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Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 1 INJUSTIÇA OU VONTADE DE DEUS? RELIGIÃO POPULAR E EXPLICAÇÕES CRISTÃS PRIMITIVAS DA DESIGUALDADE ECONÔMICA Steve J. Friesen Universidade Metodista de São Paulo Outubro de 2018 Esta exposição tem como tema religião popular e pobreza. Ela explora a gama de avaliações religiosas para a desigualdade econômica entre os primeiros cristãos como parte do fenômeno mais amplo que chamamos de religião popular no Império Romano. Contudo, no centro da análise está uma citação perturbadora de um clérigo brasileiro — Dom Hélder Câmara. Refletindo sobre seu ministério, Câmara certa vez observou: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que os pobres não têm comida, me chamam de comunista”. Esse comentário destaca o problema fundamental em minha análise. A desigualdade econômica é uma questão de sofrimento pessoal ou injustiça estrutural? Essa é uma velha pergunta humana, que podemos observar na antiga religião popular, assim como no ativismo moderno. No entanto, o estudo da religião popular no Império Romano enfrenta um desafio fundamental. Queremos estudar o populus — o povo —, porém temos pouca evidência da maioria dele. Como o estudamos quando existem tão poucos dados? A tendência entre os estudiosos parece ser ignorar o problema. Nos concentramos nas fontes existentes e analisamos as ideias nessas fontes. Há muitos problemas com essa abordagem. O principal deles é que os dados existentes são oriundos principalmente de fontes da elite e, assim, nossa imagem do mundo antigo privilegia uma pequena fração elitizada dele. Nosso foco em ideias apresenta um problema adicional. Quando nos concentramos em ideias, descartamos facilmente as preocupações materiais do populus antigo e negligenciamos as preocupações econômicas da religião popular. Nesta palestra, sugiro um caminho a seguir. Não pretendo resolver o problema das evidências perdidas do mundo antigo, tampouco o problema de descrições idealistas da religião. Mas afirmo que podemos fazer uma pesquisa melhor. Eis aqui minha sugestão. Ela contém duas partes. Em relação ao problema da falta de evidências, precisamos construir modelos para a população como um todo, Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 2 modelos que incluam a todos, modelos que contextualizem o pequeno número de vozes da elite antiga que dominam as evidências. Quanto ao problema de focar apenas em ideias, ofereço esta proposta. Escolhamos tópicos de pesquisa que vão além de ideias e que analisem aspectos materiais da religião. Nos concentremos nas coisas que são de interesse para o populus antigo e que nos levem além de preocupações teológicas, fenômenos religiosos que sejam tangíveis, materiais e pragmáticos. Assim, nesta palestra eu me atenho ao tema da desigualdade econômica. O que nossas fontes antigas dizem sobre a pobreza e sobre os ricos ao extremo? Esse é um assunto de interesse para o antigo populus tanto quanto o é para todos nós hoje. Mas, para isso, precisamos de um modelo de estratificação econômica que leve a todos em consideração. Termos vagos como “elite” são insuficientes se não descrevemos todos os demais — “os não-elite” — em nosso modelo. E termos como “religião popular” são insuficientes se não descrevemos onde ficam essas práticas em relação umas às outras e à religião da elite. Eu ataco esses problemas em duas etapas. Primeiro, exponho um modelo para a desigualdade econômica no Império Romano. Uma vez tenhamos descrito a estratificação antiga, eu passo para a segunda etapa, que é analisar antigas explicações cristãs sobre a desigualdade econômica. O que os primeiros cristãos pensavam sobre a pobreza? De onde eles diziam que ela se originava e o que diziam que deveríamos fazer a respeito? No final da exposição, espero convencê-los de que não havia uma explicação sobre a pobreza entre os cristãos antigos. Antes, havia uma discussão em curso, uma discussão dentro da religião popular que ressoa em nossas preocupações no início do século 21. Quanta desigualdade havia no antigo Império Romano? Quando voltamos nossa atenção especificamente para a desigualdade econômica no Império Romano, há dois fatores fundamentais a serem lembrados. Primeiro, como os historiadores econômicos apontam, a economia imperial romana era pré-industrial. A grande maioria das pessoas trabalhava na agricultura (80-90%), e havia relativamente pouca atividade comercial ou manufatureira em larga escala. Em uma economia agrícola avançada como essa, seria de se esperar que muitas pessoas vivessem próximas ao nível de subsistência. Em segundo lugar, não havia classe média no Império Romano. Havia algumas pessoas com renda intermediária, mas nenhuma classe média estrutural clara. Como a economia era basicamente agrícola, a riqueza era baseada na propriedade da terra. A maioria das terras era controlada por um pequeno número de famílias ricas da elite. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 3 Essas famílias ricas recebiam aluguel e produção dos agricultores de subsistência ou escravos que de fato trabalhavam na terra. Com sua riqueza e status, essas famílias podiam controlar a governança local e regional, o que lhes permitia lucrar também com a tributação e com as políticas governamentais. Essas mesmas famílias ainda controlavam a religião pública. Tendo isso em mente, trabalhei com o historiador econômico Walter Scheidel, da Universidade de Stanford, para desenvolver um modelo que nos ajudasse a pensar sobre a estratificação. Explicarei o básico aqui e, caso queiram mais detalhes, vocês podem consultar o nosso artigo no Journal of Roman Studies (2009). Primeiramente, criamos categorias para os níveis de renda no Império Romano, e é isso que vocês veem na coluna da esquerda. Esses são os níveis de renda de uma família hipotética de quatro pessoas. As famílias provavelmente eram mais numerosas que isso, mas o número exato não importa para um modelo abstrato como esse. Se houvesse mais pessoas em uma família, por exemplo 8 pessoas, a quantidade necessária por pessoa seria a mesma. Os números da coluna estão em milhares de sestércios — 1.000-2.000, 2.000- 3.000 etc. A maioria das pessoas teria vivido abaixo de uma renda de 6.000 sestércios, porque 6.000 sestércios era o nível mínimo que um homem precisava para servir no governo da cidade. Depois nós trabalhamos em uma estimativa da economia anual do Império Romano. O que vocês veem na tela, no topo da coluna do meio, é a estimativa otimista. Se a economia romana estivesse desempenhando o nível máximo de uma economia agrícola avançada, o que ela poderia produzir? A resposta é cerca de 19 bilhões de sestércios. Nós também chegamos a uma estimativa pessimista, mas não nos preocupemos com isso ainda. Iremos nos concentrar no melhor cenário possível. Havia também pessoas que viviam abaixo do nível de 1.000 sestércios por ano. Então aqui vocês veem níveis abaixo disso. Aqui tivemos que criar mais categorias, porque muitas pessoas viviam nesses níveis. Portanto, os níveis inferiores com fundo cinza são 250 sestércios cada. Agora podemos acrescentar algumas descrições na coluna à direita. O número importante é 572 sestércios. Essa é a renda necessária para quatro pessoas sobreviverem. Seria uma existência muito difícil, mas eles podiam sobreviver. Então vocês podem adicionar outras descrições — quanto seria necessário para sustentar animais alimentados com capim, quanto para animais alimentados com grãos etc. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 4 Podemos preencher as porcentagens da população na coluna do meio usando perfis populacionais padrão desenvolvidos pelos historiadores econômicos. Mas antes de fazermos isso, tenham em mente um ponto importante.Temos que ter porcentagens que correspondam à produção total da economia. Em outras palavras, você tem que ter 100% da população distribuída para que a renda dela corresponda à produção econômica total. Se você colocar muita gente na categoria de elite, não haverá mais dinheiro para mais ninguém e todos morrerão de fome. E se você colocar pouquíssimas pessoas na categoria inferior, todas as demais têm que obter quantias impossíveis de renda. Portanto, o truque é criar uma distribuição sistemática de pessoas para que suas rendas correspondam ao desempenho da economia. Agora podemos começar a preencher as porcentagens da população na coluna do meio, e os números exigem de nós a conclusão de que 70-75% das pessoas viviam na ou logo acima da subsistência. Em dado momento, talvez 10% da população estivesse em crise ou próximo da crise. A faixa de renda de 1.000-6.000 sestércios define o intervalo que inclui pessoas às vezes chamadas de “intermediárias” e “subelites”. Esses intermediários e subelites representavam cerca de 15% da população. Finalmente, incluamos as famílias da elite. Aqui os rendimentos aumentam rapidamente, tão rapidamente que não há espaço na tabela para eles. Portanto, essas categorias incluem 20 das categorias inferiores, ou 50, ou 100. As categorias refletem as restrições legais para a entrada na classe decúria, na classe equestre e na classe senatorial. Mas as famílias da elite poderiam ter rendimentos muito maiores. Por exemplo, podemos estimar a renda anual de Plínio o Jovem com base nas descrições de suas propriedades. Sua renda teria sido bem acima do nível 600, em algum lugar acima de 1 milhão de sestércios por ano. Essas famílias muito ricas compunham cerca de 1,5% da população, mas controlavam talvez um terço da renda do Império, como mostra esse slide. Essa é a mesma quantidade de renda controlada pelos próximos 10% da população, o que deixava algo em torno de metade da renda do Império para cerca de 90% da população. Agora podemos começar a perceber a desigualdade econômica no Império Romano. Se vocês não estiverem impressionados, lembrem-se de que esse é o cenário otimista. Se a economia romana tivesse um desempenho ruim como economia agrícola avançada, temos um cenário pessimista que se parece mais com isto. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 5 Esse tipo de modelo econômico imperial é bastante abstrato. Então, permitam- me acrescentar um tipo diferente de comparação — uma comparação da qualidade de vida. Neste gráfico, selecionei nove países modernos como exemplos. A informação provém do Banco Mundial e da Agência Central de Inteligência dos EUA. Eu os listei em ordem de Renda Nacional Bruta para 2017, padronizada em dólares internacionais para que possam ser comparados. Dólares internacionais não se comparam bem aos sestércios romanos, mas não nos preocuparemos com isso agora. Estou mais interessado nas outras comparações que podemos fazer em relação à qualidade de vida, tais como as populações urbanas. Esta coluna mostra que as economias modernas são bem diferentes. As populações rurais em muitos países hoje estão abaixo de 20%, mas no Império Romano a população rural representava mais de 80% da população. Uma comparação das taxas de fertilidade também é instrutiva. Esta tabela mostra quantos partos uma mulher tem se ela viver até a idade da menopausa. A saúde e a experiência das mulheres eram muito diferentes no Império Romano do que na maior parte do nosso mundo. Os partos por mulher caíram abaixo de três na maior parte do mundo contemporâneo devido à medicina moderna e à contracepção efetiva. Mas, no Império, as mulheres que viviam até o fim da idade fértil teriam precisado dar à luz de 6 a 9 crianças para manter a população. Essa alta taxa de fertilidade estava parcialmente relacionada às expectativas de vida. As expectativas de vida modernas estão agora acima dos 70 anos em muitos lugares do mundo, logo uma expectativa de vida para o Império Romano em 20-30 anos é chocante. Mas esse número também é um pouco enganoso. A mortalidade infantil era muito maior antes do desenvolvimento da medicina moderna, com cerca de 20 a 30% das crianças morrendo no primeiro ano de vida. Na realidade, a infância é um período muito perigoso e, sem a medicina moderna, cerca de 40-50% das crianças teriam morrido antes dos 10 anos. Então, para o Império Romano, se você pensar em crianças que sobrevivem à infância — crianças que vivem até os 10 anos de idade —, a expectativa de vida para essas pessoas era de aproximadamente 45 anos. Por isso acrescentei “(45)” a essa coluna. As duas últimas colunas são difíceis de comparar com o Império Romano, porque não temos como estimar essas coisas e porque os países modernos usam diferentes definições de pobreza. Mas essas duas últimas colunas nos lembram de características importantes da desigualdade econômica. A última coluna também confirma que o nosso modelo para o Império Romano é plausível. Mesmo em uma Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 6 economia moderna, há lugares onde grande parte da população vive próxima da subsistência. Para finalizar esta seção, precisamos lembrar que a desigualdade econômica não é simplesmente uma questão de quanta renda se possui. Essas desigualdades são criadas pela sociedade e mantidas pela sociedade por meio de sistemas legais, por meio de sistemas judiciais, por meio da propriedade, por meio do controle do trabalho e, por vezes, por meio da força bruta. Outros fatores incluiriam pelo menos gênero, etnia, linhagem familiar (comum ou nobre), status legal (escravo, liberto ou pessoa nascida livre), ocupação, educação e patronato. Como todas as sociedades, o Império desenvolveu mecanismos para manter a desigualdade, assim como o fazem todas as chamadas sociedades civilizadas. Agora que expus um modelo para a desigualdade econômica no Império Romano, podemos examinar quatro textos que nos dão diferentes avaliações da desigualdade, textos que perguntam de onde ela vem e o que as pessoas devem fazer a respeito. Os quatro textos são Apocalipse, Tiago, Atos dos Apóstolos e o Pastor de Hermas. Eu chamaria os quatro textos de obras da literatura popular e de exemplos da religião popular. Mas não encontramos certa atitude monolítica em relação à desigualdade econômica. Em vez disso, os textos fornecem uma percepção de uma discussão que ocorre em um setor da religião popular. Eles nos lembram de que a religião popular não é uma entidade homogênea. A cultura popular é um reino no qual há discussões. Vamos, então, analisar os contornos de uma discussão sobre desigualdade e pobreza em alguns discursos cristãos primitivos. Apocalipse de João: a religião popular contra os sistemas imperiais O Apocalipse de João apresenta uma crítica causticante do imperialismo romano como a fonte da injustiça e da pobreza. O texto começou a circular no final do primeiro século EC entre igrejas urbanas no oeste da Ásia Menor (atual Turquia). O autor descreveu o imperialismo romano como um sistema de blasfêmia, arrogância e engano: as elites imperiais colaboram com membros das aristocracias locais para levar as massas à conformidade. Isso é religião popular em oposição à religião de elite. Dois textos nos ajudam a entender melhor a crítica. O primeiro texto é a visão das duas bestas em Apocalipse 13. A primeira metade da visão revela uma besta do mar que claramente representa o imperialismo romano. Essa monstruosidade imperial de sete cabeças e dez chifres recebe autoridade satânica para blasfemar e conquistar. A besta conquista o mundo, derrota os santos e é adorada por todo o mundo. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 7 A segunda metade da visão de Apocalipse 13 preenche a descrição do sistema romano de desigualdadeintroduzindo uma segunda besta, a besta da terra. Essa besta significa as aristocracias locais que exercem a autoridade da primeira besta1. Essa segunda besta engana e força o mundo à submissão. A população deve adorar Roma ou morrer, de acordo com João. De modo significativo, diz-se que a segunda besta controla a economia local para Roma. Observe Apocalipse 13:16-17: “Faz também com que todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e escravos recebam uma marca na mão direita ou na fronte, para que ninguém possa comprar ou vender se não tiver a marca, o nome da Besta ou o número do seu nome”. Na religião popular moderna, essa marca da besta — 666 — tornou-se objeto de especulação de contínua profecia. Na antiga religião popular, no entanto, nenhuma especulação era necessária. As duas bestas estavam envolvidas na guerra de classes contra o povo de Deus. Um segundo texto explica especificamente o sistema econômico de exploração no centro dessa dominação militar. Em Apocalipse 18, o autor leva o leitor por de uma série de oráculos e lamentos que desconstroem o sistema romano de desigualdade. Quatro conjuntos de participantes são mencionados: Babilônia a rainha; os reis da terra; mercadores e transportadores; e os “povos da terra”. Babilônia a rainha é outra imagem para Roma, e a rainha manipula cada uma das outras figuras de maneiras diferentes. Seu relacionamento com os reis da terra é chamado de prostituição (πορνεῖα, 18:9), um jogo de poder e pagamento. Com os mercadores e transportadores, no entanto, a questão é apenas o pagamento. Quando a rainha é destruída, os lamentos deles são apenas por suas perdas financeiras (18:16-19). De acordo com o Apocalipse, a população em geral — os povos da terra — também está envolvida nesse sistema de exploração comercial e política, mas seus motivos são diferentes. Eles foram embriagados pelo vinho da rainha (18:3) e enganados por suas poções e feitiços (18:23). O apelo do Visionário à ação era radical: ele defendia uma total retirada da cultura dominante pelo bem da pureza. Nas palavras do anjo de Apocalipse 18: “Saí dela, ó meu povo, para que não sejais cúmplices dos seus pecados e atingidos pelas suas pragas” (18:4). Assim, João ataca todo o sistema imperial — governo, economia, religião e imposição — e ameaça de sofrimento eterno no lago de fogo. A desigualdade econômica vem do sistema imperial, que é a ferramenta de Satanás. A pobreza vem das instituições de exploração que envolvem imperadores, reis, aristocratas locais, 1 Veja meu capítulo “The Beast from the Earth: Revelation 13:11-18 and Social Setting”. In: BARR, David (ed.). Readings in the Book of Revelation: A Resource for Students. Atlanta: Scholars Press, 2003, p. 49- 64. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 8 comerciantes, companhias de navegação e marinheiros. Esse sistema requer a participação de suas vítimas. Elas são enganadas, amedrontadas ou intimidadas até a submissão. O conselho de João para o povo é se retirar, mesmo que isso exija o martírio, pois o seu sangue será vingado por Deus. A Carta de Tiago: a religião popular contra a exploração local Não sabemos exatamente quando a Carta de Tiago foi escrita2. Para nossos propósitos, é suficiente reconhecer que ela provém da última metade do primeiro século EC e se destinava à ampla circulação. O conteúdo em geral se concentra no tema da vida correta: confie em Deus completamente, aja com justiça, mantenha sua vida pura e cuide daqueles que sofrem. Enquanto o Apocalipse se opunha a um sistema imperial, esse texto da religião popular se concentrava mais em indivíduos gananciosos locais e em seu sistema de status. Podemos ver isso examinando duas seções da carta. A primeira é Tiago 2:1-7, em que o autor criticou o sistema de status dominante. Tiago descreve uma situação hipotética em que dois homens visitam a assembleia dos seus leitores. Um cavalheiro da subelite entra vestindo roupas finas e um anel de ouro3. O outro visitante está imundo e desesperadamente pobre, à beira da subsistência, um πτωχός. De acordo com Tiago, se seus leitores agem pelos padrões normais do status social, mostrando honra aos ricos e desrespeito ou negligência aos pobres, então eles estão contradizendo a fé de seu Senhor Jesus Cristo. O propósito retórico do autor nos versículos 1-4 é distanciar sua audiência desse sistema de status baseado na riqueza. O autor afirma que todos devem ser tratados com compaixão. Honra especial para os ricos era errado. Se os crentes participassem daquele sistema de status baseado na riqueza de sua época, eles perpetuariam a desigualdade e se tornariam cúmplices na vitimização dos pobres. O autor então acrescenta um lembrete de que os ricos manipulam o sistema judicial contra a população. 2 Não sabemos exatamente quando essa carta foi escrita, mas provavelmente ela provém da última metade do primeiro século EC. Alguns estudiosos acham que o texto reflete as ideias e a vida de Tiago, o irmão de Jesus, o que o tornaria um dos primeiros documentos do Novo Testamento, enquanto outros pesquisadores o consideram um documento do final do primeiro século. Aqueles que adotam uma data tardia tendem a considerar o autor como um escritor anônimo que reivindica a autoridade de Tiago. 3 O anel de ouro poderia indicar um membro da ordem equestre, mas isso é improvável; JOHNSON, Luke Timothy. The Letter of James. New York: Doubleday, 1995 (Anchor Bible 37A), p. 221. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 9 Ora, não são os ricos que vos oprimem, os que vos arrastam aos tribunais? Não são eles os que blasfemam contra o nome sublime que foi invocado sobre vós? (Tiago 2:6-7) Assim, Tiago 2 discorda do Apocalipse. A religião popular do Apocalipse presume que as pessoas devem se retirar do império do mal e se opor a ele. Tiago parece pressupor que a religião popular pode funcionar como uma alternativa ao sistema de status da sociedade dominante. Em uma segunda passagem, Tiago 5:1-6, vemos a crítica mais cáustica do autor sobre o sistema econômico. Aqui, Tiago criticou uma característica fundamental do sistema romano de desigualdade: ricos proprietários de terras que exploravam os trabalhadores que trabalhavam em seus campos. Como observado anteriormente, a propriedade da terra era o principal meio pelo qual a minoria da elite gerava e mantinha sua riqueza. Trabalhadores pobres, colonos e escravos geravam a maior parte da produção em troca de salários ou provisões de subsistência. Grande parte do valor do seu trabalho era tomado pelas famílias da elite, que lhes pagavam baixos salários, cobravam aluguel, apropriavam-se de suas colheitas e exigiam deles o pagamento de impostos4. Segundo Tiago, essa prática econômica da elite e das subelites era equivalente ao assassinato. Podemos localizar a audiência de Tiago na escala de desigualdade? O autor pressupõe que não há ricos proprietários de terra nas congregações para as quais ele escreve, uma vez que 5:1-6 fala destes como pessoas de fora. O autor também julga que um homem com o anel de ouro e roupas finas seria incomum, mas não fora de cogitação. Assim, a retórica de 2:1-6 localiza a audiência principalmente entre o homem pobre desesperado à beira da subsistência e o homem da subelite com roupas extravagantes5. Assim, o texto do autor é destinado à população, sobretudo pessoas que vivem próximas ou acima da subsistência, com a possibilidade de alguns visitantes carentes e alguns ricos. Tiago é uma carta sobre religião popular. Em termos de sua análise econômica, essa perspectiva se baseia no mundo conceitual e nos protestos públicos dos profetas de Israel. Há uma preocupação 4 GARNSEY; SALLER,Roman Economy, p. 64-112. 5 O caso dos mercadores arrogantes (PS4 ou talvez 3) é mais difícil de avaliar: o autor fala deles como pessoas de fora ou iniciados (4:14-16)? Talvez sejam de dentro, pois é dito que eles deveriam ter reconhecido a prerrogativa de Deus, mas separar a retórica da realidade é ainda mais difícil aqui do que em outros lugares. Tamez (Scandalous Message, 25) pensa que se tratem de membros da sinagoga; David Hutchinson Edgar (Has God Not Chosen the Poor? The Social Setting of the Epistle of James. Sheffield: Sheffield Academic Press, 2001[JSNT Sup 206], p. 198-99) acredita que não. Para um breve e bom tratamento da situação das audiências, veja BAUCKHAM, Richard. James: Wisdom of James, Disciple of Jesus the Sage. New York: Routledge, 1999, p. 188-190. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 10 especial para com os pobres e desfavorecidos, assim como uma crítica estridente das elites ricas. As raízes dessa crítica profética estão na antiga história das lutas de Israel com suas próprias elites dominantes. Tiago reenfocou essa crítica antiga sobre a opressão contemporânea pelas aristocracias locais do Império Romano. Sua forma de religião popular não condenava o imperador e o sistema imperial. Tiago, em vez disso, denunciou a injustiça local e aconselhou a comunidade a compartilhar seus recursos até que o Senhor dos Exércitos vingasse os clamores dos trabalhadores explorados. Atos dos Apóstolos: a religião popular e um modelo de caridade Nosso terceiro texto representa outra forma de literatura. Já examinamos um apocalipse e uma carta geral, mas em Atos encontramos um escrito histórico que tem fortes interesses teológicos. Os estudiosos concluem que Atos foi escrito no final do primeiro século ou no início do segundo século EC. Os Atos dos Apóstolos ainda estão dentro da categoria de religião popular? Não tenho certeza, pois Atos tenta construir pontes com a sociedade da elite. Talvez possamos discutir isso depois deste paper. Por ora, pressuponho que o texto representa a religião popular, mas que toma algumas posições muito diferentes dos nossos dois textos anteriores em relação à cultura da elite. Por exemplo, tanto Apocalipse como Tiago abraçaram a religião étnica de Israel, que separava sua audiência da sociedade dominante. No caso de Atos, por outro lado, o autor empregou narrativas de viagem e a sequência de eventos para retratar as assembleias em uma jornada longe das raízes judaicas do movimento, longe da periferia do império, na capital imperial, longe do judaísmo e na direção da cultura imperial. Para nossos propósitos, o principal aspecto é que o autor de Atos é omisso sobre a questão da desigualdade econômica. Antes, ele concentrou sua política econômica na caridade, e restringiu a redistribuição econômica entre os crentes a um passado idealizado na igreja de Jerusalém. Quatro observações apoiam essa conclusão6. Primeiro, o autor de Atos não critica nenhuma faceta do sistema romano de desigualdade e não tenta explicar a enorme lacuna entre as elites ricas do imperialismo e todos os demais. Em contraste com nossos dois textos anteriores, o autor de Atos apresenta senadores romanos e oficiais militares romanos — os 6 Para um excelente resumo da interpretação recente, veja PHILLIPS, Thomas E. “Reading Recent Readings of Issues of Wealth and Poverty in Luke and Acts”. CBR, v. 1, p. 231-69, 2003. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 11 impositores do imperialismo — como personagens simpatizantes, como protetores neutros das assembleias nascentes. Em segundo lugar, o autor de Atos organizou sua narrativa para evitar o tema da desigualdade econômica. O autor estava ciente da pobreza nas assembleias e também acreditava que as primeiras assembleias em Jerusalém implementaram algum tipo de redistribuição econômica. No entanto, o autor de Atos retratou o a partilha econômica sistemática apenas como um artefato pitoresco de um passado idealizado (Atos 2:42-45; 4:32-37). A redistribuição econômica ficou limitada no tempo e no espaço às assembleias originais de Jerusalém. Em terceiro lugar, o autor aponta problemas com a redistribuição e adverte contra ela. A ambivalência do autor em relação à redistribuição pode ser vista especialmente em três exemplos importantes na narrativa. Um deles é a história de Ananias e Safira. Após os resumos idealizados do autor sobre a propriedade comunitária entre os crentes em Jerusalém, ele acrescentou uma história que advertia contra a partilha utópica: dois santos — Ananias e Safira — abusam da prática e caem mortos (5:1-11). Um segundo exemplo da ambivalência do autor em relação à partilha de propriedade é o cuidado com as viúvas nas assembleias de Jerusalém (6:1-7). Aqui ele sugeriu que a tentativa de acabar com a desigualdade por meio da propriedade comunitária é dificultada pelo favoritismo étnico e cultural. O terceiro exemplo da tentativa pelo autor de restringir as referências à partilha de propriedade na narrativa é mais drástico: ele suprimiu a história da coleta de Paulo para os pobres nas assembleias de Jerusalém. Para Paulo, a coleta de Jerusalém foi uma parte crucial do seu ministério. A arrecadação construiria pontes entre as suas congregações gentílicas e Jerusalém (2 Co 8:13-15), ajudaria os desesperadamente pobres na igreja de Jerusalém (1 Co 16:1-4; 2 Co 8:10-12) e seria uma expressão material do seu evangelho (Rm 15:25-27; 2 Co 9:13). Embora alguns argumentem que o autor de Atos não sabia sobre a coleta de Paulo, parece claro que a última viagem de Paulo a Jerusalém em Atos 20-26 reflete um relato da sua malfadada tentativa de entregar a arrecadação. O autor tenta reformular a viagem como um esforço de Paulo para chegar a Jerusalém durante o Pentecostes, mas o propósito original da jornada (entrega da coleta a Jerusalém) se mostra através das fissuras: o uso de parte do dinheiro para pagar um voto (21:24) e um discurso que menciona a oferta de Paulo (24:17)7. 7 Dieter Georgi sugere que o autor de Atos não sabia sobre a coleta; Remembering the Poor: The History of Pau's Collection for Jerusalem. Abingdon: Nashville, 1992, p. 122. Joseph A. Fitzmyer, por outro lado, percebe uma consciência da coleta; The Acts of the Apostles. New York: Doubleday, 1998 (Anchor Bible 31), p. 692. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 12 Apesar da importância da coleta para Paulo, o autor de Atos a suprimiu, e a razão para a supressão é minha quarta observação sobre o modelo econômico de Atos: o autor apresenta ofertas pessoais e hospitalidade doméstica (em vez de redistribuição) como o método normal de partilha econômica para as assembleias depois de Jerusalém8. À medida que a narrativa se afasta de Jerusalém, as referências econômicas começam a mudar para a prática da caridade. Em Atos 9, Pedro desce ao litoral e ressuscita Tabita dos mortos, uma mulher que era conhecida por sua assistência às viúvas, por sua caridade. Em Atos 10, Pedro sobe a costa até Cesareia, onde converte Cornélio, o centurião gentio. Cornélio também é descrito como um homem cuja piedade é mostrada na doação de caridade (10:4, 31). Uma vez que a narrativa segue para além da Judeia e Samaria, a mudança da propriedade comunitária para a caridade fica quase completa9. Além da Palestina, o modelo normal para assembleias é a hospitalidade e a caridade. Lídia oferece hospitalidade para Paulo e seus companheiros em Filipos (Atos 16), Jasão providencia alojamento em Tessalônica (17:7-8), e assim por diante10. Assim, o desdobramento da narrativa sugere que o período inicial de redistribuição sistemática em Jerusalém acabou. No longo prazo, as práticas econômicas padrão serão a caridade individuale a hospitalidade doméstica. Em suma, o modelo que permeia Atos é claro. Não há explicação sobre a distribuição desigual de bens, nenhuma crítica às causas sistêmicas da pobreza, nenhuma denúncia da exploração. O texto reconhece que as primeiras assembleias em Jerusalém experimentaram na propriedade comunitária, mas não explica por que fizeram isso. Em vez disso, o autor restringe esses esforços aos primeiros anos do 8 Aqui eu rejeito a ideia de O. F. Nickel de que o autor de Atos deixou de fora a coleta porque ela poderia ter sido considerada ilegal pelos leitores; The Collection: A Study in Paul’s Strategy. London: SCM Press, 1966 (Studies in Biblical Theology 48) p. 148-151; seguido por BARRETT, C. K. A Critical and Exegetical Commentary on the Acts of the Apostles. Edinburgh: T&T Clark, 1994, 1:599. Se essa fosse a preocupação do autor, ele também teria expurgado os relatos da comunidade de bens nas assembleias de Jerusalém. 9 Há uma exceção – a nota peculiar em 11:27-30 de que uma profecia sobre uma fome mundial fez a assembleia de Antioquia enviar uma oferta a Jerusalém com Saulo e Barnabé fazendo a entrega. Uma sugestão da coleta parece estar por detrás dessa história, mas a narrativa em Atos 11 relata uma oferta apenas das assembleias de Antioquia para aliviar as dificuldades em antecipação a uma crise. 10 Em Corinto, Paulo fica com Priscila e Áquila (18:3). Em sua despedida aos anciãos efésios, ele minimiza a partilha, salientando que ele sustentava a si mesmo e a seus colegas de trabalho, e não cobiçava a prata e ouro de ninguém. Paulo apresenta essa prática como modelo para os outros com base nas palavras de Jesus – eles devem sustentar os fracos e dar ao invés de receber (20:33-35, em que uma palavra dominical sobre a partilha se torna a legitimação da autossuficiência!). Em Jerusalém, Paulo alude à coleta como sua esmola e ofertas para a sua nação (24:17). Naufragado em Malta, uma família proeminente local o acolhe e lhe dá ofertas quando ele sai (28:7-10), e então finalmente a narrativa termina com Paulo aparentemente pagando suas próprias custas em prisão domiciliar, em Roma (28:30-31). Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 13 movimento em Jerusalém. Para além desse período inicial, o texto recomenda que os casos de necessidade econômica sejam tratados por meio de hospitalidade e caridade. Nos termos de Dom Hélder Câmara, o autor de Atos defende a caridade para com os famintos, mas não pergunta por que as pessoas estão com fome. O Pastor de Hermas: a religião popular a serviço das elites O Pastor de Hermas provavelmente foi escrito algumas décadas após os outros três textos sob consideração. As visões no texto parecem vir de um único autor durante a primeira metade do segundo século EC, com a forma final do texto tomando contorno em meados do segundo século11. Assim, os quatro modelos que estou desenvolvendo aqui lidam com várias décadas e locais diferentes. Eles não formam uma trajetória linear nem um desenvolvimento de ideias sobre as origens e o significado da pobreza. Antes, os textos ilustram quatro maneiras pelas quais as primeiras assembleias avaliaram a desigualdade econômica em torno delas. No Pastor de Hermas, a riqueza é descrita como um dom de Deus (Sim 1.9; 2.10; Mand 2.4-5). Entretanto, o dom da riqueza não é uma bênção pura, e precisamos estar cientes da complexidade do tema em Hermas. A riqueza também pode trazer dificuldades, tais como a renúncia da fé (Sim 1.4-5), a distração que leva à fraqueza espiritual (Sim 2.5; Mand 10.1.4) e a tentação de evitar a perseguição (Vis 3.6.5-7). Assim, a riqueza é uma bênção ambígua em Hermas e deve ser usada adequadamente12. A Similitude 2 de Hermas trabalha o papel da riqueza na vida das igrejas, e faz isso de uma maneira que realmente dá crédito aos ricos pelas realizações dos pobres. 11 O Pastor de Hermas é um apocalipse, mas possui características literárias que o distinguem do Apocalipse de João. Hermas é muito mais longo que o Apocalipse, e o caráter das visões também é bem diferente. Enquanto o Apocalipse é cheio de símbolos apocalípticos fantásticos, Hermas tende a relatar visões mais tranquilas que funcionam como alegorias. O Apocalipse raramente explica seus símbolos, mas em Hermas os significados das visões são quase sempre declarados claramente. Em contraste com o Apocalipse, em que as visões tendem a lidar com política, religião e economia, as alegorias visionárias em Hermas frequentemente lidam com questões de teologia e moralidade pessoal. O texto provavelmente provém de Roma; OSIEK, Carolyn. Shepherd of Hermas. Minneapolis: Fortress, 1999 (Hermeneia Commentaries), p. 18-20. 12 Osiek menciona três textos em Hermas que falam sobre a remoção da riqueza; Rich and Poor in the Shepherd of Hermas: An Exegetical-social Investigation. Washington, D.C.: Catholic Biblical Association of America, 1983 (Catholic Biblical Quarterly Monograph Seriess 15), p. 51-52. Um dos textos trata principalmente com a possibilidade de que as posses façam com que alguém ceda à perseguição dos crentes (Vis 3.6.5-7). Os outros dois são enigmáticos e não concordam com o ensino geral em Hermas (Sim 9.30.5; 9.31.2). Esses dois podem indicar que os indivíduos ricos, cujas riquezas são uma tentação, devem se livrar de sua riqueza, com a implicação de que aqueles que não são tentados não precisam renunciar às riquezas. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 14 Similitude 2 pega a prática agrícola de usar olmos novos para apoiar videiras e a compara às relações de ricos e pobres nas assembleias. Na tela, vocês veem exemplos de como isso funciona. Uma árvore e uma videira crescem juntas, e então a árvore é formada para sustentar a videira. Em Hermas, o olmo simbolizava os ricos e a videira simbolizava os pobres. De acordo com a interpretação do pastor, o olmeiro (= o rico) apenas parece ser infrutífero. Se o olmo sustenta a videira (= o pobre), a videira é capaz de produzir frutos porque está fora do solo e pode extrair umidade do olmo em épocas de seca13. “E assim, quando a videira se liga ao olmo, produz fruto tanto de si mesma como por causa do olmo. E assim vedes que o olmo também dá muitos frutos — não menos do que a vinha, mas sim mais” (Sim 2.3b-4a). Esse modelo, portanto, é bem diferente de Apocalipse e Tiago, que retratam os ricos como opressores. Também é mais extremo do que Atos, em que os ricos têm um lugar nas assembleias. Aqui em Hermas, os ricos recebem crédito por produzir os frutos, embora os pobres realmente façam a produção. O chamado à ação em Hermas é significativamente diferente daquele de Atos. Ambos os textos pregam caridade e não a mudança estrutural. A diferença é que, enquanto Atos defendeu a hospitalidade e a caridade a serviço da comunidade, Hermas retratou a caridade como um ato individual que oferece ajuda material aos pobres, a fim de que os ricos possam sobreviver ao julgamento final14. Essa perspectiva plutocêntrica está muito longe do nosso primeiro texto. É difícil imaginar o autor do Apocalipse abraçando uma bênção como a encontrada em Similitude 2.10: “Felizes são aqueles que possuem bens e compreendem que suas riquezas vieram do Senhor; pois quem entende isso também poderá realizar um bom ministério”15. Assim, em Hermas encontramos uma explicação da desigualdade que destitui os pobres. A pobreza e a riqueza não são simplesmente reconhecidas como fatos da vida social; elas são justificadas como componentes cruciais da vida da assembleia. Hermas sugere que os pobres precisam de pessoas abastadas para satisfazer suas necessidades diárias de sobrevivência material, e que os ricos precisam dos pobres 13 OSIEK, Shepherd, p. 162-164. 14 Porexemplo, a Visão 3.9.2-6 discute a maneira pela qual algumas das assembleias são prejudicadas por comerem demais (PS 4 ou superior) e algumas são prejudicadas por não comerem o suficiente (PS 6-7). O conselho dado aos ricos é que eles devem praticar a moderação e compartilhar, e assim ganhar um lugar no céu. 15 Osiek argumentou que Hermas era um homem liberto em ascensão social, de Roma; Hermas, p. 20- 22. James Jeffers pensava que Hermas reflete um nível mais baixo da hierarquia social; Conflict at Rome: Social Order and Hierarchy in Early Christianity. Minneapolis: Fortress, 1991, p. 116-120. Para mais informações sobre a riqueza nas congregações abordadas por esse texto, veja MAIER, Harry O. The Social Setting of the Ministry as Reflected in the Writings of Hermas, Clement and Ignatius. Waterloo, Ont.: Wilfrid Laurier University Press, 1991 (Dissertations SF 1), p. 59-65. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 15 como objetos de caridade que, com o tempo, os levarão ao céu. É um modelo disfuncional e codependente que perpetua a desigualdade econômica. Conclusões A discussão precedente trata de um fenômeno encontrado em todas as sociedades humanas: a privação econômica de muitos em benefício de poucos ricos. Toda sociedade promove a distribuição desigual de recursos e tenta justificar a desigualdade econômica. E sempre, em algum lugar da cultura popular, há críticas à exploração econômica. As críticas são frequentemente suprimidas pelas histórias oficiais e escondidas de vista na cultura pública, mas elas existem. Às vezes as críticas estão relacionadas à religião popular, outras vezes não. Um exame desses quatro textos cristãos primitivos em particular não produz uma explicação unificada das origens da pobreza na religião popular cristã, mas sim quatro avaliações diferentes da desigualdade econômica. Em termos de suas avaliações das origens da pobreza, as respostas podem ser colocadas ao longo de um espectro com o Apocalipse em um extremo e o Pastor de Hermas no outro. De um lado, o Apocalipse argumentou que a pobreza era resultado do imperialismo e da exploração internacional, e que a riqueza era o acúmulo de ganhos ilícitos. No outro extremo do espectro, Hermas ignorou as causas da pobreza e concentrou-se nas bênçãos da riqueza, que não vinham da injustiça, mas de Deus. Entre esses dois extremos estão Tiago e Atos. Tiago está mais próximo do Apocalipse em sua condenação à injustiça, mas suas perspectivas são mais localizadas e sua análise menos sistemática. Atos está mais próximo de Hermas, na medida em que o sistema romano de desigualdade não é criticado e a riqueza é considerada, na maioria das vezes, benigna. Também podemos localizar os chamados à ação dos quatro textos ao longo desse espectro. Os textos perguntam se os piedosos pobres devem denunciar os ricos (Apocalipse), tolerar os ricos (Tiago), aceitar os ricos (Atos) ou tornar-se dependentes dos ricos (Hermas). Os textos levantam questões semelhantes para os indivíduos ricos. Os ricos devem buscar a pureza do despojamento (Apocalipse), ou devem permanecer envolvidos e tornar o sistema mais justo (Tiago), ou devem sustentar a comunidade de fé (Atos), ou devem dar esmolas para ganhar a salvação pessoal (Hermas)? Finalmente, e quanto aos objetivos dessas advertências éticas? O objetivo do Apocalipse parece ser a pureza, enquanto Tiago se concentra mais na igualdade, Atos na ajuda aos necessitados e Hermas na salvação individual. Injustiça ou vontade de Deus? | Steve J. Friesen | Seminário Oracula 2018 16 Assim, no final desta investigação não temos uma explicação das origens da pobreza. Em vez disso, temos quatro teorias que se contradizem de várias maneiras. As teorias contraditórias podem ser úteis? Possivelmente. Elas nos lembram das complexidades da religião popular antiga, em que os textos de uma tradição religiosa frequentemente discordam uns dos outros em questões fundamentais. Elas também nos lembram dos papéis ambíguos que a religião desempenha na sociedade, às vezes aliviando o sofrimento, às vezes criando miséria. E os textos sugerem o início de uma tipologia que pode estar presente em outros textos, pois esses quatro modelos não são estranhos para nós hoje. Todos eles desempenharam um papel nas histórias subsequentes do cristianismo. A história da Igreja está repleta de narrativas de resistência radical à exploração econômica, semelhantes à do Apocalipse, narrativas de resistência em pequena escala à exploração, semelhantes à posição de Tiago, narrativas de acomodação à exploração, como em Atos, e narrativas de benfeitores cristãos que usam uma parte de sua riqueza para ajudar a aliviar casos individuais de miséria, como no Pastor de Hermas. Mas e o futuro da humanidade? Qual modelo ou modelos podem guiar as igrejas nas próximas décadas? Que modelo ou modelos podem ajudar a moldar um futuro mais equitativo, onde o trabalho não pago, a fome insaciada e a doença não tratada são encontradas apenas nos livros de história? Essas são questões que precisamos abordar. Onde nos localizaremos como estudiosos, como agentes morais, como peregrinos religiosos? Alguns dos textos antigos que estudamos dizem que a riqueza vem de Deus e alguns dos textos dizem que a riqueza vem de Satanás. Alguns dos textos denunciam causas institucionais da pobreza e alguns textos veem a pobreza como a vontade de Deus. Talvez Dom Hélder Câmara nos lembrasse que ao longo da história algumas pessoas têm dado comida aos pobres; nós as estudamos e as chamamos de santos. Mas outras têm perguntado por que os pobres ainda estão com fome e exigem justiça. Também iremos estudar seus textos? Também iremos chamá-las de santos?
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