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FILOSOFIA BIOÉTICA Prof. Sebastião Donizeti Bazon http://www.unar.edu.br BIOÉTICA Prof. Ms. Sebastião Donizetti Bazon 2 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA .............................................................................................. 3 PROGRAMA DA DISCIPLINA ..................................................................................................... 4 UNIDADE 1. O QUE É BIOÉTICA ................................................................................................ 6 UNIDADE 2. A ÉTICA E A BIOÉTICA ........................................................................................ 10 UNIDADE 3. CONTEXTO HISTÓRICO DO NASCIMENTO DA BIOÉTICA ............................ 15 UNIDADE 4. A FILOSOFIA DA BIOÉTICA ................................................................................ 20 UNIDADE 5. O PROGRESSO CIENTÍFICO E A BIOÉTICA ....................................................... 25 UNIDADE 6. O RELATÓRIO DE BELMONT ............................................................................. 30 UNIDADE 7. A TEORIA PRINCIPIALISTA ................................................................................. 35 UNIDADE 8. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: H. TRISTAM ENGELHARDT40 UNIDADE 9. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: PETER SINGER ................. 45 UNIDADE 10. A VOLTA DAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS NA BIOÉTICA ................................ 50 UNIDADE 11. A BIOÉTICA PERIFÉRICA ................................................................................... 55 UNIDADE 12. A BIOÉTICA BRASILEIRA ................................................................................... 60 UNIDADE 13. BIOÉTICA DE INSPIRAÇÃO FEMINISTA .......................................................... 65 UNIDADE 14. TEMAS DA BIOÉTICA: O ABORTO................................................................... 70 UNIDADE 15. TEMAS DA BIOÉTICA: DISCUSSÃO SOBRE O ABORTO ................................ 75 UNIDADE 16. ABORTO: O DIREITO DE NASCER ................................................................... 80 UNIDADE 17. ABORTO: O DIREITO SOBRE A VIDA .............................................................. 85 UNIDADE 18. TEMAS DA BIOÉTICA: A EUTANÁSIA .............................................................. 90 UNIDADE 19. A EUTANÁSIA NO BRASIL ................................................................................ 95 UNIDADE 20. A CLONAGEM E A BIOÉTICA ......................................................................... 100 3 APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA A Bioética (grego: bios, vida + ethos, relativo à ética) é um ramo da Filosofia moral que se interage com outras disciplinas como Medicina e Direito, e tem como objetivo discutir as questões relativas ao avanço das ciências da saúde e suas consequências para a vida humana. A disciplina tem como objeto de estudo, as polêmicas geradas pelo avanço das ciências da saúde que muitas vezes não acompanha uma reflexão sobre a vida humana e a dignidade do homem, questões como aborto, eutanásia, clonagem, suicídio assistido, são debatidos sob uma ótica científica e também filosófica, propondo assim uma profunda reflexão sobre o valor da vida e os avanços científicos. A bioética se apresenta sob três formas de estudos: a abordagem historicista, filosófica e temática. A abordagem historicista se remete aos conteúdos e eventos ocorridos no passado, e que têm relação com os abusos cometidos contra a vida humana, tanto pela parte da ciência, como pela parte do homem, por exemplo, as pesquisas realizadas nos campos de concentração nazistas e as duas guerras mundiais. A abordagem filosófica exige que os seus debatedores tenham certo conhecimento da história da filosofia, principalmente da filosofia moral e por último e a mais utilizada é a abordagem temática, que se utiliza de casos do cotidiano e da vida para propor uma reflexão sobre determinados assuntos. 4 PROGRAMA DA DISCIPLINA Ementa Introdução a temas e problemas da filosofia, no tratamento referente à Bioética. Explicação dos fundamentos filosóficos da ética e da bioética. Reflexão teórica e prática sobre os aspectos e consequências morais da interação humana em diferentes contextos que envolvem a vida. Objetivo Explicar a origem da bioética e seus primeiros estudos dessa nova disciplina. Metodologia Disciplina oferecida na modalidade a distância (EAD). Incentiva-se a formação de grupos de estudo autônomos, orientados pelo professor. Avaliação No sistema EAD, a legislação determina que haja avaliação presencial, sem, entretanto, se caracterizar como a única forma possível e recomendada. Na avaliação presencial, todos os alunos estão na mesma condição, em horário e espaço pré-determinados, diferentemente, a avaliação a distância permite que o aluno realize as atividades avaliativas no seu tempo, respeitando-se, obviamente, a necessidade de estabelecimento de prazos. A avaliação terá caráter processual e, portanto, contínuo, sendo os seguintes instrumentos utilizados para a verificação da aprendizagem: Trabalhos individuais ou a partir da interatividade com seus pares; Provas realizadas presencialmente; Trabalhos de pesquisa. 5 As estratégias de recuperação incluirão: Retomada eventual dos conteúdos abordados nas unidades, quando não satisfatoriamente dominados pelo aluno; Elaboração de trabalhos com o objetivo de auxiliar a vivência dos conteúdos. Referências Bibliografia Básica ENGELHARDT, H.T. Fundamentos da bioética. SP: Loyola, 2008. ENGELHARDT, H.T. Bioética Global. SP: Paulinas, 2012. MARINO, JR, R. Em busca de uma bioética global. SP: Hagnos, 2009. Bibliografia Complementar CASSIRER, E. Ensaio sobre o homem. SP: Martins Fontes,2001. DURAND, G. Introdução geral à bioética. SP: Loyola, 2003. GILES, T. R. Ramos Fundamentais da Filosofia: lógica, teoria do conhecimento, ética profissional. SP: EPU, 1995. GOZZO, D. Bioética e direitos fundamentais. SP: Saraiva, 2012. PEGORARO, O. Ética é justiça, Petrópolis, vozes 1999. 6 UNIDADE 1. O QUE É BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Definir, de modo geral, o termo bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A primeira aparição do termo bioética ocorreu em um artigo publicado em 1927, na Alemanha, pelo filosofo Fritz Jahr. Para o filósofo, o pensamento separatista entre o homem e o restante dos seres vivos só ocasionou um estado de imoralidade perante à natureza e a si próprio. Esse tipo de pensamento que começou desde a antiguidade e teve a sua crise no final do século XVIII, ocasionou o surgimento de um tipo de pensamento unificador; o pensamento romântico, que por causa do seu contexto histórico e intelectual não vigorou por muito tempo, fazendo com que suas ideias não se desenvolvessem em tempo suficiente. Vários pensadores, segundo Jahr, fizeram referências à criação de uma ética que englobasse os não humanos e o respeito à vida sob todas as suas formas. Por exemplo, o filósofo e teólogo Schleiermacher condenava toda ação que infligisse a vida de qualquer ser, independente da sua espécie, sem nenhuma justificação racional. Outro filósofo, que denunciava os abusos cometidos contra qualquer tipo de vida, era o pensador alemão Schopenhauer que, através de suas influências indianas, falava que a compaixão pelos animais e plantas era uma característica especial e sublime da ética. A esperança para Jahr está no século XX, pois segundo ele, a sociedade adquiriu outra forma de pensamento, por causa das guerras, da expansão das ideias socialistas e das críticas que Nietzsche fez ao sistema moral. A sociedade ocidental começou a se 7 abrirpara novas ideias que fugissem do seu espírito conservador, pois houve a necessidade de mudanças de seus padrões morais e comportamentais. No entanto, a bioética, como conhecemos hoje, é resultado de um estudo iniciado pelo filósofo americano Van Rensselaer Potter. Seu livro Bioética: uma ponte para o futuro, publicado em 1971, se tornou um marco histórico importante para os estudos da nova disciplina. Potter era um cancerologista estadunidense preocupado com questões sobre a preservação do planeta e a democratização do conhecimento científico.. Embora sendo autoridade histórica da institucionalização da palavra bioética, muitos pesquisadores questionam a originalidade do termo empregado por ele. Essas críticas apontam para dois locais, onde provavelmente o termo se originou: o primeiro local seria a Universidade de Wisconsin, em Madson, com Potter; o segundo lugar a Universidade de Georgetown, em Washington, com Andre Hellegers. Mas, diante desse questionamento, Potter continua a ser aclamado como uma referência histórica no campo da bioética, por suas ideias contidas em sua famosa obra. Van Rensselaer Potter, criador do termo moderno de bioética. (Fonte: http://abioetica.blogspot.com.br/2011/06/potte r.html) http://abioetica.blogspot.com.br/2011/06/potter.html http://abioetica.blogspot.com.br/2011/06/potter.html 8 A obra Bioética: uma ponte para o futuro, livro baseado em artigos feitos pelo filósofo entre os anos de 1950 e 1960, tem como principal preocupação a existência de uma assimetria entre a ética humana e o desenvolvimento da ciência que estuda a vida. Muitas vezes o resultado dessa assimetria ocasiona uma separação da esfera dos valores humanos com a esfera da ciência. Para Potter, os valores éticos não podem estar separados de fatos biológicos. Para que isso não ocorra, o filósofo propõe que haja uma democratização nos estudos científicos, pois o especialista pode entender muito sobre determinado organismo de um animal ou uma planta, mas, por causa desse condicionamento técnico, ocorre uma ausência na área humana, que são os valores. A ponte que Potter está propondo em seu livro é uma disciplina capaz de acompanhar o desenvolvimento cientifico (principalmente a ciência aplicada a questões sobre a vida e a saúde), com uma vigilância ética, que muitas vezes a ciência acaba deixando de lado. Para que essa vigilância ocorra, é necessário que exista uma abertura no campo cientifico, proporcionando uma interação com outras disciplinas como, por exemplo, a Filosofia e o Direito. A crítica feita por Potter ao sistema fechado das ciências não é totalmente sua, pois antes dele existiram outros pensadores que já questionavam essa atitude da ciência e sua arrogância perante outras disciplinas. Karl Popper foi um dos principais filósofos que criticou as bases da ciência que se desenvolvia, pois, segundo o filósofo, uma teoria que se fecha e não oferece meios para uma possível resposta empírica, deve ser reconhecida como mito. BUSCANDO CONHECIMENTO De Newton até o século XX ocorreu uma mistificação da ciência, tornando-se algo elevado, pois os ocidentais reconheciam nas ciências a verdade sólida, completamente e definitivamente confiável. Quando era 9 descoberto um novo fato ou uma lei científica, o sistema científico se fechava e não dava espaço para que ocorresse qualquer mudança. Dessa forma o conhecimento científico era considerado o mais confiável dos conhecimentos que os seres humanos podiam possuir. Com Popper, o pensamento científico teve uma importante transformação, pois, ao criticar o princípio de verificabilidade – princípio utilizado pelo círculo de Viena, que estabelecia o significado de uma proposição e suas condições empíricas de verdade –, o filósofo propôs a falseabilidade como princípio para a ciência evoluir. Esse princípio consiste em afirmar que teorias que não podem ser refutadas não são teorias científicas, ou seja, teorias que não oferecem possibilidades de respostas, não são consideradas teorias científicas. A excentricidade no pensamento de Potter está em criticar as ciências da saúde e biológicas, pois a crítica feita por ele na primeira metade do século XX afetou somente as ciências naturais, como a física e a química, deixando quase intactas as ciências biológicas. O que Potter apresenta como proposta em seu livro é a ideia da constituição de uma ética aplicada às situações de vida pois, para ele, esse seria o caminho para a sobrevivência da espécie humana. Todavia, para que ocorra essa nova disciplina, não é preciso um rigoroso conhecimento da técnica, mas sim respeito aos valores humanos. Os ingredientes necessários para que se realize essa nova disciplina com prudência, que segundo o filosofo julga necessário, está na junção do conhecimento biológico associado a valores humanos. Os efeitos dessa união resultarão no espírito da bioética. 10 UNIDADE 2. A ÉTICA E A BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o relacionamento da ética com a bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A bioética surge da necessidade de refletir atitudes científicas de uma maneira mais humanizada. Por isso, a ética contribui de forma significativa para fundamentar os pressupostos da bioética e também por guiá-la em suas análises. Para ajudar nesta reflexão, trago um excerto do artigo do pesquisador e doutor em clínica médica José Roberto Goldim1. A Bioética e a Ética Atualmente, a ética passou a fazer parte do discurso da população, dos meios de comunicação, de profissionais de várias áreas, com seu significado nem sempre utilizado de forma correta. Talvez devido ao pouco conhecimento formal que a maioria das pessoas tem da ética, muitas não sabem propriamente o que é a ética, qual a sua finalidade e como ela atua. Muitas vezes, a palavra ética é utilizada também como adjetivo, com a finalidade de qualificar uma pessoa ou uma instituição como sendo boa adequada ou correta. Esse uso pode ter sido influenciado pela definição de ética proposta por George Edward Moore, de que ela é “a investigação geral sobre aquilo que é bom” O ideal é sempre utilizá-la na forma adverbial, ou seja, ela própria merecendo ser qualificada – eticamente adequada ou eticamente 1 Disponível: <http://www.ufrgs.br/bioetica/complex.pdf>, acesso em: 02/08/2014. 11 inadequada –, mas não pressupondo que a ética, no seu sentido substantivo, sempre se associe ao bom, ao adequado e ao correto. Ricardo Timm de Souza afirmou que a maior revolução epistemológica do pensamento ocidental foi à proposta por Emanuel Lévinas, ao postular que a ética fosse considerada como filosofia primeira, invertendo a subordinação tradicional à lógica e à ontologia. Três autores contemporâneos podem auxiliar na compreensão adequada dessas questões fundamentais. Adolfo Sanches Vasques caracterizou a ética como sendo a busca de justificativas para verificar a adequação ou não das ações humanas. Joaquim Clotet afirmou que a “ética tem por objetivo facilitar a realização das pessoas. Que o ser humano chegue a realizar-se a si mesmo como tal, isto é, como pessoa”. Complementando, Robert Veatch dá uma boa definição operacional de ética ao propor que ela é “a realização de uma reflexão disciplinada das intuições morais e das escolhas morais que as pessoas fazem”. A Bioética e a Humildade A humildade é uma virtude, ou seja, um traço adequado do caráter de uma pessoa. Potter definiu humildade como sendo a consequência apropriada que segue a afirmação “posso estar errado” e exige responsabilidade de aprender com as experiências e conhecimentos disponíveis. Durante um longo período da história da humanidade, pensou-se que seria possível conhecer a totalidadedas informações sobre um determinado tema. Ao atingir esse nível de conhecimento, seria possível conhecer todo o seu passado e também o seu futuro. A essa possibilidade, foi dado o nome de “demônio de Laplace”, pois quem detivesse todo esse conhecimento tudo poderia prever. 12 Werner Heisemberg, na década de 1930, formulou o princípio da incerteza, demonstrando a impossibilidade de conhecer simultaneamente a posição e a velocidade de uma partícula. Essa impossibilidade de poder conhecer tudo provocou, em consequência, o “exorcismo do demônio de Laplace”. Atualmente, é aceito que o tempo é uma variável fundamental em todo e qualquer processo. Ele provoca mudanças, e mais do que isso: associando-o à indeterminação, os processos não só mudam como podem mudar a sua própria maneira de mudar. A inclusão das noções de indeterminação e de mudanças provocadas pelo tempo alterou definitivamente as discussões científicas. Contudo, não houve a esperada contrapartida de humildade de grande parte dos cientistas e de outros profissionais envolvidos com a geração e aplicação do conhecimento. Hans Jonas, já em 1968, disse que “a humildade seria necessária como um antídoto para a ruidosa arrogância tecnológica atual”. Na Bioética, a humildade é uma característica fundamental. Ao assumir que a incerteza e a mudança são componentes sempre presentes, assume-se, igualmente, que os resultados das reflexões são sempre passíveis de discussão. A humildade permite reconhecer que não são definitivos nem imutáveis. BUSCANDO CONHECIMENTO A Bioética e a Responsabilidade Os conhecimentos e discussões gerados pela Bioética e pela ecologia contribuíram para ampliar a noção de responsabilidade. Durante muito tempo, ela era associada apenas aos deveres existentes entre seres humanos contemporâneos e geograficamente próximos. Peter Singer desencadeou, no início da década de 1970, um grande debate sobre os direitos dos animais. Fritz Jahr, em 1927, já havia proposto, 13 segundo suas próprias palavras, um imperativo bioético: “Respeita, em princípio, cada ser vivo como uma finalidade em si e trata-o como tal, na medida do possível”. O próprio título de seu artigo propunha uma visão da Bioética como sendo um “panorama sobre as relações éticas dos seres humanos para com os animais e as plantas”. A inclusão das plantas na discussão bioética é ainda altamente inovadora, mesmo nos dias atuais. Em 1948, Aldo Leopold, em seu texto sobre ética da terra, fez outra ampliação dessa discussão, quando postulou o direito das gerações futuras a receberem um ambiente preservado. Nessa mesma tradição, Hans Jonas, em 1968, propôs um outro imperativo, com a finalidade de prevenir possíveis consequências das ações humanas: “Nas tuas opções presentes, inclui a futura integridade do ser humano entre os objetos da tua vontade”. A expansão dessa discussão sobre direitos e deveres com a inclusão de todos os seres vivos, tanto contemporâneos quanto ainda não existentes, amplia a responsabilidade e a perspectiva atual da Bioética, como já haviam antecipado Fritz Jahr e Van Rensselaer Potter. A ecologia profunda, de Arne Ness, que serviu de base para a terceira definição de Bioética de Potter, já havia rompido com a perspectiva usual da relação dos seres humanos com a natureza, no sentido de domínio sobre a mesma – em que o ambiente natural era visto apenas como um recurso para ser desfrutado, considerando os demais seres vivos como inferiores – e de centrar essas discussões políticas apenas no âmbito nacional. A sua proposta visava gerar uma relação harmoniosa com a natureza, reconhecendo-a como tendo valor intrínseco e buscando o reconhecimento da igualdade entre as diferentes espécies, e esta perspectiva deveria ser discutida na abrangência de biorregiões, além de reconhecer as tradições das minorias. Atualmente, discutir apenas a preservação do ambiente natural passou a ser uma tarefa difícil e até mesmo ultrapassada. A diferenciação entre objetos 14 artificiais e objetos naturais, que pode parecer imediata e sem ambiguidade, na realidade não o é. Essas diferenças não são nem imediatas nem estritamente objetivas, tamanho o grau da intervenção humana e das inter-relações existentes. A preservação apenas de ambientes naturais intocados por si só os tornaria artificiais, pois, ao protegê-los, estariam sendo impostas barreiras artificiais de acesso e utilização. As reservas e parques naturais são exemplos dessa ambiguidade entre o natural e o artificial, entre o natural e o naturalizado (Lenoir). Na área da saúde, essa questão também está cada vez mais presente. Distinguir os processos de ação naturais do organismo humano dos provocados por intervenções externas a ele pode ser difícil e, em determinadas situações, impossível. As intervenções, quando avaliadas de uma perspectiva ecológica, deixam de ter apenas uma conotação individual, passando a merecer uma discussão com as demais pessoas direta ou indiretamente envolvidas. A ética da razão comunicativa de Karl-Otto Apel deu uma importante contribuição nesse sentido. Ao levar em conta as consequências diretas e indiretas das ações realizadas e por utilizar o discurso argumentativo exercido por todos os indivíduos para obter normas consensuais, torna-os corresponsáveis por todas as ações. 15 UNIDADE 3. CONTEXTO HISTÓRICO DO NASCIMENTO DA BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o contexto histórico do nascimento da Bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO Para melhor entender os princípios da bioética, é necessário entender o contexto histórico e social que Potter viveu, pois as transformações sociais, políticas e tecnológicas que ocorreram na década de 60, impulsionaram o nascimento da bioética que conhecemos hoje. Houve importantes processos de transformações da sociedade que marcaram profundamente o espírito do filósofo, tanto no campo das ciências, como no campo da moralidade. Os avanços científicos e tecnológicos fizeram surgir dilemas morais inesperados à prática da biomédica. A causa desses dilemas está nos eventos ocorridos nos anos da década 1960, nos Estados Unidos e no mundo, que são: as conquistas dos direitos civis, o que fortaleceu o ressurgimento de movimentos sociais organizados, como o feminismo, o movimento hippie e o movimento negro, entre outros grupos de minorias sociais. O resultado disso foi o manifesto de diferentes opiniões na sociedade, que buscavam respeito, proteção das leis e o pluralismo moral. Outro resultado dessas manifestações sociais foram as transformações em instituições já tradicionais, como os padrões de família, as crenças religiosas, e até mesmo a socialização das crianças por meio das escolas. As transformações não se restringem ao campo moral. Neste período ocorreram transformações significativas no campo tecnológico, desenvolvendo-se tecnologias que privilegiavam o bem estar das pessoas e a qualidade de vida 16 das populações. Enfim, a década de 1960 foi sem dúvida um marco para as transformações da sociedade em todos os seus sentidos, por isso, o surgimento da bioética pode ser visto, então, como a principal resposta no campo ético a essas grandes mudanças. Martin Luther king, líder do movimento negro que lutava por direitos civis na década de 60. (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Martin_Luther_King,_Jr.) Em 1967, acontece o primeiro transplante de coração, pela equipe do cirurgião sul-africano Christian Barnard, no Hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo, África do Sul. (Fonte: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-76382011000400029) 17 Ainda nesse período de transformações, ocorreram dois outros acontecimentos que contribuíram para que a bioética fosse definida como um novo campo disciplinar:as denúncias cada vez mais assíduas, relacionadas às pesquisas científicas com seres humanos, um tema fortemente impulsionado pelas histórias de atrocidades cometidas por pesquisadores nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial; e a abertura gradual da medicina, que, de uma profissão fechada e autoritária, passou a dialogar com os estrangeiros que são os filósofos, teólogos, advogados e, posteriormente, com os sociólogos, psicólogos que passaram a opinar sobre a profissão médica, porém sob outras perspectivas profissionais. Essa invasão, por outras áreas do conhecimento em medicina, tem como causa a especialização cada vez mais direcionada dos médicos e com isso ocorre uma despersonalização do exercício médico. O efeito desse processo foi uma perda significativa de confiança na relação médico e paciente. A imagem do médico como amigo e confidente – no antigo modelo do médico de família – foi perdendo a força, até chegar a um estado de distanciamento e estranhamento entre o paciente e o médico. Esses fatores contribuíram para que a ética clássica médica de inspiração hipocrática fosse perdendo a força e que causassem o nascimento de outra ética. BUSCANDO CONHECIMENTO O filósofo americano Albert Jonsen, em 1993, escreveu um livro intitulado O Nascimento da Bioética, onde ele relata fatos que ocasionaram a consolidação da bioética. Dentre os fatos mencionados no livro, o filósofo ressalta três acontecimentos que foram cruciais para a consolidação da disciplina. O primeiro fato foi à divulgação do artigo da jornalista Shana Alexander, intitulado “Eles decidem quem morre”, publicado na revista Life, em 1962, que contava a história e os desdobramentos da criação de um comitê de ética hospitalar em 18 Washington, nos Estados Unidos (Comitê de Admissão e Políticas do Centro Renal de Seattle). O Comitê de Seattle, como ficou conhecido, tinha o objetivo de definir prioridades para a alocação de recursos em saúde. Uma das primeiras medidas foi a seleção, dentre os pacientes renais crônicos, daqueles que poderiam fazer parte do programa de hemodiálise recém-inaugurado na cidade. O problema está em que não havia disponibilidade para todos os pacientes, pois o número de internados era muito grande. A solução que os médicos encontraram foi delegar os critérios de seleção para um pequeno grupo de pessoas, basicamente todos leigos em medicina. O grupo elegia os critérios não-médicos de seleção para o tratamento, resultando em um processo de transferência de responsabilidade da decisão médica para o domínio publico. Para a jornalista, esse evento marcou a necessidade de pensar uma ética nova para os profissionais da saúde, pois esse fato ocorrido mostrou que as noções de valores e responsabilidade da ética médica estavam equivocadas. O segundo evento ocorreu em 1966, com a publicação de um artigo do médico anestesista Henry Beecher. O médico colecionava publicações que envolvessem seres humanos em condições pouco respeitosas, extraindo os dados de jornais de grande prestígio internacional, como por exemplo, o New England Journal of Medicine, Journal of American Medical Association, Journal of Clinical Investigation, entre outros. O resultado dessa união de artigos gerou o livro, Ética e pesquisa clínica, que reúne 22 relatos de pesquisas realizadas com recursos provenientes de instituições governamentais e companhias de medicamentos em que os alvos de pesquisa eram os chamados “cidadãos de segunda classe”. Adultos com deficiências mentais, idosos, recém-nascidos, crianças com retardos mentais, pacientes psiquiátricos, presidiários, mendigos, são considerados os cidadãos de segunda classe, por não poderem assumir 19 uma postura moralmente ativa perante os pesquisadores ou autoridades dos experimentos. O terceiro e ultimo evento considerado crucial para a consolidação da bioética, segundo Jonsen, foi a resposta do público a uma atitude médica arbitrária que ocorreu na África do Sul, em 1967, com o cirurgião cardíaco Christian Barnard. O médico transplantou o coração de uma pessoa quase morta em um paciente com doença cardíaca terminal. Esse acontecimento repercutiu na mídia internacional, gerando repulsa dos cidadãos em relação à atitude do médico. O problema central dessa atitude está em como o médico pode garantir que o doador esteja realmente morto no momento do transplante. A situação levou a Escola de Medicina da Universidade de Harvard, em 1968, a procurar definir critérios para a morte cerebral, a fim de controlar casos semelhantes a esse. Os preceitos foram divulgados somente em 1975, mas ainda hoje é referência para o debate internacional sobre morte encefálica. 20 UNIDADE 4. A FILOSOFIA DA BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender os pressupostos filosóficos existentes na bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A bioética necessitou importar vários conceitos da filosofia para definir suas bases e fundamentos. Para refletir sobre a colaboração da filosofia na bioética, trago um excerto do doutor em filosofia Bernardo Alfredo Mayta Sakamoto2 A Bioética pode ser entendida como uma amálgama de três concepções filosóficas modernas: o jusnaturalismo, o princípio da dignidade kantiano e o utilitarismo. O jusnaturalismo ou direito natural O Direito Natural é um direito espontâneo que surge da própria natureza social do homem. É constituído por um conjunto de princípios de caráter universal, eterno e imutável. São direitos naturais: reproduzir-se, constituir família, os direitos à vida e à liberdade. Estes direitos refletem exigências sociais comuns a todos os homens. O Direito Natural é um direito legítimo, que nasce da própria vida humana, no seio do povo. O adjetivo natural, aplicado a um conjunto de normas, já evidencia o sentido da expressão, qual seja, o de preceitos de convivência criados pela própria Natureza e que, portanto, precederiam às leis 2 Disponível <www.unioeste.br/cursos/cascavel/pedagogia/eventos/2008/2/Artigo%2010.pdf>, acesso em: 03/08/2014. 21 escritas ou ao direito positivo que são normas criadas e impostas pelo Estado (jus positum). O fundamento do Direito Natural reside na própria natureza humana. Para além da legislação positiva há um Direito Natural formado por princípios imutáveis e verdadeiros que o homem descobre graças a sua razão. A dignidade humana Para Immanuel Kant (1724-1804) cada ser humano é dotado de dignidade. A dignidade humana consiste nas particularidades únicas do ser humano: razão, inteligência, sentimentos e vontade de decidir. Nossa dignidade está dada pela capacidade de pensar, refletir, inventar e executar nossos projetos. Nós podemos aprender, memorizar, dominar nossos impulsos, isto é, somos capazes de dirigir nossa conduta ou comportamento. Também possuímos a afetividade que nos permite amar a outros seres, comunicar-nos, aderir-nos a valores e, sobretudo, nos dá consciência de nós mesmos e de nossa existência. Para Kant, a Dignidade Humana é o conceito primordial que não distingue idade, sexo, etnia, cor, crença religiosa ou política, situação civil ou econômica. Todos nós queremos ser tratados como “alguém” e não como “algo”. Ninguém quer ser instrumento de outro. O homem deve sempre levar uma vida digna e de autodomínio, uma vida de ser humano. Kant na Fundamentação da Metafísica dos Costumes nos diz: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outra, sempre e simultaneamente como fim e nunca como um meio” (KANT, 2003, p.59). Em outras palavras, nunca trates ao outro como meio, mas sim como fim. 22 O utilitarismo O utilitarismo filosófico, de origem britânica, admite como útil tudo o que serve à vida ea sua conservação, mediante acréscimo de felicidade e bem- estar. Cada ação deve atingir a felicidade máxima, não só para o agente, mas para o conjunto da humanidade. Jeremy Bentham (1748-1832) acreditava que a natureza dos homens é regida por dois princípios: o prazer e a dor. A felicidade é o objetivo de todas nossas ações e, para unir nossa felicidade pessoal com a felicidade geral, existe o critério em medir a ação por suas consequências individuais e sociais. Bentham considerava que o princípio da utilidade pode proporcionar um critério científico para nossas ações e, com isso, reformar a sociedade. O “cálculo felicíssimo” de Bentham permite valorizar nossas ações pela quantidade de pessoas afetadas na ação. Assim, se queremos avaliar uma ação, basta calculara quantidade de felicidade ou dor que esta produziu, este cálculo nos permite estabelecer a retribuição justa, segundo Bentham, dando ao autor da ação a mesma quantidade de prazer ou de dor. Na Bioética, o utilitarismo serve para calcular os riscos e benefícios nos pacientes, avanços na biologia e os efeitos das biotecnologias. BUSCANDO CONHECIMENTO Os fundamentos da Bioética Os fundamentos da Bioética têm natureza pragmática, útil e são, a não maleficência, a beneficência, a autonomia e a justiça. A Bioética considera-os em todos os casos submetidos a sua avaliação. Os fundamentos da Bioética constituem o referencial teórico para justificar suas normas. a) O fundamento da não maleficência. 23 Foi extraído do Juramento de Hipócrates e que realizam ainda hoje os médicos (primum non nocere) “Nunca prejudicarei ou farei mal a quem quer que seja. A ninguém darei remédio mortal nem conselho que o induza à destruição”. A não maleficência indica que devemos evitar causar qualquer dano às pessoas. É dever de todo cidadão proteger os indivíduos ou a sociedade de todos os danos e evitar expô-los ao perigo. Na área das ciências da vida, o pesquisador deve garantir que os prejuízos previstos sejam evitados. Em algumas situações, o fundamento de não maleficência obriga causar o menor dano aos pacientes e aos sujeitos de uma pesquisa. b) O fundamento da beneficência. Extraído também do Juramento de Hipócrates: “Aplicarei a medicina para o bem dos doentes, segundo o saber e minha razão”. Este fundamento da Bioética significa agir em beneficio dos outros, em fazer o bem de outrem. Não só fazer o bem, mas fazer o maior bem possível e ao maior número de pessoas. A Beneficência nos exige, por um lado, evitar causar o mal e, por outro lado, maximizar os benefícios e minimizar os danos. No contexto médico, é um dever agir no interesse do paciente. c) O fundamento da autonomia. Refere-se ao livre arbítrio das pessoas: cada indivíduo é soberano sobre seu corpo e sua mente. Pela Autonomia exige-se, que os indivíduos devam ser tratados como agentes autônomos e, em segundo lugar, que os indivíduos sejam protegidos quando tenham autonomia diminuída (crianças, doentes, anciãos etc). A pessoa autônoma é capaz de deliberar sobre suas metas pessoais e ser capaz de agir segundo essas metas. Respeitar a autonomia é considerar as 24 opiniões e escolhas de uma pessoa, evitando a obstrução de suas ações, a menos que elas sejam claramente prejudiciais para si mesmo ou para os outros. Duas condições são essenciais à Autonomia: a liberdade e a ação. A liberdade é a independência do controle de influências e a ação é a capacidade de agir intencionalmente. A Autonomia exige igualdade de direitos ao cidadão: educação básica, moradia, segurança, assistência médica, trabalho, entre outras, que são as condições básicas para o exercício da cidadania. d) O fundamento da justiça. Desde Aristóteles a Justiça é considerada a maior das virtudes porque envolve todas as ações. A Justiça exige que se trate aos seres humanos de maneira equitativa, no sentido de dar a cada qual o que lhe corresponde. A Justiça é interpretada através da visão da justiça distributiva. Esta é considerada como sendo a distribuição correta, equitativa e apropriada para a convivência na sociedade. Pela justiça distributiva se trata às pessoas de acordo com suas necessidades e suas capacidades: os que precisam mais devem receber mais. A injustiça ocorre quando um benefício que uma pessoa merece é negado sem uma boa razão. 25 UNIDADE 5. O PROGRESSO CIENTÍFICO E A BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender a relação existente entre o progresso científico e a bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO O progresso científico trouxe impactos para a sociedade moderna nos últimos séculos. Várias áreas foram afetadas, inclusive a vida, por isso, a bioética busca compreender esses impactos científicos e morais causados pela ciência. Para ajudar nesta reflexão, trago um excerto dos pesquisadores João Rui Duarte Farias Nogueira, Rui Pedro Cardoso Loureiro e Ernestina Mª V. Batoca Silva3 O Progresso Científico e a Bioética A medicina mudou mais nos últimos cinquenta anos que nos cinquenta séculos precedentes. Sucederam-se duas revoluções: a revolução terapêutica que começou em 1937 com as sulfamidas e a revolução biológica que a seguiu de perto com a engenharia genética e patologia molecular. Estas duas revoluções não só diminuíram o sofrimento dos Homens como vieram igualmente colocar novos problemas éticos (BERNARD, 1992). Na atualidade, como refere BERNARDO (1992), ocorreu uma extraordinária explosão científica e especialmente tecnológica que abalou e perturbou o ritmo da Vida Humana e a capacidade de adaptação a esta terceira revolução comandada pela informática, pela robótica, pela telepática e a biotecnologia. É neste contexto que surge um novo domínio da ética. O progresso já realizado e previsível nos domínios da biologia, e nomeadamente a 3 Disponível: <http://www.ipv.pt/millenium/millenium30/2.pdf>, acesso em: 30/07/2014. 26 biologia humana, põe questões e lança grandes desafios à reflexão ética. No campo da genética há amplas perspectivas de novos conhecimentos. As pesquisas, as experiências, as intervenções sobre os genes, os processos de fecundação, a ação sobre o cérebro, a programação e a reorientação da personalidade estão em voga. Em Fevereiro de 1997, foi anunciado o primeiro caso bem sucedido de clonagem reprodutiva de mamífero, realizada por transferência nuclear a partir de células somáticas do adulto. Este acontecimento fez cair o dogma de irreversibilidade da diferenciação celular em animais superiores e abriu a nossa imaginação às possibilidades perturbadoras de clonar seres humanos. Pouco depois, surgiu a possibilidade de desviar o processo de clonagem na sua fase pré-implantatória para a produção de células e tecidos com potencialidade terapêutica. Em Novembro de 1998 foi anunciado o isolamento de células estaminais humanas a partir de embriões e fetos, a possibilidade de as cultivar indefinidamente in vitro sem alteração das suas características e, mais tarde, a sua capacidade de serem indiferenciadas in vitro, de modo a originarem células e tecidos de enorme interesse terapêutico. Em Junho de 2000, o anúncio da sequenciação quase completa do genoma humano veio marcar o início de uma nova forma de fazer biologia e de entender quem somos, como ficamos doentes, e como envelhecemos (OSSWALD, 2001). Em 2003 sucedem-se as notícias ao nível dos media sobre o nascimento de seres humanos clonados. Perante estas novas possibilidades de pensar a ciência, e o próprio futuro da espécie humana, o meio científico necessitou do contributo da bioética. Segundo NEVES (2001), a bioética é um dos novos saberes da contemporaneidade que mais tem evoluído. A sua história é extremamente recente, tendo tido início formal e institucionalem Dezembro de 1970, quando o oncologista norte-americano Van Rensselaer Potter introduz o neologismo ª 27 bioéticaº, no seu texto ª Bioethics the Science of Survivalº. No entanto, qualquer que seja o nosso horizonte de reflexão, retomando a história ou recuando à pré-história da bioética é evidente o curto espaço de tempo que medeia entre a total inexistência do que hoje entendemos por bioética e a sua extraordinária divulgação. SERRÃO (2001) refere que na proposta inicial de Potter, a bioética seria uma nova disciplina do conhecimento humano, na qual se cruzassem os conhecimentos sobre a natureza da vida e sobre a essência de todas as manifestações da vida. O bios contribuía com os dados da biologia científica, estrutural e molecular, da genética, enquanto genoma e fisioma, e outros dados científicos que definem a vida como natureza. O ethos contribuía com os saberes específicos sobre as peculiaridades das diferentes formas de vida construídas com e sobre a natureza ± a vida vegetal, a vida animal e a vida humana. ARCHER (1995) cit. in ANTUNES (1998:13) realça a importância da bioética ao afirmar ªo conceito de bioética, tal como foi apresentado por Van Potter (1970), tornou-se avassalador ao abranger não apenas as questões éticas relacionadas com o exercício clínico ± a ética em cuidados de saúde ± mas também tudo o que interfere com o fenômeno vital. De fato, apesar de todas as inovações que a ciência tem proporcionado ao homem, permitindo-lhe viver mais e melhor, é indiscutível a necessidade de imposição de limites à sua ação. Consideramos, nesta perspectiva, pertinente a afirmação de OSSWALD (2001:10) ªperdida a sua inocência nas câmaras de gás de Auschwitz ou no braseiro de Hiroshima, a ciência encara, hoje como nunca antes, o problema da sua fundamentação ética. Também NEVES (2001) concorda com esta perspectiva, referindo que o irreprimível progresso técnico científico, especialmente o biotecnológico, passa a conhecer limites que lhe são afinal impostos exteriormente pelo Homem, na sua interrogação sobre o dever 28 ser, sobre o dever fazer. A dinâmica do poder que estimula o progresso da ciência cede então ao sentido do dever que constitui a ética. Conclui-se então que o conhecimento não constitui por si só um valor absoluto, mas que se deverá subordinar invariavelmente às finalidades humanas. Apenas sob esta orientação se poderá vir a assegurar que o desenvolvimento histórico e o progresso científico em particular protagonizem um bem, tomando a preservação do humano como o único referencial universal. Transdisciplinar na sua estratégia, a bioética pretende descortinar e propor, em cada nova encruzilhada que a biologia abre à Humanidade, caminhos que conduzam à felicidade genuína e sustentável tanto da pessoa como da sociedade (OSSWALD, 2001). BUSCANDO CONHECIMENTO A Declaração de Helsínquia, apresentada pela Associação Médica Mundial, afirma de forma peremptória que os interesses da pessoa humana, nomeadamente os respeitantes à vida e saúde, se sobrepõem aos interesses da ciência. Nesta declaração surge igualmente a noção da imprescindibilidade do respeito pela autonomia e pela dignidade humana. Este consenso não resolve, obviamente, todos os problemas de interpretação e aplicação do princípio fundamental. De fato, a ofensa da dignidade humana, configurada pela experiência cruel, causadora de lesão ou morte, de sofrimento ou perda de função, não é posta em causa; mas há quem questione a dignidade do ser humano em determinados estados da vida (por exemplo no embrionário) ou condições de saúde (por exemplo demência ou estado vegetativo persistente). A Ministra da Saúde da Alemanha, Nida Rumelin, e o filósofo N. Hoerster defenderam a tese de que a dignidade humana só tem de ser respeitada quando o ofendido está consciente da sua própria dignidade, isto é, tem 29 autoestima. Hoerster propõe mesmo que a expressão direitos humanos seja substituída pela de direitos pessoais, reservando o conceito de pessoa para os seres humanos capazes de consciência e de autoestima. As consequências deste conceito são claras: o número dos excluídos do círculo das pessoas seria gigantesco e abrangeria uma parte considerável da Humanidade, incluindo os fetos, os bebês, os débeis mentais, os dementes, os escravizados e oprimidos. De resto, a fundamentação da polemica asserção é extremamente frágil, já que a dignidade humana é um princípio que o Homem se outorga a si mesmo e que só pode sobreviver se for extensivo a todos os representantes da espécie, por fazer parte da sua essência (OSSWALD, 2001). A bioética surge assim como uma renovada consciência do dever nas circunstâncias descritas de acelerado progresso biotecnológico. Por isso, ela emerge primeiramente no mundo ocidental, científico - tecnologicamente mais desenvolvido. 30 UNIDADE 6. O RELATÓRIO DE BELMONT CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender os pressupostos do relatório de Belmont. ESTUDANDO E REFLETINDO Vimos à origem do termo bioética e seu significado, e também o contexto histórico que gerou a nova disciplina. O motivo do seu desenvolvimento está nas transformações sociais e nas denúncias feitas pelos jornais sobre a arbitrariedade e imoralidade existentes nas pesquisas médicas. As consequências desses fenômenos foram gigantescas, gerando revolta popular e pressão sobre o governo para que se tomasse alguma atitude. Nesse período o governo e o congresso estadunidenses decidiram instituir, em resposta a essas acusações e pressões, um comitê nacional com o objetivo de definir princípios éticos norteadores para pesquisas. A elaboração do relatório de Belmont foi de grande importância para a consolidação da bioética e seu funcionamento, estabelecendo princípios que vão guiar as pesquisas cientificas, fazendo que o abuso médico não volte a acontecer. Em 1974, formou-se, a “Comissão Nacional para a Proteção de Sujeitos Humanos na Pesquisa Biomédica e Comportamental”, fruto de muitas reivindicações e pressões da população que se organizava e exigia uma posição do governo perante essas denúncias de abusos médicos. O comitê foi responsável pela ética das pesquisas relacionadas às ciências do comportamento e à biomedicina. Após quatro anos, o resultado do trabalho da comissão ficou conhecido como relatório Belmont, um documento que ainda hoje é um marco histórico e normativo para a bioética. Através desse relatório, foi possível elaborar três princípios, tidos como universais, que seriam as bases 31 para todos os debates, formulações, críticas e dilemas que envolvessem assuntos morais e pesquisas cientificas. Os elaboradores desse relatório julgaram entre todos os princípios analisados, três que mais se aproximavam da universalidade e que possuíam um profundo fundamento moral. Para eles, esses princípios escolhidos pertenciam à historia das tradições morais do ocidente, existindo uma inerência muito grande entre eles, fazendo com que garantissem a sua harmonia e funcionamento quando aplicados. Os princípios escolhidos foram: 1. Respeito pelas pessoas: este princípio carrega consigo outros dois pressupostos éticos: que as pessoas devem ser tratadas como agentes autônomos e que as pessoas com autonomia diminuída (os socialmente vulneráveis) devem ser protegidas de qualquer forma de abuso. Isso significa que a vontade da pessoa é inviolável em relação a pesquisas científicas, sendo somente possível a realização da pesquisa, com o consentimento do paciente depois da compreensão da totalidade desta e suas consequências. 2. Beneficência: entre os três princípios escolhidos, esse é o que mais faz referência à história das regras médicas no ocidente. Esse princípio deve ser visto como um compromisso do pesquisador na pesquisa científica para garantir o bem-estardas pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o experimento. 3. Justiça: esse princípio está intimamente relacionado às teorias da filosofia moral que atuam nos Estados Unidos. Esse princípio exige que os bens de saúde sejam distribuídos igualmente e sem peso indevido para qualquer uma das partes. Em uma época que vigorava a incerteza nas pesquisas médicas, o relatório de Belmont representou um marco divisório para os estudos de ética aplicada. A estruturação feita através dos três princípios foi o início para que as 32 universidades se posicionassem e se organizassem para a produção de artigos e teses sobre a bioética. O relatório Belmont trouxe a formalização definitiva da bioética, fazendo que os centros universitários reconhecessem a bioética como uma nova disciplina. O marco da década de 1970 foi a definição de bioética como uma nova disciplina a ser estudada. A produção de livros e propostas teóricas específicas começa a intensificar-se, mas, dentre as muitas publicações desse período, duas vêm sendo particularmente importantes e, por isso, abordaremos a seguir. O livro Problemas Morais na Medicina, organizado pelo filósofo Samuel Gorovitz, publicado em 1976, trouxe uma série de reflexões sobre situações médicas conflituosas, como o aborto e a eutanásia. A iniciativa desse livro foi expor suas ideias e argumentações a respeito de assuntos clássicos de conflito moral na saúde. Gorovitz em seu livro faz críticas ao tradicionalismo da ética médica. Para o filósofo, é necessário romper com o senso comum que o médico é especialista em decisões médicas, e também em decisões éticas. Para acabar com o autoritarismo médico, era preciso primeiro colocar em dúvida a responsabilidade e arrogância médica diante de situações de conflito. Por isso, Gorovitz propõe a autonomia do sujeito como princípio regulador, pois o valor da vida está relacionado com determinada visão de mundo, ou filosofia de vida, e só o sujeito particular pode decidir, de acordo com a sua perspectiva, o rumo de sua vida. Além dessa postura vanguardista do livro, a opção por temáticas já apontava para os assuntos que viriam com o tempo, sendo posteriormente o campo analítico preferencial da bioética: a relação médico-paciente, consentimento livre e esclarecido, paternalismo, eutanásia, suicídio assistido, aborto, além de questões relacionadas à justiça social foram exaustivamente discutidos. Com Gorovitz, a bioética recebe os primeiros estudos críticos e uma atenção maior para a disciplina. 33 S. Gorovitz, responsável por introduzir temas na bioética. (Fonte: http://asnews.syr.edu/newsevents_2011/releases/sam_gorovitz_speech.html) No entanto, foi só com a publicação de Princípios da Ética Biomédica, de autoria do filósofo Tom Beauchamp e do teólogo James Childress, em 1979, que a bioética consolidou sua força teórica, especialmente nas universidades estadunidenses. Beauchamp e Childress fizeram a primeira tentativa bem sucedida de regular os dilemas relativos às opções morais das pessoas no campo da saúde. Seu objetivo era fornecer uma análise sistemática dos princípios morais que devem ser utilizados na biomedicina. BUSCANDO CONHECIMENTO A trilha aberta, deixada pelo relatório de Belmont, possibilitou a ideia de mediação dos conflitos morais, tendo como referência, certos princípios que irão regularizar as atitudes no campo da saúde. De acordo com os princípios definidos pelo relatório de Belmont, cuja elaboração teve como participante o http://asnews.syr.edu/newsevents_2011/releases/sam_gorovitz_speech.html 34 próprio Beauchamp, o livro Princípios da Ética Biomédica estabeleceu um quarto princípio como base para a teoria da bioética. O novo princípio era da não-maleficência, que, para muitos estudiosos, seria uma derivação do mandamento hipocrático de beneficência. Ocorreu também uma mudança de princípio estabelecido pelo relatório de Belmont: a mudança seria a substituição do primeiro princípio do respeito às pessoas pelo principio de autonomia; essas alterações causaram grande impacto para a bioética dos anos de 1970. 35 UNIDADE 7. A TEORIA PRINCIPIALISTA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender a teoria principialista. ESTUDANDO E REFLETINDO As mudanças ocasionadas pelas as ideias de Beauchamp e Childress fizeram com que a teoria principialista, termo genérico pelo qual ficou conhecida a teoria dos quartos princípios éticos, constituísse a teoria dominante da bioética por duas décadas, confundindo-se, inclusive, com a própria disciplina. Alguns conceitos do relatório Belmont receberam críticas da obra Beauchamp e Childress, sendo o princípio de respeito às pessoas o mais criticado. Segundo os autores, o relatório teria colocado sobre a mesma base dois princípios que não têm uma ligação clara e possível: o princípio do respeito à autonomia e o princípio de proteção e segurança às pessoas incompetentes. Por isso, o primeiro princípio do relatório foi substituído pelo princípio da autonomia, que se refere somente à decisão do sujeito como centro nas decisões médicas. Se o princípio da autonomia gerou tantas discussões e deliberações em relação ao proposto pelo relatório Belmont, as modificações no princípio de beneficência ocorreram de uma forma mais tranquila em relação ao anterior, pois era preciso diferenciá-lo do princípio de não-maleficência. A obra apresentou também um tripé básico de ética aplicada, que ligava a ideia de beneficência, autonomia e não-maleficência ao respeito à autonomia das pessoas e a proteção e segurança de seus interesses, mesmo em situações de vulnerabilidade física ou social. 36 O princípio que menos sofreu alterações foi o princípio da justiça. Os autores esclarecem que esse princípio permaneceu quase intocável, porque o seu referencial de maior peso argumentativo e teórico habita em outras áreas do conhecimento, como, a economia, a política e a saúde pública. Esse vazio existente nos debates sobre o princípio de justiça não foi apenas uma característica da teoria principialista, mas também de toda a bioética durante duas décadas. Enfrentar o paradigma da justiça no campo dos conflitos morais é uma tarefa mais dura e dramática do que a defesa dos três outros princípios citados. Só recentemente o tema da justiça começou a ser debatido no campo da bioética, por pensadores que estão fora do círculo tradicional da produção do pensamento bioético. A obra escrita por Beauchamp e Childress é direcionada a um público bastante eclético: médicos, enfermeiros, professores, pesquisadores, responsáveis pela elaboração de políticas públicas de saúde, estudantes, teólogos e cientistas sócias, entre outros. A causa dessa grande variedade está no espírito multidisciplinar que a obra pode alcançar, e também na falência de autoridade técnica no campo ético, permitindo que estrangeiros (profissionais de outras áreas) tenham acesso à obra e a seus debates. Para os autores, a bioética, por ser um exercício de ética aplicada, deveria interagir-se com o seu conteúdo teórico em, pelo menos, três esferas da realidade: a prática terapêutica, a oferta de serviços de saúde e a pesquisa médica e biológica. Para que essa iniciativa se realizasse, os autores buscaram embasamento em algumas das ideias clássicas da filosofia ocidental, como o utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, a deontologia dos gregos antigos, como a filosofia de Aristóteles e Hipócrates, e também pegaram influências do imperativo categórico de Immanuel Kant. 37 Para que se possa fazer uma análise dos quarto princípios da teoria principialista, é necessário ter em mente a composição e a origem dos elementos que fazem parte dos princípios estabelecidos. Por isso é preciso ter conhecimentodas escolas citadas. O primeiro princípio e o mais significativo na bioética, o da autonomia, estabelece, como pré-requisito para o exercício das moralidades, a existência da pessoa autônoma; mesmo que para o exercício da autonomia seja necessário que o indivíduo seja autônomo, o princípio aponta para dois outros valores fundamentais do pensamento liberal, especialmente o de inspiração estadunidense: a competência e a liberdade individual. Esse princípio tem como pressuposto a democracia e a igualdade dos indivíduos na sociedade como pré-requisitos para que diferentes morais possam coexistir. Nessa construção ideal de sociedade, entramos em alguns problemas analíticos, pois não sabemos até que ponto o indivíduo pode exercer a sua autonomia sem ser barrado ou impedido por forças exteriores a ele. A ideia de consentimento foi à saída formal encontrada para que se pudessem garantir os interesses e a proteção dos pacientes. No entanto, para os autores, a validez de um consentimento só é possível, a partir do momento que o indivíduo demonstre competência para decidir; domínio de informações detalhadas a respeito do seu caso e das diferentes possibilidades terapêuticas a ele relacionadas; capacidade para compreender as informações recebidas para que pudessem embasar o processo de tomada de decisões; e oportunidade para escolher livre e voluntariamente a opção mais adequada para o caso, sem estar submetido à coerção de outras pessoas ou instituições. A autonomia se torna algo relativo, pois depende do caso e da situação para que ela possa ser exercitada, tanto pela própria pessoa ou grupo, como ao respeito à autonomia que as “protegem”, sejam elas os cuidadores ou os profissionais da saúde. 38 O princípio da não-maleficência tem, como herdeira, uma tradição existente desde a antiguidade, com o médico Hipócrates (460 a.C.) e sua máxima primum non nocere – “acima de tudo, não cause danos”. Por ser um princípio negativo, ele vai contrapor o princípio da beneficência que tem um caráter positivo, por isso o princípio da não-maleficência em sua aplicação sofre fortes críticas e algumas situações de sua prática vêm sendo contestada. As críticas se fundamentam na má definição entre os dois princípios, beneficência e não-maleficência. Alguns exemplos irão esclarecer esse problema no campo da bioética: o caso da suspensão de tratamentos extraordinários para pacientes, com morte física iminente; o tratamento de recém-nascido com sérias limitações físicas; o aborto de crianças com anomalias fetais graves; o processo decisório de pessoas incompetentes. A dúvida moral desses e de outros casos é causada pelas indefinições dos valores que existem nos princípios de beneficência e não-maleficência. Sendo assim, não é possível fazer uma clara distinção desses dois princípios; por exemplo, não é possível dizer se a interrupção da gestação em casos de graves anomalias fetais será sempre uma atitude baseada no princípio da beneficência ou da não- maleficência. A fragilidade desses dois princípios não é derivação de um deslize da teoria principialista, mas decorrente da impossibilidade de encontramos saídas boas ou más universalmente válidas. E por último, o princípio da justiça que se difere dos três outros princípios comentados, por mostrar maior ênfase para o papel das sociedades e dos movimentos sociais organizados na bioética. A justiça distributiva traz à luz um problema que já existe um bom tempo: os conflitos existentes entre reivindicações e interesses particulares e com a vida coletiva e o bem para a sociedade. O princípio da justiça serviria para sanar e equilibrar essas diferenças conflituosas que existem na sociedade, sendo, entre os princípios, este o de maior grau de importância na década de 1990 no campo da bioética. 39 Todavia a sua aplicabilidade é ainda bastante limitada, pois a sua dificuldade está nas sérias dúvidas sobre o que pode ser necessário para a sociedade e que, ao mesmo tempo, também garantiria os interesses individuais. Por isso, o princípio da justiça foi, entre os princípios da teoria principialista, o que menos se repercutiu no cenário da bioética, tendo só a sua importância maior na década de 1990 BUSCANDO CONHECIMENTO A teoria principialista escrita pelos autores Beauchamp e Childress tratava de assuntos que basicamente estavam ligados à relação médico-paciente. Isso ocasionou uma hegemonia acadêmica nas universidades e na bioética por quase duas décadas, sendo a principal ética estudada nos Estados Unidos e nos países periféricos, importadores das teorias bioéticas. Mas, a partir da década de 1980, vários críticos e pesquisadores da teoria principialista, empenharam-se em demonstrar a existência de falsas ideias na teoria principialista. O que fascinava os pesquisadores em relação à teoria principialista era seu idealismo universalizante, tornando-a a principal técnica ética, facilmente propagada em congressos, seminários, e encontros. O suposto espírito transcultural da teoria principialista fazia seus seguidores defenderem que os valores éticos propostos serviam para toda a humanidade. E foi exatamente esse espírito universalista que caiu e ocasionou a segunda crítica dos teóricos pós-principialista. 40 UNIDADE 8. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: H. TRISTAM ENGELHARDT CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o período pós-principialista da bioética e o pensamento de H.Tristam Engelhardt (1941 -) ESTUDANDO E REFLETINDO No final da década de 1980 e durante a década de 1990, a bioética passou por grandes transformações nos Estados Unidos. As críticas sobre o caráter universalizante da teoria Principialista se torna algo mais frequente, resultando em um abalo nas bases da bioética que tinha se estabelecido. Com a crise interna no campo da bioética, ocorreu uma abertura para vários pensadores que, por terem um pensamento diferente da teoria hegemônica, não tinham voz perante as universidades e congressos. A quebra de tabus e uma análise nas estruturas da bioética tornam-se a principal característica desse período. O relativismo moral também tomou conta do novo cenário da bioética, pois a ideia de constituir uma ética de caráter universalizante, como a teoria principialista, só causou opressão em culturas ditas como periféricas. Esse relativismo a que os filósofos aderiram em suas teorias tem como propósito pensar o respeito à vida de uma forma que não imponha sobre a cultura de determinado país, certos padrões de outra cultura, possibilitando assim, o desenvolvimento e a liberdade do individuo com a sua cultura. H.Tristam Engelhardt é um dos autores que demonstrou, muito precocemente, uma preocupação com a relatividade moral em relação à saúde e a doença dos seres humanos. Sua obra mais famosa, Os Fundamentos da 41 Bioética, publicada em 1986 e revista em 1996, se tornou de grande importância para os estudos bioéticos e constitui uma referência obrigatória para os iniciantes na disciplina. Engelhardt, responsável por introduzir o relativismo na bioética. (fonte: http://www.svots.edu/events/st-ambrose-society-hosts-public-lecture-dr-h-tristam-engelhardt) A base do pensamento de Engelhardt é a constatação da falência de modelos éticos universalizantes, como por exemplo, a teoria principialista. Por expor uma teoria de cunho relativista, o autor, que possui fortes influências cristãs e liberalistas, acaba se tornando alvo de muitos pesquisadores que, por não entenderem o que realmente o autor quer mostrar, acabam fazendo juízos equivocados, afirmando que Engelhardt propõe um “modelo libertário’ para a bioética, muitas vezes comparando-o com os princípios do filósofo Paul Feyerabend, que propõe um tipo de “tudo vale” para as ciências. Embora o autor não consiga esconder a suainspiração libertária, a sua proposta teórica vai muito além da mera defesa da liberdade ou individualismo na bioética. No modelo engelhardtiano, o limite de uma aplicação prática ocorre no momento que aquela aplicação irá agredir um inocente, ou seja, a http://www.svots.edu/events/st-ambrose-society-hosts-public-lecture-dr-h-tristam-engelhardt 42 aplicação só é válida quando a pessoa estiver ciente de todos os efeitos da aplicação, e estiver previamente consentido em participar. O inocente, para Engelhardt, é aquele que desconhece o que está sendo feito e, portanto, não é capaz de exercer sua autonomia. A permissão seria a condição básica para que ocorra a sobrevivência de diferentes morais, pois somente com o consentimento individual, as decisões poderiam ser julgadas eticamente aceitáveis ou não. Segundo o autor, não existe bom ou mau definidos, ambos são relativos em cada comunidade moral e seu período histórico e social. Somente com a permissão, começa a autoridade moral, podendo avaliar os casos sob uma visão estreita e concedida, que foi dada a uma pessoa para avaliar a situação. A combinação entre o respeito e a permissão determina inicialmente o discurso ético secular, que deverá intermediar pacificamente o encontro entre os estranhos morais. Outro conceito estudado na bioética depois de Engelhardt foi a ideia de estranhos morais, que, para o autor, seriam as pessoas que não compartilham as mesmas ideias morais relacionadas ao bem-viver. Para que exista conflito moral entre os estranhos morais, não é necessário que eles tenham que ser inimigos, pois basta apenas que exista uma discordância entre os seus valores e crenças, fazendo surgir uma desarmonia suficiente para ocasionar um distúrbio de convivência. Em contrapartida, existem os amigos morais que são aqueles que dividiriam uma mesma moralidade essencial, que é o pleno acordo quanto à menção de julgamento moral para os seus atos na sociedade. Segundo Engelhardt, o nascimento e consolidação da bioética teriam se fortalecido do caos e da fragmentação, que o contexto histórico oferecia, pois as sociedades contemporâneas são herdeiras das ideias e valores iluministas, no entanto, esses valores entraram em decadência no inicio do século XX e a bioética se apoiou nessa base insegura. 43 Só através do reconhecimento da diferença moral e cultural dos povos, e a perda do referencial absoluto para que ocorra uma avaliação moral, é que se deu o renascimento da bioética como um discurso de ética aplicada às situações de saúde e doença. BUSCANDO CONHECIMENTO A proposta de uma ética universalizante e absoluta como um referencial para os conflitos morais não funcionaria mais hoje, pois houve uma grande mudança na mentalidade das pessoas e no contexto histórico. Para o autor, o modelo que mais se adequaria com a atual sociedade e com o projeto da bioética é aquele que mantém os valores particulares do indivíduo e da comunidade. Com o quadro relativista, a bioética se depara com problemas de enfrentamento de situações concretas da vida cotidiana. A saída para Engelhardt quanto aos encontros que ocasionam os conflitos no cotidiano, seria a difusão de tolerância como um valor mediador para a sobrevivência humana na diferença moral. A prática da liberdade moral seria a condição de existência da diversidade. Tolerância e liberdade seriam dois valores capazes de suportar o encontro entre moralidades, dando base para o relativismo conceitual. A associação entre relativismo e tolerância fez com que o modelo teórico do autor assumisse para si a lógica cultural como a única e legítima instância de julgamento sobre as crenças sociais, rompendo-se assim, a fronteira para o relativismo nas práticas sociais. Essa linha de pensamento, muito comum com os antropólogos culturais, tem uma fragilidade enorme quando transferida para os limites de cada cultura, que, em última instância, se converte em dominação e opressão. É nesse imobilismo prático que a teoria de Engelhardt nos limita a viver e que reside a sua obra. A não conclusão dos conflitos morais se torna algo pouco aceitável para os pesquisadores que buscam tranquilidade e segurança 44 em uma teoria. A verdade para o autor está inerentemente ligada com os interesses e jogos de poder característicos de cada cultura. A autoridade moral passa, então, a substituir a ética universal, pois a autoridade moral de cada grupo e cultura são responsáveis por determinar as mudanças dos agentes do imperativo moral. 45 UNIDADE 9. O PERÍODO PÓS-PRINCIPIALISTA DA BIOÉTICA: PETER SINGER CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Compreender o pensamento de Peter Singer (1946 -). ESTUDANDO E REFLETINDO O filósofo australiano Peter Singer é conhecido por suas grandes contribuições teóricas e conceituais no campo bioético. Conceitos como, ideologia especista, ou seja, convicções que os seres humanos são superiores aos outros animais são de sua autoria e conceitualização, e são hoje de uso corrente entre pesquisadores do mundo inteiro. Singer foi, durante muito tempo, presidente da associação internacional de Bioética (IAB), a entidade mais importante no mundo nessa área. Os livros de Singer, em especial Liberdade Animal (1975), Ética Prática (1979) e Deve o Bebê Viver? A Questão das Crianças Deficientes (1988) vêm sendo largamente discutidos e, muitas vezes rejeitados por pessoas pertencentes a movimentos sociais, como: pessoas portadoras de deficiência, grupos religiosos, defensores dos direitos humanos, entre outros. O que faz com que Singer tenha tantos questionadores é o fato de o autor tocar em temas considerados tabu, especialmente em assuntos como eutanásia, suicídio assistido e infanticídio. 46 Singer quebrou vários tabus no campo bioético e introduziu novos conceitos, que são estudados até hoje (Fonte: http://www.anda.jor.br/20/12/2013/filosofo- peter-singer-fala-obra-liberta) Esses temas são reconhecidamente, entre outros, os mais intimamente que provocam reações na sociedade, e fazem as comunidades morais expressarem suas crenças, muitas delas conflitantes entre si. Na sociedade existem comunidades religiosas e laicas. As religiosas defendem o princípio da heteronomia e as laicas defendem o princípio de autonomia, mas o problema está no momento que esses dois princípios se cruzam e entram em conflito nas questões relacionados ao aborto ou à eutanásia, impossibilitando qualquer forma de diálogo pacífico. Para resolver esse problema, o autor se apoia nas teorias utilitaristas do século XIX. O utilitarismo foi uma teoria desenvolvida pelos filósofos Jeremy Bentham e John Stuart Mill, durante o século XIX. O utilitarismo se baseia nos princípios de dor e prazer, que servirão como guia para a ação humana, tendo como máxima a seguinte frase “maior felicidade para o maior número de indivíduos”. Esse princípio tira do centro o egoísmo ético e propõe uma abrangência como forma de resolver os problemas morais. Singer se autodefine consequencialista no campo moral. A sua preocupação está nos resultados das ações consideradas boas ou más, certas ou erradas, justas ou injustas, e não com a definição do que venha ser o certo, a bondade ou a justiça. Singer se fundamenta na premissa clássica do utilitarismo para resolver os problemas morais na bioética, tendo como reflexão, as ações que devem ser 47 consideradas éticas; se ela está aumentando ou diminuindo a felicidade coletiva. Para o autor, o limite da sensibilidade seria o referencial para as ações éticas ou não. O limite da sensibilidade, para Singer, é o entendimento de sofrimento, de alegria ou felicidade, sendo o único limite defensível de interesses alheios. Valores como autonomia passa para segundo plano, pois princípios como felicidadee diminuição do sofrimento são valores emergenciais, e que, necessitam de uma atenção maior. É nessa parte entre a liberdade e a felicidade que muitos pesquisadores se apoiam para formular criticas contra a teoria de Singer. Em resposta a essas criticas, Singer defende que jamais propôs alguma forma de subordinação dos interesses dos indivíduos à lógica do Estado, ou mesmo jamais traduziu suas convicções éticas em regulamentações totalitárias perante comunidades de deficientes, propondo qualquer forma de extermínio. Quando afirma que um embrião ou um feto pode ser considerado substituível, isto é, que deve ser considerada eticamente legítima a interrupção da gestação em casos de má-formação fetal, Singer está partindo de algumas premissas que devem ser sempre explicitadas ao discutir suas ideias. A primeira delas, é a crítica ao princípio da santidade humana que, para o autor, é um erro especista, por afirmar que a vida é um dom, uma vez que cotidianamente dispomos de centenas de vidas de animais não-humanos em pesquisas e experimentos científicos. Exibir a ideologia especista na ciência foi um projeto específico de Singer. No livro Liberdade Animal, o foco é sobre os direitos dos animais não-humanos, pois segundo o autor, os racistas violam o principio de equidade ao favorecerem os interesses da própria raça, os sexistas violam esse mesmo princípio por favorecer os interesses do próprio sexo, e os especistas fazem o mesmo, favorecendo os interesses da sua espécie em relação a outra espécie. A meta do autor não é diminuir a dignidade e respeito ao ser humano, mas sim abalar nossas convicções e certezas a respeito do ser humano e sua 48 tirania diante dos animais não-humanos. Em contraste com os maus-tratos sofridos pelos animais em laboratório ou pelo exagero de nossa dieta carnívora, Singer põe por terra que o princípio de que a vida seja um bem inviolável ou santo. A vida humana é assim considerada, um desrespeito à vida de outros animais. Esse discurso sobre a santidade humana causou um grande alvoroço na comunidade científica e ética mundial. Para diversos críticos, o filósofo estaria igualando esferas separadas pela ética, humanos e os não-humanos, indicando assim, que a realização de pesquisas com ratos seria o mesmo que realizar pesquisas com os seres humanos. Essas comparações que Singer faz dos humanos com os não humanos, chegando a até afirmar que algumas pesquisas são eticamente mais defensáveis, quando realizadas com fetos órfãos, portadores de anomalias incompatíveis com a vida extra-uterina, como por exemplo, a anencefalia do que com gorilas ou macacos, dado o grau de consciência e senso de si que os animais teriam em detrimento dos fetos sem cérebro, tem uma justificativa. Considerando que o limite da sensibilidade é a base para as ações éticas, Singer não hesita em afirmar que não podemos atribuir o valor maior a vida de um feto, em relação à vida de um animal do mesmo nível de autoconsciência, racionalidade e capacidade de sentir, pois nenhum feto é uma pessoa e não tem o mesmo direito à vida que uma pessoa tem. BUSCANDO CONHECIMENTO Para o autor, o fato de um feto anencéfalo ser membro da espécie humana não lhe garante automaticamente o titulo de pessoa humana. O que determina o status de pessoa humana é a capacidade de se relacionar-se socialmente com outras pessoas, ter a noção de tempo histórico, a linguagem, ou seja, somente atributos que um ser vivo poderia desenvolver naturalmente, 49 do que o mero pertencimento a uma espécie. Na busca de diferenciar pessoas de membros da espécie, Singer não cai na tentativa de enumerar “indicadores de humanidade”, isto é, uma sequência de qualidades que diferenciariam os humanos de outros animais, tal como inúmeros autores da bioética fizeram. A proposta de Singer é aumentar a dignidade dos animais não-humanos, desmascarando a supremacia irrefletida dos humanos. Pouco importa quais sejam os indicadores, apenas a constatação que animais não-humanos sentem mais prazer e sofrimento que alguns fetos portadores de graves anomalias são válidos para o referencial de sua teoria. Por causa dessas ideias, a imagem de Singer começou a ser vinculada com adjetivos de nazista, preconceituoso, ou até mesmo de assassino. Em efeito disso, muito das aparições públicas em congressos e em mídias, é para esclarecimentos de suas ideias e pressupostos, e menos para debates e trocas de conceitos. 50 UNIDADE 10. A VOLTA DAS PERSPECTIVAS CRÍTICAS NA BIOÉTICA CONHECENDO A PROPOSTA DA UNIDADE Objetivos Entender a importância das perspectivas críticas na bioética. ESTUDANDO E REFLETINDO A bioética teve seu campo demarcado no final da década de 1970. A teoria principialista representou para muitos pesquisadores a base necessária que a bioética precisava para se desenvolver e tornar-se uma nova disciplina. Mas a prática dessa nova disciplina mostrou algo diferente de suas perspectivas anteriores. A proposta progressista da disciplina: a possibilidade de mediar dilemas morais em saúde de forma abrangente e pluralista não teve correspondência nas publicações e na prática dos primeiros pesquisadores da bioética. O erro estava em confundir a disciplina da bioética com uma das suas correntes teóricas, como por exemplo, a confusão da teoria principialista com a própria bioética. Por muito tempo, a teoria principialista ficou colada à própria bioética provocando sérios mal-entendidos à disciplina. As consequências disso resultaram em marcas profundas na proposta teórica e social da disciplina, fazendo que alguns críticos desenvolvessem ideias contrárias à teoria predominante. Com a proposta de renascer o pensamento crítico no campo da bioética, os filósofos Danner Clouser e Bernard Gert foram de grande importância para essa fase. Após analisarem o livro Princípios da Ética Biomédica, os filósofos encontraram dois grandes problemas. O primeiro deles foi de origem 51 epistemológica, sendo o de importância maior para os primeiros estudos críticos. Segundo Clouser e Gert, o problema existente está na infração que a teoria principialista fez a qualquer estrutura de uma teoria moral. Pois, segundo os autores, o ciclo realidade e conflito, moral e resolução, exige a referência de uma teoria moral, e a teoria principialista nada mais fez do que recortar várias teorias éticas da história da filosofia e costurar todas elas juntas em sua própria teoria. Para os críticos, o status teórico das ideias de Beauchamp e Childress pode ser considerado uma compilação grosseira e reduzida de quatro grandes teorias da filosofia moral em quatro princípios: a autonomia de Kant; a beneficência de John Stuart Mill; a não-maleficência da tradição hipocrática; e a justiça de John Rawls. Os críticos da teoria principialista afirmam que os filósofos Beauchamp e Childress realizaram uma “costura” de conceitos sem se importar com o contexto histórico. (Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Im manuel_Kant) Eis o resultado dessa mistura de teorias: os quatro princípios da teoria principialista não se encontram unidos por um corpo forte teórico, pois, já que não existe uma teoria moral que ligue os princípios, não existe também um guia http://en.wikipedia.org/wiki/Immanuel_Kant http://en.wikipedia.org/wiki/Immanuel_Kant 52 que promova a ação através de ideias claras e coerentes que as justifiquem. A dificuldade em instrumentalizar os princípios diante de casos concretos de conflito moral tem como causa, a soberania que cada princípio exerce sobre o outro, existindo uma espécie de disputa. Como não existem prioridades e nem procedimentos específicos sobre qual valor deve predominar, as soluções dependem de julgamentos particulares sobre a importância de cada princípio. Uns dos exemplos
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