer um dos princípios. Não existe uma hierarquia prevista do princípio da autonomia sob o da beneficência ou da mal-maleficência sob a justiça, por exemplo. A conclusão deixada por Clouser e Gert era que, uma vez não estabelecida à inter- relação e a hierarquização entre os princípios, estas competiriam entre si e falhariam como instrumentos de mediação para os conflitos morais, tal como no exemplo do fumo. O que se pode notar, nesses vinte anos de predomínio da teoria principialista no campo da bioética, é o domínio do princípio da autonomia sobre os outros três princípios. Mesmo sendo um dos princípios mais fundamentais em uma sociedade democrática, os criadores da teoria principialista não fizeram uma hierarquia de valores com os seus princípios, pois 53 a priorização da autonomia teria sido a mais aceita pela bioética, por ser ela uma força conquistada pelo uso e não pelos pressupostos teóricos do principialismo. A segunda crítica se foca no desenvolvimento da bioética mostrada como categoria de “princípio” que teria sido utilizada de forma errônea pelos autores da teoria principialista. Na historia da filosofia moral, a ideia de princípio estava relacionada como guia para ação humana, delimitando o campo de atuação de uma determinada teoria que orientaria o agente moral no processo de tomada de decisões. Mas, para Clouser e Gert, os princípios da teoria principialista não cumpririam esses requisitos teóricos e práticos, porque eles são recortes de outras teorias éticas da historia da filosofia. Esses princípios funcionam somente como lembretes de tópicos ou como pontos que um agente moral deveria considerar para a tomada de decisão. A ideia de “faça isso, não faça aquilo” não significa o resultado de um sistema moral unificado que oriente a ação. Para os críticos, a teoria principialista se resume em ser uma simples teoria sofisticada para lidar com os problemas específicos em algumas áreas. Outro problema na teoria principialista é a negação da interdependência sociomoral dos indivíduos e suas atitudes solidárias na coletividade que foram desconsideradas na teoria de Beauchamp e Childress. Esse processo foi resultado da sobrevalorização da ideologia individualista pela cultura estadunidense, mas principalmente das bases filosóficas das quais o principialismo inspirou-se. Segundo a teoria principialista, a ética seria fruto de uma atividade racional do ser humano, onde não existe espaço para as emoções ou mesmo para as contradições, características da dúvida moral. Através das críticas iniciadas pelos filósofos Clouser e Gert, os limites da teoria principialista se tornaram cada vez mais explícitas, dando abertura para que pesquisadores oriundos de países periféricos da bioética pudessem 54 expressar as incompatibilidades locais com os princípios eleitos por Princípios da Ética Biomédica tidos como universais. Esse acontecimento foi inédito, pois o discurso multiculturalista surge com aspectos críticos às propostas universalizantes da ética filosófica. Isso marca a segunda fase da critica ao principialismo: o resgate das diferenças culturais assumindo um papel decisivo na articulação das diferenças entre as crenças morais. 55 UNIDADE 11. A BIOÉTICA PERIFÉRICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender a bioética periférica. ESTUDANDO E REFLETINDO Os conceitos de bioética central e periférica foram desenvolvidos pelo antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira, que se dedicou a uma análise do conhecimento antropológico e de suas formas de difusão pelo mundo. Com o seu modelo analítico, Cardoso de Oliveira fez uma relação entre os países centrais e periféricos na produção de conhecimento antropológico, mapeando o pensamento bioético e sua expansão nos mais diferentes centros de ensino e pesquisa. Em um artigo intitulado A língua bioética, Seus Dialetos e Idioletos, Volnei Garrafa, Débora Diniz e Dirce Guilhem produziram algo semelhante à obra de Cardoso de Oliveira para o pensamento bioético. Segundo os autores, é possível pensar a bioética levando em conta a relatividade social e histórica, fazendo que países comecem a produzir ideias, sem precisar importar conceitos dos países tidos como centrais em produção da bioética. As bioéticas periféricas seriam aquelas desenvolvidas nos países periféricos da bioética, isto é, países em que a disciplina surgiu mais tardiamente e onde os estudos vêm se caracterizando pela importação de teorias dos países centrais, aqueles onde originalmente nasceu e se consolidou. Mas o problema consiste em que os conceitos de centro e periferia não aludem a um quadro valorativo, ou seja, centro e periferia existem em relação relativa que varia de país para país, dependendo das referências a serem consideradas. Por exemplo, o Brasil é um país periférico na produção do pensamento bioético 56 e que, em algumas situações, especialmente no contexto da América do Sul, vem assumido características centrais As qualificações de central e periférico são provisórias, pois pode um país inicialmente ser periférico e com o tempo ser tornar central. Países como Dinamarca, Espanha, Brasil e o Japão são considerados periféricos no que diz a respeito à estruturação e à produção de estudos bioéticos. Um país que pode unanimemente ser considerado central seriam os Estados Unidos, sendo que alguns pesquisadores consideram a bioética um movimento exclusivamente estadunidense. Dentro desse conceito, a bioética brasileira se caracteriza como importadora de teorias de países centrais, ou, mais especificamente, se definiria importadora da bioética estadunidense, sendo a teoria principialista, a principal importação. Durante muito tempo, a teoria principialista foi sendo importada por diversos países como fonte de solução de problemas morais decorrentes de situações cotidianas da prática médica e de avanços científicos e tecnológicos. Roberto Cardoso de Oliveira, crítico importante da bioética periférica. (Fonte: http://www.buscape.com.br/o-trabalho-do-antropologo-roberto-cardoso-de-oliveira- 8571396825.html#precos) http://www.buscape.com.br/o-trabalho-do-antropologo-roberto-cardoso-de-oliveira-8571396825.html#precos http://www.buscape.com.br/o-trabalho-do-antropologo-roberto-cardoso-de-oliveira-8571396825.html#precos 57 Mas essas transferências de teorias morais não acontecem de forma passiva e receptiva, pois, para outras realidades, muitas vezes ocorrem certas rejeições a realidades especificas, seguindo as suas próprias regras e costumes. Quando ocorre uma transferência de teorias éticas, ela não só traz consigo o seu conceito, mas também traz os contextos socioculturais de onde foram constituídas, apesar de que esse aspecto passa, muitas vezes, imperceptível para vários pesquisadores. Assim como a técnica, que ambiciona universalidade por composição, todas as teorias bioéticas seriam também transculturais, a despeito de suas inspirações filosóficas e morais, muitas vezes locais. Por exemplo, a teoria principialista possui fortes características da culturaestadunidense, que por causa de seu contexto histórico e social, o apelo à autonomia tem um caráter elevado, que é um resultado caro das tradições filosóficas anglo- saxônicas, o que para outros países acaba se tornando uma espécie de camisa- de-força para adequá-lo a outras realidades culturais e morais. A inadequação da teoria principialista com outras culturas necessita de desdobramento crítico e de uma análise detalhada sobre concepções éticas e culturas particulares, resultando em uma tarefa que se assemelharia com a mesma função de um etnógrafo de diferentes moralidades. Pois somente uma sensibilidade etnográfica sobre diferentes moralidades possibilitaria uma avaliação completa sobre os limites de cada princípio, identificando também as suas utilidades, seus conflitos, entre outros. Porém, a tendência dos pesquisadores periféricos é muito conservadora e ainda se fundamenta na teoria principialista, sem avaliações críticas com relação às consequências dos choques culturais e morais. No entanto, apesar de essa tendência ser predominante nos meio periféricos, existem algumas críticas que valem a pena ser lembradas. Um exemplo é a crítica de Leonardo de Castro, um pesquisador filipino, que no artigo Transferindo Valores pelo Transporte de Tecnologia, faz uma 58 análise bastante crítica sobre a incorporação de novas tecnologias de transplante de órgãos que provocou o surgimento de novos dilemas morais nas Filipinas. Ele diz que, paralelamente à introdução de novas tecnologias médicas, ocorre também uma transferência de valores, fato que pode acarretar consequências não previstas pela técnica. Para o pesquisador, caso não haja o acompanhamento crítico da adoção de alguma nova tecnologia, os resultados socioculturais podem ser desastrosos para a integridade moral de um povo. Para exemplificar esses efeitos, o pesquisador analisou o processo de introdução da tecnologia de transplantes de órgãos nas Filipinas perante os conceitos nativos de morte. Para os filipinos, a violação do corpo vai contra os princípios básicos da sua cultura, mas o interessante dessa análise é que ele mesmo sendo crítico em relação à ciência faz um apelo não negativista perante a ciência. Ao contrário, propõe-se apenas que essa associação técnica- moralidade seja reconhecida para que não ocorram rejeições grosseiras às novas descobertas científicas, tal como se processou nas Filipinas com a tecnologia de transplantes. Outro exemplo de crítica foi o “Congresso de Bioética Estados Unidos - Japão”, que aconteceu em Tóquio, em 1994, sendo um marco importante no debate de bioética. O evento foi registrado no livro Bioética Japonesa e Ocidental: Estudos de diversidade Moral, organizado pelo filósofo japonês Kazumasa Hoshino, autor de uma série de livros e artigos sobre bioética. Para o autor, o foco de discussão do evento estava nas questões relacionadas às similaridades e diferenças entre os costumes japoneses com os costumes do ocidente (principalmente dos estadunidenses), no se refere aos serviços de saúde, transplante de órgãos, concepções de morte, e os sentimentos dos japoneses em relação aos valores morais ocidentais que foram enraizados em sua cultura. O aprofundamento foi o conflito entre as 59 moralidades que a aplicação não questionada da teoria principialista causou ao redor do mundo, tendo os valores japoneses como contrapartida. BUSCANDO CONHECIMENTO Foi nesse contexto de diferenças morais que o filósofo Kazumasa lançou uma das suas ideias críticas em relação à bioética, que se resume na arrogância dos ocidentais e da sua cultura em achar que eles possuem o domínio da verdade. Para o autor, a prova da arrogância está na teoria principialista, pois carrega consigo certa presunção ocidental em supor que os princípios éticos universais seriam os de inspiração anglo-saxônica. A crítica realizada por Kazumasa não foi facilmente saboreada pelos pesquisadores americanos, pois o caráter relativista exigido pelo autor traz consigo uma exigência de revisão filosófica sobre as tentativas de estabelecer padrões universalmente válidos de julgamento moral, coisa que os ocidentais não queriam fazer, pois já tinham alcançado estabilidade na teoria principialista. Indiferentemente ao fato de a crítica culturalista e relativista do autor poder um dia ser consumada pela bioética, o resultado do movimento feito pelo autor foi a elevação da diferença, o pluralismo moral como valor a ser considerado, e a urgência de novos modelos éticos que contemplem a diversidade moral de uma maneira diferente da teoria principialista. 60 UNIDADE 12. A BIOÉTICA BRASILEIRA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender a bioética brasileira. ESTUDANDO E REFLETINDO A análise multiculturalista e o pluralismo moral têm sido estudados por alguns pesquisadores brasileiros, pois a bioética brasileira consiste em um atraso na adoção da perspectiva crítica da teoria principialista. A hegemonia do principialismo que predomina no Brasil se deve em grande parte às condições intelectuais da parceria entre a bioética e a medicina no país. Certas características do pensamento e da pratica médica brasileira vêm sendo incorporadas pelos praticantes da bioética como características da própria disciplina, ou seja, as ideias principialistas se confundem com a própria disciplina bioética, dando um caráter conservador ao estudo da bioética e estreitando-lhe campo de atuação. O Brasil, por ter uma medicina basicamente periférica, importa teorias e práticas de países centrais da medicina. Isso reflete em uma vinculação entre o campo da prática médica com o campo dos estudos bioéticos, marcando profundamente todo o pensamento bioético brasileiro, como a eleição de seus temas de estudo e pela trajetória acadêmica e profissional de seus pesquisadores. Essa tradição importadora é bem vista pelos pesquisadores brasileiros e profissionais da saúde, que, restringindo-se à segurança da esfera da técnica, julgam menores os problemas do campo moral. Acreditam certos pesquisadores brasileiros que todas as teorias bioéticas seriam transculturais, mesmo levando em consideração a inspiração filosófica e moral local, como é o caso da teoria principialista, que possui fortes referências 61 à cultura estadunidense. A aplicação dessa teoria acrítica gera muitas vezes, certas reações ofensivas, por causa da inadequação de certos princípios morais da teoria com a realidade brasileira. Isso resultou depois de muito tempo do domínio da teoria principialista no Brasil, em inquietações que começaram a surgir, mesmo entre um número restrito de pesquisadores. Um exemplo desse processo foi a perspectiva crítica da bioética dos trabalhos desenvolvidos em conjunto pelo dentista Volnei Garrafa, a enfermeira Dirce Guilhem e a antropóloga Débora Diniz, que compartilham a ideia relativista, característica da fase pós-principialista. A proposta dos autores, além de motivar o crescimento e desenvolvimento crítico no Brasil, é também, encontrar características no campo das bioéticas mais adequadas à realidade sociocultural brasileira diante dos dilemas morais. Em razão disso, os autores não acham correto ficar de fora do debate, assuntos como: desigualdade, vulnerabilidade, pobreza, racismo, entre outras perspectivas críticas sobre a sociedade e suas moralidades. Mas essas poucas produções críticas da bioética se devem a uma estruturação tardia entre nós. Somente nos anos de 1990, o tema começou a ensaiar seus primeiros passos sólidos no país. Em 1993, foi lançada a revista bioética editada pelo conselho federal de medicina (CFM). A revista teve e ainda tem uma importante referência para o estudo e a pesquisa do tema no país. Outra conquista importante para a bioética brasileira foi à criação da Sociedade Brasileira de Bioética(SBB), uma entidade cujo intuito é agregar os pesquisadores e difundir a bioética no país. Em 1996 foi editada uma norma de caráter nacional, conhecida por Resolução 196/96, que regulamentou a criação da Comissão Nacional de Ética em pesquisa (Conep), uma instância sobrerreguladora dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), que foram também, institucionalizados em nível local, com o objetivo de acompanhar eticamente as pesquisas que envolvem seres humanos. 62 Fica a cargo de a Conep avaliar tanto os conflitos surgidos nos comitês de ética locais como grandes projetos que tenham referências multicêntricas. Ou seja, com a promulgação da Resolução 196/96, todos os centros de pesquisa do país (aí inclusos hospitais, centros de pesquisa, universidades) tiveram de se organizar para a estruturação dos comitês de ética. Com a criação dos comitês de ética em pesquisas, houve uma ampla divulgação e popularização da bioética, mais especificamente da teoria principialista, por ela ter sido a referência teoria para o texto da Resolução. Em uma iniciativa absolutamente pioneira no mundo, e com objetivo de popularizar e divulgar a bioética entre os médicos do Brasil, de 1998 a 2000, foi divulgado o primeiro e ainda único programa educativo veiculado pela mídia televisiva sobre bioética, tendo sido produzidos 77 vídeos educativos sobre os mais variados temas. BUSCANDO CONHECIMENTO Refletindo a bioética no contexto brasileiro trago um excerto dos pesquisadores Danillo da Silva Alves e César Augusto Soares da Costa4 onde analisa a bioética e o biodireito brasileiro. Da Bioética ao Biodireito no contexto Brasileiro A perspectiva culturalmente crítica dos princípios éticos dominantes na bioética, segundo Diniz e Guilhem (2005, p 73-76), é um trabalho solitário, pois, regra geral, a bioética brasileira se caracteriza por certo atraso na adoção da perspectiva crítica da teoria principialista; sendo que grande parte desse fenômeno tardio, deve-se às condições intelectuais da parceria entre a bioética e a medicina no país.Além disso, a escassez crítica da bioética brasileira é reflexo da estruturação tardia entre nós, que somente nos anos 1990 o tema começou 4 Disponível: <http://www.eumed.net/rev/cccss/12/sasc.pdf>, acesso em 10/08/2014. 63 a ensaiar seus primeiros passos sólidos no país, sendo lançado em 1993 o periódico Bioética editado pelo Conselho Federal de Medicina; outra conquista importante ainda neste mesmo ano foi a criação da Sociedade Brasileira de Bioética (SBB). Já em 1996 foi editada uma norma de caráter nacional, conhecida por Resolução 196/96, que regulamentou a criação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), uma instancia sobrerreguladora dos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), que foram também instituídos em nível local, com o objetivo de acompanhar eticamente as pesquisas que envolvem seres Humanos (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1997). A bioética no contexto brasileiro, de acordo com Garrafa (2003, p. 403- 411) recuperou o tempo perdido com um vigor inusitado, tendo sua maioridade foi atingida com a realização do Sexto Congresso Mundial, que contou com o apoio decisivo da Sociedade Brasileira de Bioética, realizado em Brasília em novembro de 2002. Se até 1998, no Brasil, a bioética ainda era uma cópia colonizada dos conceitos vindos dos países anglo-saxônicos do Hemisfério Norte; logo, a partir do surgimento e consolidação de vários grupos de estudo, pesquisa e pós-graduação pelo nosso país, a história começou a mudar. Em suma, a bioética principialista aplicada stricto sensu na realidade, é incapaz e/ou insuficiente para proporcionar impactos positivos nas sociedades excluídas dos países pobres e, consequentemente, nas suas organizações políticas. Além do mais, é necessário reforçar que já está plantada a semente da construção afirmativa de novas bases de sustentação teórico-prática de uma bioética compromissada com a realidade concreta constatada no país e na região (UNESCO, 2003), com a qual nos defrontamos todos os dias e que não deveria mais estar acontecendo neste momento do desenvolvimento histórico da humanidade (BERLINGUER, 1993). Portanto, a discussão bioética surge, assim, para contribuir na procura de respostas equilibradas ante os conflitos atuais e os das próximas décadas. Já tendo sido sepultado o mito da neutralidade da 64 ciência, a bioética requer abordagens pluralistas baseadas na complexidade dos fatos (GARRAFA, 2006. p. 9) Os avanços técnicos e científicos e a complexidade de cada um dos ramos do saber provocam o imprescindível intercambio de informações, objetivando a melhor efetividade do fim maior, ou seja, o “bem-estar” com responsabilidade. (NAMBA, 2009, p. 13). Assim sendo a bioética dominou a esfera do direito como “pano de fundo” de debates de situações controversas, porém, hoje em dia já há algumas normas sobre a consideração de valores, o que acirra as discussões. Nessa ótica, afirma Oliveira (2010, p. 65-67) que se faz imperioso visualizar a possibilidade de uma legislação que venha regulamentar as situações não previstas e que estão despontando com o desenvolvimento das pesquisas em genética de um modo geral, que venha a proteger o ser humano integralmente, para garantir, desta forma, o respeito ao princípio da dignidade humana. Para Diniz (2006, p. 9) o biodireito é o estudo jurídico que, tomando por fontes imediatas à bioética e a biogenética, teria a vida por objeto principal, salientando que a verdade científica não poderá sobrepor-se à ética e ao direito, assim como o progresso científico não poderá acobertar crimes contra a dignidade humana, nem traçar, sem limites jurídicos, os destinos da humanidade. Igualmente, a tutela da dignidade da pessoa humana, em conformidade com Oliveira (2010, p.110), é valor fundamental e deve ser respeitada por todos. [...] Dessa maneira, pode-se dizer de forma mais concisa que Biodireito é o conjunto de leis positivadas que visam estabelecer a obrigatoriedade de observância dos mandamentos bioéticos, e, ao mesmo tempo, é a discussão permanente sobre a adequação ou não do texto legal - necessidade de ampliação ou restrição da legislação (SANTOS, 2001). 65 UNIDADE 13. BIOÉTICA DE INSPIRAÇÃO FEMINISTA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender a bioética de inspiração feminista. ESTUDANDO E REFLETINDO A bioética de inspiração feminista surgiu no início da década de 1990, quando começou a produção dos primeiros estudos e livros sobre o tema. A proposta bioética feminista não era apenas a introdução dos conceitos do feminismo na disciplina bioética. A força da bioética feminista se concentrou na crítica das desigualdades sociais, especialmente a desigualdade existente entre os gêneros, sendo uma influente potência de provocação aos princípios universalistas e abstratos da teoria principialista. No entanto, vale lembrar, que a bioética feminista não tinha preocupação em pertencer às correntes críticas da teoria principialista. Os estudos da bioética feminista têm, como referencial, o caráter analítico do movimento feminista. De forma não intencional, as teorias feministas na bioética converteram-se em um forte corpo crítico às teorias predominantes da época. Mesmo assim, houve certas seduções por alguns princípios expostos da teoria principialista de Beauchamp e Childress. Rosemarie Tong, uma filósofa de inspiração feminista, afirma que no começo da teoria feminista na bioética, houve certo acomodamento de muitas pesquisadoras nos princípios da teoria principialista, pois alguns dos pressupostos da teoria tocavam em assuntos fundamentais de gênero, como por exemplo, o principio da beneficência. As perspectivas críticas apontam para a necessidade de demarcar a fronteira de situações emque a autonomia pode vir mascarada pela vontade. 66 Um exemplo frequentemente utilizado pelas feministas é o uso e o acesso às novas tecnologias reprodutivas – muitas vezes as mulheres que se submetem aos tratamentos reprodutivos não estariam exercendo livremente a autonomia reprodutiva, mas estariam reproduzindo os papéis hegemônicos remetidos às mulheres, em que a maternidade é quase um imperativo social. Em nome disso, o desejo por filhos, embebido em meio ao imaginário social associado à feminilidade, faz com que as mulheres se submetam voluntariamente às terapias invasivas e de alto custo das tecnologias reprodutivas, sendo que muitas vezes essa solicitação pode ser fruto de uma imposição social e familiar, e não expressão de um desejo pela filiação. Esse relacionamento entre o feminismo com assuntos bioéticos, permitiu a discussão de assuntos e situações que tradicionalmente eram silenciadas pelas teorias éticas universalizantes do principialismo ou das éticas que postulavam princípios universais. O resultado disso foi a exposição em congressos internacionais e nacionais, em discussões sociais e acadêmicas e, mais recentemente, no ensino e na pesquisa da bioética. O foco da discussão da teoria crítica da bioética feminista é o pressuposto que não possível falar de autonomia como um mediador para os conflitos morais em contextos de profunda desigualdade social. Ou seja, a tarefa da bioética é a análise, a discussão e o desenvolvimento de mecanismos éticos de intervenção perante todos os tipos de desigualdade social. Logo, a tarefa da bioética não é traçar um mapa ético sobre como deveria ser a humanidade, sobre qual princípio deve ser regido, como a beneficência, a não- maleficência ou a autonomia, mas encontrar mecanismos de reparação social que torne possível o apelo a esses princípios. Por isso, a bioética de inspiração feminista, assim como outras correntes teóricas críticas, não busca defender interesses específicos de determinado grupo da sociedade. Confundir bioética feminista com discurso sexista é, antes 67 de tudo, uma tarefa eficaz para manter a desigualdade entre os gêneros e a opressão na sociedade. A perspectiva crítica da bioética feminista não buscou características típicas da moral da mulher em oposição à moral masculina, mas se baseou em alguns aspectos dos estudos éticos que ocorriam na década de 1980, quando se fundamentava uma ética feminina, principalmente no livro Uma voz Diferente: Teoria Psicológica e Desenvolvimento das Mulheres, da pesquisadora Carol Gilligan. A bioética feminista reconhecia na pesquisadora Gilligan, a tradição fundamental para a entrada de abordagens não universalizantes no campo da ética, e especialmente de abordagens centradas nas experiências das mulheres. Porém o que permaneceu de Gilligan, na bioética atual, não foi o seu essencialismo das éticas entre homem e mulher, mas a possibilidade de pensar uma teoria ética diferentes dos modelos existentes. Do mesmo modo que podemos pensar em teorias éticas entre homens e mulheres, podemos pensar teorias diferentes do modelo proposto pelo principialismo. Outro desenvolvimento dos estudos de Gilligan entre os pesquisadores da bioética feminista foi a delimitação do objeto de análise da ética feminina e dos estudos feministas. Muitos pesquisadores da bioética confundem as abordagens feministas da ética com a bioética feminista, de uma maneira que a primeira tende a englobar e silenciar a segunda. Em razão disso, os pesquisadores da bioética feminista procuram deixar claras as fronteiras dos estudos femininos e feministas da ética. Pois a ética feminina se refere à procura da única voz que caracterizaria a eticidade feminina. Já a ética feminista discute a situação das mulheres em contextos sociais de desigualdade e opressão. Susan Sherwin é uma das mais expoentes pesquisadoras da ética feminista, que para ela, a ética feminista é um resultado de uma perspectiva política explicita do feminismo, em que a opressão das mulheres é vista como 68 política e moralmente inaceitável. Para Sherwin, a ética feminista é uma crítica às práticas que determinam a opressão das mulheres. Mesmo sofrendo fortes críticas, a teoria essencialista de Gilligan em seu livro teve uma importância histórica inegável. Desde o inicio da publicação da obra, Uma voz Diferente: Teoria Psicológica e Desenvolvimento das Mulheres ocorreram diversas análises e questionamentos, resultando em um perigo que um leitor desatento pode sofrer que é o apelo ao essencialismo ético baseado em papéis de gêneros. Pois, segundo Sherwin, o fato de que características associadas a gênero são em geral regras associadas à opressão. Embora esse tipo de ética faça uma abordagem séria das experiências morais femininas, tanto na estrutura familiar, como nos cuidados com os outros membros da família, a ética desenvolvida por Gilligan é ética que perpetua a subordinação feminina, reforçando estereótipos sociais ao considerar o cuidado, como parte da essência feminina, e não dos papéis de gênero associados a homens e mulheres em cada sociedade. Os estudos da teoria crítica aplicados à bioética demonstram a necessidade de modificação não só dos pressupostos hierárquicos de gêneros, mas também a urgência em se refletir sobre os pressupostos ideológicos do próprio feminismo. Em relação a isso, a filósofa Susan Wolf organizou um livro chamado Feminismo e Bioética, onde resumiu esse conjunto ideológico silencioso que nutria as discussões feministas da bioética, principalmente aquelas influenciadas pela teoria principialista. Desse modo, a estrutura seria composta pelos princípios universais, ocidentais (euro-americano), classista (classe média), racistas (branco) e sexistas (masculino) que contribuem boa parte das teorias éticas. Para Wolf, o que separa as teorias críticas da bioética e mais especificamente entre o feminismo e a bioética, são certas preferências ideológicas da teoria crítica: 1. Preferência por regras e princípios abstratos; 69 2. Preferência pelo individualismo liberal que tira a importância dos grupos; 3. Preferência por espaços institucionais de aplicação prática, como por exemplo, os hospitais e escolas médicas; 4. Preferência pelo isolamento perante as teorias críticas da pós- modernidade. BUSCANDO CONHECIMENTO Com a falência desses pressupostos ideológicos, a filósofa Susan Wolf reclama a necessidade de um reordenamento, em nome desse etnocentrismo disfarçado da ideologia tradicional da bioética. Segundo Wolf, o estilo argumentativo e reflexivo das primeiras teorias da bioética conduziu a disciplina para um elitismo, tendo como consequência a exclusão de interesses de determinadas partes da sociedade, deixando de lado a parte de um conjunto de indivíduos e grupos, tradicionalmente oprimidos e vulneráveis. Para reverter esse quadro, a autora defende a análise da bioética crítica em diversas teorias da disciplina bioética, principalmente a teoria principialista, tendo como possibilidade, uma nova escrita da bioética tradicional. Por exemplo, o princípio da autonomia, defendido tanto pela teoria principialista, deve ser entendido para além do paradigma moral do sujeito autônomo: aquele sujeito racional, independente, indistinguível dos demais, o sujeito generalizável por excelência. Entendido dessa forma, o conceito de autonomia transforma-se em um perigo, pois elimina a possibilidade de inclusão para as pessoas que não são consideradas plenamente racionais, como é o caso das crianças, mulheres e membros de outros grupos de oprimidos. 70 UNIDADE 14. TEMAS DA BIOÉTICA: O ABORTO CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender e definir o aborto e suas formas. ESTUDANDO E REFLETINDO O tema do aborto, entre os diversos temas da bioética, é aquele sobre o qualmais se tem escrito, debatido e realizado congressos científicos e discussões públicas. Todavia essas discussões não resultaram em avanços substanciais sobre a questão nestes últimos anos ou mesmo que se tenham alcançado alguns acordos morais ainda que temporários para esse problema. A problemática do aborto é um modelo claro tanto da dificuldade de se estabelecer diálogos sociais frente a posições morais distintas quanto do obstáculo em se criar um discurso acadêmico independente sobre a questão, pois as paixões e os sentimentos interferem de forma significativa nos escritos sobre o aborto. Uma das maiores dificuldades que os leitores não iniciados têm perante os livros sobre esse tema, é saber distinguir os argumentos filosóficos e científicos consistentes das inúmeras manipulações retóricas que visam apenas arrebatar multidões para o campo de batalha travado sobre o aborto. Os estudos bioéticos sobre o aborto oscilam entre textos acadêmicos, políticos e religiosos, tornando-se a tarefa de organizar um panorama de estudos sobre esse assunto uma tarefa árdua. Entretanto isso não impede de organizar os principais pontos que marcaram os debates contemporâneos. 71 ESTUDANDO E REFLETINDO O termo aborto designa a atividade de remoção de um embrião ou feto do útero impedindo que esse venha a nascer ocasionando em sua morte. O aborto se expressa em quatro tipos fundamentais: 1. A interrupção eugênica da gestação: casos de aborto ocorridos em nome de práticas eugênicas, isto é, situações em que se interrompe a gestação por valores racistas, sexistas, étnicos, entre outros. Muito utilizado pela medicina nazista por abortar crianças por serem judias ou ciganas. Esse processo ocorre contra a vontade da gestante. 2. Interrupção terapêutica da gestação: aborto ocorrido em nome da saúde materna, sendo em situações que se interrompe a gestação para salvar a vida da mãe. 3. Interrupção seletiva da gestação: aborto ocorrido em casos de anomalias fetais, tendo como exemplo o caso da anencefalia. 4. Interrupção voluntária da gestação: aborto ocorrido em nome da autonomia reprodutiva da gestante ou do casal, neste caso, leva-se em conta a vontade da gestante ou do casal que opta por não ter mais o filho, podendo ser fruto de um estupro ou de uma relação consensual. Com exceção do primeiro tipo, todas as outras formas de aborto, por princípio, levam em consideração a vontade da gestante ou do casal em manter a gravidez. Para os pesquisadores, o princípio de autonomia é um dos princípios base para essas ações, sendo esse princípio um dos pilares fundamentais da teoria principialista que tem tanta influência na bioética. Para muitos pesquisadores a interrupção terapêutica da gestação é um conceito agregador, subdividido com o conceito de interrupção seletiva da gestação. Isso ocorre através da tradição semântica herdada, principalmente, de países onde a legislação permite ambos os tipos de aborto, não sendo necessária, assim, uma divisão entre as práticas. Entretanto, consideramos que, 72 mesmo para estes países onde o conceito de interrupção terapêutica da gestação é mais adequado, em alguma medida ele pode causar confusões e controvérsias. O problema está que existe uma diferença entre os limites gestacionais para os casos em que se interrompe a gestação em nome das anomalias fetais ou em nome da saúde materna. O alvo das atenções muda de um caso para o outro: no primeiro, a saúde do feto é a razão do aborto; no segundo, a saúde materna. Outro motivo que nos faz diferenciar a saúde materna da saúde fetal para a escolha de uma terminologia diferenciadora foi o fato de que vários escritores denominaram a interrupção seletiva da gestação de interrupção eugênica da gestação. O termo “seletivo”, para nós, remete diretamente à prática a que se refere: é aquele feto que, devido à malformação fetal, faz com a gestante não deseje mais a continuidade da gestação. Porém tratar o aborto seletivo como eugênico é nitidamente confundir as práticas. Especialmente porque a ideologia eugênica ficou conhecida por não respeitar a vontade do indivíduo. A diferença fundamental entre a prática do aborto seletivo e a do aborto eugênico é que não há obrigatoriedade de se interromper a gestação em nome de alguma ideologia de extermínio de indesejáveis. Vários autores, principalmente dos movimentos sociais e feministas, optaram por falar de autonomia ao invés de falar da interrupção voluntária da gestação. Em ambos os conceitos existe uma relação de dependência e não de exclusão, apesar de que o princípio que rege essa interrupção ser o da autonomia reprodutiva é um conceito que abrange vários aspectos da saúde reprodutiva e, não exclusivamente o aborto. Outro ponto importante no estudo do tema sobre o aborto são os adjetivos que vários autores utilizam para infamar os pesquisadores que são a favor dessa prática. Adjetivos como aborteiros, homicidas, assassinos e 73 carniceiros, tendo relatos até de incêndios provocados em clínicas de aborto e profissionais sendo agredidos por grupos ao contrário do aborto – grupos “defensores da vida”, como se autodenominam. Ao falar do feto abortado como “criança inocente”, ofensas como hipócritas soam de ambos os lados, tanto a favor à prática como contra a prática. A discordância em definir o feto abortado varia de “embrião” e “feto” até “criança”, “não-nascido”, “pessoa” ou “individuo”. A posição dos grupos contra o aborto apela até para vídeos com retórica sedutora e violenta, como é o caso do vídeo grito silencioso, que foi editado por grupos contrários à prática do aborto e mostra as reações de um feto de 12 semanas (tempo máximo permitido por várias legislações para a interrupção voluntaria da gestação) durante um aborto. A ideia do vídeo é provocar, no espectador, a compaixão pela suposta dor do feto durante o aborto e, consequentemente, sustentar o princípio de direito à vida desde a fecundação, sendo esse um dos pilares fundamentais da argumentação contrária ao aborto. BUSCANDO CONHECIMENTO Para melhor desenvolvimento desse assunto, é necessário compreender as taxas percentuais de abortos realizados no mundo. A Conferência Internacional sobre a População e Desenvolvimento ocorrida no Cairo, em 1994, é considerada um marco para as legislações e as políticas internacionais e nacionais acerca do aborto. Considera-se que, até antes da conferência do Cairo, o tema do aborto não compunha a agenda da saúde pública de inúmeros países. O aborto, juntamente à prática do coito interrompido, tem sido durante o século XIX e XX o método de controle de natalidade mais usado e difundido. Em razão disso, as taxas mundiais de aborto são bastante elevadas, tendo como recordistas alguns países da América Latina e África. Apesar de ser de difícil mensuração, uma vez que o aborto é considerado crime em inúmeros países, calcula-se que a taxa mundial de abortos por ano esteja entre 32 e 46 74 abortos a cada 1000 mulheres na idade de 15 a 44 anos, a depender da prevalência dos métodos anticonceptivos, de sua eficácia e das leis e políticas relativas ao aborto. Nos países ocidentais, o pico etário do aborto ocorre entre mulheres de 20 anos, como, por exemplo, na Inglaterra, onde 56% dos abortos são praticados por mulheres com menos de 25 anos, ao passo que nos Estados Unidos este número é de 61% na mesma faixa etária. O aborto na América Latina, segundo os dados do Instituto Allan Guttmacher, há uma ligação acentuada entre renda e acesso ao aborto praticado por médicos. Enquanto apenas 5% das mulheres pobres rurais têm acesso ao aborto médico, este número é de 19% entre as mulheres pobres urbanas e de 79% entre as mulheres urbanas de renda superior. No Brasil, para o ano de 1991, estimou-se que o total de abortos induzidos foi de 1.443.350,constituindo uma taxa anual, por 100 mulheres de 15 a 49 anos, de 3.65. Nos Estados Unidos, por exemplo, esta taxa é de 2,73. Segundo um relatório publicado em junho de 1998, que vem acompanhando a legislação do aborto desde 1985 no cenário mundial, 61% da população mundial vivem em países onde o aborto induzido é permitido por algumas razões específicas ou não apresenta restrições, ao passo que 25% da população convivem em países onde o aborto é radicalmente proibido. Os autores argumentam, ainda, que comparando dados da primeira pesquisa – de 1985 – com os levantados no último estudo há um direcionamento mundial para a liberalização do aborto. Dos vinte países que modificaram suas legislações desde o primeiro estudo, 19 realizaram mudanças para legislações mais abertas às práticas abortivas. 75 UNIDADE 15. TEMAS DA BIOÉTICA: DISCUSSÃO SOBRE O ABORTO CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender a discussão sobre a prática do aborto. ESTUDANDO E REFLETINDO A discussão do aborto habita entre dois princípios que fazem extremidades, que são: a heteronomia da vida (a vida humana é sagrada por princípio) e a autonomia reprodutiva. Mas entre esses princípios, existe uma infinidade de variâncias que, aparentemente, são incoerentes aos princípios maiores, sejam eles o da heteronomia ou da autonomia. Eis alguns exemplos: alguns líderes políticos que, reconhecidamente são defensores da liberdade do indivíduo e, consequentemente, defensores da autonomia individual, porém são adeptos do princípio da heteronomia da vida que concerne ao aborto. Outro exemplo, são grupos defensores da vida que, lutam por direitos de autonomia de reproduzir, por exemplo, o grupo denominado “Católicas pelo direito de decidir”. Este movimento é composto por católicas, seguidoras da doutrina cristã, que defendem o direito da mulher em ter ou não a sua gestação. Este fenômeno ocorre porque, no campo da moral, com raras exceções, as pessoas não se comportam com a coerência lógica comum aos tratados de filosofia moral. As escolhas morais processam-se de inúmeras maneiras – com influências da família, do matrimônio, da escola, dos meios de comunicação, entre outro – o que acaba por mesclar princípios e crenças inicialmente inconciliáveis. Na verdade, grande parte da população encontra-se confusa entre extremos morais apresentados. Poucos são os grupos morais e religiosos que se identificam com os mesmos. 76 Os que defendem a descriminalização do aborto e a sua legalização partem do princípio da autonomia reprodutiva da mulher e/ou do casal, baseando-se no princípio da liberdade individual, herdeira da tradição filosófica anglo-saxã, cujo pai é o filósofo John Stuart Mill. É em torno do princípio à autonomia reprodutiva que os proponentes da questão do aborto se estabelecem. E, talvez, o que melhor represente a ideia de autonomia reprodutiva para os proponentes seja a analogia feita em 1971, por Tomson, no artigo A Defesa do Aborto, onde ilustra a sua ideia com uma história fictícia sobre uma mulher que é presa pelos fluxos sanguíneos com um violinista famoso. Essa história provocou uma verdadeira onda de debates e discussões, argumentando que o exemplo de Tomson serviria apenas para casos onde a gestação foi fruto da violência sexual e outros que sustentavam que o respeito ao princípio de autonomia era a questão-chave do relato. Já os oponentes do aborto têm como base a heteronomia, isto é, a ideia de que a vida humana é sagrada por princípio. Na bioética, os oponentes do aborto não são apenas aqueles vinculados a crenças religiosas, sendo, ao contrário, esta uma idéia bastante difundida até mesmo entre os bioeticistas laicos (esta aceitação da ideia da intocabilidade da vida humana entre os bioeticistas laicos fez com que Singer falasse em “especismo” do Homo sapiens, ou seja, um discurso religioso baseado nos pressupostos científicos da evolução da espécie e na superioridade humana). Na verdade, o princípio da heteronomia da vida está tão aprofundado na formação dos profissionais de saúde que temas como a eutanásia e a clonagem não são aceitos com facilidade. Enquanto os grupos que são a favor do aborto se unem em torno da autonomia, os grupos que são contra o aborto esforçam-se por desdobrar o princípio da heteronomia em peças de retóricas que irão determinar, de uma vez por todas, os debates sobre abortos. Desde então, os oponentes ao aborto se fazem presentes com um discurso ativo, ao passo que os grupos que são a 77 favor ao aborto se caracterizam por ter assumido um posicionamento reativo aos argumentos contrários ao aborto. Uma vez aceito o princípio da heteronomia da vida humana, os teóricos preocupados em sustentá-lo partem constantemente ao encontro de argumentos filosóficos, morais ou científicos para mantê-lo. Alguns já se tornaram clássicos ao debate sobre o aborto como, por exemplo, a crença de que o feto é uma pessoa humana desde a fecundação e também o argumento da potencialidade do feto em se tornar pessoa humana. Sustentar a ideia que o feto é pessoa humana desde a fecundação é transferir para o feto os direitos e conquistas sociais considerados restritos aos seres humanos, em detrimento dos outros animais. O primeiro direito – e o mais adotado pelos oponentes da questão do aborto – é o direito à vida. Todas as implicações jurídicas e antropológicas do status de pessoa humana seriam, com isso, reconhecidas no feto. Para os mais extremistas, sendo o feto uma pessoa humana torna-se impossível qualquer dispositivo legal que permita o aborto. Em relação à ideia de potencialidade, tem ainda maior número de defensores do que a que concede o status de pessoa ao feto em fecundação. A teoria da potencialidade sugere que o feto humano representa a possibilidade de uma pessoa e, portanto, não pode ser eliminado. Para os representantes da teoria da potencialidade, de feto para pessoa completa é apenas uma questão de tempo e, é claro, de evolução. Assim, em nome da futura transformação do feto em criança, sendo o de grande marco o nascimento, o aborto não pode ser permitido. Tanto para os defensores da teoria da potencialidade quanto para os defensores da ideia de que o feto é já uma pessoa desde a fecundação, o aborto possui o significado moral e jurídico de assassinato – e é desta maneira 78 que seus expoentes se referem à prática. Diante desses argumentos os que são a favor da legalidade do aborto assumem, então, uma argumentação reativa. Os bioeticistas defensores do aborto analisam os argumentos que se afastam do princípio da autonomia e desconstroem a retórica utilizada pelos que são contra o aborto, especialmente aqueles que se utilizam dos argumentos expostos anteriormente. Frente à defesa de que o feto é uma pessoa humana desde a fecundação, os proponentes argumentam que a ideia de “pessoa humana” é antes um conceito antropológico que jurídico e necessita, portanto, da relação social para fazer sentido. O status de pessoa não é mera concessão, mas, sobretudo uma conquista através da interação social. A teoria da potencialidade se tornou a principal teoria que os proponentes combatem, pois a maioria dos que são contra o aborto se fundamenta nela. Em geral, os limites estabelecidos baseiam-se em argumentações científicas tais como: quando o feto começa a sentir dor, quando iniciam os movimentos fetais, quando há a possibilidade de vida extra- uterina, etc., todavia, não são os dados evolutivos da fisiologia fetal que decidem quando se pode ou não abortar, mas sim valores sociais concedidos a cada conquista orgânica do feto. Sentir ou não dor, ter ou não consciência, assim como mobilidade, são valores sociais que, transferidos para o feto, estruturam os limites entre o que pode e que não pode ser feito. Existem extremistasque são contra a ideia da potencialidade que considera, a não distinção entre embrião, fetos ou recém-nascidos e que qualquer tentativa de limites de gestação para a execução do aborto que, resulta em um ritual metafísico. Outros admitem que se a teoria da potencialidade fosse verdadeira poderíamos afirmar que as células sexuais do ser humano são potencialmente pessoas, o que enfraqueceria seu poder de convencimento. 79 Todavia a maioria que defende o aborto argumenta que é necessária a imposição de limites gestacionais, sendo o nascimento um divisor de águas, estando assim o infanticídio fora das possibilidades. BUSCANDO O CONHECIMENTO Apesar das diferenças entre os proponentes e os oponentes não- extremistas, há pontos em que o diálogo torna-se possível. Existe uma maior atração tanto no pensamento científico quanto do senso comum na aceitação do aborto quando do estupro, de risco à saúde materna ou anomalias fetais incompatíveis com a vida. Os conflitos voltam a existir quando é preciso definir os limites gestacionais a cada prática. O grande centro das diferenças está na possibilidade da mulher/casal em decidir sobre a reprodução. Assim, apesar de bastante difundido, o problema da moralidade do aborto é histórica e contextualmente localizado e qualquer tentativa de solucioná-lo tem que levar em consideração a diversidade moral e cultural das populações atingidas. Seja pela diversidade legal acerca da temática quanto pela multiplicidade argumentativa do debate bioético, o aborto é uma das questões paradigmáticas da bioética exatamente porque nele reside a essência trágica dos dilemas morais que, por sua vez, são conflituosos na bioética. 80 UNIDADE 16. ABORTO: O DIREITO DE NASCER CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Analisar o direito de nascer nos estudos bioéticos. ESTUDANDO E REFLETINDO Dando prosseguimento no estudo realizado pelo teólogo Edson Sallin5, agora vamos analisar um excerto onde fala do direito de nascer dos homens e sua relação com a bioética. [...] A pessoa humana é um ser em completo progresso e em extrema evolução. Quando argumentamos sobre o início da vida, praticamente deparamos em vários pressupostos, especialmente sobre o momento em que se inicia o ciclo vital. Pois a vida perde seu mistério quando, não sentimos mais amor nem prazer de viver. Contudo não é necessário que, apelamos para a interpretação bíblica da árvore do conhecimento, para reconhecer que precisamos ‘abrir’ nossos olhos frente às injustiças cometidas contra a vida. Este paradoxo, do mistério da vida estende- se em todas as suas dimensões a ser considerada humanamente a vida como premissa de qualquer sociedade. Alguns querem estabelecer este momento de implantação como o início da vida, porém o embrião vinha se desenvolvendo desde o momento da fecundação e chega vivo ao útero já com centenas de células formadas a partir da primeira célula - ovo. Não se pode afirmar que antes não havia um ser vivo da espécie humana que inclusive estabelecia relações com sua mãe, enviando-lhe mensagens para garantir sua existência, usando uma linguagem bioquímica, hormonal e imunológica (Manual CF 2008, n.72). 5 Disponível: <www.fapas.edu.br/theologia/artigos/200931_28.pdf>, acesso em: 05/08/2014. 81 Partindo deste ponto, podemos nos perguntar: quando e como inicia o ciclo vital? Ou ainda; quais os critérios para que o pré-embrião seja tratado como ser humano? Ao pressupor que, a vida inicia-se no momento da fecundação queremos antes de tudo, trazer presente a dignidade do embrião como um ser que tem o direito de nascer. Toda vida humana deve ser respeitada, protegida e amada desde no seu início; portanto, qualquer ser humano (não importando quem ele seja) deve ter seu direito reconhecido como ser humano, mesmo antes de nascer. Nestes termos, afirma o biólogo chileno Humberto Maturana: “A humanização do embrião ou do feto não é um fenômeno que acontece como fase do seu desenvolvimento, mas se verifica como parte da vida de relação cultural deste” (Maturana, 1992, p.143). Considerando estes fatos, o embrião parece ser ao mesmo tempo, bem menos que um ser humano, e, contudo, bem mais do que ele próprio. Ademais, o que queremos em afirmar ao fato do embrião ser tratado como humano em potencial? Duas coisas são importantes ressaltar aqui: 1. Não podemos considerá-lo como pessoa atual, isto é, que seja por si; nem o embrião nem o feto são capazes de fazer valer a sua dignidade (a não ser através de outros). 2. Falar de pessoa em potência a propósito do embrião significa tirar as consequências éticas do fato, isto é, que ele seja reconhecido e tratado como humano em potencialidade. Ao refletirmos mais profundamente sobre isso, somos, contudo tentados a encontrar respostas, muitas vezes difíceis num anglo racional. Sem dúvida de que a vida inicia seu ciclo vital desde o momento da concepção. São tantos problemas que surgem frente a estes pressupostos, que deparamos num abismo entre, tecnociência e defesa da vida. 82 Por outro lado, a ação conjunta do progresso tecnológico, provocado pelo impulso da globalização, provocou uma intensa mudança em relação ao modo de como às pessoas viam e compreendiam a vida. Neste sentido Moser afirma: A vida é um continuum, e a única aparente descontinuidade, ao longo do processo evolutivo de um ser humano, verifica-se durante o processo de fertilização, em especial após a singamia, na qual dois elementos biológicos distintos, com diferentes patrimônios genéticos, se fundem num único elemento que, se este sim, se desenvolverá progressivamente até o nascimento (Moser, 2004, p.157). A forma de encarar a vida nos últimos tempos começou a mudar. O próprio fato de que, o ser humano já não estava mais em primeiro lugar na sociedade, trouxe certas dicotomias em relação de como o início da vida era visto e compreendido. Assim sendo, o homem que antes vislumbrava o cosmos, começou a ater-se em descobrir os segredos da vida humana. “A transmissão da vida humana exige amor e respeito aos sábios planos do criador. O filho tem direito a ser concebido, levado no seio, posto no mundo e educado nas sólidas e benéficas relações matrimoniais” (Reinholdo, 1998, p.275). Estamos não só diante da noção de humano, mas numa noção de que deveremos respeitar a vida humana mesmo se tratando de um embrião em desenvolvimento. QUEM TEM DIREITO A VIDA? A vida humana é praticamente um dos grandes debates, e questionamentos que se conceitua. Por outrora, o avanço da modernidade, em especial a preocupação com o futuro da nossa espécie, tem provocado grandes angustias pelo modo como estamos conduzindo e ‘manipulando’ a vida dos 83 seres humanos. Por outro lado, o neoliberalismo, egocentrismo, pessimismo, individualismo, tem deixado rastos assustadores; em se tratando do desrespeito aos direitos humanos. Argumentar sobre a vida humana, vai muito além do ser da pessoa, pois, estamos argumentando a respeito da sua dignidade enquanto pessoa. A vida deve antes de tudo, ser respeitada desde a sua origem, logo, se desrespeitamos a vida mesmo antes de nascer, automaticamente, estaremos desrespeitando a pessoa no seu processo de desenvolvimento e o que ela significa. A pessoa humana encontra sentido para sua vida, quando consegue entender o valor que a mesma representa. Nestes termos, a pessoa não é simplesmente um fato biológico, nem uma substância metafísica dada plenamente desde o início da concepção, mas um ser que vai “evoluindo” ao longo de toda a vida. Para Heidegger o ser humano é diferente dos demais seres pela sua capacidade de existência, isto é, é o único que existe sob a modalidade da existência; os outros entes (afirmao autor) só existem e ocupam lugar. Segundo Pessini: Sendo o ser humano uma existência relacional, sempre em devir, ele é também e necessariamente um ente potencial, sempre em realização de suas virtualidades, do nascimento à morte. No momento da concepção, por exemplo, o novo ser humano está próximo à pura potencialidade, porquanto não tem nenhuma estrutura corporal definida, menos ainda a dimensão psíquica estruturada e nenhuma personalidade estabelecida-é a potencialidade em expansão, um ser humano inteiramente em vir- a-ser (Pessini, 2003, p.183). BUSCANDO CONHECIMENTO Frente a isso, podemos nos perguntar: Quem tem o direito à vida? Ora, naturalmente somos seres humanos imperfeitos e inacabados, possuidores de inúmeras potencialidades que nos diferenciam dos demais seres. Muitas de nossas ações ajudam a desenvolver nossa natureza humana, isto é, o que nos 84 torna humanos não é por agirmos diferentes, mas por possuirmos dignidade e capacidade de usar a razão. Por isso que, a vida é um direito de todos; e esta deve ser colocada em primeiro lugar em todos os níveis da sociedade. É claro que, perante aos ‘olhos’ da sociedade este é um problema complicado, e com muitas interrogações; pois como defender a vida, enquanto a grande maioria é rechaçada ao esquecimento? Entretanto, o respeito pela pessoa em especial pela sua dignidade, deve ser reconhecido mesmo antes de nascer. De modo geral dignidade abrange toda a pessoa, isto é, aquilo que ela representa como pessoa e não outra coisa. Para Pessini: De modo geral, dignidade indica o status de uma entidade que, dadas suas qualidades intrínsecas ou seu méritos adquiridos, tem direito a, e merece respeito. Há uma intuição moral fundamental e, suponho universal que une dignidade e respeito, sendo, no entanto muito difícil articular discursivamente o conteúdo dessa intuição moral (Pessini, 2003, p.165). 85 UNIDADE 17. ABORTO: O DIREITO SOBRE A VIDA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Analisar o direito à vida nos estudos bioéticos. ESTUDANDO E REFLETINDO A ideia de vida tem um espaço fundamental nos estudos bioéticos, temas como eutanásia e aborto lidam diretamente com o conceito de vida e a reflexão sobre os direitos dela. Para refletir sobre esse assunto, trago um excerto do artigo do teólogo Edson Sallin6 Bioética e o Direito a Vida A bioética é considerada uma das áreas de estudo e reflexão que vem crescendo nos últimos tempos. Cada vez mais ela, busca responder as questões que estão relacionadas à vida humana, à natureza, enfim, a tudo aquilo que se refere aos aspectos do humano e da natureza. Nos dias atuais, em que a ciência e a técnica adquiriram tamanha força, a bioética é ‘um balde de água fria’ frente às técnicas usadas contra a vida humana; por conseguinte, é “o clamor da sabedoria humana, que vai além do mero contexto das discussões éticas das múltiplas profissões no âmbito das ciências da vida humana, buscando a promoção e proteção da vida [...]” (barchifontaine, 2004, p. 08). Desde a sua gênesis, a bioética tem mostrado sua força contra aqueles que ameaçam ou destroem não somente a vida humana, mas a natureza como um todo. Ela além de proteger a vida, tem denunciado as injustiças presentes, isto é, a 6 Disponível: <www.fapas.edu.br/theologia/artigos/200931_28.pdf>, acesso em: 05/08/2014. 86 desvalorização da pessoa e a sua dignidade,5 a fome, as guerras injustas as misérias, as diferenças, enfim um panorama de injustiças. Segundo Screccia: A bioética ai está como tentativa de reflexão sistemática a respeito de todas as intervenções do homem sobre os seres vivos, uma reflexão que se propõe um objeto específico e árduo: o de identificar valores e normas sobre a própria vida e sobre a biosfera (Screccia, 1996, p.57). Vive-se numa sociedade marcada não somente pelas indiferenças, mas pelo individualismo, pelo liberalismo, neoliberalismo, egocentrismo e assim por diante. Entre a tantas injustiças que sufocam o mundo, deparamos na desvalorização do ser humano. Deste ponto de partida, a bioética tem por finalidade valorizar em primeiro lugar a vida de cada ser humano em todas as suas fases; emergem nestes aspectos, reflexões sobre o início e o término da vida. Pois, em uma sociedade como a nossa, a vida humana é colocada em segundo plano e rechaçada ao esquecimento; nas quais, os interesses econômicos valem mais do que a própria pessoa. De fato o papel fundamental da bioética, é então buscar responder aos problemas presentes em especial aos que se relacionam com a vida humana. Frente a isso, Barchifontaine afirma: Hoje, a bioética pode ser definida como um instrumento de reflexão e ação, a partir de três princípios: autonomia, beneficência e justiça. Busca estabelecer um novo contrato social entre a sociedade, cientistas, profissionais de saúde e governos. Além de ser uma disciplina na área da saúde é também um crescente e plural movimento social preocupado com a biossegurança e o exercício da cidadania, diante do desenvolvimento das biociências. Procura resgatar a dignidade da pessoa humana e a qualidade de vida (Barchifontaine, 2004, p.90). Entretanto, a vida de qualquer ser humano deve ser valorizada em todas as suas dimensões. Neste ponto, deparamos numa questão que reza 87 assim: Como e quando inicia o ciclo da vida humana? Da percepção e compreensão da realidade cósmica é necessária uma ampla progressividade de atenção na diversidade que a própria vida representa. Quando abordamos a origem da vida, é preciso deparar-se nas seguintes questões e a partir destas procurar tirar conclusões; tais como: 1. Que leitura devemos ter diante do pré-embrião? 2. Quando tem início o ciclo vital? 3. O feto tem dignidade? A procriação humana que, da origem a um novo ser humano, deve ser compreendida como um processo biológico nas quais, homem e mulher unem-se para gerar a ‘riqueza vital’ da vida. O problema que hoje se encontra é em relação ao fato, do início da vida; isto é, quando mesmo inicia o ciclo vital de um novo ser humano? O ponto crucial é então, definir se o embrião pode ou não ser considerado um ser humano, ou apenas um amontoado de células! “Visto que deve ser tratado como pessoa desde a concepção, o embrião deverá ser defendido em sua integridade, cuidado e curado, na medida do possível como qualquer ser humano” (Catecismo da Igreja Católica, nº2273). Num aspecto filosófico, a vida parte de uma animação, isto é, nos primeiros dias (antes dos 14 dias), o embrião seria uma animação, ou seja, um ser em potência. O que então nos faz cogitar é o fato de que maneira, ou quando o embrião torna-se um ser humano; é neste momento que vem a seguinte questão: terá iniciado a vida desde o momento da fecundação? Ora, há várias opiniões frente a isso, muitas das quais destacam- se que a vida propriamente dita tem seu início no momento da fecundação, outros, porém afirmam que a vida inicia a partir do décimo quarto dia de gestação;9 outros apontam ainda, que a vida tem sentido quando estiver com todos os órgãos completos. Neste sentido Moser afirma: 88 Seriamos humanos a partir do momento em que o círculo familiar e cultural nos aceita como tais. Apesar de tal posicionamento poder ser chocante, essas teses não podem ser ignoradas, pois marcaram época em tempos não muito distantes. O objetivo delas é claro: tornar menos rígida a rejeição do aborto em certos casos mais complexos, na linha do tradicional aborto indireto, não querido em si mesmo, mas decorrente de certas intervenções necessárias para salvar a vida da mãe (Moser, 2005, p.149- 150). A preocupação pela pessoa humana e por tudo o que elarepresenta, não é somente uma tarefa da bioética, mas, de todos os seres humanos conscientes do que são de do que representam. Do ponto de vista científico, a pessoa é pessoa no momento em que expressa sua dignidade. Então, deparamos num problema da seguinte forma: Qual conceito que temos de pessoa? A pessoa é pessoa somente quando pode expressar sua dignidade? E antes, não seria considerada pessoa? Todas estas questões nos suscitam muitos debates e questionamentos. Ora, quando pensamos em pessoa propriamente dita, com certeza cogitamos em direitos e deveres, isto é, alguém que faz parte de uma dada sociedade. Na realidade, isso não é uma questão simples, pois, a visão que temos sobre pessoa ou quando ela é considerada pessoa, praticamente parte-se de uma concepção social. Ademias, o ser humano não pode ser compreendido como parte, mas, como um todo. “Uma vez que o indivíduo não pode ser compreendido como soma de partes que são acrescentadas uma à outra a partir de fora, deve ser vista como incluída em tal processo também a totalidade corpóreo-espiritual do homem” (Lexicon, 2007, p.183). BUSCANDO CONHECIMENTO Hoje o debate sobre o ciclo da vida, está presente praticamente em todos os campos do conhecimento. Por ventura, o progresso científico trouxe 89 grandes conquistas para a humanidade; mas também, vários empecilhos entre ciência e defesa da vida. “A ciência e a técnica são recursos preciosos postos a serviço do homem e promovem seu desenvolvimento integral da existência e do progresso humano” (Catecismo da Igreja Católica, n°2293). Entre aqueles que lançam um olhar favorável à dignidade humana, muitos estão atentos em usufruir da vida, mesmo ainda não nascida. “Com o progresso das ciências, progride também o conhecimento da nossa natureza, progredindo igualmente, segundo nosso empenho, os nossos juízos éticos, fundamentados nas leis e estruturas de nossa natureza” (Reinholdo, 1998, p.270). Mas estes perigos batem a nossa porta, como um preço que temos a pagar pelos exalantes avanços do saber, pelos inestimáveis progressos tecnológicos. 90 UNIDADE 18. TEMAS DA BIOÉTICA: A EUTANÁSIA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender a prática da eutanásia e suas críticas. ESTUDANDO E REFLETINDO A eutanásia é um dos assuntos centrais nos debates bioéticos nacionais e internacionais. A origem da palavra eutanásia vem do grego ευθανασία e significa “boa morte”, resultando na conduta médica que apressa a morte de um paciente incurável e em terrível sofrimento. No sentido de evitar mais sofrimentos que o paciente julga insuportáveis, a eutanásia adianta a morte do próprio, atendendo a vontade e manifestação expressa por ele. A eutanásia atua na situação que o paciente quer acabar com a sua vida, mas não consegue por motivos de incapacidade física, por isso ele recorre a outros para que se possa realizar o seu desejo. A eutanásia é conhecida também como suicídio assistido, pois é preciso de uma pessoa para que possa realizar a morte voluntária do paciente. Essa prática é proibida em vários países, inclusive no Brasil. A justificativa está na característica do bem supremo da vida, que foi introduzida na cultura brasileira, pela tradição cristã, e também no direito moderno, que coloca a vida como um direito natural e inviolável. Com esses aspectos o tema da eutanásia se estabelece em bases dualistas, que opõem vida e morte, e esquecem a distinção de viver e de sobreviver. Para fazer uma análise sobre a eutanásia, é preciso primeiramente distingui-la de outros conceitos parecidos como os conceitos da distanásia e da ortotanásia. A distanásia se expressa no exercício de emprego de todos os meios terapêuticos possíveis, inclusive os extraordinários e experimentais em 91 um paciente terminal, e a ortotanásia se classifica como a suspensão dos meios medicamentosos ou artificiais de manutenção da vida de um paciente em coma irreversível. Enquanto na eutanásia a preocupação maior é com a qualidade de vida do paciente em fase terminal, na distanásia implica investir todos os recursos possíveis para prolongar a vida ao máximo. Esta é também caracterizada como obstinação ou futilidade terapêutica, sendo uma postura ligada especialmente ao paradigma tecnocientífico e comercial-empresarial da medicina. No Brasil, na tradição da ética médica, durante certo tempo havia uma tendência a nivelar um comportamento distanásico. O motivo apresentado pelo Código de 1931 para reprovar a eutanásia é “porque um dos propósitos mais sublimes da medicina é sempre conversar e prolongar a vida” (artigo 16). Se aceitarmos que a finalidade da medicina “é sempre conservar e prolongar a vida” está claramente se fundando em raízes da distanásia com seu conjunto de tratamentos que não deixam os pacientes morrerem tranquilamente. Todavia, houve uma mudança no código de ética médica, traçando o objetivo médico não só como um prolongamento ao máximo da vida, mas também como avaliação se o procedimento vai beneficiar o paciente ou não. Alternativa que se difere da distanásia e da eutanásia, é a ortotanásia e seu princípio de morte natural. A ortotanásia permite ao doente, que já entrou em fase final de sua doença, enfrentar o seu destino com tranquilidade porque, nesta perspectiva, a morte não é uma doença a curar, mas sim algo que faz parte da vida. No fundo, a ortotanásia é morrer saudavelmente, pois a morte não está sendo forçada como a eutanásia e também a vida não está sendo forçada como a distanásia, aqui a vida e a morte seguem o seu curso naturalmente sem intervenção humana. O propósito da eutanásia é justamente tirar com a morte o sofrimento e a dor que a vida dá ao paciente. Muitas vezes adeptos dessa ação são 92 considerados desumanos, mas muitos conservadores não veem que suas atitudes de defender a vida a todo custo, sacrifica seres humanos em altares de sistemas morais autoritários que valorizam mais princípios frios e restritivos, do que a autonomia do sujeito e a liberdade da sua vontade de escolha. Podemos perceber que a eutanásia se divide em dois elementos: a eliminação da dor e a morte do portador da dor como meio para alcançar esse fim. A ética médica codificada e a teologia moral abrigam o primeiro elemento, o tratamento e a eliminação da dor, e recusa o segundo elemento, a morte direta e proposital do portador da dor. Quando se condena a eutanásia, não é o controle da dor, nem a defesa da dignidade da pessoa doente em fase terminal, mas sim aquela parte do resultado que acaba matando a pessoa a fim de matar a sua dor. Uma ambiguidade que frequentemente surge em relação à natureza da eutanásia é se ela é exclusivamente um ato médico ou não. Se os fatores decisivos na definição da eutanásia são o resultado (morte provocada, eliminação da dor) e a motivação (compaixão), a palavra pode continuar tendo uma conotação bastante ampla. Nesta definição da palavra, o ato de um marido atirar e matar a sua esposa que está morrendo de câncer, porque não aguenta mais ouvir suas súplicas para acabar com tanto sofrimento, poderia ser caracterizado eutanásia. Se, porém, se acrescenta outro fator, a natureza do ato e a eutanásia forem definidas como ato de natureza médica, de repente a situação descrita não é mais eutanásia. De acordo com os estudos sobre bioética e filosofia moral, o exemplo descrito anteriormente está mais próximo de ser considerado um homicídio por misericórdia, do que eutanásia. A palavra eutanásia deve ser colocada em casos exclusivamente para denotar atos médicos que, motivados por compaixão, provocam precoce e diretamente a morte a fim de eliminar a dor. 93 Outro ponto que precisa ser analisado criticamente é a distinção entre a eutanásia praticada em pessoas que estão sofrendo fisicamente ou psicologicamente,mas cuja condição não ameace imediatamente a vida; e pessoas, cuja enfermidade já entrou em fase terminal, com sinais de comprometimento progressivo dos órgãos. Nos dois casos, a bioética tem que ultrapassar os princípios de autonomia e liberdade e fazer uma reflexão mais profunda para chegar a uma solução, pois é preciso levar em conta também, os princípios da beneficência, da não-maleficência e da justiça. Analisando, especificamente, o caso da pessoa que está sofrendo fisicamente ou psicologicamente, mas cuja condição não ameaça a vida, podemos pegar um exemplo de um tetraplégico, consciente, lúcido e angustiado, que peça a morte para pôr fim ao seu sofrimento. Se a saúde se define por ausência de doença e de enfermidades que impossibilita o ser humano de exercer suas habilidades inatas, tendo como autonomia a liberdade de praticar a sua vontade, inclusive a própria morte, torna-se difícil refutar esse argumento e impedir a sua morte. Porém, se a saúde tiver outra conotação e a autonomia estiver ligada a uma rede de sentidos e não em atividades isoladas, surgem outras opções para argumentar contra esse tipo de prática. BUSCANDO O CONHECIMENTO Quando se entende a saúde como o bem-estar físico, mental, social e espiritual da pessoa, abre-se todo um leque de possibilidades para falar na saúde do doente crônico e para promover seu bem-estar. O bem-estar físico da pessoa tetraplégica se promove, em primeiro lugar, cuidando da higiene, conforto e tratando infecções ou moléstias que possam por risco a sua vida. Um quarto limpo, com temperaturas agradáveis, onde o doente possa se sentir bem contribui muito para a ideia do bem-estar. A reconquista da autoestima é um ótimo fator para promover o bem estar do doente, pois o isolamento social, 94 inclusive em relação aos próprios familiares, resulta em grande fonte de infelicidade para o doente crônico. Partindo dessa reflexão, pode-se argumentar que nesta situação onde angústia é provocada por uma condição que não ameaça diretamente a vida, a eutanásia é um procedimento inapropriado do ponto de vista da ética. O que a situação necessita não é da morte para libertar o paciente da dor, mas, sim do investimento no resgate da vida e do seu sentido existencial. Esse caso ocorre diferentemente do caso em que o paciente está em uma fase terminal e irreversível do organismo. Enquanto no fato anterior o procedimento apropriado foi investir na vida, neste evento o procedimento apropriado é investir na morte. A morte assume aqui um caráter diferente de seu significado comum, pois, se entendemos a saúde como o bem estar físico, mental, social e espiritual da pessoa, o bem estar físico de um doente, em fase terminal, não é a tentativa de encontrar a sua cura, mas nos cuidados necessários para assegurar seu conforto e o controle da sua dor. Garantir este bem estar físico é um primeiro passo para manter a sua saúde enquanto morre. 95 UNIDADE 19. A EUTANÁSIA NO BRASIL CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender o funcionamento da eutanásia no Brasil. ESTUDANDO E REFLETINDO No Brasil, a eutanásia foi considerada um tema polêmico, pois trata de assuntos sobre morte e vida de um paciente. Em um país onde a maioria da população afirma-se cristã, a eutanásia teve que enfrentar certas barreiras para conseguir entrar em um campo de discussão acadêmica. O excerto a seguir, trata da eutanásia no solo brasileiro e foi produzido pela advogada e pesquisadora Sheyla Sampaio Pamplona7 No Direito penal Brasileiro, a Eutanásia é considerada como Homicídio. Assim, o legislador contemplou o Princípio a Vida, embora acolha a redução da pena prevista no parágrafo 1º do referido artigo, In verbis “Se o agente comete o crime impelido por motivo de relevante valor social ou moral, ou sob o domínio de violenta emoção, logo em seguida ã injusta provocação da vítima, o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um terço” Nessa esteira, o homicídio privilegiado está inserido no art. 121 parágrafo primeiro do Código Penal e dá direito a uma redução de pena variável entre um sexto e um terço. Trata-se de verdadeira causa de diminuição de pena incidente na terceira fase da aplicação da pena. Conforme leciona Fernando Capez: “NA REALIDADE O HOMICIDIO PRIVILEGIADO NÃO DEIXA DE SER O HOMICIDIO PREVISTO NO TIPO BASICO 7 Disponível: < http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/outros/sheyla-pamplona- eutanasia.pdf>, acesso em: 10/08/2014. http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/outros/sheyla-pamplona-eutanasia.pdf http://www.juspodivm.com.br/novo/arquivos/artigos/outros/sheyla-pamplona-eutanasia.pdf 96 (CAPUT) CONTUDO EM VIRTUDE DA PRESENCA DE CERTAS CIRCUNSTANCIAS SUBJETIVAS QUE CONDUZEM A UMA MENOR REPROVACAO SOCIAL DA CONDUTA HOMICIDA, O LEGISLADOR PREVE UMA CAUSA ESPECIAL DE ATENUACAO DA PENA”. Assim, no homicídio privilegiado a conduta continua punível, apenas havendo uma diminuição da sua reprovabilidade em face da redução do seu contraste com as exigências ético-juridicas da consciência comum. A relevância social ou moral da motivação está vinculada aos princípios, valores em que se estrutura a sociedade. O valor moral é o valor superior, enobrecedor de qualquer ser humano em circunstancias normais. É necessário que se trate de valor adequado segundo aquilo que a moral média reputa nobre e merecedor de indulgência. Vale salientar que deve ser considerado de forma objetiva, segundo os padrões da sociedade, e não de forma subjetiva de acordo com a opinião do agente. Ademais, não basta o valor moral, é fundamental que referido valor seja relevante, isto é, digno de apreço. Há divergência jurisprudencial e doutrinaria se se trata de causa de diminuição de pena obrigatória ou mera faculdade do juiz. Contudo, prevalece a corrente de que é um direito publico subjetivo do condenado, não podendo ser negado sob pena de violar o STATUS LIBERTATIS deste. A discricionariedade do juiz encontra-se, apenas, no quantum da redução. Insta gizar que a eutanásia considerada com direito de morrer sem dor não deve ser confundida, juridicamente, com o verdadeiro direito de morrer que é o suicídio, uma vez que a vida é um bem jurídico indisponível. Portanto, o sujeito de direito não será punido, haja vista deixa de existir, sendo punido, apenas, quem induz, auxilia ou instiga alguém se suicidar. Já na eutanásia mesmo havendo pedido expresso da vitima, o seu autor será perfeitamente punido. 97 Já o Anteprojeto da Parte Especial do Código Penal de 1984, que está em tramitação no Senado Federal, traz um avanço expressivo no tratamento dado ao polêmico tema da Eutanásia Passiva, ao afirmar expressamente no art. 121 parágrafo 3º, in verbis “Não constitui crime deixar de manter a vida de alguém por meio artificial se previamente atestada por dois médicos, a morte como iminente inevitável, e desde que haja consentimento do doente ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, conjugue ou irmão.” A aprovação desse artigo permitirá que a Eutanásia passiva seja legalmente realizada, evitando, assim, o prolongamento indevido da vida de um paciente terminal, encurtando o seu sofrimento. Em tramitação no Senado Federal, também, se encontra o Projeto de Lei 125/90 que estabelece critérios para a legalização da “morte sem dor”. O Projeto prevê a possibilidade de que pessoas com sofrimento físico ou psíquico possam solicitar que sejam realizados procedimentos que visem a sua própria morte. A autorização para estes procedimentos será dada por uma junta médica, composta por cinco membros, sendo dois especialistas no problema do solicitante. Caso o paciente esteja impossibilitado de expressar a sua vontade, um familiar ou amigo poderá solicitar à Justiça tal autorização.Em contrapartida, o Código de Ética Médica no seu art.66 é bastante enfático em vedar ao médico utilizar, em qualquer caso, de meios destinados a abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu responsável legal. Uma recente pesquisa realizada por uma revista brasileira (SUPER INTERESSANTE) na Internet, demonstrou o crescimento no número de pessoas adeptas a legalização eutanásia. Houve um empate técnico: 50,4% dos internautas se posicionaram contra e 49,6% a favor. 98 Muitos são os argumentos dos que defendem a prática da eutanásia. Afirmam ser legítimo o direito de cada indivíduo decidir sobre a própria vida, mesmo que seja para pôr fim nela. O professor de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Paraíba, defensor da eutanásia declarou: “É desumano vermos uma pessoa a sofrer, a qual não lhe resta nenhuma esperança de vida. Isto só, por não estar legalizada a eutanásia, uma pessoa para além de está condenada a morrer, ainda está condenada a sofrer muito antes de morrer”. A Relevante discussão em torno da Eutanásia está em face dela se contrapor ao mais relevante direito constitucionalmente assegurado: A VIDA. A Constituição Federal no seu art.5º garante que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à segurança e à propriedade. O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos por ser pré- requisito à existência e o exercício de todos os demais direitos. É por isto o direito humano mais sagrado que não se pode renunciar, logo o ordenamento jurídico não confere aos cidadãos o direito de morrer. BUSCANDO CONHECIMENTO O conteúdo do direito a vida assume duas vertentes. Configura-se no direito de permanecer existente e no direito a um adequado nível de vida. No caso em tela, nos interessa o primeiro aspecto que é o de assegurar a todos o direito de simplesmente continuar vivo, permanecer, existindo até a interrupção da vida por fatores naturais. Conforme explanou Ives Granda da Silva no artigo: O direito Constitucional comparado e a Inviolabilidade da Vida Humana: “O direito à vida, talvez mais do que qualquer outro, impõe o reconhecimento do estado para que 99 seja protegido e, principalmente, o direito à vida do insuficiente... O Estado deve proteger o direito à vida do mais fraco a partir da Teoria do Suprimento. Por esta razão, o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural à vida, principalmente porque exercidas contra insuficientes”. Nessa esteira, o direito à vida è o principal direito do ser humano, cabendo ao Estado preservá-lo tanto mais quanto for insuficiente o seu titular. Nenhum ordenamento jurídico é justo sem respeito a esse direito; não permanecendo no tempo nenhuma civilização que o desrespeita. Como brilhantemente explica Aníbal Bruno: “A vida e um bem jurídico que não importa proteger só do ponto de vista individual, tem importância para a comunidade. O desinteresse do indivíduo pela própria vida não exclui do Estado a tutela penal. O Estado continua a protegê-la como valor social e este interesse superior torna inválido o consentimento do particular para que dela o privem, nem sequer quando ocorrem as circunstancias que incluírem o fato na categoria da Eutanásia ou homicídio piedoso.” Finalizando, o Brasil como país signatário da declaração Universal Dos Direitos Humanos deve obediência aos seus dispositivos. Diz o seu art.4º: “Toda pessoa tem direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”. 100 UNIDADE 20. A CLONAGEM E A BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o que significa clonagem e sua reflexão na bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A clonagem é outro assunto essencial nos debates atuais sobre a bioética. As consequências de uma clonagem humana ainda estão sendo discutidas, pois não se sabe a real utilidade em criar clones humanos. Para realizar tal reflexão, trago um excerto do artigo produzido pelos pesquisadores William Carvalho e Silva, e Valéria Cristina Ferreira.8 Clonagem – Aspectos Científicos Para uma compreensão mais apropriada do que vem a ser a clonagem, há que primeiro entender a etimologia da palavra clonagem: “Em grego o termo Klôn referia-se a pequenos ramos, broto de um vegetal”. Atualmente o termo deixou de evocar a horticultura para significar a manipulação da vida animal. E segundo Luís Archer (2006): “A clonagem dá-se na natureza a uma variedade de níveis e significa sempre o processo que conduz à formação de duas ou mais entidades biológicas geneticamente iguais. Essas entidades poderão ser genes, células ou organismos completos”. 8 Disponível: <http://www.aps.pt/vicongresso/pdfs/600.pdf>, acesso em 15/08/2014. 101 Segundo Danielle Bonfim (2006): “A clonagem pode ser definida como uma forma de reprodução assexuada, na qual o objetivo principal é produzir seres idênticos, perpetuando características genéticas desejáveis”. Em humanos, os clones naturais são gêmeos univitelinos, seres que compartilham o mesmo DNA, ou seja, compostos pelo mesmo material genético originado pela divisão do óvulo fertilizado. Para Danielle Bonfim os gêmeos não são clones, pois são diferentes dos pais. Para esta autora um ser só é considerado clone quando possui o mesmo código genético do ser que o originou, sendo, portanto, uma cópia do ser original, o que não ocorre na bipartição de embriões. Para ATLAN (2005) os gêmeos têm genomas idênticos e aparência física semelhante, relativamente aos elementos outros são diferentes (estrutura e conexão nervosa do cérebro, estrutura dos sistemas imunitários, personalidade psíquica, influência psicológica do meio.). A ovelha Dolly – o sonho realizado. Dolly foi a primeira ovelha clonada a partir de células adultas. O seu nascimento se deu a 5 de Julho de 1996, foi oficialmente divulgado pela imprensa em 23 de Fevereiro de 1997. O Objetivo da pesquisa foi utilizar a clonagem para gerar animais que fossem capazes de produzir medicamentos para uso humano no leite, por exemplo, fatores de coagulação sanguínea para hemofílicos. A morte da ovelha Dolly aconteceu no dia 14 de Fevereiro 2003, aos seis anos e meio, submetida a uma injeção letal, pois era vítima de uma doença pulmonar grave, de origem supostamente infecciosa. Não se sabe bem ao certo as razões sobre a doença que acometeu Dolly. 102 A Ovelha Dolly – o que aprendemos? Os criadores de Dolly, do Instituto Roslin, disseram que a doença é comum em ovelhas e foi provavelmente adquirida, mas como Dolly já havia sido exposta a uma doença gravíssima e fatal? Parece estranho. Além disso, já havia apresentado outros problemas possivelmente relacionados à clonagem. Ela era grande, obesa e vivia confinada. Teve três gestações e seis filhotes. Com pouco mais de 5 anos e meio foi divulgada a informação de que Dolly sofria de artrite na pata esquerda traseira. Tanto a artrite quanto a doença pulmonar são doenças características de ovelhas idosas. Clonagem humana reprodutiva A clonagem humana reprodutiva é uma técnica que permite criar uma criança geneticamente idêntica a um indivíduo já existente, ou seja, fazer nascer um novo indivíduo por meio de uma técnica de transferência de núcleo de uma célula somática para um óvulo enucleado (extraído o núcleo). Sendo uma reprodução de células geneticamente idênticas, não se destinando a ser implantadas num útero. Uma das vantagens da clonagem terapêutica seria evitar a rejeição se o doador for a própria pessoa (seria o caso, por exemplo, na reconstituiçãoda medula de alguém que ficou paraplégico após um acidente ou da substituição do tecido cardíaco). Entretanto o doador não poderia ser a própria pessoa quando se tratasse de alguém afetado por doença genética, pois a mutação patogênica causadora da doença estaria presente em todas as células. No caso de se usarem linhagens de células estaminais embrionárias de outra pessoa, ter- se-ia também o problema da compatibilidade entre o doador e o receptor. A clonagem humana apresenta alguns aspectos delicados, é, sendo um caso singular distinta das demais técnicas de reprodução artificial, não garante 103 desenvolvimento normal, verifica-se também um envelhecimento antecipado, uma elevada taxa de mortalidade perinatal e deficiência no sistema imunitário. BUSCANDO CONHECIMENTO Aspectos Éticos Ao iniciarmos a abordagem da clonagem em seus aspectos éticos, evidenciamos os motivos que levariam a clonagem, que seriam: - A ideia da imortalidade da alma; Reservas de órgãos para transplante; Reprodução de cônjuge falecido ou outros familiares; Tratamento de um irmão doente, e também impossibilidade de procriação natural. A clonagem segundo ARCHER (2006) é revestida de um aspecto mágico, pseudocientífico, fantasmagórico que parece radicar nos mitos antigos da reencarnação e da imortalidade, reinterpretados em termos pseudobiológicos (ressuscitar entre os mortos, por exemplo). A obstinação procriadora seria também motivadora da clonagem, ou seja, esterilidade masculina ou feminina, com a ausência total de produção de gametas, sendo a utilização do citoplasma do óvulo do parceiro, dar-lhes-ia um gêmeo que ocuparia o lugar de um filho. O mito de Pandora Para SALZANO (1999), Pandora - Mulher fictícia à qual os deuses do Olimpo atribuem todos os dons. Ela foi moldada por argila por Hefestos, Atenas ofereceu o sopro vital e as vestes, Afrodite ofereceu a beleza, Hermes ofereceu a astúcia e a falsidade e Apolo oferece o talento musical. E para além de todos estes dons também uma caixa, contendo os males. O mito de pandora reflete o risco do desconhecido, a reprodução de um ser perfeito e a possibilidade do castigo/reação natural. 104 Ao analisarmos este mito de pandora, inevitavelmente suscita-nos vários questionamentos? Será irrelevante para um ser humano ser geneticamente idêntico a outro, por decisão de um terceiro, e não possuir pais biológicos? É irrelevante o fato dos embriões que não atenderem ao genótipo pretendido serem descartados? Quem decidirá o tipo ideal de ser humano que deverá viver? Com a decifração do código genético, pode-se substituir um gene defeituoso por outro perfeito: quem terá acesso a essa tecnologia? O risco de uma nova escravidão A fabricação de um clone significaria negar a autonomia possível da pessoa e não tendo em consideração o seu desenvolvimento futuro, autônomo e imprevisível. A clonagem também abre a possibilidade do surgimento de uma nova “raça” – regressão social e moral, permitindo o surgimento de uma nova escravidão. Av. Ernani Lacerda de Oliveira, 100 Bairro: Pq. Santa Cândida CEP: 13603-112 Araras / SP (19) 3321-8000 ead@unar.edu.br Rua Américo Gomes da Costa, 52 / 60 Bairro: São Miguel Paulista CEP: 08010-112 São Paulo / SP (11) 2031-6901 eadsp@unar.edu.br www.unar.edu.br 0800-772-8030 POLOS EAD http://www.unar.edu.br http://www.unar.edu.br http://www.unar.edu.br http://www.unar.edu.br