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Prof. André de Freitas Barbosa Análise literária TERRA SONÂMBULA (1992) Mia Couto [António Emílio Leite Couto] (1955-) Entre os sonhos e a guerra Após a Guerra Anticolonial (1965-1975) e a Guerra Civil (1976-1992), o “miúdo” Muidinga e seu protetor, o velho Tuahir, caminham para fugir da violência que devasta Moçambique: “a miséria faz conta era o novo patrão para quem trabalhávamos.” O propósito imediato da viagem é encontrar os verdadeiros pais do menino, que fora recolhido pelo velho num campo de refugiados. O contexto histórico da obra remete ao pós-colonialismo na África portuguesa, levando em conta as tradições orais, a diversidade étnica e a identidade da nação. Os provérbios são introduzidos nas epígrafes dos capítulos ou no corpo do texto: “(...) o volumoso Abacar me ofereceu um espaço no balcão (...). Enquanto bebia, desembolsava mais ditados: - No parar é que está o ganho!” “Você sabe: em terra de cego quem tem olho fica sem ele”. Os personagens proferem os provérbios em situações de conflito: “O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos.” (Kindzu lembrando a própria infância). Foco narrativo – Intercalam-se um narrador em 3ª pessoa onisciente e outro em 1ª pessoa (Kindzu narrando a própria vida). Tempo – Recorre-se ao tempo cronológico (fim da Guerra Civil em Moçambique – 1992) e ao psicológico. Há linearidade narrativa. Espaço – Muidinga e Tuahir interagem num ônibus incendiado; nos cadernos de Kindzu (essencialmente um viajante) há a presença de vários lugares, destacando-se Matimati, símbolo da nação fragmentada. Dados estruturais ASPECTOS DO ENREDO Terra sonâmbula compreende dois tempos e dois focos narrativos: de início, temos a história do menino Muidinga e do velho Tuahir, que andam por uma estrada deserta fugindo da guerra. Em dado momento, encontram uma mala contendo uma série de escritos que, quando lidos pelo menino, introduzem o segundo foco narrativo, concentrado na vida de Kindzu (autor das próprias memórias) e sua vontade de tornar-se guerreiro naparama. Muidinga e o “tio” Tuahir encontram um machimbombo (ônibus) incendiado, com corpos carbonizados. Logo descobrem ali perto o cadáver de alguém morto por tiros. Numa mala próxima havia uma série de cadernos. Para espantar a solidão, o menino inicia a leitura: são os cadernos de Kindzu. Kindzu era filho do pescador Taímo, conhecido por sonhar com o futuro. Uma vez sonhou com a independência de sua terra e batizou o filho mais novo com o nome de “Vinticinco de Junho”, não tardando para que este se tornasse conhecido como “Junhito”. Taímo previu, mais tarde, a morte de Junhito, que, mesmo muito pequeno, deveria se disfarçar no galinheiro... O menino pouco a pouco foi deixando de ser gente e cada vez mais parecia uma ave; certo dia simplesmente desapareceu. Essa foi a primeira perda de Kindzu. Logo o velho Taímo faleceu. A mãe passou a viver no passado, cozinhando para o marido morto. Kindzu tinha como ponto de refúgio a amizade do comerciante indiano Surendra, vítima de racismo dos habitantes locais. Foi na loja de Surendra que Kindzu viu um guerreiro naparama. Estimulado pelas histórias de Kindzu, Muidinga deseja relembrar o passado e ter uma história tão bela e profunda quanto a que lia. Riscando o chão com um pedaço de pau, Muidinga descobre que sabe escrever. Por fim, teoriza ao velho Tuahir que acha ser Junhito. Kindzu, após partir de seu vilarejo, não seguiu rumo certo. Sentia a presença do espírito do pai. Fantasmas lhe aparecem, assim como seu pai, com quem conversa. Desolado, não sabe se está diante da realidade ou apenas alucinado pela fraqueza física. Na estrada, Tuahir e Muidinga enfrentam a fome. Numa machamba (roça), encontram mandiocas, mas Muidinga é impedido de comer, pois o velho percebe que as raízes foram roídas por ratos. O fato traz à memória de Tuahir o tempo em que conheceu o garoto. O velho conta ao menino como, enquanto alguns homens jogavam corpos de crianças numa vala, ele percebeu que uma ainda vivia. Não havendo quem cuidasse dela, Tuahir apiedou-se: a criança era Muidinga. Kindzu chega a Matimati, local miserável, onde conhece Assane, antigo secretário do administrador. Assane conta que, certa vez, um navio cheio de mantimentos se aproximava dali; os habitantes esperaram ansiosos, mas um naufrágio despertou o interesse daqueles que pensavam em saquear a embarcação. O administrador proibiu a ação e o povo começou a insultá-lo. Assim estava Matimati, ainda na ilusão da chegada dos mantimentos perdidos. Kindzu foi orientado a deixar o local, não sem antes saber da existência de naparamas nas proximidades. No mar encontrou um tchóti (um anão descido dos céus) que também buscava o navio, alegando que o céu também passava necessidades. Juntos eles alcançam o navio perdido, onde Kindzu encontra uma misteriosa mulher: Farida. Os dias se tornam entediantes para Tuahir e Muidinga. Às vezes saem para caminhar, mas sempre voltam ao machimbombo. O menino nota mudanças na paisagem, sente como se a estrada se movesse. Numa dessas caminhadas os dois caem numa armadilha e conhecem o solitário velho Siqueleto. Os dois já estavam prestes a morrer quando, ao riscar o nome de Siqueleto no chão, Muidinga desperta neste uma inesperada comoção. Siqueleto os liberta, segue até uma árvore e escreve seu nome nela com um punhal; depois se mata. Farida carregava uma maldição: era irmã gêmea. Em sua aldeia era costume eliminar um dos filhos para apaziguar a natureza. Depois descobrira que sua irmã não tinha sido morta, mas retirada da aldeia em segredo. Após matarem sua mãe, Farida foi acolhida por um casal português, Romão Pinto (que assediava a menina) e a bondosa Dona Virgínia. O homem acabou por estuprar a garota, que, assustada, fugiu para longe e descobriu estar grávida; ao ter o bebê, Gaspar, que era branco como o pai, levou-o a um orfanato. Muidinga e Tuahir encontram um homem que tinha a missão de cavar um rio que cruzasse todo o país. Os dois resolvem ajudá-lo e permanecem dias cavando um absurdo buraco. Logo depois chove, a vala se enche e carrega o fazedor de rios. Kindzu e Farida se amam e ele se vê, então, num dilema: seguir o desejo pessoal de se tornar um naparama ou procurar o filho da amada, como ela lhe pedira. Ao voltar para Matimati, Kindzu reencontrou o velho amigo Surendra, que pretendia abrir uma loja. Kindzu, então, conheceu Carolinda, mulher do administrador de Matimati. Com ela o rapaz teria uma ardente noite de amor; ele seria, depois, preso pelo administrador, mas logo voltaria à liberdade. Fica sabendo, então, que Romão Pinto estava morto (devido à maldição de ter mantido relações sexuais com uma mulher menstruada). Na estrada, Tuahir e Muidinga se aproximam como pai e filho. O menino, um dia, andando pelos arredores, é surpreendido e atacado por algumas mulheres; é sua primeira e violenta experiência sexual. Kindzu encontrou Dona Virgínia e conseguiu informações sobre o paradeiro de Gaspar; soube que o filho de Farida estivera ali, porém já havia partido. Antes de se retirar, Kindzu se encontrou novamente com Carolinda e percebeu sua grande semelhança com Farida. O velho Tuahir, com o menino, passa por um pântano, quando adoece. Conta histórias a Muidinga, que percebe a proximidade da morte do “tio”. Tuahir pede que façam a ele como fizeram a Taímo, pai de Kindzu: que o ponham num barco para perder-se no mar. Kindzu partiu para um campo de refugiados, onde encontrava-se Euzinha, idosa tia de Farida. Lá descobriu que Carolinda era a irmã gêmea de Farida e localizou o paradeiro de Gaspar, que se encontrava em um campo de refugiados próximo dali. No dia seguinte tia Euzinha morreu de velhice. Muidinga leva Tuahir, moribundo, até o litoral. Lá encontram um barco, certamente o mesmo que levara o pai de Kindzu. Tuahir então parte para a morte, deixando o menino só no mundo. Ao voltar a Matimati, Kindzu deparou-secom a mais triste notícia de sua vida: Farida havia morrido no incêndio de um farol que ela tentara acender, na tentativa de atrair resgate. Desolado, Kindzu resolveu partir para longe, num machimbombo. Sua história se encerra com o sonho de se tornar um grande guerreiro naparama. Preconceito racial O racismo é outra marca presente no romance: os brancos desprezam os negros, e estes detestam os imigrantes. Surendra era alvo constante de preconceitos e ataques de bandos. Os pais de Kindzu reprovavam sua amizade com o indiano e diziam que o estrangeiro não tinha amigos “pretos”. No fim, Surendra tem a casa incendiada e, consequentemente, perde a esposa. COMENTÁRIOS – Relação entre personagens Terra sonâmbula é um romance de dualidades. Muidinga e Kindzu, Taímo e Tuahir, Farida e Carolinda – são pares que se identificam. A vida e a cultura popular também são duais: de um lado, temos, no presente, uma realidade miserável e dolorosa; de outro, um imaginário atemporal, fantástico e perene. Esse imaginário é composto por crenças e costumes, uma forma peculiar de ver o mundo. Em qualquer sociedade, mitos e lendas existem devido a uma necessidade cultural, pois nem sempre encontramos explicações satisfatórias no terreno da razão: daí a relação entre o concreto e o imaginário. Ao cruzar narrativas, Terra sonâmbula conta mais que a história de um velho e um menino que perambulam, sem perspectivas, entre escombros e cadáveres: a leitura dos cadernos de Kindzu entrelaça o enredo de maneira única e permite o renascimento do sonho.
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