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O ABSURDO E A REVOLTA EM ALBERT CAMUS ‘’ (…) Neste campo não há permissão nem proibição. Sofrerão, se sentirem piedade pela vítima… o sofrimento e a dor são inerentes a uma ampla consciência e a um coração profundo. Em minha opinião, os homens verdadeiramente grandes devem padecer neste mundo uma grande dor — acrescentou, de repente, pensativo, quase num tom diferente do diálogo. ’’ (Dostoiévski em Crime e Castigo) 1.1 O ABSURDO E A REVOLTA Os traços que marcaram as linhas do século XX foi o da destruição. Não bastasse às duas Grandes Guerras provocadas pelas potências imperialistas europeias, a Guerra Fria também serviu de palco para sangrentas batalhas, seja no Oriente Médio, na Ásia ou na África. Se fosse possível delinear uma face para o século XX, essa seria a do crime, do assassinato e do descontrole de uma razão suicida. Diferentemente do que eu havia prometido para os próximos escritos - que outrora seria pelas veredas do marxismo -, resolvi dar uma breve desviada do percurso de estudos, e me voltei para um autor que me é muito caro. Refiro-me ao existencialismo 1 de Albert Camus, mais especificamente, o segundo círculo de sua obra; O homem revoltado, a saber, o absurdo e o assassinato. É claro que partirei de um recorte de seu texto, isto é, me atentarei mais ao sentido da revolta e o absurdismo, que atormentam a consciência do homem contemporâneo. Assim, aniquilando a crença em Deus e emancipado da escravidão, o homem busca criar seu próprio reino e, nesse caso, não há limites para os meios cuja finalidade é instalar sua soberania nascida do seio da revolta, que sucede o sentimento do absurdo. De fato, Camus esteve envolvido em polêmicas ao abandonar sua posição em relação ao Comunismo, e que O homem Revoltado pode ser interpretado em outro sentido, que não simplesmente uma teoria estética da existência, uma vez que os ‘’regimes totalitários 2 ’’ que 1 Embora Camus e Sartre tenham tido ligações por um determinado período, afirmar que Camus seja de fato um existencialista é algo ambíguo, pois próprio autor não se declarava ser um existencialista, mas preferi dar essa conotação para situá-lo de forma mais didática. 2 Utilizei-me das aspas pelo fato de que há uma controvérsia em relação ao Stalinismo que a ala progressista assume, a saber, que Stalin e Hitler ocupam o mesmo espaço no ‘’ totalitarismo’’, embora sejam tomaram a Europa pós-guerra foram também alvo de críticas por parte Camus em seus ensaios, no entanto, dado a complexidade histórico-política do contexto - que me levaria a escrever outra monografia para tratar -, decidi apenas tomar partido das posições, digamos, essencialmente existencialista do existir. Camus escreve no século XX, e suas observações tornaram-se atemporais, pois nossa época ainda é uma época de crimes. Da mesma forma que o homem atinge seu ponto culminante no domínio da ciência e da técnica, a razão também exerce um papel contraditório em seu desenvolvimento, isto é, os crimes se tornam ainda mais perversos, eles passam a ser racionalizados, e não mais acidentais. Nesse sentido, seria interessante rememorar a ilustríssima análise da Ética aristotélica, onde se define o conceito de Hamartia cujo significado deriva da palavra ‘’erro’’, e sendo o mais abominável àquele cometido pelos cálculos da razão. Os crimes são, quando não por paixão, lógicos. Em um mundo onde o tirano é exaltado e o escravo ainda mais reduzido à escuridão, os horrores civis e de Estado ferem atentados contra a humanidade sob a justificativa da liberdade. Mesmo as revoltas tomadas como justas, ainda assim, há um elemento da falsa inocência, que permite o assassinato, direta ou indiretamente, como nos mostra Camus. Como se nota, o absurdo aparece aí, nesses momentos de contradição entre a libertação escrava e a imposição de domínio, além da suspensão do juízo sobre a morte. A cisão do homem frente à realidade consagra a antinomia entre nosso desejo e a realidade que nos atravessa. Tem-se, portanto, um mundo sombrio e sedento por sangue. Camus nos alerta para um mundo onde a negação é o imperativo categórico. Consequentemente, a discussão que se segue, é aquela tão tradicional no século XIX, na literatura de Dostoiévski, por exemplo, nos Irmão Karamazov. De outro modo, se não há mais nenhuma forma de valor, seja ético, moral ou religioso para apoiar-se, então é indiferente o assassinato, simplesmente não tem relevância viver. O assassino isenta-se do sentimento de culpa e desabilita o senso de razão. O niilismo é a sombra guia dessas proposições, uma vez que se abandona um juízo sobre a morte alheia, pontos determinantes nas obras de Dostoiévski. A questão da justiça então toma forma, pois, nesse caso o mais forte é que sairia sempre à frente nessa corrida da indiferença à vida e aos valores. Ora, o problema da justiça é algo trabalhado desde os antigos, sobretudo em Platão. E parece que a justiça que atravessou a história desde Platão, é a do grande sofista Trasímaco, onde o mais forte detém a justiça e o evidentes as contradições das políticas stalinistas, eu, particularmente, não comungo com esse equívoco de comparar Stalin a Hitler. poder. Os elementos possuidores do poder na contemporaneidade são justamente as que dominam o poder de Estado e o aparato técnico-militar. À vista disso, a negação e o niilismo guarda lugar majestoso para morte em seu palácio de ruínas habitado por despojos humanos. O regime nazista foi caricatura máxima desse constructo genocida, de negação. Todavia, Camus aponta para o fato de que essa razão absurda, necessariamente depende da vida. O sentimento absurdo não teria força se o objeto orgânico fosse extinto da realidade, pois para o confronto entre o homem e a angústia se consolidar, é preciso estar vivo. O suicídio seria o fim desse confronto, a saber, entre consciência e o desespero do mundo. Por conseguinte, revogar a vida de forma acidental seria mais justo do que pelo cruel raciocínio calculado. As barbáries causadas pela máquina nazista elevaram a lógica assassina às suas máximas consequências. O assassinato precisa da morte coletiva, somado ao sentimento de desprezo pelas vítimas. Vemos que diferentemente do homem que mata por raciocínio, há algo de nobre naquele que se aniquila na solidão, pois esse não desejou dominar outros para sancionar vereditos sobre a vida alheia. Portanto, ‘’suicídio e assassinato são faces da mesma moeda’’(CAMUS, 2018). A consciência desolada na escuridão do sofrimento assegura o sentimento do absurdo, que é imprescindivelmente carregado pelo niilismo da época. Há concepções afirmativas que veem na destruição uma forma renovada para criar o novo; é o caso do pensamento de Nietzsche, que nos ensina; ‘’são meus inimigos aqueles que desejam destruir, mas não para criar a si próprios’’. Destarte, Camus nos apresenta, em sua introdução, as contradições e as implicações da consciência absurda. De Nietzsche e seu conceito de criação, Camus resgatará o núcleo central de seus ensaios, a saber, a revolta. A revolta é um movimento catártico, de purificação do espírito frente às condições de submissão e limites do agir. Portanto, após a experiência do absurdo a revolta toma forma. Diante da onipotência da injustiça, floresce os suspiros da razão, como diria Camus: A revolta clama, ela exige, ela quer que o escândalo termine e que se fixe finalmente naquilo que até então se escrevia sem trégua sobre o mar. Sua preocupação é transformar. Mas transformar é agir, e agir, amanhã, será matar, enquanto ela ainda não sabe se matar é legítimo. Ela engendra justamente as ações cuja legitimação lhe pedimos. É preciso, portanto, que a revolta tire suasrazões de si mesma, já que não consegue tirá-las de mais nada. É preciso que ela consinta em examinar-se para aprender a conduzir-se. (CAMUS, 2018.p.19) Dessa forma, o sentimento da revolta consiste em extrair somente de si as razões para explodir. A ação é sua principal aliada frente a toda injustiça que lhe devora. Posto isto, declara-se que a revolta é o que se recusa a algo, ou alguma condição. Camus se apropria do exemplo perfeito entre senhor e escravo para caracterizar as práticas desse homem que ousa afrontar os limites da obediência. O revoltado, reduzido a uma condição que o isenta de direitos, grita o sim, assevera seu ponto de igualdade e de direito sobre algo. ‘’ A revolta não ocorre sem o consentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão’’ (CAMUS, 2018). O autor mostra que em toda relação de interdependência, há certa dose de adesão às determinadas condições. No entanto, o silêncio jamais pode ser uma opção, pois pode representar uma ausência do querer, de passividade diante do desespero. Nesse sentido, a experiência da revolta é inteiramente uma produtora de valores. O escravo revoltado lida abaixo da linha do ‘’tudo ou nada’’, não tendo nada além de si próprio, ele almeja ser tudo, reconhecido, saudado, ou se ver destruído pelas forças reativas que o domina. Essa força de ação, que brilha no íntimo do espírito submisso é o que resgata o sujeito de sua solidão. ‘’ Duas observações irão apoiar esse raciocínio. Observa-se, em primeiro lugar, que o movimento de revolta não é, em sua essência, um movimento egoísta’’ (CAMUS, 2018). Assim, evidencia-se que o revoltado nada preserva. Ele clama para ser notado e exige tratamento equânime. Ao elaborar a concepção de revolta do homem submisso, Camus atenta para o fato de que a revolta de forma alguma deve ser relacionada ao ressentimento. Essa é uma questão determinante para a compreensão da consciência revoltada, uma vez que aquele que se vira contra uma dominação, não clama pelo que não possui, mas sim pelo que é. É uma espécie de ascese que determina seu destino, dado que o homem na consciência de revolta oferece sua própria vida por uma causa. ‘’O revoltado, por outro lado, em seu primeiro movimento se recusa a deixar que toquem naquilo que ele é. Luta pela integridade de uma parte de seu ser. Não busca conquistar, mas impor. ‘’ (CAMUS, 2018). Dessa maneira, pode-se inferir que o impulso de revolta surge em qualquer indivíduo que passa a ter conhecimento de seus plenos direitos. É preciso lembrar, portanto, que a revolta perde seu caráter purificador à medida que nega ou destrói a relação com o outro ou e consigo mesma, no caso do suicídio. 2.1 A REVOLTA METAFÍSICA O homem após se insurgir diante da sua condição absurda, agora se suas forças se voltam para o âmbito metafísico, e se revolta contra a pressuposição da criação. Nesse sentido, outro paradoxo surge das análises camusianas, uma vez que a rebelião, ao proclamar a destruição do que atormenta a consciência submissa, ao mesmo tempo protesta por uma ordem. A ordem de uma suposta justiça, mesmo que seja a da revolta, busca uma realidade coesa e uníssona. Portanto, ao revoltado, cabe efetivar uma denúncia contra a divindade, que tal como estabelecido nas fontes sacras, seria o pai da vida e da morte. Não obstante, Camus não reconhece o homem revoltado como um ateu, pois ele estaria mais para um blasfemo, pois; A história da revolta metafísica não pode, portanto, ser confundida com o ateísmo. Sob certa ótica, chega a confundir-se até com a história contemporânea do sentimento religioso. O revoltado desafia mais do que nega. Pelo menos no início não elimina Deus: simplesmente, fala-lhe de igual para igual. Mas não se trata de um diálogo cortês. Trata-se de uma polêmica animada pelo desejo de vencer. O escravo começa reclamando justiça e termina querendo a realeza. Ele também precisa ter sua vez de dominar. Insurgir-se contra a condição humana transforma-se em uma incursão desmedida contra o céu para capturar um rei, que será primeiro destronado, para em seguida ser condenado à morte. A rebelião humana acaba em revolução metafísica. (CAMUS, 2018, p.39) Sendo um herege, o revoltado se dedica mais ao combate do que à negação. Seu desejo é pelo topo, e para isso ele precisa lutar pela justiça e alcançar o poder. ‘’ A rebelião humana acaba em revolução metafísica’’ (CAMUS, 2018). Destronando a autoridade divina, o homem revoltado inicia a criação do reinado dos homens, mesmo sob a tutela de assassinatos. CAMUS, Albert. O homem revoltado. Trad: Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: Bestbolso, 2018.
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