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GEOGRAFIA AFRO-BRASILEIRA E DAS SOCIEDADES INDÍGENAS Luciana Cristina de Almeida E d u ca çã o G E O G R A F IA A F R O -B R A S IL E IR A E D A S S O C IE D A D E S I N D ÍG E N A S Lu ci an a C ris tin a d e A lm ei d a Curitiba 2018 Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas Luciana Cristina de Almeida Ficha Catalográfica elaborada pela Editora Fael. A447g Almeida, Luciana Cristina de Geografia afro-brasileira e das sociedades indígenas / Luciana Cristina de Almeida. – Curitiba: Fael, 2018. 339 p.: il. ISBN 978-85-5337-040-5 1. Geografia 2. Título CDD 918 Direitos desta edição reservados à Fael. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Fael. FAEL Direção Acadêmica Francisco Carlos Sardo Coordenação Editorial Raquel Andrade Lorenz Revisão Editora Coletânea Projeto Gráfico Sandro Niemicz Capa Vitor Bernardo Backes Lopes Imagem da Capa Shutterstock.com/rafaelcilios Arte-Final Evelyn Caroline dos Santos Betim Sumário Carta ao Aluno | 5 1. Geografia física do continente africano | 7 2. África Antiga | 25 3. A África lusófona | 59 4. Africanos e afrodescendentes no Brasil | 91 5. Africanidades e afrodescendência | 121 6. Povos pré-coloniais que habitaram o Brasil | 151 7. Os indígenas e a colonização portuguesa | 181 8. O advento da República e a temática indígena no Brasil | 211 9. Os indígenas no Brasil atual | 239 10. As novas perspectivas para afrodescendentes e indígenas no Brasil | 271 Gabarito | 295 Anexos | 309 Referências | 317 Prezado(a) aluno(a), A disciplina Geografia Afro-Brasileira e das Sociedades Indígenas tem como objetivo trazer subsídios para a análise, compreensão e mensuração da influência dos negros, capturados na África e trazidos ao Brasil para trabalhar como escravos, e dos indígenas, que aqui já viviam, na formação da sociedade brasi- leira. Busca-se entender como se deu o processo de colonização desenvolvido pelos portugueses e de que forma esse processo gerou discriminação racial, preconceito e intolerância contra os povos indígenas e contra as pessoas pretas e pardas. A partir da análise proporcionada pela disciplina, pretende-se combater a discriminação, o preconceito e os estereótipos historicamente construídos e forjar uma sociedade mais justa e igualitária. Carta ao Aluno 1 Geografia física do continente africano Analisar a geofísica do continente africano é fundamental para compreender a influência do espaço na formação sociocul- tural dos povos africanos. Neste capítulo, discorreremos sobre questões relativas à geologia, geomorfologia, pedologia, clima- tologia, hidrologia e cobertura vegetal do território africano, relacionando esses atributos com a distribuição dos seres vivos pelo continente. 1.1 Características geofísicas da África O continente africano é um território muito amplo que ocupa aproximadamente 30 milhões de km². É o continente que engloba o maior número de países (54 países ao todo) e o segundo mais populoso. O oceano Atlântico toca a costa oeste da África e o oceano Índico a costa leste. O mar Mediterrâneo fica ao norte (apartando o continente africano da Europa) e o mar Vermelho – que separa a África da península Arábica – encontra-se na região nordeste do continente. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 8 – Em sua vastidão, o continente africano é cortado por várias linhas geográficas imaginárias. Sua imensidão latitudinal incide na presença da Linha do Equador, do Trópico de Capricórnio e do Trópico de Câncer. O continente é cortado pelo Meridiano de Greenwich, e por ser tão extenso longitudinalmente, possui cinco fusos horários. A grandiosidade do território africano e a influência de diferentes fato- res como latitude, relevo, zonas de alta e baixa pressão e correntes marítimas repercutem de maneira incisiva na geração de diferentes formações climáticas. 1.1.1 Clima No mês mais frio, as temperaturas geralmente não descem a menos de 10ºC e no mês mais quente apresentam-se sempre maiores que 20 ºC. Todavia, em ambientes áridos, como os desertos, a temperatura pode che- gar perto dos 60 ºC. Figura 1.1 – Deserto do Saara Fonte: Shutterstock.com/MrLis. As chuvas não são distribuídas de maneira uniforme pelo continente. Em algumas regiões, as chuvas são abundantes, noutras são escassas. Pró- ximo à costa do Golfo da Guiné e na região equatorial, há uma África mais úmida, onde chove fartamente e quase todos os dias. Afastando-se dessa zona, as precipitações diminuem em volume e constância. Observe na figura 1.2 como se constitui o clima da África, de acordo com a classi- ficação climática de Köppen (1918). – 9 – Geografia física do continente africano Figura 1.2 – Climas da África (conforme classificação de Köppen) Fonte: adaptada de Peel, Finlayson e McMahon (2007). De acordo com Köppen (1918), o clima tropical se caracteriza por climas megatérmicos1, com temperatura média maior do que 18 °C no mês mais frio do ano, ausência de estação invernosa e precipitação anual intensa (mais elevada que a evapotranspiração potencial anual2). O clima árido, por sua vez, se caracteriza por climas secos, com precipitação anual inferior a 500 mm e evapotranspiração potencial anual superior à precipi- tação do ano todo. No clima árido, inexistem cursos de água permanentes. 1 São os climas tropicais chuvosos. 2 Entende-se por evapotranspiração a forma combinada de evaporação da água das super- fícies terrestres e das superfícies vegetadas. Evapotranspiração potencial refere-se à máxi- ma capacidade de água capaz de ser perdida como vapor, em uma dada condição climática. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 10 – Os rios temporários sempre estão interligados a áreas de alta evapora- ção e baixa precipitação e, geralmente, oferecem duas fases de perturbações hidrológicas extremas: seca e cheia. Essas etapas são essenciais no funcio- namento de ecossistemas hídricos, particularmente no que tange às regiões áridas e semiáridas (LAKE, 20033, apud MAGALHÃES et al., 2016). Já o clima oceânico apresenta temperatura média do ar entre -3 °C e 18 °C (nos 3 meses mais frios) e temperatura média do mês mais quente maior do que 10 °C. No clima oceânico – que é mesotérmico – as estações de verão e inverno são bem definidas. Como é possível observar na figura 1.3, existem múltiplas variedades de climas no continente africano e cada uma delas influencia na formação da cobertura vegetal, na dispersão da fauna e na ocupação humana pelo território. Figura 1.3 – Clima Köppen detalhado para o continente africano Fo nt e: a da pt ad a de P ee l, Fi nl ay so n e M cM ah on (2 00 7) . L eg en da n o qu ad ro 1 .1 . 3 LAKE, P. S. Ecological of perturbation by drought in fl owing water. Freshwater Biolo- gy, v. 48, n. 7, p. 1161-1172, 2003. – 11 – Geografia física do continente africano Quadro 1.1 – Legenda do mapa climático de KÖPPEN Classificação Climática de Köppen Af Clima tropical úmido ou clima equatorial Am Clima de monção Aw Clima tropical com estação seca de inverno BSh Clima das estepes quentes de baixa latitude e altitude BSk Clima das estepes frias de média latitude e grande altitude BWh Clima das regiões desérticas quentes de baixa latitude e altitude BWk Clima das regiões desérticas frias das latitudes médias ou de altitude Cfa Clima temperado úmido com verão quente Cfb Clima temperado úmido com verão temperado Csa Clima temperado úmido com verão seco e quente Csb Clima temperado úmido com verão seco e temperado Cwa Clima temperado úmido com inverno seco e verão quente Cwb Clima temperado úmido com inverno seco e verão temperado Fonte: KÖPPEN, W. Klassification der klimate nach temperatur, niederschlag und jahreslauf. Petermanns Geographische Mitteilungen, Gotha, v. 64, p. 193-203, 1918. 1.1.2 Cobertura vegetal Não há dúvidas de que o ambiente mais difícil para a sobrevivência dosseres vivos na África é o deserto. Há três desertos no continente afri- cano: o Deserto do Saara, o Deserto do Kalahari e o Deserto da Namíbia. O Saara – o mais conhecido deserto africano – encontra-se na região norte do continente e é o mais extenso deserto quente do mundo (o segundo em tamanho). O deserto do Kalahari se forma a partir de uma corrente oceânica vinda de Benguela. Essa corrente marítima fria atua na costa sudoeste da África condensando o vapor de água que segue rumo ao con- tinente, atuando nas massas de ar de forma que elas cheguem a ele mais secas. Já o deserto da Namíbia costeiro, recebe a influência das correntes frias do Oceano Atlântico e é coberto por dunas vultosas. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 12 – Mas a África não é feita só de desertos. Algumas regiões apresentam florestas densas ocupadas por fauna exuberante. Há também pradarias, pastagens e savanas. Savana é uma designação generalizada para os ecossistemas com predomi- nância de vegetação herbácea e arbustos ou árvores muito esparsas (GRISI, 2007). As savanas, apesar de secas, recebem mais chuva do que as regi- ões desérticas. Elas apresentam vegetação típica de regiões tropicais ou subtropicais que se mantém sob longo período de seca. A fisionomia das savanas exibe árvores e arbustos esparsos ou grupos espalhados de arbus- tos em um estrato de gramíneas bastante pronunciado (EMBRAPA, 2009). Os principais determinantes ecológicos para a formação e a manuten- ção das savanas são: 2 disponibilidade de água e de nutrientes no solo – que estabele- cem controle primário sobre os organismos; 2 ação do fogo, atividade dos herbívoros e intervenção humana – que atuam como modificadores do ambiente. Observe na figura 1.4 a distribuição dos desertos, das savanas e das florestas no continente africano: Figura 1.4 – Paisagens naturais da África Fo nt e: a da pt ad a de O ls on e t a l. (2 00 1) . – 13 – Geografia física do continente africano 1.1.3 Hidrografia Além do clima e da cobertura vegetal, outro elemento importante para a sobrevivência dos organismos vivos é a disponibilidade de água. Na África, os rios foram fundamentais para a dispersão da fauna e para a ocupação do território. Os rios mais importantes do continente africano são: Nilo, Congo e Niger. Esses rios foram cruciais para a manutenção da vida no continente. Durante muitos séculos, os rios possibilitaram (ou impediram) o desen- volvimento socioeconômico, cultural e político da região. Em torno dos rios Gâmbia e Senegal, por exemplo, edificou-se uma dinâmica humana que é sus- tentada por fluxos religiosos, culturais e socioeconômicos. Esses fluxos bus- cam a integração entre povos nômades, agricultores e movimentos da expan- são do islamismo ao sul do Saara (SAÂD4, 2004, citado por DIALLO, 2013). Rios perenes de regime pluvial, como o Zambeze e o Níger, exibem cheias voluptuosas nas estações chuvosas e fluxo reduzido nas estações de estiagem. Apenas o rio Congo flui de maneira farta durante o ano inteiro. O rio Nilo é o rio mais extenso do mundo, com 6.850 quilômetros de alcance. Ele corre no sentido sul-norte, na região nordeste do continente africano e sua foz localiza-se no mar Mediterrâneo. Seus afluentes se desdobram por uma área de 3 milhões de quilô- metros quadrados. Os dois principais afluentes do Nilo são o Nilo Azul e Nilo Branco. O lago Vitória abriga a nascente do Nilo Branco, enquanto que a nascente do Nilo Azul (o mais fecundo para a produção agrícola e com o maior volume de água) encontra-se no lago Tanna, na Etiópia. Os afluentes Nilo Azul e Nilo Branco se unem na cidade de Cartum (capital do Sudão) formando um único corpo d’água que deságua no Egito. Onze nações compartilham as águas do rio Nilo. Essas nações podem ser divididas em dois grupos: os países localizados à montante5 e que pos- 4 Saâd, M. ‘Le Fleuve Sénégal comme enjeu regional de la colonização agricole à l´apres- -barrage (1818-2001)’, in Salem, Z. O. A. (dir). Les trajectoire d´un État-frontière: Espaces, évolution politique et transformations sociales en Mauritanie. Conseille pour le Developpe- ment de la recherche en sciences sociales en Afrique (CODESRIA), Dakar, pp. 90-112, 2004. 5 Montante: é o local que está mais próximo das cabeceiras de um rio. É o lado da nascente de um rio. É a direção contrária ao sentido do rio. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 14 – suem nascentes dos mais importantes afluentes do Nilo em suas terras, e os países à jusante6, que somente recebem as águas dos afluentes prin- cipais. Egito Sudão e Sudão do Sul são os países localizados à jusante, enquanto que Burundi, Etiópia, Eritreia, Quênia, República Democrática do Congo, Ruanda, Tanzânia e Uganda estão localizados à montante e possuem nascentes (BRANDÃO; GERBASE, 2016). O rio Nilo é essencial para a geopolítica do Egito, pois 90% da água do país provém do Nilo e mais de 95% dos recursos hídricos que atingem o Egito derivam do exterior (GLEICK7, 1993, p. 86 apud BRANDÃO; GERBASE, 2016). Há indícios de que a planície fértil resultante das inundações do delta do rio Nilo (conforme figura 1.5) favoreceu o aparecimento da primeira civilização conhecida: a dos sumérios. As enchentes que cobriam o delta do Nilo e tornavam seu leito fértil permitiram que a agricultura se desen- volvesse na região. Em função do sucesso na produção agrícola, surgiram lideranças políticas que buscavam o controle do excedente da produção. Acredita-se que a escrita teria sido criada para facilitar a comunicação entre os admi- nistradores (reis) do Alto e do Baixo Egito, especialmente no que se refere a assuntos relacionados à produção de grãos cultivados. Figura 1.5 – Delta do Nilo Fo nt e: S hu tte rs to ck .c om /T om m oT 6 Jusante: evidencia a posição/sentido em que o rio corre, indo em direção a sua foz. É o lado em que vaza a maré, o lado que o curso de água segue. 7 GLEICK, Peter H. Water and conflict: fresh water resources and international security. International security, v. 18, n. 1, p. 79-11, 1993. – 15 – Geografia física do continente africano O terceiro rio mais extenso da África, o rio Níger, está localizado no leste da África e não há na região outro rio de tamanha importância e gran- diosidade. Ele nasce nas montanhas Futa Jalom, na Guiné, a cerca de 280 quilômetros do Oceano Atlântico e deságua no Oceano Atlântico, após percorrer aproximadamente 4.200 quilômetros. No caminho para o mar, atravessa uma das regiões mais populosas da África, que inclui a Nigéria (país mais populoso do continente). A bacia do rio Níger compreende uma área onde vivem cerca de um milhão de pessoas. Em sua nascente, nas montanhas da Guinea, o Níger acolhe uma parte considerável do volume de água de seu segmento superior, passando então pela plana região do Delta Interno do Níger na região do Mali (área semiárida do deserto do Sahel) onde cerca de 40% do volume afluente é perdido por evaporação e infiltração nos mais de 10.000 km² de área sazonalmente inundada (FLEISCHMANN, 2017). Na planície, o Níger forma um delta gigantesco que resulta em uma região de pântanos, brejos e lagos do tamanho da Bélgica. As inundações sazonais que ocorrem no delta o tornam extremamente produtivo tanto para a agricultura quanto para a piscicultura. A rota incomum que o Níger segue intrigou os geógrafos por muito tempo. Depois de correr caudaloso por muitos quilômetros, o rio Níger tem um comportamento hidrológico errante. Ele “desaparece” em algu- mas regiões e “reaparece” logo a seguir. Em função disso, à primeira vista, parecem ser dois rios separados, contudo, após um olhar mais minucioso, nota-se que o Níger se configura como um rio único, que perpassa por vários países, influenciando enormemente na ocupação do território. O rio Níger desaparece e reaparece porque cruza regiões onde ocor- rem desfiladeiros, corredeiras, florestas exuberantes e cataratas. Embora comecepacificamente nas savanas ao sul do lago Tanganica, aos poucos, o rio se alarga e aumenta sua velocidade até adentrar nos “Gates of Hell”8, um desfiladeiro de 75 quilômetros de corredeiras intransitáveis. O rio emerge novamente, cercado por uma exuberante floresta tropi- cal (Alto Congo). Seu fluxo é relativamente estável porque parte de sua 8 Significa “Portões do Inferno”. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 16 – bacia hidrográfica está sempre na zona de chuva. O Alto Congo termina abruptamente com Stanley Falls, um trecho de aproximadamente 96,5 km de corredeiras. Esse segmento de corredeiras dá lugar ao Médio Congo, um trecho de 1600 quilômetros de rio navegável. Perto do final do Médio Congo, o rio desacelera numa parada virtual por 32 km, mas a calmaria dessas águas é subitamente destruída por uma série de corredeiras e cataratas (cerca de 32) com 354 km de extensão, conhecidas como Livingstone Falls (BUTLER, 2013). O rio Níger passa pela Guiné, pelo Mali, pela República do Níger, pelo Benim e pela Nigéria, e isso representa uma miríade de povos e cul- turas distintas. Ao longo do rio é possível observar pessoas e ambientes diversos nos antigos reinos do Sahel, Segou, Kaarta, Songhaï. Depois, seguindo o rio, há cidades de origem sudanesa (cerca de 20% da população), como Sarakolé, Songhaï, Dogon, Bozo etc. Toda essa diversidade se traduz em múltiplos costumes, vivências díspares e um grande número de idiomas diferentes – quinze, ao todo (PAN- CORBO, [s/d]). O Níger é um rio navegável – o que faz dele o principal meio de comunicação e transporte da região. Ao navegar pelo Níger é possível capturar a alternância de ambientes da África Ocidental. Por um lado, a planície gramada, por outro, todas as variantes de secura até alcançar sua potência máxima no Saara. A região do rio Níger abriga uma grande população, condicionada ao ciclo de inundação sazonal. Nesse contexto, as atividades como cultivo de arroz e pesca são vitais para a economia local. Ademais, o Delta Interno do Níger é a maior área inundável da África Ocidental, constituindo um dos grandes deltas internos do continente, junto com o Delta do Okawango e as planícies de Sudd no Rio Nilo, e responsável por preciosas interações terra-atmosfera de ação local e regional (FLEISCHMANN, 2017). O terceiro rio mais importante da África, o rio Congo, é o segundo maior rio da África (fica atrás apenas do rio Nilo) e o primeiro em exten- são de água. O rio Congo é o mais profundo rio do mundo e o segundo – 17 – Geografia física do continente africano maior rio em vazão (67.000 m³/s, na sua foz). Além disso, a bacia do rio Congo é a segunda maior bacia hidrográfica da Terra, atingindo uma superfície de mais de 4 milhões de km². A nascente do rio Congo situa-se nas montanhas do Rift. A principal extensão do rio percorre a República Democrática do Congo e, perto da sua foz, demarca fronteira com Angola. O seu regime fluvial depende das preci- pitações equatoriais e quase toda a sua bacia é revestida por florestas equa- toriais intransitáveis (que servem de refúgio para 1.000 espécies de aves, 10.000 espécies de plantas e 400 espécies de mamíferos – além de nossos parentes famosos, quase em extinção – os Gorilas). A Bacia do Congo tam- bém é morada de 30 milhões de pessoas, divididas em 250 etnias. De acordo com o relatório da UNEP9 (2014 apud PINTO-COELHO; HAVENS 2015), o rio Congo – que tem a extensão de 4.700 km – desen- volve um curso típico em formato de “U” invertido, e por conta disso, cruza a linha do equador duas vezes. O rio Congo (também denominado de Zaire) atravessa a República Democrática do Congo. A bacia hidro- gráfica do Rio Congo é tão grande que ocupa quase o território do Congo inteiro, juntamente com a República do Congo. Ao aproximar-se do Oceano Atlântico, a foz do rio Congo concentra- -se numa faixa estreita que é compartilhada pela República Democrática do Congo e pela República do Congo e por Angola. Ele banha duas capi- tais: Brazzaville e Kinshasa. O rio Congo acolhe as águas do lago Tanganica, a partir do rio Lukuga. É no rio Congo que estão localizadas as 32 cataratas de Livings- tone. Encontram-se, ainda, em sua bacia hidrográfica, os maiores rema- nescentes da floresta equatorial na África. Não menos importantes para a sobrevivência dos organismos na África são os lagos de água doce, dentre eles o Vitória – o segundo maior lago de água doce no mundo (em área) e maior lago tropical existente. O lago Vitória é uma das nascentes do rio Nilo, como é possível ver na figura 1.6: 9 UNESCO. United Nations Educational Scientific and Cultural Organization. Water and Energy. The United Nations World Water Development Report,. v. 1, 2014. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 18 – Figura 1.6 – Lagos e rios da África Fonte: elaborada pela autora. O lago Malawi é um lago bastante singular, pois compõe uma provín- cia biogeográfica exclusiva, com aproximadamente 400 espécies de ciclí- deos10 apresentadas como endêmicas. Estima-se que o lago Malawi tenha uma idade aproximada entre um e dois milhões de anos. Por se encontrar numa região tropical e ser muito profundo, esse lago se mantém perma- nentemente estratificado, apresentando um epilímnio mais tépido em cima de um hipolímnio11 mais frio por todo ano. 10 Cichlidae é uma família de peixes de água doce da ordem Perciformes que inclui cerca de 227 gêneros e 27.977 espécies. Os ciclídeos representam a maior família de peixes (em termos de número) e cerca de 5% dos vertebrados existentes na Terra. São os mais populares peixes de aquário, pois possuem alta diversidade de coloração, forma, tamanho e comportamento. O Acará-bandeira é um ciclídeo bastante conhecido. 11 Epilímnio: camada superficial de lagos em que se regista estratificação. Hipolímnio: camada profunda de lagos em que se regista estratificação. – 19 – Geografia física do continente africano O lago Tanganica, o segundo maior lago africano e o mais profundo do continente, é compartilhado pela Zâmbia, Tanzânia, Burundi e República Democrática do Congo. Está localizado na porção ocidental do Vale do Rift, a uma altitude de 782 m. Prolonga-se por 673 km numa direção norte-sul, com uma largura média de 50 km e profundidade máxima de 1.470 m. Acredita-se que o lago Tanganica seja o segundo mais antigo e pro- fundo do mundo, depois do lago Baikal (Sibéria). Ele é bastante piscoso, percorre uma área de 32.900 km², tem uma linha de costa de 1.828 km e uma média de profundidade de 570 m. Seu volume é avaliado em aproxi- madamente 18.900 km³. Outro lago importante é o lago Chade, localizado próximo da região central da África. É um lago de água doce, endorréico12, que fornece água para quase 20 milhões de pessoas nos quatro países situados ao seu redor: Nigéria, Camarões, Chade e Níger. É um lago muito raso (tendo apenas entre 7 e 10,5 m em sua área mais profunda) e por consequência apresenta amplas alterações sazonais em sua área ocupada. O lago Chade já foi um dos maiores do mundo e durante milênios tem sido o grande manancial de águas numa região de transição entre as savanas e o grande deserto do Saara. Nas últimas décadas, contudo, o lago Chade tornou-se uma preocu- pação para a comunidade internacional, pois está secando com rapidez assombrosa. Segundo a ONU (2009), o volume de água do Chade já dimi- nuiu mais de 80%, desde 1963, e se continuar nesse ritmo, deverá deixar de existir em menos de 20 anos. Os lagos são parte imprescindível da hidrografia africana, pois inte- ragem com a dinâmica fluvial. O lago Vitória verte suas águas no rio Nilo Branco. Os lagos Kivu e Tanganica deságuam no rio Congo, e o lago Malawi por sua vez derrama suas águas no rio Zambeze. No caminho, as águas banham diferentes relevos. 1.1.4 Relevo Outro aspecto físico importante do continente africano é o relevo. As formas de relevo que predominam na África são planaltos, planícies 12 cujas águas não seligam ao mar. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 20 – e cadeias de montanhas. Planaltos correspondem a superfícies aplaina- das, onde o processo erosivo predomina sobre o sedimentar. Planícies (ou terras baixas) se caracterizam pelo inverso – o processo sedimentar se sobrepõe ao processo erosivo independentemente das cotas altimétricas. Montanhas são elevações naturais do terreno, com certa amplitude e alti- tude superior a 300 metros (GUERRA, 1993, p. 298). As montanhas mais altas da África são o Monte Kilimanjaro (5.895 metros), o Monte Quênia (5.199 metros) e o Monte Ruvenzori (5.109 metros). Também é importante citar a Cadeia dos Atlas com mais de 4.000 metros e a Cadeia do Cabo com 3.400 metros de altura. Essas montanhas dificultam e limitam o deslocamento dos seres vivos no interior do continente. 1.1.5 A geologia do continente africano Na estrutura geológica dos continentes, as rochas mais antigas em geral formam o chamado escudo. Os escudos são uma região da crosta terrestre que atingiu a estabilidade e que é constituída especialmente por rochas do embasamento cristalino de idades pré-cambrianas. No continente africano, o processo de cratonização13 correspondeu à quatro ciclos orogenéticos: 1. Orogenia Limpopo-Liberiano – que ocorreu entre 2800 e 2500 M.a (milhões de anos). 2. Orogenia Eburneana – que ocorreu entre 2500 e 1800 M.a. 3. Orogenia Kimbariana – que ocorreu entre 1650 e 1100 M.a. 4. Orogenia Damariana ou Panafricana – que ocorreu entre 1000 e 500 M.a. De acordo com Bondo14 (2008, apud PAULA; ROCHA, 2015), a Oro- genia Limpopo-Liberiano foi a emersão de oito núcleos de zonas submer- sas. Esses núcleos são: Camarões, Dodoma Nyansa, Gabão, Kassai, Mauri- tânia, Serra Leoa/Costa do Marfim, Zambia, Transvaal e Zimbábue. 13 Cráton: Porção da crosta terrestre que permaneceu estável e sofreu pouca deformação por longos períodos em relação a uma determinada época geológica. Em um aspecto atual, restringe-se a áreas continentalizadas e suas adjacências (IBGE, 1999). 14 BONDO, Hortênsio Felisberto de Fátima. Manual de Apoio – Geologia de Angola. Universidade Agostinho Neto Departamento de Geologia. Luanda, 2008. – 21 – Geografia física do continente africano A Orogenia Eburneana edificou a primeira fase de solidificação e integração dos oito núcleos oriundos do primeiro ciclo orogenético, resul- tando em quatro núcleos maiores: Congo-Kassai, África Ocidental, Zim- bábue Transvaal e Tanzânia. A Orogenia Kimbariana é a segunda etapa de estabilização dos qua- tros núcleos basais da Placa Africana, que passaram a ser três: Kalahari, África do Oeste e Congo. A Orogenia Damariana ou Panafricana se trata da última fase de cratonização da região. Observe esses ciclos na figura 1.7: Figura 1.7 – Ciclos orogenéticos na África 1- Orogenia Limpopo-Liberiano / 2- Orogenia Eburneana / 3- Orogenia Kimba- riana / 4- Orogenia Damariana ou Panafricana. Fonte: adaptada de Paula e Rocha (2015). Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 22 – Quando ocorreu o afastamento das placas tectônicas arábica e afri- cana, uma grande fenda se abriu no interior do continente e nela se for- mou um complexo de falhas tectônicas ao qual se deu o nome de Vale do Rift (conforme figura 1.8). Essa estrutura estende-se pelo continente no sentido norte-sul por aproximadamente 5.000 km e vai desde a Síria até Moçambique. A largura desse vale oscila entre 30 e 100 km e sua profun- didade varia de centenas a milhares de metros. Figura 1.8 – Vale do Rift Fonte Shutterstock.com/ArCaLu Nos rebordos do vale do Rift estão as cordilheiras onde se localizam os pontos mais altos do continente (Kilimanjaro, Monte Quênia, Monte Ruvenzori e outros). É no vale do Rift também que se formaram os gran- des lagos Vitória, Malawi e Tanganica. Síntese Nesse capítulo tratamos das características geofísicas do continente africano. Vimos que a África é um território de grandes dimensões, e como tal, possui características geográficas que se distinguem ao longo de seu território. Nela há planícies, planaltos e montanhas, que são influenciados por condições climáticas e geomorfológicas diferenciadas. Pudemos observar que a cobertura vegetal do continente africano reflete as múl- tiplas variáveis climáticas que nele incidem. Percebemos que o relevo, o – 23 – Geografia física do continente africano clima e a vegetação limitaram o deslocamento dos organismos pelo conti- nente e que os rios, lagos e corpos d’água, por sua vez, foram fundamen- tais para a dispersão e para a sobrevivência dos seres vivos. Uma feição do relevo africano importante a ser ressaltada é o Vale do Rift, que se formou após a separação das placas tectônicas árabe e africana, e que promoveu o surgimento dos grandes lagos que banham a região. Atividades 1. Sintetize os aspectos geofísicos da África (extensão, clima e relevo). 2. Quais são os rios e lagos mais importantes do continente afri- cano e como eles influenciaram na ocupação do território? 3. O que é o Vale do Rift e quais as suas características? 4. Quais as características dos principais lagos africanos? 2 África Antiga Nesse capítulo discorreremos sobre: 2 a pré-história das diversas regiões da África, em espe- cial a região do Vale do Nilo; 2 os diversos estudos arqueológicos que tratam da pre- sença de humanos primitivos no continente africano; 2 a História dos primeiros povos que habitaram o conti- nente africano no intento de desvendar como se deu a distribuição humana no continente e estabelecer cone- xões entre a ocupação do espaço pelas sociedades pri- mitivas e a formação sociocultural dos povos que se estabeleceram nas diferentes regiões do continente; 2 as relações do Egito com o resto da África e a influên- cia do rio Nilo e do crescente fértil no comércio e na locomoção na região; 2 a importância da Núbia1 para os deslocamentos no con- tinente africano; 1 Na escrita hieroglífica nub significa ouro. O termo núbia, portanto, significa terra do ouro. A região era assim denominada pois possuía muitas minas de ouro. As fronteiras da Núbia sempre foram imprecisas, com numerosas divisões políticas. Era considerada um prolongamento do Egito, e entendida como um grande deserto. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 26 – 2 como o período romano influenciou na economia, na cultura e na religião dos povos do Norte da África e o que aconteceu com essa região no período pós-romano; 2 como se deu a expansão do cristianismo e do Islã na África; 2 as características do deserto do Saara e avaliaremos sua influên- cia na ocupação do território africano; 2 os atributos da costa oriental da África e seu papel no comércio marítimo internacional. 2.1 Pré-história da África e do vale do Nilo Estudos arqueológicos sugerem que os primeiros hominídeos surgi- ram no leste da África. Por conta disso, a história da parte oriental do con- tinente africano é muito extensa. A história da região teve início quando os primeiros seres humanos produziram utensílios de pedra com padrões e formas predeterminados. A denominada Idade da Pedra, que teve seu início há cerca de 3 milhões de anos, assistiu mutações e distinções no cérebro e no corpo humanos, bem como na organização social, na cultura e na economia. A Idade da Pedra perdurou por muito tempo até que a pedra – enquanto material principal para a produção de utensílios e gumes afiados – foi trocada pelo metal. Essa transição da indústria lítica2 para a utilização do metal ocorreu em momentos diferentes nas diversas partes do mundo. No leste da África, o trabalho com o ferro teve início há quase 2 mil anos (SUTTON, 2010, p. 513). As mudanças ocorridas durante a Idade da Pedra foram vagarosas, especialmente no início do período. De acordo com Sutton (2010, p.514), a etapa final da Idade da Pedra foi a época em que ocorreu maior especia- lização e diferenciação de artefatos entre as diversas regiões do continente africano.Em alguns casos, como resultado de migrações ou contatos entre culturas distintas, algumas características tecnológicas aperfeiçoadas lentamente numa determinada localidade surgiram sob forma finalizada 2 A indústria lítica é um conjunto de utensílios de pedra derivados da atividade humana. Esses utensílios foram usados na época anterior ao uso de metais. – 27 – África Antiga em outra região. Isso indica que, em termos de desenvolvimento tecnoló- gico, duas ou três gerações do fim da Idade da Pedra equivaleriam a meio milhão de anos no período inicial. A maior parte dos utensílios fabricados durante a Idade da Pedra não era armamento. Embora a caça tivesse grande valor como fonte de proteí- nas (exceto nos locais onde havia pesca), a coleta de alimentos era funda- mental para assegurar o básico do regime alimentar. Sendo assim, a maio- ria dos petrechos produzidos no período era direcionada para atividades de coleta, para trabalhar a madeira e para uso nas atividades do cotidiano (SUTTON, 2010, p.516). A escolha dos locais de acampamento estava condicionada ao acesso à água doce. Os acampamentos temporários sempre estavam localizados perto de cursos d’água ou de lagos. A presença de água, inclusive, favo- receria a dispersão da vegetação, que por sua vez atrairia animais e faci- litaria a caça. A evolução do homem, contudo, não teria se dado nas florestas africanas, mas nas savanas. Tanto na África setentrional quanto na África austral os fósseis de hominídeos mais antigos foram desco- bertos nas pradarias3 semiáridas e nas matas de vegetação decídua4 (CLARK, 2010, p. 551). Foram encontrados muitos fósseis de hominídeos australopitecos em cavernas da África do Sul (ver figura 2.1). Em função disso, acreditava-se que esses hominídeos teriam habitado as cavernas de calcário do Trans- vaal5. Todavia, a teoria mais aceita atualmente é de que predadores (como leopardos ou tigres) teriam levado os humanos primitivos para dentro das cavernas para devorá-los. As cavernas do Transvaal podem não ter sido o local de habitação desses proto-humanos, mas certamente eles viviam nas imediações das mesmas (CLARK, 2010, p. 557). 3 Denominação utilizada para as formações campestres, onde há predomínio de gramíneas com altura até 2m. 4 Decídua - do latim: decidere = cair. Planta que perde as suas folhas em época de seca. 5 Transvaal é uma região da África do Sul, situada no nordeste do país. Possui reservas de ouro, platina, diamantes e ferro. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 28 – Figura 2.1 – Depósito de fauna e fósseis humanos Fonte: Clark (1970) apud Unesco (2010). A indústria lítica mais antiga conhecida foi denominada de Oldu- vaiense (em referência à garganta6 de Olduvai, na Tanzânia) e os artefatos mais antigos da África oriental datam de 1,8 milhão de anos atrás. Uma segunda indústria, marcada por grandes instrumentos cortantes (bifaces e machadinhas) se diferenciava da olduvaiense por apresentar utensílios 6 Passagem estreita situada em uma crista, serra ou borda de um planalto, resultante do aprofundamento do talvegue de um rio em rochas mais resistentes. Em seção transversal é menor do que um desfiladeiro e maior e mais profunda do que uma ravina. – 29 – África Antiga maiores, elaborados com lascas grandes, cuja obtenção exigia perícia e força. Essa nova indústria recebeu o nome de acheulense, e seu apare- cimento indica que novos recursos começaram a ser explorados ou que métodos melhores haviam sido inventados para a exploração desses recur- sos (CLARK, 2010, p. 560). Assim como os locais de moradia de outros grupos proto-humanos, os sítios acheulenses situavam-se sempre perto de algum curso d’água. Na África Meridional, os acheulenses também ocuparam algumas cavernas, sendo que em duas delas (Cave of Hearths, na localidade de Makapan e Montagu, no sul da província do Cabo) foram encontrados muitos artefa- tos (CLARK, 2010, p. 568). Todos os habitats acheulenses do Pleistoceno Médio possuem carac- terísticas semelhantes. Todos se localizam em campo aberto, desde capões de mata decídua até maquis7, pradarias e parques naturais. Todos se encontram perto da água, onde a caça propendia a se concentrar e onde as árvores proviam sombra e frutos. Todos estão em locais onde atualmente vemos associações de diversos tipos diferentes de vegetação (CLARK, 2010, p. 568). Por tudo o que já sabemos acerca do comportamento dos hominídeos no Pleistoceno Médio, podemos afirmar que esses grupos de caçadores- -coletores mantinham um estilo de vida parecido, eram propensos a se agrupar e se comunicavam com certa eficácia. Provavelmente viviam em grupos maiores do que seus antecessores e ocupavam algumas áreas com mais frequência, adotando um padrão sazonal. O arcabouço social parece ter sido flexível, consentindo a livre circulação de indivíduos e ideias. Contudo, grandes áreas do continente, com inclusão das florestas, continu- avam desabitadas. Isso implicava no isolamento desses grupos em relação aos grupos adjacentes (CLARK, 2010, p. 570). Na África Central, em regiões com maiores precipitações pluviomé- tricas e vegetação mais densa, os grupos acheulenses foram substituídos por indústrias com ampla quantidade de utensílios pesados, tais como sei- xos lascados, bifaces, picões e raspadores nucleiformes (instrumento que 7 Formação vegetal, também conhecida por chaparral, é formada principalmente por arbus- tos. É uma vegetação densa e muito fechada, formando um matagal de difícil penetração. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 30 – conserva o essencial do bloco de matéria-prima). O surgimento desses utensílios pesados denota uma especialização regional dos artefatos – pro- vavelmente impulsionada pelas diferenças entre os padrões de adaptação nos diversos ambientes (florestas densas, florestas claras ou pradarias) (CLARK, 2010, p. 570). Há aproximadamente 10.000 anos, no fim do Pleistoceno, algumas populações aparentadas geneticamente, mas distintas regionalmente, se diferenciaram. No sul e no centro-leste africano surgiram os troncos de San; na África Equatorial e Ocidental despontaram os negroides; e na África Oriental apareceu a forma nilótica8. Esses grupos autóctones pro- vavelmente evoluíram durante o Pleistoceno Superior e o princípio do Holoceno, a partir de um extenso ciclo de adaptação e seleção nas regiões biogeográficas basais (CLARK, 2010, p. 575). No início da Era Cristã, em boa parte do sul da África, as populações de caçadores e coletores foram substituídas por povos agricultores conhe- cedores da metalurgia. É plausível que tais povos sejam os antecessores dos grupos de língua bantu oriundos do Noroeste (Camarões e Chade) e que migraram para a região. No sul da África não havia povos agricultores que produzissem cerâmica, apenas utensílios de pedra (como machados afiados e polidos). Contudo, apesar de não haver certeza de que a agri- cultura fosse conhecida antes da vinda dos povos do começo da Idade do Ferro, é provável que alguns grupos possuíssem carneiros e bovinos no sudoeste da África, antes mesmo do primeiro século da Era Cristã. Alguns deles podem ser identificados com os Khoi Khoi (pastores nômades que produziam cerâmica, mas não exerciam a agricultura). Porém, vestígios inequívocos de habitat pastoril não foram descobertos até o momento (CLARK, 2010, p. 589). No caso da região da África central, ocupada pela bacia hidrográfica do rio Zaire, as culturas pré-históricas (especialmente aquelas que sucede- ram aos acheulenses) evoluíram na própria localidade, eram dependentes 8 Os nilotas são povos africanos que falam línguas nilóticas, um dos principais ramos da grande família das línguas nilo-saharianas. Habitam a região sul do vale do rio Nilo. Os nilóticos são negros e possuem estatura elevada. – 31 – África Antiga da floresta primária e não mantinham contato com os povos que viviam nas zonas de vegetação menos densa. A bacia hidrográficado rio Zaire (ver figura 2.2) é partilhada pelas Repúblicas de Angola, do Chade, Centro-Africana, do Congo, do Malawi, Democrática do Congo, do Burundi, do Gabão, da Tanzânia e da Zâmbia. Possui área de aproximadamente 3.699.100 km² (INRH, s/d). Atualmente, bacia do Zaire representa a zona equatorial. Sua cobertura vegetal é a mais densa de toda a África. Figura 2.2 – Bacia hidrográfica do rio Congo (Zaire) Fonte: elaborada pela autora. No passado, em alguns períodos muito úmidos, essa zona florestal se prolongou muito mais ao norte do que hoje em dia. Com o tempo, a Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 32 – floresta regrediu, mantendo-se apenas em galerias ao longo dos rios. Essa cobertura vegetal foi um fator fundamental no crescimento e na evolução das culturas pré-históricas da região. Sabe-se que, ao norte, as migrações ocorridas no Neolítico (de leste para oeste), contornaram a floresta sem adentrá-la, como se a floresta fosse um empecilho, uma barreira intrans- ponível para as populações acostumadas a viver nas savanas (HERMENS, 2010, p. 591). Ao que parece, até o período Acheulense Superior, as indústrias pré- -históricas da região quase não se diferenciam das outras partes da África subequatorial. Foi somente a partir do complexo Sangoense9 que se ini- ciou a diversificação regional das culturas que viviam na floresta. Esses grupos viveram em isolamento quase total até a vinda dos povos neolí- ticos oriundos do norte (que fugiam das zonas saarianas que entraram em dessecamento). Essa enorme floresta equatorial localizada na região central da África representou uma barreira natural, que limitava o contato com os povos que viviam no norte e no sul do Equador. Nessa região, as culturas neolíticas duraram muito mais do que em qualquer outra área, já que permaneceram isoladas e abrigadas num período em que outras regi- ões já haviam dado início a utilização dos metais e do ferro (HERMENS, 2010, p. 596). A região do Saara (que atualmente é um deserto) já foi muito povo- ada. Acredita-se que a região foi abandonada pelas etnias que a ocuparam durante o estabelecimento de um clima mais seco e quente. Essa mudança climática implicou na escassez de chuvas e no esgotamento das fontes de água e dos rios. A supressão da cobertura vegetal – e consequentemente da fauna - forçou os povos que ali viviam a procurar regiões mais favoráveis (HUGOT, 2010, p. 658). No caso da África ocidental, ainda não foram descobertos vestígios de hominídeos análogos aos que foram encontrados na África meridional e oriental, também não foram achados artefatos da mesma época. Isso não 9 Sangoense: nome tirado da baía de Sango, localizada na parte ocidental do lago Vitória. – 33 – África Antiga significa que na região ocidental não tenha havido a presença de proto- -humanos, apenas indica que mais pesquisas devem ser feitas para eluci- dar essa questão. Traços do povo acheulense foram registrados em Gana, Senegal e Mauritânia. Esses traços indicam a probabilidade de uma pene- tração pelo norte dessas áreas, que talvez possuíam um meio ambiente mais propício. Contudo, essa penetração não parece ter sido muito expres- siva (SHAW, 2010, p. 687). Na África Ocidental praticamente inexistiu a Idade do Bronze. Ao que parece, durante o terceiro milênio – época em que a escrita, a cen- tralização do governo, a metalurgia, a construção dos grandes monumen- tos de pedra e o emprego da roda se estabeleceram de maneira consis- tente no Egito – foi a época do dessecamento do Saara. Nesse período as populações abandonaram a região do deserto que deixou de servir como ligação indireta entre o Egito e a África Ocidental. Essa conexão só foi estabelecida novamente aproximadamente 3000 anos depois, graças à domesticação do camelo (SHAW, 2010, p. 710). Na região do vale do Nilo (ver figura 2.3), que abriga o Sudão, a Núbia e o Egito, observou-se a presença dos olduvaienses (tipo de homem mais primitivo que se conhece). Também se nota a presença de indústria lítica dos períodos Old Stone Age10, Middle Stone Age11 e Late Stone Age12. No Egito, condições geográficas e ambientais distintas promoveram a evolução de dois grupos culturais diferentes, que se desenvolveram em território egípcio, no sul e no norte concomitantemente. O grupo cultural do sul é denominado de Alto Egito e o grupo cultural do norte recebe o nome de Baixo Egito (DEBONO, 2010, p. 716). 10 Corresponde ao Paleolítico Inferior, frequentemente denominado também de Acheulen- se, período que vai de cerca de 600.000 a 200.000. 11 Esse termo abrange o Paleolítico Médio, aproximadamente desde 200.000. 12 Período da pré-história africana que sucede o período Middle Stone Age. Acredita-se que a transição do Middle Stone Age para o Late Stone Age tenha ocorrido primeiro na África oriental entre 50.000 e 39.000 anos atrás. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 34 – Figura 2.3 – O vale do Nilo Fonte: elaborada pela autora. O grupo do Alto Egito (sul) mostrou-se desde o início como uma civi- lização avançada. Foi delineada com base no estudo de amplos e nume- rosos cemitérios e de outros vestígios recolhidos de regiões habitadas. O grupo cultural do norte é bastante diferente do grupo localizado no sul, especialmente no que tange a tamanho das regiões habitadas, à elaboração – 35 – África Antiga de cerâmica monocrômica e ao costume temporário de sepultar os mortos em suas próprias casas (DEBONO, 2010, p. 732). No período faraônico já havia alusão aos dois Egitos (Alto e Baixo) que foram unificados pelo faraó fundador da primeira dinastia. Esse dua- lismo regional já predominava no período conhecido como “Neolítico”. As diferenças entre os dois grupos envolviam vários aspectos da vida, o que gerou dois grupos culturais peculiares, que tiveram suas origens em diferentes condições ambientais e geográficas. O grupo do sul despontou ao longo do apertado corredor do Nilo, circundado por duas falésias ári- das. O grupo do norte se formou no imenso leque do delta fértil. O grupo nortista desvendou uma miríade de culturas, análogas em suas linhas gerais, mas distintas nos seus pormenores. O grupo sulista, por sua vez, apresenta divergências mais evidentes que as encontradas entre as diversas culturas do norte. Desde os primeiros estágios, o norte apresenta um progresso extraordinário no que se tange ao desenvolvimento urbano. Na região sul, porém, pouquíssimos vestígios urbanos sobreviveram. Sob a perspectiva da economia e da urbanização, o norte do Egito exibe um desenvolvimento superior. Já o sul do Egito parece ter atingido um estágio muito avançado nas suas habilidades artísticas. A unificação dessas duas culturas será responsável pela grandeza do Egito faraônico. Todavia, o aparecimento do período histórico (caracterizado pela intro- dução da escrita, pela unificação do Egito sob a égide de um único rei e a proliferação do uso do metal) não alterou algumas das facetas do modo de vida desses povos, especialmente no que se refere à continuidade do uso do sílex13 – que prosseguiu durante o período faraônico (DEBONO, 2010, p. 739). 2.2 As Relações do Egito com o resto da África Ainda não foram descobertos indícios concretos de que o antigo Egito se relacionasse com o resto da África, apesar de escavações terem 13 Rocha constituída principalmente por quartzo micro ou criptocristalino, contendo raras impurezas, como argila, calcita ou hematita, porém, as impurezas nunca ultrapassam 10%. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 36 – encontrado estatuetas egípcias no Zaire14 e no Zambeze15, mas a ausência de artefatos não significa que tais relações não existissem. Ao que parece, há uma notável discrepância cronológica e também tecnológica entre o Egito e as civilizações das redondezas. Apesar de ser parte da África, a cultura egípcia desprendeu se do seu meio ocidental e meridional. Dife- renças intensas no modo de vida distanciaram osegípcios dos povos adja- centes (ZAYED; DEVISSE, 2010, p. 97). Durante os 3 mil anos de governo faraônico, o Egito se manteve estável étnica e culturalmente. O baixo vale do Nilo assimilou as penetrações ou imigrações originárias de diversas periferias, menos nas ocasiões em que a pressão de povos estrangeiros se intensificava. Ao sul e ao oeste, povos que nutriam diferentes graus de parentesco eram limitados em seu habitat pelas fortificações das fronteiras egípcias, mas também podiam ser considerados úteis como fornecedores de víveres ou de homens para a sua defesa. Considerava-se que os povos vizinhos ao Egito tinham a obrigação de colaborar oferecendo riquezas e homens para a civilização faraônica. O tributo compunha um dos símbolos de submissão dos povos contíguos do Egito e o calote implicava em punição. As relações do Egito com a África variaram com o decorrer dos séculos (ZAYED; DEVISSE, 2010, p. 99). Sabe-se que durante o período pré-dinástico os habituais intercâm- bios humanos com o Saara diminuíram consideravelmente e que durante o período dinástico o Egito teve grande influência sobre o Saara (prin- cipalmente sobre os líbios). No Neolítico, quando a acelerada expansão do deserto obrigou os pastores e caçadores líbios a retrocederem para a periferia do seu habitat prévio. Nos amplos oásis rodeados por desertos, a aristocracia egípcia costumava caçar, adotando uma incumbência que originalmente pertencia ao rei. Quando se viajava para o norte, (rumo ao Níger e ao Fezzan), ou para o sul, (em direção ao Chade), era pre- ciso cruzar os oásis em que os nobres egípcios caçavam, todavia, ainda não se sabe ao certo quais as rotas que os egípcios percorriam (ZAYED; DEVISSE, 2010, p. 101). 14 Às margens do rio Lualaba foi encontrada uma estatueta de Osíris, datada do século VII antes da Era Cristã. 15 Ao sul do Zambeze foi encontrada uma estátua gravada com o cartucho de Tutmés III (-1490 a -1468). – 37 – África Antiga Os líbios começaram a compor uma reserva de soldados e de mão de obra para o Egito a partir da XIX dinastia. Os prisioneiros líbios, que eram identificados por uma pluma que usavam na cabeça, tinham boa fama como soldados, principalmente como condutores de carros de guerra. Comumente marcados a ferro, os líbios não eram aproveitados nas gran- des intervenções coletivas nem nos afazeres domésticos. Eram alistados pelo exército, onde seu tamanho aumentava com os séculos e onde se deparavam outros imigrantes, os núbios. Como pecuaristas, providencia- vam animais para os egípcios, que eram coletados sob a forma de tributo, ou apanhados durante saques (ZAYED; DEVISSE, 2010, p. 102). Antes da Era Cristã, nos séculos XIII e XII e durante o Antigo Impé- rio, os líbios, levados pela penúria, tentaram insistentemente adentrar no Egito. Para evitar que eles conseguissem, Séti I e Ramsés II construíram uma série de fortificações contra os invasores e prenderam todos os que insistiram em continuar tentando penetrar na região. Após duas tentativas fracassadas de voltar à parte oeste do Delta, de onde haviam sido enxotados, os líbios receberam de Ramsés III (século XII a.C.), autorização para se afixar naquela área. Em troca, aceitaram partici- par de forma mais intensa na defesa militar do Egito. No século X – e por aproximadamente dois séculos – os líbios governaram o Egito sob a XXII e a XXIII dinastias. Isso provocou reações fortíssimas no Alto Egito, de onde partiram tentativas de destituir os governantes líbios. A rivalidade entre guerreiros e estadistas negros e brancos deu início a uma conjuntura que se delongaria por muito tempo no Egito (ZAYED; DEVISSE, 2010, p. 102). Durante o período dinástico16, o Delta do Nilo foi palco de frequentes migrações. O Delta do Nilo é muito importante por causa da fertilidade de suas terras, provocada pela cheia anual do rio Nilo. Um delta é uma região plana, composta por depósito sedimentar, principalmente aluvio- nar17, cortada por muitos canais tributários junto à foz de um rio principal e que tem a forma triangular (semelhante a letra grega delta Δ). Ocorre em desembocaduras de rios onde a corrente fluvial encontra as águas do mar, 16 O período denominado Dinástico é aquele em que o Egito formou um Estado Unitário (com um único governante). 17 designação que engloba os depósitos de origem fluvial ou lacustre, constituídos de casca- lhos, areias, siltes e argilas das planícies de inundação e do sopé dos montes e das escarpas Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 38 – do lago ou de uma lagoa. Promove a deposição dos sedimentos transpor- tados, formando um depósito sedimentar complexo. Observe na figura 2.4 a posição privilegiada do Egito: Figura 2.4 – Egito Fonte: elaborada pela autora. No caso do Delta do Nilo, as cheias anuais depositavam sedimentos que fertilizavam o solo, favorecendo a agricultura e a produção de grãos (inclusive para a criação de animais). O Delta do Nilo permitia a fartura numa região assolada pela aridez. É claro que as características vantajosas que o delta apresentava atraíam grupos humanos de todas as adjacências. No Egito faraônico, o Delta foi uma área de conflito. Ao buscar aper- feiçoar o comércio exterior com a Ásia, o Mediterrâneo e o resto da África, o Egito viu-se na obrigação de desempenhar um controle rígido sobre a costa do Delta. Desde o começo do período faraônico, a política comercial e militar egípcia com a região norte e nordeste se contrapunha ao anseio – 39 – África Antiga de penetrar no interior do continente africano. O Egito, país marítimo e mediterrânico, tinha de administrar um espaço útil aberto para o norte do mar Vermelho e para o Mediterrâneo (ZAYED; DEVISSE, 2010, p. 104). A Baixa Núbia produzia ouro – e isso era de grande interesse para os egípcios. As regiões do Nilo localizadas mais ao sul interessavam aos egípcios por causa das rotas que levavam ao interior africano por meio do Darfur18, do rio Nilo Branco, ou dos vales saarianos. O acesso à região sul foi uma preocupação constante, o que explica a importância conferida ao controle dos oásis ocidentais (outra rota de acesso ao sul, paralela ao rio Nilo). O Sudão, assim como a Líbia, representou para os egípcios uma fonte de minerais, de mão de obra e de animais. Os núbios, ilustres por conta de seus bons arqueiros, desempenhavam uma posição de destaque no exército egípcio. Além disso, eram prontamente assimilados pela vida sociocultural egípcia ao serem empregados como trabalhadores agrícolas (ZAYED; DEVISSE, 2010, p. 105). Contudo, é bom pontuar que os povos estrangeiros eram vistos com muita desconfiança pelos egípcios. Eles frequentemente representavam uma ameaça. O registro encontrado numa estela19 do reinado de Sesostris III20 em Semna, região da segunda catarata, mostra bem como essas rela- ções eram delicadas: Esses Nehesy (núbios) não são gente digna de respeito; são miserá- veis e sem coragem. Minha Majestade os viu, não é mentira. Cap- turei suas mulheres, trouxe seus súditos, fui até seus poços, destruí seu gado, colhi ou queimei seu trigo. (...) Agora, quanto a cada um de meus filhos que manterá essa fronteira, que Minha Majestade fez, ele é meu filho, nascido de Minha Majestade, retrato de um filho que é o defensor de seu pai e que mantém a fronteira daquele que o gerou. Quanto àquele que relaxar, que não lutar por ela, não é meu filho, não nasceu de mim (BRISSAUD, 1978: 83 citado por VIEIRA, 2014). 18 Darfur é uma região localizada no oeste do Sudão, fronteira com a Líbia, com o a Re- pública Centro-Africana, com o Chade e com o Sudão do Sul. 19 O termo estela vem do grego stela, que significa “pedra erguida”. É usado para designar monolíticos geralmente esculpidos com relevos ou textos. 20 Sesostris III foi o quinto faraó da XII dinastia do Egito (de 1862 a.C. a 1844 a.C.). Seu reinado assinala o auge do Império Médio. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 40 – 2.3 A importânciada Núbia A Núbia era, e ainda é, uma região povoada por negros. Os egípcios, em seus papiros e afrescos, sempre retrataram os povos da Núbia com pele muito escura. Os gregos e os romanos chamavam-nos de “etíopes”, que significa “os que possuem a pele queimada”. Já os primeiros viajantes árabes mencionavam à Núbia como o “país dos negros” (ADAM; VER- COUTTER, 2010, p. 219). Podemos definir a Núbia histórica como a parte da bacia do Nilo que se desdobra da fronteira oeste-noroeste da Etiópia até o Egito, abrangendo o vale do Nilo, partes do Nilo Azul e do Nilo Branco e todos os seus afluentes loca- lizados ao norte do 12º paralelo (ADAM e VERCOUTTER, 2010, p. 215). A Núbia funciona como elo entre a África Central (da bacia do Congo e dos Grandes Lagos) e o mundo mediterrânico. Veja a localização da Núbia na figura 2.5: Figura 2.5 – Núbia Fo nt e: a da pt ad a de M ah jo ub i ( 20 10 ). – 41 – África Antiga Apesar de o Nilo constituir um meio garantido de atravessar regiões desérticas, a viagem não é muito fácil, pois o caminho rio acima cruza cataratas, passa por curvas prolongadas, muda de direção, enfrenta ventos e correntezas. Mais ao sul o navegante precisa encarar longos trechos pan- tanosos de difícil transposição (ADAM; VERCOUTTER, 2010, p. 213). Núbia é uma zona de contatos privilegiada no continente africano. No sul da Núbia, os rios Nilo Azul, Atbara e seus afluentes, as planícies da Etiópia e a depressão perpendicular à borda do mar Vermelho permi- tem simples acesso aos planaltos da Etiópia, ao oceano Índico e ao mar Vermelho. Os uadis21 elMilk e Howar – localizados no oeste e atualmente secos – vão unir-se ao rio Nilo entre a Terceira e a Quarta Catarata, pro- porcionando à Núbia uma rota de acesso fácil para a depressão existente no Chade e dali para o vale do Níger e para a África Ocidental. A Núbia constitui um ponto de cruzamento entre as civilizações do oeste e do leste, do sul e do norte da África, bem como entre as civilizações do Oriente Próximo, da Ásia e da Europa mediterrânica (ADAM; VERCOUTTER, 2010, p. 215). Daí sua importância. 2.4 O período romano e pós- romano na África do Norte Depois da destruição de Cartago (146 a.C.) e a consequente redução de seu território à categoria de província romana, a África do Norte ficou nas mãos de Roma. Após a consolidação da dominação romana, a coesão cul- tural e econômica que Roma havia edificado com muito esforço na África do Norte acabou sendo prejudicada por uma resistência constante, que assu- miu aspectos étnicos, sociais, religiosos, militares e políticos (MAHJOUBI, 2010, p. 501). Guerras sucessivas tiveram palco na África e as operações militares persistiram durante os primeiros dois séculos da Era Cristã. No ano de 128, a legião romana fixou uma guarnição permanente em Lambèse (ver a localização das províncias romanas na África do norte na figura 2.6) e abriu várias estradas nos montes Aures, que foram defendidas com afinco contra as tribos africanas por um acampamento militar loca- 21 Do árabe “wadi”, rio temporário que corre no deserto apenas em épocas de chuva Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 42 – lizado em Gemellae (também na Argélia). Entre as regiões desérticas do sul (para onde as tribos foram circunscritas) e as províncias romanas se originou uma zona fronteiriça (o limes) formada por uma rede de 50 a 100 km de largura formada por trincheiras e trajetos defendidos por uma rede de postos militares e pequenos fortes. Essa fronteira era progressivamente reposicionada para o sudoeste (MAHJOUBI, 2010, p. 504). Porém, Roma não podia eliminar de uma vez por todas a resistência dos berberes e jamais conseguiu trazer sob controle constante os nômades do oeste e do sul. A aridez do deserto, a facilidade de locomoção que os camelos concediam aos nômades e a destreza das comunicações ao longo da cadeia do Atlas saariano garantiam aos berberes boa margem de mano- bra. Mesmo assim, sempre que necessário, os romanos transferiam tropas das legiões acomodadas em outras províncias do Império lutar na Mauri- tânia Tingitana22 (MAHJOUBI, 2010, p. 504). Figura 2.6 – Mapa das províncias romanas da África do Norte (final do século II da Era Cristã) Fo nt e: a da pt ad a de M ah jo ub i ( 20 10 ). 22 Mauritânia Tingitana foi uma província romana localizada no noroeste da África, na região do Marrocos e das cidades espanholas de Ceuta e Melilla. – 43 – África Antiga Quando Otávio – também chamado de Augusto – dividiu com o Senado a administração das províncias do Império (janeiro de 27 a.C.), a África, considerada como “pacificada” e atrelada à classe senatorial por tra- dições econômicas e políticas, permaneceu entre as províncias que seriam geridas pelo Senado. Essa província africana agregava as duas províncias que Roma havia constituído na África do Norte: a do território púnico23 conquistado em 146 a. C., denominada de África Vetus, e uma outra que César havia criado, designada por África Nova. Além desses a esses territó- rios haviam as quatro colônias de Cirta (MAHJOUBI, 2010, p. 504). No período imperial, o Senado romano continuou nomeando gover- nadores para a África. Era um funcionário de posição bem alta e usava o título de procônsul. Ocupava a Junção em Cartago por apenas um ano – a não ser que houvesse uma prorrogação incomum. O procônsul era o juiz supremo da província e atuava nas ações criminais e também nas de natureza civil. Além disso, ele possuía poderes administrativos e finan- ceiros. Ele supervisionava a administração e as autoridades municipais, informava as leis e os regulamentos do Império, conduzia a execução dos trabalhos públicos essenciais e sancionava as despesas. O procônsul con- trolava o departamento que abastecia Roma com trigo africano e o sistema fiscal, cujos lucros eram reservados ao tesouro do Senado. Para manter a lei e a ordem, o procônsul dispunha de uma pequena tropa, com cerca de 1600 homens (MAHJOUBI, 2010, p. 506). Sob a administração de Roma, a população das províncias africanas era ordenada em três grupos: 1) imigrantes Romanos ou italianos; 2) car- tagineses e principalmente líbios sedentários que haviam anexado às suas tradições os costumes e as instituições púnicas; e 3) líbios nômades, que estavam confinados a certas áreas ou que foram expulsos de regiões férteis – que precisaram abandonar à força. Esses grupos possuíam diferenças na língua, nos costumes e nas leis que os regiam (MAHJOUBI, 2010, p. 532). Em algumas regiões, a dominação romana na África do Norte durou quatro ou cinco séculos. Quando acabou, a região viveu um período de revoltas, conflitos e desentendimentos religiosos, porém com o tempo as 23 Púnico é o mesmo que Cartaginês (original de Cartago, cidade localizada no golfo de Tunes, no mar Mediterrâneo). Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 44 – coisas se acalmaram. A África do Norte pós-romana e pré-islâmica – divi- dida em zonas dominadas ou independentes – viveu um dos períodos mais originais de sua história (SALAMA, 2010, p. 547). Muito pouco se conhece sobre a estrutura da África do Norte indepen- dente no período pós-romano. Grandes confederações sociopolíticas com- puseram alguns reinos. Na maioria das vezes, o aparelhamento sociopolí- tico expõe uma estrutura que não é anárquica nem simplória. Instituições originais uniam as tradições berberes e o padrão administrativo romano. “Mouros” e “romanos” estavam conectados (SALAMA, 2010, p. 556). 2.5 O cristianismo e o Islã na África A dominação romana não impediu os nativos de se manterem fiéis na devoção de suas divindades tradicionais. Frequentemente, nos modestos santuários rurais, os antigos cultos dos gênios berberes mantiveram suas formas mais remotas. Em alguns casos, contudo, foram absorvidos pelos cultos das divindades greco-romanas. A religião cristã também seduzia muitos fiéis. No período que engloba o final do século II e o início doIII havia na África um número enorme de cristãos, em todas as profissões e classes. E as pequenas comunidades cristãs estavam difundidas por muitas cidades africanas. Isso gerou perseguição e provocou o martírio de muitos cristãos (MAHJOUBI, 2010, p. 538). De acordo com a doutrina islâmica, desde que criou o mundo, Deus teria enviado à terra vários profetas para guiar os homens. Teria enviado pro- fetas como Abraão, Moisés e Jesus para pregar a fé em um Deus único, que era proferida através de escrituras elaboradas com mensagens enviadas dire- tamente pela divindade. No ponto de vista dos islâmicos, Maomé teria sido o último profeta enviado pelo criador para essa tarefa. Para os muçulmanos, tanto os judeus (que seguiam as escrituras geradas por Moisés) quanto os cristãos (que seguiam os ensinamentos de Jesus) eram considerados possui- dores de uma parte da verdade revelada, já que a intenção de Deus era, desde sempre, levar a humanidade à veneração de um único Ser Supremo. O islã venera todos os profetas anteriores a Maomé, pois são reco- nhecidos como emissários da vontade de Deus. Contudo, Moisés e Jesus – 45 – África Antiga teriam desvirtuado as mensagens originais e Maomé teria sido enviado para retomar a mensagem original e reconduzir os homens, ao monote- ísmo universal e autêntico, o islã. De acordo com a doutrina do islã, Jesus é apenas um mero mortal, apesar de seu nascimento ter sido planejado por Deus como um milagre. A mãe de Jesus, a Virgem Maria (também conhe- cida como Nossa Senhora Míriam) desfruta de imenso respeito no mundo islâmico (EL FASI e HRBEK, 2010, p. 40). O islã não é apenas uma religião, mas sim um modo de vida que abarca por completo todas as esferas da vivência humana. O islã está repleto de ditames adequados a todas as conjunturas da vida: sociais e individuais, nacionais e internacionais, morais e materiais, econômicas e políticas (AHMAD24, 1976, p. 37, citado por EL FASI; HRBEK, 2010). Após a morte de Maomé, houve um período de incertezas sobre quem seria seu sucessor à frente da comunidade islâmica. Ao longo da vida, em várias ocasiões Maomé recomendou a “consultoria” (shurā25) como o sistema mais adequado de governo para a comunidade islâmica. Por isso, após seu falecimento, os primeiros que o sucederam foram escolhidos por eleição e receberam o nome de “califas”. Após o assassinato do terceiro califa, as discórdias, os conflitos e os desacordos impulsionaram a criação de várias seitas. Alguns muçulmanos estavam convencidos de que o califado (que eles preferiam denominar de imamado) deveria continuar na família de Maomé. Esse grupo defendia que o imamado devia ficar nas mãos de “Ali e de seus descendentes”, pois Ali era marido de Fátima, a filha de Maomé. Os partidários de Ali foram chamados de “o partido de ‘Ali” (Shī’atu ‘Ali). A frase “Shī’atu ‘Ali” inspirou o nome xiitas – dado pelos europeus islâmico (EL FASI; HRBEK, 2010, p. 54). Os embates entre os muçulmanos tiveram fim com a declaração da supremacia da ortodoxia – o sunismo - que reagrupou aqueles que aderi- ram à sunna26 (a via do Profeta). Os sunitas constituem atualmente mais 24 AHMAD, K. (1976) - Islam, Its Meaning and Message (London: lslamic Council for Europe). 25 A consultoria (shurā) é um sistema semelhante ao que atualmente chamamos de democracia. 26 A palavra árabe “Suna” significa ‘caminho trilhado’. “Suna do profeta” significa ‘os caminhos trilhados pelo profeta’, ou aquilo que é costumeiramente conhecido como ‘Tra- dições do Profeta’. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 46 – de 90% da população muçulmana mundial. As diferenças entre as doutri- nas islã sunita e islã xiita são: as leis sunitas têm a sua fonte no Corão, o hadīth27 do Profeta, o consenso da comunidade e a analogia. Já os quatro alicerces da lei xiita são: o Corão, os hadīth do Profeta e dos imames, o consenso dos imames e a razão. Os xiitas realizam a peregrinação à Meca, mas preferem ir a Nadjaf e Kerbelā, no Iraque. visitar os túmulos de ‘Ali e do seu filho Husayn’ (EL FASI; HRBEK, 2010, p. 56). Com os séculos o islamismo se difundiu pela África, como se pode ver na figura 2.7, que mostra apenas a distribuição do Islamismo na região norte da África nos anos 1980 (ao sul também existem muçulmanos, espe- cialmente na África do Sul). Figura 2.7 – Islamismo na África Fonte: adaptada de Islam in Africa Map. 27 É um grupo de leis, histórias e lendas sobre a vida de Maomé e os próprios dizeres nos quais ele ofereceu conselhos ou justificou as suas escolhas. – 47 – África Antiga 2.6 O deserto do Saara e sua importância na ocupação do território africano No deserto do Saara, a ar seco e a ausência de água transformam as pastagens em ambientes muito espalhados e fazem com que os palmei- rais e os centros de jardinagem se mostrem ínfimos (excluindo o Saara setentrional). Estas condições cooperaram para tornar a população deste deserto pouco numerosa, além de converterem as grandes áreas saarianas em territórios inteiramente despovoados, com poucas exceções. Porém, o Saara não simbolizava apenas uma barreira, significava também uma ligação entre o Sudão e os países da África Setentrional. O Saara cumpria um importante papel nas relações entre o Norte e o Sul – sobretudo nas relações comerciais. As rotas das caravanas que cora- josamente atravessavam o deserto eram infrequentes e penosas. Na época muçulmana, essas rotas eram frequentadas por comerciantes oriundos do Magreb, do Egito e dos centros comerciais do Saara Setentrional. Os negociantes egípcios e norte-africanos – juntamente com os comerciantes berberes ibaditas – eram os principais negociantes neste comércio entre os países do Norte da África e o Sudão (LEWICKI, 2010, p. 328). O deserto foi conquistado pelo cavalo, antes do camelo. O período “equidiano’’ manifesta-se primeiramente pelo uso de carros. Não há cer- teza de quando eles desapareceram, mas segundo Heródoto, os garaman- tes28 ainda os usavam. No Saara, as representações de carros são muito comuns (SALAMA, 2010b, p. 580). Os trajetos saarianos utilizado pelos cavalos, atrelados a carros ou não, demandavam transporte de um grande suprimento de provisões ou a existência de um sistema de bebedouros (desenvolvido pelos garamantes). O camelo só apareceu na África saariana mais tarde. O camelo não era visto no Egito até os séculos V e IV antes da Era Cristã (períodos persa e helenístico). Acredita-se que sua propagação pelo Saara tenha ocorrido a partir do baixo vale do Nilo, mas ainda há controvérsias a respeito do tema (SALAMA, 2010b, p. 582). Observe a localização do deserto do Saara na figura 2.8: 28 Viveram entre 500 a.C. a 700 d.C. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 48 – Figura 2.8 – Deserto do Saara Fonte: elaborada pela autora. Do século II ao século VI, a população do Saara era composta de ele- mentos muito diferentes. O oeste e o centro do Saara eram habitados pelos povos de ascendência berbere, muitas vezes mestiçados com o sangue dos negros africanos. A sua porção setentrional do Saara oriental (deserto líbio) era ocupada por indivíduos de origem berbere, mas a sua parte meri- dional era povoada pelos povos negroides (grupos tubu). Também não faltavam árabes, dentre os quais se encontravam elementos citadinos e pastores nômades (LEWICKI, 2010, p. 328). – 49 – África Antiga Quatro oásis do deserto líbio (Khārja, Dākhla, Farāfra e Bahriyya), formavam, desde a conquista árabe do Egito, um pequeno Estado muçul- mano. Além dos berberes, havia neste “país dos oásis” uma abundante população cristã de origem copta29, assim como nômades árabes. Várias vias interligavam o “país dos oásis” às diversas cidades do Egito e ao oásis de Sīwa. Um trajeto de dez dias a pé ligava o oásis de Bahriyya ao oásis de Sīwa, (que do século IV ao século VI, era a conexão de todas as rotas ocidentais). A rota mais importante ligava Santarīya ao Egito, ao Magreb e ao Kawār (LEWICKI,2010, p. 333). No Saara Setentrional há poços d’água e belíssimos oásis. Nas fron- teiras das áreas de cultivo destes oásis (sobretudo nos palmeirais), encon- tram-se vilarejos fortificados. Os oásis do Saara setentrional podem ser divididos em três grupos: os orientais, região de poços artesianos reunidos na base do Monte Atlas; os oásis ocidentais, que são irrigados e formam uma faixa de aproximadamente 1.200 quilômetros; e ainda um terceiro grupo de oásis, o Mzāb, localizado a meio caminho entre estes dois grupos (LEWICKI, 2010, p. 347). Todos esses oásis foram de extrema importância para a locomoção dos grupos humanos que se aventuravam pela árida região. As rotas for- madas entre eles constituíam uma importante rede comercial que unia o norte ao sul da região. Sem a presença desses oásis, certamente, a mobili- dade na região não seria possível. 2.7 A costa oriental da África e seu papel no comércio marítimo A maior característica da costa oriental da África é a facilidade de acesso a essa região, tanto através das terras continentais como através do mar. A acessibilidade pelo interior foi, inclusive, fator essencial para o sucesso das migrações em direção à região costeira (SHERIFF, 2010, p. 607). A figura 2.9 mostra a região da África Oriental: 29 Os coptas são egípcios cujos ancestrais adotaram o cristianismo no século I. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 50 – Figura 2.9 – África Oriental Fonte: elaborada pela autora. A região litorânea da África oriental é margeada a oeste por uma zona de vegetação arbustiva seca (denominada nyika), que se desdobra muito contígua à costa no Quênia e se distende para as áreas internas da Tanzâ- nia, onde é fragmentada pela margem leste das montanhas e pelas bacias dos rios Rufigi, Ruaha e Pangani. Os deslocamentos de população possi- velmente seguiram caminhos onde o meio ambiente era mais propício, em torno ou através da nyika (SHERIFF, 2010, p. 611). Vestígios arqueológicos mostram que, durante os primeiros séculos da Era Cristã, populações que utilizavam o ferro (provavelmente de língua bantu) se infiltraram de maneira acelerada no interior da região da costa. É bem possível que esse povo, vindo do sul, tenha ocupado as regiões de – 51 – África Antiga South Pare e Kwale. Em seguida, na metade do primeiro milênio, é plau- sível que tenham prosseguido até a região de Kilimandjaro. Durante sua expansão, devem ter assimilado as populações litorâneas que os haviam antecedido (SHERIFF, 2010, p. 612). Não há muita certeza de como era a sociedade ou a economia desses povos que viveram na costa oriental da África antes do estabelecimento dos pactos comerciais internacionais. Talvez eles fossem agricultores, mas não há muita informação sobre a história da costa africana oriental antes do século VII da Era Cristã. Todas as fontes que temos a disposição – tanto documentais quanto numismáticas30 – são produto do comércio interna- cional e não temos quase nada sobre o período anterior à instituição dos contatos internacionais. A fonte mais preciosa sobre o oceano Índico durante essa época e o primeiro relato direto a respeito da costa africana oriental é o Periplus Maris Erythraei (Périplo do Mar da Eritreia31). O documento parece ter sido escrito por um agente comercial grego instalado no Egito que ficou incógnito. O Périplo indica com clareza que a pesca exercia um papel essencial na economia desses povos. A população parece ter sido basica- mente costeira. Eles usavam canoas escavadas em troncos e outros barcos miúdos, mas nada indica que possuíssem embarcações de altomar (SHE- RIFF, 2010). É provável que a população da costa da África oriental apresentasse um nível bem baixo de desenvolvimento tecnológico e sociopolítico antes da implantação dos laços comerciais internacionais. Assim, quando as relações do comércio internacional se consolidaram, a iniciativa ficou com os marujos originários das margens norte do oceano Índico, com todas as implicações daí vinculadas (SHERIFF, 2010, p. 612). A passagem por terra tornou a costa leste da África parte integrante do continente africano. Já o acesso pelo oceano fez da África oriental o centro de uma extensa história de relações comerciais, de influências cul- turais e de movimentos de povos provenientes das margens do oceano 30 moedas e medalhas. 31 Mar da Eritreia era o termo empregado pelos geógrafos greco-romanos para denominar o oceano Índico, ao menos desde a época de Heródoto no século V a. C. Geografia Afro-brasileira e das Sociedades Indígenas – 52 – Índico. Até o século VII, a história da parte oeste do oceano Índico é a narrativa do intercâmbio entre a África oriental e o Oriente Médio e entre o Oriente Médio e a Índia. Inclui também a história do papel exercido pelo Oriente Médio como mediador entre o Mediterrâneo e o oceano Índico (SHERIFF, 2010, p. 613). O atributo geográfico mais importante do oceano Índico é a inversão sazonal dos ventos de monção. Durante o inverno da região norte, a mon- ção vinda do nordeste sopra de modo ininterrupto e atinge Zanzibar. Sua intensidade atenua para o sul e poucas vezes é regular além do cabo Del- gado. Esse sistema de circulação é avigorado pela corrente vinda do equa- dor que, depois de alcançar a costa da Somália, ruma para o sul, promo- vendo a viagem das embarcações a partir do litoral da Arábia. Os barcos árabes tinham a possibilidade de abandonar seus portos de partida no fim de novembro, mas a maioria saia no início de janeiro, quando a monção ficava inteiramente configurada. A viagem se prolon- gava por cerca de vinte a vinte e cinco dias. Em março, quando a monção de nordeste começava a decair, o declínio ocorria mais cedo no sul, pois a África oriental se acha nas margens do sistema de monções. Em abril o vento muda, modificando-se em monção de sudoeste. A corrente equatorial alcança a costa adjunta ao cabo Delgado e se decom- põe numa corrente forte que se conduz para o norte, favorecendo a viagem nessa direção, e numa outra corrente que segue para o sul, atrapalhando a saída do canal de Moçambique. Esse era o ponto de partida das embarca- ções do leste da África (SHERIFF, 2010, p. 613). De meio de maio a meados de agosto – ocasião em que há muitas tem- pestades que atrapalham a navegação no oceano Índico – havia uma interrup- ção nos traslados. Se os acordos comerciais pudessem ser findados em tempo útil, os barcos partiam no mês de abril, quando se desenvolvia a monção. Se os acordos comerciais não pudessem ser concluídos em tempo hábil, os barcos partiam no mês de agosto, com o final da monção (SHERIFF, 2010, p. 614). A dimensão espacial do sistema de monções e o bom aparelhamento do comércio na África oriental permitem inferir sobre as atividades roti- neiras das embarcações que navegavam nas monções. Sabe-se que havia uma organização comercial simples, mas que possibilitava atividades de – 53 – África Antiga escambo entre as cidades-mercado e as embarcações forasteiras. Há indí- cios de que os barcos oriundos da região norte não prosseguiam muito além de Zanzibar (ao sul). Foi apenas durante o período medieval que se fixou em Kilwa um entreposto organizado com o intento de explorar de forma mais eficaz as costas meridionais (SHERIFF, 2010, p. 614). Os depoimentos históricos mais remotos acerca da porção oeste do oceano Índico indicam que não havia qualquer relação comercial entre a Índia e a África oriental em épocas anteriores ao século VII a. C. Na época em que o Périplo foi escrito, o comércio entre o Oriente Médio e a Índia parece ter se restrito a alguns artigos de luxo. Parece que, excetuando algumas mercadorias preciosas e o ouro, a Índia era quase autossuficiente, especialmente em se tratando de matérias-primas advindas da “floresta” – ingredientes que o leste da África poderia ter fornecido. Nesse período, a Índia, ao invés de adquirir produtos da África, exportava marfim intensa- mente. Essa atividade, que era
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