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Travestis Brasileiras em Portugal: Percursos, Identidades e Ambiguidades Francisco José Silva do Amaral Luís Tese de Doutoramento em Antropologia Cultural e Social Versão corrigida e melhorada após a sua defesa pública Tese apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em Antropologia Social e Cultural, realizada sob a orientação científica da Professora Doutora Susana Trovão, do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Pesquisa financiada pela FCT Maio 2015 I Agradeço à minha orientadora Dr.ª Susana Salvaterra Trovão o apoio prestado e a abertura de horizontes a diferentes perspectivas e enquadramentos, que tentei aplicar no desenrolar desta pesquisa. Agradeço aos meus professores da licenciatura em antropologia o modo como cada um à sua maneira me ensinou, que mais do que as respostas, o importante é a capacidade para fazer perguntas, pois só obteremos respostas às questões que temos a visão necessária para colocar. A todos os que de alguma forma deram o seu contributo pessoal para que me empenhasse num novo projecto. À minha esposa Vanúsia Luís e ao nosso falecido amigo Bonga, que nos abandonou em 2011 e que sempre me fez acreditar que era possível. Agradeço também aos que não estando presentes, acredito que estejam. Agradeço aos meus pais Maria de Fátima do Amaral Luís e Francisco Maria Luís a paciência. À comunidade travesti na pessoa de alguns dos seus elementos, agradeço a disponibilidade revelada, sem a qual o presente trabalho não teria sido possível. Foram a fonte, a razão última e primeira deste empreendimento. Sem elas, não haveria tema. Ao Dr.º Miguel Vale de Almeida a celeridade com que me forneceu contactos de académicos com trabalhos realizados nesta área em Portugal. À Dr.ª Sandra Saleiro a disponibilidade e voluntarismo que demonstrou ao enviar-me todos os seus trabalhos na área da transexualidade. À FCT por ter financiado este projecto. Gostaria de dedicar este trabalho à Dona Teresinha da Silva que me mostrou o quanto o povo brasileiro é afável e transparente, ao receber-me como se me conhecesse desde sempre em sua casa na cidade de Feira de Santana, Salvador da Bahía. II III Travestis Brasileiras em Portugal: Percursos, Identidades e Ambiguidades no Âmbito da Prostituição. Brazilian transvestites in Portugal: Itineraries, Ambiguities and Identities in the Framework of Prostitution. Palavras-chave - Travesti, Prostituição, Antropologia Urbana, Brasil/Portugal/E.U., Globalização, Identidades Queer, Fluxos e Transnacionalismos. Keywords – Travesti, Prostitution, Urban Anthropology, Brazil/Portugal/E.U., Globalization, Queer Identities, Flows and transnationalisms. RESUMO: Os séculos XX e XXI corresponderam ao agudizar de processos globalizantes potenciados pelas novas tecnologias, quer no âmbito comunicacional, quer industrial, sublinhando dinâmicas de desruralização e de construção de tecidos urbanos densos onde o anonimato se tornou possível na vivência de experiências, outrora reconduzidas ao silêncio do sujeito socialmente isolado. A diferença, enquanto experiência vivida, tornou-se comunitariamente possível, surgindo grupos que delimitam geograficamente determinadas áreas urbanas a que correspondem afinidades eróticas ou de práticas sexuais, inicialmente de gays e lésbicas. Quebra-se na prática a uni-direccionalidade entre sexo e género, entre sexo e sexualidade, questionando-se esquemas de relações assimétricas e modelos de pensamento enraizados (heterossexualidade, patriarcado, machismo, etc.). Rubin (1975 in Lewin 2006, in Vance, 1984) propõe a existência de dois sistemas diferenciados de sexo e género que tornam plausível, sob o ponto de vista analítico, a não correspondência entre sexo, género e sexualidade. O paradigma máximo desta autonomia sistémica alcança-se na construção de uma identidade travesti. Esta identidade mutante, mutável e instável parece acompanhar um mundo de fluxos intensos e interdependências múltiplas. É na sociedade global que as travestis encontram espaço para a vivência comunitária da sua experiência, constituindo-se como um grupo com práticas transnacionais, marcado pela mobilidade de género e geográfica, primeiramente dentro das fronteiras brasileiras e depois para a Europa. Cidade, prostituição e migração surgem como factores chave da disseminação geográfica e identitária desta comunidade. Este projecto tomado sob uma perspectiva global mantêm ou reinventa relações com a estrutura, que aparentemente as apaga enquanto actores sociais e da qual, aparentemente, se auto-excluem. ABSTRACT: The XX and XXI centuries corresponded to the stretching of globalizing phenomena enhanced by new technologies, either within communication, whether industrial, stressing processes of deruralization and consequent construction of dense urban networks where IV anonymity was possible to achieve concerning to living different social and erotic experiences, once closed in a silent self, socially isolated by his own difference. The difference, as lived and living experience, was made possible communally, emerging groups that geographically delimited certain urban areas, to which corresponded erotic affinities or sexual practices, initially gays and lesbians. Break up the practical uni-directionality between sex and gender, between sex and sexuality, questioning schemes of asymmetric and structural relations and models of thought rooted (heterosexuality, patriarchy, sexism, etc.). Rubin (1975 in Lewin 2006, in Vance, 1984) admit the existence of two different systems of sex and gender, under an analytical point of view, that made possible mismatch between sex, gender and sexuality. The paradigm of this maximum systemic autonomy is achieved in building an identity transvestite. This mutant identity, changing and unstable seems to accompany a world of intense flows and multiple interdependencies. It is in the global society that transvestites find space and viability for the communal living experience, constituting themselves as transnational group, marked by gender and geographical mobility, first within Brazilian borders and, than at another stage of the project, to Europe. City, prostitution and migration emerge as key factors of geographical spread and identity construction of this community. This project taken at a global point of view maintain or reinvent relations with structure, which seems to erasure them and from which, apparently travestis are self-excluded. V VI Índice Agradecimentos I Resumo III Índice de imagens XII Introdução 1 PARTE I – CONCEITOS E DIMENSÕES ANALÍTICAS Cap. 1 – SOBRE A NOÇÃO DE TRAVESTI E OUTRAS AFINS 5 1.1. Trans/transexuais/transgéneros 7 1.2. Migrações de género. Viagens 11 1.3. Travestise a transgressão da dicotomia moralizante: “Silicone, a dor da beleza” 12 1.4. Crossdressers e drag-queens 15 1.5. Transexuais 18 1.6. Hermafroditas 21 1.7. O Papel da linguagem e da gíria na incorporação de modelos e a estruturação 24 da experiência Cap. 2 - SISTEMAS SEXO E GÉNERO 28 2.1. Critério Genital/ Gender assignment 28 2.2. Perturbação de género e orientações sexuais minoritárias. Estudos queer 33 2.3. A Utopia de uma sociedade sem géneros e sua impossibilidade prática 36 2.4. Desvio e anomia. Reforço da normalidade estrutural 39 VII 2.5. A lei como natureza. A ficção estrutural biologizante 40 2.6. Sexo e género; produtos da interacção 42 Cap. 3 – PERFORMANCE, PERFORMATIVIDADE E ESTRUTURA 48 3.1. Poder e hierarquia 48 3.2. Performatividade e linguística 50 3.3. Performatividade e emergência do sujeito 55 3.4. Discurso e identidade 59 3.5. Performatividade/discurso e o sujeito político 62 Cap. 4 - ESTRUTURA/AGÊNCIA 64 4.1. Pós-Estruturalismo. O desvio e a fronteira do poder 64 4.2. Teoria da acção. Agência, estrutura e processos 70 Habitus e capitais sociais. Campos e condicionamentos 4.3. Poder diferencial e dualidade da estrutura 72 4.4. Interesse e constrangimento. Capitais sociais e estratificação 73 4.5. Estrutura e acção: balanceamentos teóricos, numa teoria das práticas 77 4.6. Giddens e Bourdieu. Teoria da acção: convergências e divergências 81 PARTE II – UMA ETNOGRAFIA SOBRE MOBILIDADES TRAVESTIS Cap. 5 - PRIVAR E APRENDER A COMUNICAR: 85 ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS VIII 5.1. Observação participante e etnografia do quotidiano 85 5.2. Dados recolhidos da internet 86 5.3. Travestis – rede social e grupo 87 5.4. Observação não participante 88 5.5. Clientes 90 5.6. Desconstruindo a desconfiança 91 5.7. Negociando a presença 92 5.8. As interlocutoras 98 Cap. 6- DA CASA À CIDADE GRANDE 104 6.1. A saída de Casa 104 6.2. A chefe de rua 111 6.3. Prostituição. Rua e a mãe 113 6.4. Mitos, Histórias e realidades 120 6.5. Silicone a dor da beleza e a reinvenção multi-estruturada de um sujeito 126 dinamicamente posicionado. “Travesti sem silicone, não é travesti!” (Camila Garcês) 6.5.1. Silicone e a materialização do corpo 132 6.5.2. Silicone, corpo, prostituição e sexualidades 135 “(…) se eu fosse passiva era x, se eu fosse também activa era x mais x, então era muito mais dinheiro.” (Adriana) 6.6. Usos biográficos e contextuais do género masculino e feminino. 141 O sujeito em devir IX 6.7. Gírias e contextos; a produção de sujeitos 143 6.8. Disputas e reinvenção de afectividades 144 6.8.1. Marido. Estratégias de legitimação. Pragmatismo, bens materiais e grupo 149 6.8.2. Prostituição e afectos restruturados 151 6.9. Discriminação, violência e o projecto migratório 155 Cap. 7 - DIÁLOGOS TRANSNACIONAIS E REDES SOCIAIS 159 7.1. “Vida de trans... é sempre assim...estilo cigana aff!” (Thalter) 159 A caminho da Europa (por Portugal) 7.1.2. Portugal e Brasil. Manejos de uma proximidade distante 160 7.1.3. Redes sociais travestis 162 7.1.4. Empréstimos/Ajudas 169 7.2. Portugal: leis migratórias e a legislação para minorias sexuais 172 7.2.2. Portugal e as redes de auxílio à imigração ilegal 176 “O problema é você entrar na comunidade europeia, depois que você está dentro. fica bem mais fácil tudo!” (Larissa) 7.2.3. Vantagens e oportunidades contextuais 179 7.2.4. Permuta de habitações 183 7.3. A Prostituição em Portugal e noutros contextos de europeus 185 7.3.1. Densificação e imbricamento de redes. 190 Mobilização de recursos e exibição de capitais 7.3.2. “O trabalho tá mau” (Thalter). 205 Entre Lisboa, Porto, Braga, Aveiro, Leiria e outros destinos X 7.4. Apresentações transnacionais e transnacionalismos 211 “(…) feminino, Belém, Barcelona, Milão, Porto e Lisboa, me liga!” (Thalter) 7.4.1. A Internet e a vida de todos os dias: proximidades,distantes 215 7.4.2. Ganhos materiais e identitários no contexto de origem 218 7.4.3. As remessas e a sua função social, familiar e económica 219 7.5. Bens materiais, grupo e competição 222 7.6. Brasilidades. Algumas reflexões 224 PARTE III – CONCLUSÕES Cap. 8 – CONCLUSÃO 227 Anexo 1- Informantes 235 Anexo 2- Glossário 237 Anexo 3- Acrónimos 239 Bibliografia 240 XI XII Índice de imagens Sociograma 1-Apresentação das informantes (pp.99) Sociograma 2-Apresentação das informantes (pp.100) Sociograma 3-Apresentação de informantes (pp.102) Figura 1 – Indivíduos, campos, capitais e recursos (pp. 74) Figura 2 – Poder diferencial e capitais sociais (pp.76) Foto 1 - Frasco de silicone líquido e seringa de uso veterinário (pp. 129) Foto 2 – Seringa de uso veterinário para aplicação clandestina de silicone (pp.130) Figura 3 – Homossexualidade e referentes de género (pp.137) Figura 4 – Níveis de intermediação da comunicação entre indivíduos (pp. 164) Figura 5 – Escalas de redes sociais (pp. 168) Gráfico 1 – Anúncios do sítio Desire 2008/2009 - o primeiro a anunciar serviços sexuais travestis em Portugal (pp. 190) Gráfico 2 – Anúncios do sítio Desire 2009/2010. (pp.191) Gráfico 3 – Anúncios do sítio Desire 2010 até Dezembro de 2011quando sucumbiu perante a concorrência de novos sítios. (pp.192) Gráfico 4- Anúncios no sítio Relax de 2008/2009 (pp.194) Gráfico 5- Anúncios no sítio Relax de 2009/2010 (pp.195) Gráfico 6- Anúncios no sítio Relax de 2010 até Dezembro de 2010 quando termina face à concorrência emergente no sector (pp.196) Gráfico 7- Anúncios no sítio VripT de Agosto de 2008 a Abril de 2009. Este sítio iniciou-se on- line em Agosto de 2008 (pp.197) Gráfico 8- Anúncios no sítio VripT 2009/2010 (pp.199) XIII Gráfico 9- Anúncios no sítio VripT 2010/2011 (pp.200) Gráfico 10- Anúncios no sítio VripT 2011/2012 (pp.201) Gráfico 11- Anúncios no sítio TG 2009/2010 (pp.202) Gráfico 12- Anúncios no sítio TG 2010/2012 (pp.203) Gráfico 13- Anúncios no sítio TG 2011/2012 (pp.204) Gráfico 14- Anúncios no sítio Desire 2008 tentando a internacionalização (pp.206) Gráfico 15- Anúncios no sítio Relax 2008 tentando a internacionalização (pp.207) Gráfico 16- Anúncios no sítio VripT 2008 revelando o seu domínio no mercado (pp.208) Gráfico 17- Anúncios por totais por sítio (pp.209) 1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa procura captar e analisar as estratégias e modalidades de acção desenvolvidas por um segmento de travestis brasileiras que emigraram para Portugal a partir de finais da década de noventa e cuja subsistência material é viabilizada pela manutenção de um grau significativo de mobilidade intranacional e transnacional. Suportados por estudo etnográfico, tentaremos mostrar como a acção/agência travesti é construída adentro e entre várias estruturas e por relação a elas, numa dupla vertente de expressão de um género não compatível com o seu sexo biológico e, mediante projectos migratórios e mobilidades várias que viabilizam em diversas escalas essa construção identitária. Para tanto, mobilizaremos lentes analíticas que assentam nos sujeitos, as quais permitem descortinar características e limites estruturais que definem um espectro condicionado de possibilidades discursivas e performativas aos sujeitos travestis e, por outro lado, ainda adentro dessa mesma estrutura, oportunidades aparentemente inesperadas, crítica e estrategicamente aproveitadas para a sua viabilização enquanto identidades e sujeitos em viagem. Mobilizando os conceitos de performatividade, discurso e negociação (Butler, 2007, Kulick 1998, 2003 in Cameron e Kulick, 2006, Ortner, 1984) começaremos por interrogar as construções de género e os idiomas performativos das travestis brasileiras que estudámos. Em que medida estas travestis incorporam e perpetuam modos dominantes de conceber e agir o masculino, o feminino e a heterossexualidade ? Em que extensão, todavia, resignificam e reperformatizam desempenhos de género e papéis sexuais hegemónicos, tornando-os fluídos e plásticos, moldáveis e adaptáveis às circunstâncias concretas ? Em que situações a relação entre expressão/identidade de género e performatividade sexual se apoia na normatividade heterossexual? Em que outras situações é renegociada ou, se preferirmos, se constitui como uma relação pragmática, e que combinatórias pode apresentar ? Esta ambiguidade na relação entre género e performatividade sexual pode ser apenas concebida como uma estratégia de sobrevivência económica, accionada em cenários de prostituição projectados e desenvolvidos em contextos particularmente adversos, quer no Brasil, quer na Europa ? Poderemos entrever nesta ambiguidade uma terceira via de género (Kulick, 1998:226) ou um sublinhar dos existentes ? 2 Embora a migração para a Europa de travestis integradas na indústria do sexo se tenha iniciado nos anos setenta do século XX, com entrada preferencial por Paris (Kulick, 1998:166) e posteriormente Milão (Kulick, 1998, Pelúcio, 2005), Portugal só se apresenta enquanto contexto migratório e trampolim para trajectos transnacionais associados à prostituição travesti em finais dos anos noventa do mesmo século, em resultado de novos contextos políticos ao nível global, regional e local, bem como das interdependências entre eles geradas.1 Que motivações e expectativas orientam o fazer e refazer das trajectórias transnacionais das travestis brasileiras ? Que redes e interconexões operam nos seus processos de circulação ? Que recursos e estratégias são mobilizados ? Que margem de manobra é, por elas, aproveitada a seu favor ? Em que medida encontram possibilidades agenciais alternativas no âmbito de fluxos e processos mais ou menos globalizados e semi-incontrolados ? Que contextos migratórios são equacionados alternativamente ao português e que continuidades ou descontinuidades revelam face a este ? Em que medida a mobilidade travesti se converte em capital social no contexto de origem e que dinâmicas promove nos contextos de acolhimento ? Através de que formas se processa a maximização dos capitais sociais e em que domínios sociais revelam a sua eficácia ? Que continuidades ou especificidades agenciais distinguem migrantes travestis e não-travestis de nacionalidade brasileira na concepção e execução dos seus processos migratórios e no modo como se relacionam com múltiplas estruturas ? A teoria da acção revelou-se uma grelha analítica pertinente para trabalharmos sobre as questões acima enunciadas. Faremos, por isso, uma breve incursão aos seus variados modelos, buscando a clarificação dos seus fundamentos (Ortner, 1984), historicamente situados ainda nos anos 60, que se prolongam à década de 70 e seguintes (Bourdieu, 2002, Butler, 2007, Coleman, 1990, Giddens, 1984, Ortner, 1984, Rubin 1975 in Lewin, 2006, Rubin in Vance, 1984, etc.). Dedicaremos, nesse sentido, uma especial atenção às perspectivas que realçam quer o posicionamentodos sujeitos (objectivos, competências, recursos, estratégias, etc.), quer a tensão implícita nas acções dos actores sociais – que neste âmbito ultrapassam a mera racionalidade tendo em vista a prossecução de objectivos pragmáticos (Coleman, 1990) – quer ainda os constrangimentos e as 1 Entrada na então E.E.C. em 1986 e posteriormente a criação do espaço Schengen, inicialmente apenas Convenção de Schengen, em 1997 incorporada na ordem jurídica e política europeia dos estados aderentes através da subscrição do tratado de Amesterdão. Não obstante, nem todos os países da U.E. aderiram a este espaço de livre circulação de pessoas, o que determina também em certa medida as estratégias de mobilidade das travestis. 3 oportunidades que caracterizam os contextos sociais e culturais adentro os quais os sujeitos desenvolvem as suas acções (Ortner, 1984). Esta perspectiva exige um enfoque especial direccionado às práticas do quotidiano e aos dilemas, contradições e aspirações que emergem nas e das relações dos sujeitos com múltiplas estruturas socio-culturais e políticas. Adentro do quadro problematizante que traçámos, abordaremos uma vasta gama de construções e expressões de género trans (transexual, transgénero, transvestite, travesti, crossdresser ou dragqueen) afirmadas e assumidas publicamente (Plummer in Gameiro, 2000). Este extravasar do âmbito privado na vivência das dimensões de género, sexualidade e desejo erótico tem sido potenciado por um actualizar comunitário da experiência. Categorias como espaço e tempo revelam-se fulcrais para a assunção da diferença de forma negociada e sua relação com outros factos históricos, nomeadamente a emergência dos Estados-Nação, o despoletar das industrializações e a crescente urbanização operada no período pós-segunda guerra mundial. O devir destes fenómenos em processo propiciam não só o assumir comunitário das diferenças, como também o confronto com as ordens e modelos de pensamento secularmente instituídos. (Rubin in Vance, 1984)2 Nesse sentido, procuraremos estabelecer um nexo de causalidade entre um êxodo rural decorrente das industrializações e propiciador da emergência das grandes cidades e a contemporaneidade moderna e pós-moderna, afirmando-se a possibilidade da cidade se constituir como o locus privilegiado de vivência e afirmação da diferença (Woodward, 1997), não só pelo anonimato que propicia mas também pelo maior ou menor grau de mobilidade que lhe subjaz. (Rémy e Voyé, 1994). Como veremos, é nas grandes cidades que as nossas interlocutoras procuram o anonimato e a possibilidade de viverem a sua sexualidade ou expressar um género trans (Cf. Green, 1999). Como consequência surgem novas espacialidades e temporalidades (Ledrut, 1979)3, inseparáveis nos seus 2 Culminando nas décadas de 50 e 60 em perseguições violentas nos Estados Unidos, por exemplo à população gay (Rubin, in Vance 1984). O carácter não universal, apesar da tendência universalizante de algumas perspectivas decorrentes de esquemas de pensamentos correntes e recorrentes, expressa-se pela manutenção no séc. XXI de algumas dessas perseguições em países como a Rússia, em que se mobilizam inclusivamente milícias populares que vigiam e punem a orientação sexual, homossexual dos indivíduos através do uso da violência, infligindo-lhes humilhações várias. (Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=J0yW6JgsBdQ, acedido a 30 de Junho de 2014) 3 Correspondem a diferentes apropriações das categorias universais e simultaneamente relativas - espaço e tempo - porque comuns a todas as sociedades, embora demarcadas historicamente por diferentes práticas e comportamentos. Os comportamentos decorrem de novas apropriações do espaço e relações construídas https://www.youtube.com/watch?v=J0yW6JgsBdQ 4 fundamentos e dinâmicas, das novas tecnologias da comunicação e transporte, facto que para alguns autores se constitui como uma terceira industrialização4 potenciadora da proliferação de ethnoscapes a uma escala global (Appadurai, 2004). É, portanto, num quadro gerador de transnacionalismos vários (Waldinger and Fitzgerald, 2004, Vertovec, 2009) que procuraremos entender as estratégias de mobilidade de um grupo de travestis brasileiras para Portugal e para a Europa, mostrando como novas geografias configuram dinâmicas potenciadoras de mobilidades socialmente ascendentes, capitalizadas e negociadas na relação com estruturas, grupos e indivíduos multi-situados. A pesquisa realizada procura contribuir para a problemática dos identidades trans a qual tem vindo a suscitar novos debates e a adquirir uma visibilidade que lhe foi historicamente sonegada5. Constitui-se ainda como móbile desta pesquisa, o facto da produção académica nesta área ser notoriamente reduzida (Almeida, 2010 in Pinto e Moleiro, Saleiro, 2009, 2009ª, 2012, 2013) ou maioritariamente confinada ao âmbito de acção das ciências médicas. Estas ciências evidenciam, ainda nos dias de hoje, competências na produção de sujeitos (Pinto e Moleiro, 2012:160, Saleiro, 2009:1, 2009ª:1) pelo que se tornam relevantes e pertinentes novas abordagens. com, no e sobre o tempo. Em processo dialógico tempo e espaço reflectem o modo como esses comportamentos se exercem sobre eles. (Ledrut, 1979) 4 Uma terceira industrialização que permite a emergêngia gradual de uma sociedade onde tempo e o espaço são comprimidos – reestruturados – mediante influência prática da inovação tecnológica de ponta, denotando correlação com as espacialidades e temporalidades de Ledrut. (1979) 5 Em 2014, um/uma cantor/a Áustriaco/a ganha o festival da Eurovisão. Travesti que usa barba, não só durante a sua performance artística, mas também no seu quotidiano, levando ao extremo o carácter contraditório das sinalizações emitidas para o exterior pelo corpo. O facto de aparecer em público e para milhões de espectadores deixa entrever como o travestismo procura o seu lugar no sistema mundo, deixando de ser um fenómeno social escondido, marginal ou auto-relegado para um plano da invisibilidade, em processo que evidencia um encontro voluntário e deliberado com o poder. (disponível em https://www.youtube.com/watch?v=_MUsEaxGx7Q, acedido a 15 de Julho de 2014) https://www.youtube.com/watch?v=_MUsEaxGx7Q 5 PARTE I – CONCEITOS E DIMENSÕES ANALÍTICAS Capítulo 1 - SOBRE A NOÇÃO DE TRAVESTI E OUTRAS AFINS Antes de avançarmos na discussão dos conceitos e das dimensões de análise que subjazem às questões empíricas formuladas, urge apresentar uma breve nota sobre o conceito de travesti utilizado ao longo desta reflexão e figuras discursivas afins, susceptíveis de serem analiticamente confundidas com aquela e que não relevam directamente para os propósitos deste trabalho. De acordo com literatura disponível (Adelman, 2003, Benedetti, 1998, 2005, Borba, 2006, Bussinger, 2008, Carrara e Viana, 2006, Carvalho, 2006, Duque, 2008, Ferreira, 2003, Kulick, 1998, 1999, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Nascimento e Lara, 2003, Pelúcio, 2005, 2006, 2006ª, 2007, Peres, 2006, etc.), o termo travesti é aplicado a um indivíduo com sexo biológico masculino, o qual adopta todavia, uma série de práticas, posturas e marcas sinalizadoras, compatíveis com o género feminino, nomeadamente cuidados corporais (tais como maquilhagem, cabelos ou unhas pintadas), recorrendo para o efeito numa outra fase do seu trajecto a cirurgias para colocação de implantes mamários, labiais, faciais, etc. e/ou à ingestão de hormonas (Cf. a produção cultural do corpo em Goellner, 2003, Gómez, 2002, Mauss, 1974).6 Esta última acção farmacológica geralmente associada a uma fase inicial da transformação, nãosó por ser de mais fácil acesso no mercado clandestino, mas também por ser financeiramente menos onerosa.7 A indumentária utilizada é igualmente feminina, assim como uma série de outros adereços associados ao quotidiano feminino – reflectindo e 6A produção cultural do corpo pode ser relacionada com um outro conceito utilizado por alguns autores, nomeadamente o de fenomenologia do corpo. Segundo este, o sujeito pode construir uma relação diferenciada com o seu corpo, especialmente com os genitais, destituindo-o de qualidades que lhes são atribuídas estruturalmente. Saleiro exemplifica com uma relação entre um cissexual e um transgénero, este último destitui o seu sexo de valorações vigentes na heterossexualidade, permitindo assim que para esse sujeito em especial, a sua relação não seja entendida como homossexual. (2013) 7 No meio travesti é recorrente a sua hierarquização através de um discurso tendente a discriminar as várias fases da transformação, coexistentes ou não, nos processos de feminização dos corpos. Expressões como - ela é travesti hormonizada ou operada - credibilizam o indivíduo no meio, expressando a vontade de se transformarem, o que envolve muitas vezes profundo sofrimento físico quando se submetem a aplicações de silicone clandestinas. As hormonas são geralmente utilizadas numa fase inicial do processo de transformação, alterando a voz e permitindo a emergência do peito. Mais tarde, após as operações, algumas mantêm a ingestão de hormonas, essencialmente para que a voz seja emitida num tom mais feminino, geralmente de falsete. Todavia as hormonas podem retirar o desejo sexual, motivo pelo qual no âmbito da prostituição, tal seja um factor a ter em consideração pelas travestis. 6 vigiando modos de ser homem e modos de ser mulher (Cf. Freire, 1964, 1987)8. Todavia devemos realizar uma ressalva, na literatura anglo-saxónica a palavra transvestite não é correspondente a travesti e encontra-se geralmente associada a uma outra categoria trans, a de crossdresser (Saleiro, 2013:195), pelo que por exemplo para autores como Ekins e King a referência à travesti conforme nós a abordamos não existe (2005, 2006). Assim, tendo em atenção a enorme quantidade de produção antropológica brasileira que denomina por travesti o actor social e político que mantém o pénis num corpo repleto de referentes femininos, associando-o muitas vezes ao exercício da prostituição e por outro lado, a ausência desta categoria na produção anglo-saxónica pode-se levantar a questão se a travesti conforme a vamos debater, não tem um contexto geográfico restrito de produção, emic e etic. É necessário, neste contexto, realizar uma outra distinção conceptual entre duas realidades susceptíveis de produzir equívocos. Referimo-nos ao conceito de transgénero e de homossexualidade. Efectivamente são termos que se referem a realidades distintas. A homossexualidade é um conceito relativo à orientação sexual, enquanto, que a transexualidade9/transgénero se refere a questões de identidade e construção de género. A orientação sexual sublinha a atracção sexual por homens, mulheres ou ambos; a identidade de género diz respeito à forma como os indivíduos sentem, vivem e expressam o seu género (Saleiro, 2009:1-2, 2013). Esta distinção entre orientação sexual e identidade de género é relevante no decorrer desta exposição visto fundamentar duas áreas distintas da coercibilidade socio-estrutural perante o desvio.10 8 O termo travesti pode também qualificar indivíduos de sexo feminino com desemprenho de género masculino. Não é, todavia, o caso desta pesquisa. 9O termo transexualidade é por vezes usado numa vertente similar à de transgénero, como categoria aglomerante de todas as identidades trans. (Saleiro, 2013) 10A homossexualidade está sujeita ao critério da orientação sexual, pelo que se refere à atracção sexual por indivíduos do mesmo sexo, não existindo no caso das pessoas homossexuais descoincidência entre sexo biológico e género social, entre corpo e mente; por isso um homossexual pode manter o seu género, sem exteriorizar o objecto da discriminação, mantendo a sua orientação sexual no domínio da esfera privada dos seus comportamentos. Já as pessoas transexuais/transgéneros podem ser, tal como as pessoas cissexuais (ou seja, aquelas em que há uma coincidência entre sexo e género), hetero, homo ou bissexuais (Saleiro, 2009ª:2) e pansexuais. (Saleiro, 2013) 7 1.1.Trans:transexuais/transgéneros Em Portugal, dados relativos à existência de pessoas transexuais são praticamente inexistentes (Pinto e Moleiro, 2012:161, Saleiro, 2009, 2009ª, 2012, 2013) e a informação disponível resume-se na maioria dos casos a artigos das ciências médicas (Saleiro, 2009ª:3) e a dados recolhidos com profissionais de saúde nos serviços a que pertencem (Albuquerque 2006 in Pinto e Moleiro, 2012:161) e relativos aos processos que no âmbito do seu desempenho profissional acompanham.11 Neste sentido, sob um ponto de vista analítico, estas identidades mais do que construídas pelos indivíduos são-no a partir de uma perspectiva que envolve a medicalização do social.12 No domínio das ciências socias e médicas, alguns autores incluem as travestis no grupo das transexuais quando usam o termo “transexual” (Arán, 2006, Bento, 2006, Granner, 2006, Lionço, 2006, Namaste, 2000, etc.), reflectindo de alguma forma a imprecisão implícita no modo generalizante como muitas vezes se menciona o movimento social GLBT (Saleiro, 2009:5). Todavia salienta-se que para Saleiro esta aglomeração numa comunidade assume vantagens enquanto potenciadora da capacidade reivindicativa desses vários grupos, podendo no entanto revelar um menor poder e visibilidade do movimento T dentro do grupo GLBT de forma correspondente ao seu mais reduzido número, quando comparado com os restantes componentes da referida comunidade (2013) e, dentro do movimento T a menor organização política de travestis, por exemplo, quando comparadas com as transexuais. Colocadas estas ressalvas, neste estudo, o termo travesti qualificará apenas sujeitos que não recorrem a cirurgia genital (mudança de sexo), embora noutros contextos de abordagem à temática trans existam indivíduos que se concebem como transexuais fora da categoria médica correspondente, optando tal como as travestis, por manter o pénis e dele retirando igualmente prazer sexual (Saleiro, 2013). No entanto as nossas interlocutoras auto-representam-se e apresentam-se maioritariamente (por exemplo na internet, onde anunciam serviços sexuais) como travestis - encontrando a sua subsistência económica na prostituição, em que “o pénis se converte no elemento central do seu trabalho” (Loise, 2006:19). Neste contexto de 11 Os relatos são, no geral, demonstrativos da maior utilização dos serviços por transexuais femininos, comparativamente aos transexuais masculinos. 12 Neste sentido Saleiro argumenta que muitas identidades transexuais assim assumidas pelos indivíduos, ficam fora da categoria médica de transexual. (Saleiro, 2013) 8 prostituição, a ambivalência que emerge de um corpo montado com referentes femininos, onde é mantido o órgão sexual masculino do qual retiram prazer (Kulick, 1998), não inviabiliza o termo transexual no sentido em que a transexualidade ultrapassa ela própria a definição médica da mesma, não obstante e privilegiando a forma como os próprios sujeitos se expressam e produzem utilizaremos a categoria travesti para nos referirmos aos indivíduos que constituem o nosso universo de estudo. Todavia, subsidiariamente o prefixo trans constitui-se como um recurso apetecível nos anúncios, usado por algumas para se auto-descreverem e cativaremclientes. Tal, não consubstancia qualquer contradição visto que o termo trans pode também referir-se a transgéneros ou a contextos em que as práticas e construções sociais identitárias ultrapassam os limites estruturalmente impostos, funcionando como um termo que agrega todas as identidades de género fora dos cisgéneros/cisexuais. (Cf. Saleiro, 2013) A palavra transgénero tem também indicado historicamente uma aspiração de união entre todas as minorias trans, agregando-as em torno de reivindicações comuns. Sob outra perspectiva, reflecte essencialmente uma transgressão ou a não correspondência entre sexo, género e sexualidade (Ekins e King, 2006:20). Estes autores referem também que a palavra trans configura um chapéu-de-chuva albergando várias comunidades transgénero e sexualidades tidas como minoritárias (Cf. Namaste, 2000, Saleiro, 2013).13 O termo transgénero foi utilizado pela primeira vez em 1969 por Virginia Prince num artigo por si publicado na revista que fundou - transvestia (Ekins e King, 2006:13). Acrescentamos ainda uma outra perspectiva - especialmente importante para uma das questões subjacentes à realização deste trabalho e consistindo na relação entre sujeitos e estruturas -construída a partir da constatação do facto destas categorias trans serem também em grande parte produzidas estruturalmente enquanto categorias médicas. É o caso paradigmático da transexualidade. Não obstante, verifica-se igualmente um preenchimento do vazio implícito na abstracção médica, quando os indivíduos através das suas práticas vão além dessa dimensão institucional. Nomeadamente e a título de 13“The subject of transsexuality falls within the scope of the LGBT (Lesbian, Gay, Bisexual and Transgender) movement, which means that the issue of gender identity is part of a “package” that also includes sexual orientation – it is a minority within a minority.” (Saleiro, 2009:5). Com esta frase a autora pretende demonstrar a menor visibilidade do movimento T, constatando a existência de margens no seio de grupos, eles próprios já marginalizados. 9 exemplo, quando o termo travesti que também encontra a sua origem na medicina - qualificando uma disforia de género - alcança um outro patamar quando os indivíduos através das interacções se co-produzem de forma dialéctica por relação à estrutura, enquanto categorias trans. Motivo pelo qual, a dado momento, as travestis para se diferenciarem de outras travestilidades, co-produzem a categoria de crossdresser (Cf. Ekins e King, 2006 e Saleiro, 2013). Várias são portanto as acepções da palavra trans as quais, insistindo no seu carácter polissémico, podem também indiciar uma migração, trajectória (Ekins e King, 2006:90) ou, num outro sentido, uma viagem de género, sexo ou ambas. 14 (…) It is important to remember that on our sociological, processual and relational understandings of these issues, meanings of narratives and their constituents emerge within the frameworks they are placed. Within the migration mode of transgendering, the sub-processes of erasing, concealing, implying, and redefining are variously co-opted and implicated in the service of the privileged sub-process of substituting. (Ekins e King, 2006:95). Essa viagem exige meios e a submissão a tecnologias de acção sobre o corpo. As cirurgias e a ingestão de hormonas não são apenas os recursos disponíveis para tal, como paralelamente se constituem como indicadores das aspirações travestis relativamente ao seu corpo - de certa forma reflectindo rituais de iniciação e passagem de um estado a outro – à sua identidade e à estrutura, no sentido que esta última legitima ou repudia coercivamente determinadas práticas. Dir-se-ia, neste sentido, que o corpo se constitui como uma forma de linguagem privilegiada pelas travestis (Benedetti, 2005, Kulick, 1998) através da qual pretendem comunicar/sinalizar e construir socialmente o seu género (que pode inclusivamente consistir na ambivalência de géneros), emergindo por essa via como sujeitos e, numa perspectiva mais lata, construindo uma identidade da qual têm consciência posicional quanto à sua inserção e evolução num espectro condicionado de possibilidades ou impossibilidades sociais; em quaisquer dos casos, mantendo relações com o exterior social, mediante processos de identificação ou desidentificação. Por 14 Se a migração tende a sublinhar fluxos de pessoas implicando alguma continuidade no tempo, já o turismo, enquanto mobilidade, evidencía a passagem de fronteiras com um carácter transitório seguido do respectivo regresso às origens. Tal como nas migrações ou turismos de género, a sociedade não os percepciona de igual modo. Os autores estabelecem uma analogia entre a mobilidade de pessoas e de género (Ekins e King, 2006:98). Na verdade as migrações de género, ao serem tendencialmente definitivas, trazem às sociedades novos problemas a resolver, por exemplo, a aspiração a novas conjugalidades e pretensões sociais, nomeadamente a reivindicação do direito à adopção por parte destas cambiantes familiares (Melo, 2005) ou a emergência de factos decorrentes da construção de uma cidadania – alteração de nome, registo de um novo género e sexo, etc. (Peres, 2005, 2006, Saleiro, 2013) 10 acréscimo, numa outra escala de análise (Cf. escalas, Silvano, 1997), não raramente somos confrontados com a elaboração de diferenciações e hierarquizações dentro do grupo, em função por exemplo da existência de peito15, da ingestão de hormonas (ou não) ou das aplicações de silicone.16 Pelo que, diferentes escalas de abordagem tendem a convocar de forma diversa e estrategicamente reordenada, os referentes que servem de base à construção desses repertórios, os quais são determinados por um posicionamento identitário específico e escalonado face ao outro. Assim, mesmo que uma travesti possa não recorrer a cirurgias e hormonas numa fase ainda imberbe do seu percurso, apresentar-se-á sempre o mais próxima possível do seu ideal feminino, vivenciando experiências relativas a transgéneros mas não a transexuais, não só na forma como se entendem, mas também no modo como são descritas na bibliografia brasileira, essencialmente. De certa forma, se um/uma transexual será sempre um transgénero, um transgénero não será necessariamente transexual. No âmbito das migrações ou turismos de género – processos analiticamente distintos - destacam-se certos conceitos chave como substituição, conciliação, implicação/insinuação, redefinição ou apagamento (Ekins e King, 2006). Substitui-se o que denota um género por características primárias (peito e/ou genitais, conforme a circunstância) e secundárias (penteados, cortes de cabelo, tratamento de unhas, ornamentos) que evidenciam a pertença a outro género, conciliando disparidades, apagando incongruências, substituindo ou insinuando sinalizações e redefinindo papéis. De acordo com a terminologia utilizada por estes autores, a oscilação de género (a qual se opõe a uma mudança tendencialmente permanente, maioritariamente caracterizada pela substituição) é equiparada ao turismo na medida em que a substituição, sendo tendencialmente irreversível, detém por isso um menor peso no trans turismo, sendo suplantada por apagamentos, implicações, insinuações ou conciliações17 associadas ao 15 Nomeadamente e a título de exemplo, travestis sem peito são muitas vezes denominadas por aquelas que fazem cirurgias, como gaysinhos, pelo que hormonas e silicone se constituem como elementos materiais privilegiados de uma identidade colectiva e individual, e nalguns casos (como veremos no decorrer deste trabalho), condição para admissão no grupo em determinadoscontextos de prostituição urbana ainda em território brasileiro. A ausência de silicone e hormonas será o grau mais baixo na pirâmide hierárquica travesti em contextos de prostituição. 16 Estas fases configuram-se como rituais de passagem dentro das fronteiras simbólicas do grupo e como condição de aceitação em determinadas cidades brasileiras para o exercício da prostituição, nomeadamente a aplicação uma quantidade mínima de silicone no corpo. 17 Na verdade, estes conceitos expressam apenas uma tendência observável, visto que nas migrações de género/sexo também se constatam apagamentos e conciliações. O acto de insinuar pode em certos casos 11 desempenho de papéis em espaços privados, regressando à esfera de género original em espaços públicos.18 1.2. Migrações de género. Viagens Aprofundando as migrações de género por contraponto às meras viagens/turismo, Ekins e King realizam um paralelo entre migrações de género e o conceito de viagem (2006). A noção de oscilação entre uma casa (de género) e um fora de casa (metaforicamente um contexto de acolhimento) sublinha a diferenciação que estabelecem entre migração e turismo. A primeira implica a mudança de um estilo de vida; a segunda uma viagem temporária com um consequente regresso a casa a muito curto prazo, uma casa que na verdade nunca se chegou a abandonar. Numa primeira dimensão muda-se de casa, na outra fazem-se as malas e parte-se - com bilhete de ida e volta - para um trans turismo perfeitamente delimitado no tempo e espaço. Nesta segunda perspectiva, o turismo de género implica práticas extraordinárias propiciadoras de novas experiências – desejáveis e apetecíveis para os actores sociais - por oposição a uma migração em que essas práticas extraordinárias se convertem em práticas quotidianas, substitutivas das originárias que tendem a apagar. (2006:98-99) Algumas práticas impossibilitam o regresso a casa, revelando-se como aspectos que evidenciam uma migração ou um sair de casa permanente. Esta panóplia de substituições ou implicações/conciliações tendentes a estruturar uma migração ou turismo de género e/ou sexo parecem observar algumas regras fundamentais apontadas por Garfinkel (1967, Cf. Ekins e King, 2006:45, Kessler e McKenna, 1978:113, Zimmerman e West, 1987) na abordagem realizada ao caso específico da transexual Agnes que acompanhou durante vários anos. Agnes constituiria à luz dos paradigmas contemporâneos um caso de intersexo, visto que aparentemente apresentava simultaneamente traços físicos masculinos e femininos. (Garfinkel, 1967) traduzir a acção de enganar ou fingir, nomeadamente quando travestis numa fase pré-cirurgia, colocam enchumaços nos peitos ou no rabo (Alencar, 2007). Como se diz na gíria, aprendendo a dar o truque. (Pelúcio, 2005) 18 Tudo o que indica a pertença à categoria política homem e consequente género socialmente estruturado deve ser conciliado e/ou apagado, e tudo o que indica a pertença à categoria mulher deve ser implicado/insinuado. (Ekins e King, 2006:100) 12 Garfinkel constrói uma argumentação sustentada numa inovação conceptual, implícita no facto de nunca utilizar o termo género/s, substituindo-os pela designação “população moralmente dicotomizada” (Garfinkel, 1967, Cf. Ekins e King, 2006). Segundo ele, desta dicotomia resultavam princípios heteronormativos delimitadores e distintivos de género, assentes essencialmente em oposições de carácter binário que conferiam grande rigidez ao processo e que viriam também a influenciar outros autores, embora com abordagens distintas. 1 - Há apenas dois géneros. 2 - Todos os indivíduos pertencem a um ou a outro. Invariabilidade de género. 3 - As transferências de um género para outro não são socialmente permitidas. Neste encadeamento, Kessler e McKenna, corroborando os três eixos normativos anteriores acrescentam: 1- Os genitais constituem a sinalização essencial de género.19 2- Excepções a estes dois géneros são patologias.20 (1978:113) 1.3.Travestis e a transgressão da dicotomia moralizante: “silicone, a dor da beleza” Parecendo contrariar alguns pressupostos vigentes em esquemas de pensamento dominantes, as intervenções sobre o corpo são o início da migração de género no caso travesti. Muitas vezes executadas no âmbito da clandestinidade, estas intervenções negligenciam os saberes institucionalmente produzidos e colocam em risco muitas das travestis que nestas condições se submetem a cirurgias, que consistem na aplicação de silicone industrial (líquido) adquirido e ministrado ilegalmente (Cf. Alencar, 2007 e Andrade e Maio, 1985).21 Estes procedimentos são realizados com recurso a seringas de 19 Quando não são exteriormente visíveis, pressupõe-se a sua existência em função de associações com outras sinalizações emitidas pelos indivíduos. 20 Ver-se-á mais à frente como no séc. XXI em Portugal, o Sistema Nacional de Saúde - que presta cuidados médicos à população “transexual”- faz depender o início do processo do reconhecimento médico de alguém como um/uma transexual de um “diagnóstico da perturbação de género.” (Saleiro, 2009ª) 21 Aconselhamos vivamente a visualização destes dois documentários, devidamente referenciados no fim deste trabalho. Através do seu visionamento podemos captar os dilemas e estratégias das travestis e, principalmente, a crueza das aplicações clandestinas de silicone, filmadas e documentadas pelos autores. 13 uso veterinário para animais de grande porte - como cavalos - e culminam muitas vezes na morte dos indivíduos que a eles se sujeitam, em consequência de complicações supervenientes desse processo cirúrgico.22 O risco implícito no acto de ser bombada, pode ainda ser ampliado em situações protagonizadas por bombadeiras menos escrupulosas que misturam no silicone outros produtos nocivos ao ser humano. Esta estratégia visa unicamente aumentar os lucros retirados do exercício dessa actividade. (Alencar, 2007) Estas acções sobre o corpo são motivadas por factores variados mas confluentes: o querer ser travesti de corpo feito (completa), o querer dedicar-se à prostituição ou o querer ser aceite no grupo travesti como uma travesti de verdade e não como um mero gay23 (Benedeti, 2005, Kulick, 1998, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Pelúcio, 2005, 2006, 2006ª, 2007). Neste sentido, parecem também confirmar a ideia de que há apenas dois géneros (Garfinkel, 1967), visto que aparentemente procuram alcançar a substituição de características primárias e secundárias de um género pelas do outro estruturalmente admissível. Em casos extremos, alguns autores como Pinto e Bruns (2005) apontam situações de incompatibilidade entre corpo e mente, conducentes não raras vezes ao suicídio. No caso masculino, quando não se mostram psicologicamente capazes de viver e conviver com o seu pénis; e no feminino, quando se constata como objecto principal dessa incompatibilidade, o útero – facto, no primeiro caso, não observado relativamente às travestis que constituem o universo de estudo desta pesquisa.24 Confluentemente, Virgina Prince argumentava que apenas em casos de incompatibilidade entre mente e sexo é que as cirurgias correctivas seriam admissíveis. (Ekins e King, 2005) 22 O cirurgião plástico Ariosto Santos alerta que é proibido injectar silicone industrial, argumentando que é líquido e se move pelo corpo, apesar de após a aplicação se tornar gelatinoso. Não obstante, pode introduzir- se na corrente sanguínea e como produto tóxico, afectar fígado, rins, causando infecção, abcessos e até embolia pulmonar, levando muitas vezes à morte, para além de causar assimetrias no corpo. (http://travestisdeportugal.blogspot.pt/search?updated-max=2010-0610T08:26:00%2B01:00&max-results=7). 23Gay, termo jocoso e depreciativo. Utilizado no grupo travesti para se referirem a indivíduos que se afirmando como travestis não têm peito feminino e implicitamente ainda não têm o restante corpo feito. Não se identificando com homens homo orientados, a utilização deste termo pode em certas circunstâncias também ter uma função de exclusão do grupo. 24 Durante os cerca de 8 anos em que esta pesquisa decorreu, entre as travestis com anúncios na internet apenas duas das que fomos observando, realizaram cirurgia ao sexo. Embora na fase pós-cirurgia tenham optado por anunciarem na secção de anúncios de prostituição travesti, acabaram por cessar os seus anúncios nessa secção e passaram a anunciar nas páginas relativas às mulheres. http://travestisdeportugal.blogspot.pt/search?updated-max=2010-0610T08:26:00%2B01:00&max-results=7 http://travestisdeportugal.blogspot.pt/search?updated-max=2010-0610T08:26:00%2B01:00&max-results=7 14 O nosso universo de estudo é portanto, constituído por sujeitos que fazem recair sobre os seus corpos uma série de tecnologias disponíveis (legais e ilegais) para os moldar com atributos femininos, por vezes exagerando-os (peitos grandes, ancas largas, lábios proeminentes, cinturas acentuadas retirando para o efeito algumas costelas, silicone nos lábios, sobrolho, bochecha, testa, etc…), mantendo, não obstante - e dele auferindo ganhos identitários e materiais - uma das partes do seu corpo, o pénis25 (Benedeti, 2005, Kulick, 1998, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Pelucio, 2005, 2006, 2007). Neste caso, a incompatibilidade é sentida ao nível da mente e do corpo numa dimensão de construção de género, não da mente e sexo. Nesse sentido, alguns autores afirmam que as travestis se constituem como uma outra possibilidade de feminino (Silva, 1993). Para além de terem consciência de não serem mulheres, a sua construção de género assenta no querer ser mais que as mulheres (Kulick, 1998). Tal é constatável no exagero com que por vezes se elaboram26, quer no plano das marcas físicas, quer no plano dos adereços, mantendo (e voltamos a frisar) um marcante e distintivo elemento masculino: o pénis que, no entanto, fora da esfera privada e da prostituição, procuram apagar face ao olhar alheio. As travestis que acompanhámos empreendem claramente uma migração de género através da qual as práticas compatíveis com a sua casa originária são permanentemente modificadas ou substituídas, ultrapassando o patamar da mera performance oscilatória ou turismo de género (Ekins e King, 2006), que no entanto, em certas circunstâncias parece emergir, nomeadamente e a título de exemplo quando no exercício da prostituição são convocadas a desempenhar o papel masculino na relação sexual. Não se referindo Ekins e King às travestis quando elaboram sobre migrações e oscilações de género, nós, optámos por realizar uma analogia 25 Segundo Kulick, no trabalho realizado com travestis em Salvador, o pénis não é apenas encarado como uma ferramenta adicional no mercado da prostituição mas também, como uma parte do corpo que proporciona prazer, pelo que a grande maioria das travestis observadas não entende o porquê da realização de cirurgias ao sexo. (Kulick, 1998:85, Cf. Saleiro, 2013 e o receio de alguns candidatos ao processo de transsexualidade de perderem o prazer sexual ao redefinirem o sexo) 26Surgem ainda outros equívocos, incluindo no grupo “travestis” (ou reversamente) outras variáveis associadas a este contexto; não só o caso das transexuais que, como se verificou, recorrem à amputação da genitália, mas também relativamente às drag-queens (relativamente a drag-queens, Cf. Damásio 2006) que adoptam padrões da masculinidade hegemónica durante o dia e uma identidade que recorre a referentes femininos durante os seus espectáculos, geralmente nocturnos. Estes espectáculos estabelecem uma relação entre espaço privado e turismo/transferência momentânea (oscilação) de género, enquanto a sua masculinidade surge associada ao dia e ao espaço público. 15 a partir da qual nos parece existir uma forma intermédia, liminar entre migração e turismo de género a operar nas travestis e trabalhadoras do sexo brasileiras. Em suma, utilizaremos o termo travesti quando nos referimos a indivíduos que não recorrem a cirurgias de redefinição sexo e que vivem o seu dia-a-dia montados (Benedetti, 2005) com referenciais femininos (alguns irreversíveis), dedicando-se maioritariamente ao exercício da prostituição em domicílio. Para tal, recorrem a anúncios na internet pagos.27 O seu dia-a-dia - “montadas” ou produzidas tendo como referentes determinadas definições de situações (e sub-situações estruturadas e estruturantes) de género - traduz as suas práticas quotidianas, ao invés de práticas extraordinárias que implicam um regresso a casa, a masculinidade. Existem, no entanto, outras situações que podem consubstanciar alguns equívocos sobre o que é ser travesti. Vamos aprofundá-las. 1.4. Crossdressers e drag-queens A oscilação de género28 é constatável em casos como o das crossdressers e drag-queen. As crossdressers desenvolvem implicações, insinuações e conciliações temporárias de elementos definidores de género. Por sua vez, as drag-queens surgem num contexto dramatizado, de espectáculo e audiência. Actor/performance e público são neste caso conceitos chave (Ekins e King, 2006:133). Não obstante, as performances artísticas, como se verá adiante, não estão excluídas do universo travesti, todavia, surgem associadas ao espectáculo nocturno e seus consumos segmentados (Cf. Gameiro, 2000), bem como a estratégias identitárias e processos de identificação elaborados nesse âmbito. No caso de uma crossdresser ou de uma drag-queen, assistimos a performances e não a performatividades, pois as suas práticas e discursos não implicam a aspiração a emergirem enquanto sujeitos que assumem, vivem e constroem publicamente essa diferença. Esta diferença é apenas “experimentada” de forma temporária e socialmente 27 A prostituição no domicílio não invalida que, em certas circunstâncias, (quando “o trabalho tá mau” ou sobretudo no caso de travestis com menores recursos) a rua se apresente como solução alternativa, comutativamente com o recurso a anúncio em jornais, mais baratos, que permitem alcançar uma clientela tendencialmente diferente. No Brasil, ao invés de Portugal, a prostituição em domicílio aparenta ser mais elitista, exercendo a grande maioria a prostituição de rua. 28 À qual não corresponde necessariamente uma oscilação identitária, visto que o indivíduo não emerge como sujeito identitariamente posicionado através dessa oscilação de género; não implica necessariamente comunidade, nem consciência política ou identidade dado o carácter transitório dessa mobilidade de género. Todavia essas oscilações criam interacções específicas marcadas por também específicas estruturações. 16 compartimentada (Saleiro, 2013), não afectando com carácter permanente a esfera identitária exteriorizada de quem as executa. Num certo sentido invertendo papéis e não confrontando na maioria das vezes, publicamente a estrutura29, acabam por a confirmar dado o carácter extraordinário dessas práticas e consequente retorno à heteronormatividade cissexual masculina. Segundo Saleiro o elemento distintivo das crossdressers face a transgéneros como as travestis, reside essencialmente no facto de viverem o masculino e o feminino, separadamente, carecendo as suas práticas do hibridismo que em muitos contextos caracteriza as travestis. (2013:264) Sintetizando, embora a travesti operacionalize substituições de carácter tendencialmente permanente não apresentam na sua larga maioria a aspiração de se submetera uma cirurgia à genitália, convivendo de forma ambivalente com o seu sexo e não se identificando com homens homo - orientados (Bussinger, 2008:40, Pelúcio, 2006:524-525). A este nível, a sua diferença mais evidente é vivida ao nível da sua expressão de género, mais do que relativamente, à sua orientação sexual e a homossexualidade - per si - não implica nova construção de género (Cf. Em sentido complementar, Saleiro 2009, 2009ª, 2013).30 Para tal, procedem à ingestão de hormonas e recorrem a tecnologias de acção sobre o corpo mediante aplicações de silicone. E se as hormonas as aproximam da feminilidade, o silicone31 é tido como a dor da beleza. (Pelúcio, 2007:9) Na aquisição de competências no âmbito de um projecto de feminilidade, a ingestão de hormonas constitui um dos primeiros passos nesse percurso (Benedetti, 1998, 2005, Bussinger, 2008:41, Loise, 2006, Luís e Trovão in Trovão, 2010, Pelúcio, 2005, 2006). Não obstante, no discurso para dentro do grupo, outras ambivalências se constatam; se, para umas, ser realmente travesti implica tomar hormonas (Pelúcio, 2006:525); para outras, ser travesti é o resultado da aplicação de silicone no corpo 29 As suas oscilações de género são maioritariamente experimentadas no espaço privado. (Cf. Saleiro, 2013) 30 Este constitui-se como um dos fundamentos da diferença entre ser-se travesti e ser-se homossexual. Neste sentido e segundo o operador construção de género, uma travesti não é homossexual. Face à multiplicidade de relações sexuais mantidas no âmbito da prostituição, a orientação sexual que mais facilmente se aplicaria às travestis seria a pansexualidade no sentido em que experienciam a relação sexual com indivíduos independentemenete da sua expressão de género. Contudo, como veremos a partir dos discursos particulares abordados a partir da parte II desta tese, nem sempre tal se verifica. 31 Nome genérico de substâncias análogas aos corpos orgânicos, em que o silício substitui o carbono. 17 “criando um feminino particular, com valores ambíguos” (Silva, 1993:117).32 Um feminino que se constrói e se define em relação ao masculino (Cf. Kessler and McKenna, 1978). Citando Benedetti, vivem “um gênero ambíguo, borrado, sem limites e separações rígidas.” (2005:132). É neste sentido um feminino falocêntrico porque elaborado tendo como arquétipo o centro de masculinidade, sustentado numa perspectiva binária do seu contrário - o feminino - que assim, socialmente estruturados, se constituem como sustentáculos do centro heteronormativo e suas relações de assimetria e dominação. (Cf. Freire, 1964, Santos, 1997, Vale de Almeida, 2000) Por seu turno, a drag-queen33 (Cf. Damásio, 2006) é o indivíduo que num espectáculo ou em contextos específicos, se veste de mulher mas sem necessariamente, inscrever no corpo marcas permanentes do feminino (cirurgias, hormonas, etc). Chidiac e Oltramari (2004) afirmam que “as drags se apresentam no quotidiano como homens” (posturas, gestos, roupas e comportamentos entendidos como inseridos no âmbito da masculinidade), manifestando e caracterizando a feminilidade nas personagens que criam e representam, geralmente em espaços de diversão nocturna destinados a consumos de clientelas com construções de género e orientações sexuais minoritárias, face à cissexualidade e heterossexualidade dominantes.34 Desta forma, apresentam uma modalidade mais flexível de travestidade (no sentido literal do travestir-se), exibindo o género feminino nas suas performances e mantendo‐se masculinos em seu dia-a-dia (Bussinger, 2008:40), isto é, não alterando a sua identidade (Ekins e King, 2006). Não obstante, e ainda que com carácter de reversibilidade, parecem mais uma vez confirmar a existência de apenas dois géneros, entre os quais oscilam sem no entanto, os misturar. 32 No âmbito de etnografia que realizou, com travestis na Lapa, bairro do Rio de Janeiro. 33 Noutro contexto a drag-king, quando alguém do sexo feminino realiza performances marcadas por referenciais masculinos. (Saleiro, 2009ª:3) 34 Esta inversão espácio-temporalmente realizada denota algumas semelhanças com o conceito de cismogénese de Bateson (1971), a partir da sua observação dos Iatmul e dos seus rituais. Nomeadamente daquele em que homens e mulheres se travestiam com adereços e ornamentos estruturalmente permitidos ao género/sexo oposto, reforçando através desse ritual de inversão, comportamentos socialmente normativos, mediante a sua confirmação num contexto extraordinário de performances ritualizadas. Esta abordagem será objecto de aprofundamento num outro trabalho do mesmo autor, em que este argumenta que a comunicação não se resume à verbalização, ao invés, abrange a tautologia, cinética e para-linguística, formas de comunicação que sublinham a importância dos sistemas simbólicos operantes em determinados contextos socioculturais. (2000) 18 De uma forma geral, a análise dos autores aponta para que, quando montadas (Benedetti, 2005) as drag-queens unam características físicas e psicológicas masculinas e femininas num único corpo, postura que relativiza a tendência à essencialização no conceito de identidade/performance dado o seu carácter andrógino, a que Saleiro chama de hibridismo. (2013) Neste enquadramento o nosso entendimento relativamente à categoria transgénero é o de alguém que empreende uma outra construção social de género, que à luz da estrutura não é compatível com o seu sexo biológico, permitindo conceber no plano das práticas, indivíduos do sexo masculino vivendo como mulheres e vice-versa. Salientamos ainda que nesse experienciar de expressões de género, as formas de viver o feminino e/ou masculino não são idênticas. Como temos vindo a referenciar há indivíduos que se concebem como transexuais sem pretenderem alterar o sexo, há transexuais que apenas se concebem como tais após a cirurgia, há crossdressers hétero e homossexuais, etc. Há portanto diversas combinatórias de expressão do masculino e feminino. E entre os transgéneros existem pontos de contacto e de diferenciação, nomeadamente nos casos em que verificamos, que se nas crossdressers e drags se aplica de forma mais ou menos consensual o conceito de turismo de género, e nas transexuais operadas uma migração de género, nas travestis constatamos um estado de liminaridade em que operam ambos, migração e oscilação/turismo. 1.5. Transexuais Temos vindo a discorrer sobre entendimentos possíveis do que é um/uma transexual, segundo abordagens mais emics ou etics, há todavia, bibliografia que o/a considera como o indivíduo que “visualiza a cirurgia como a única possibilidade capaz de eliminar sua discordância sexual” (Bruns e Santos, 2006:3). Entenda-se cirurgia de reconstrução/transformação do órgão genital masculino em feminino ou vice-versa. No mesmo sentido, para Bussinger, “a transexualidade pode ser definida num primeiro momento como sentimento de não correspondência ao sexo anatómico, sem delírios ou causas orgânicas, apontando para uma incomunicabilidade entre corpo, sexo e género.” (2008:40, Cf. Ekins e King, 2005). Corresponde esta abordagem essencialmente operada a partir das ciências médicas considerada como um posicionamento mais clássico perante a temática, sendo a tendência observável, quer nas ciências sociais, quer na produção de leis, a de afastar a temática da transexualidade do âmbito mais ou menos restrito das 19 práticas médicas, reconduzindo-a a uma categoria produzida essencialmente a partir da acção e aspiração dos sujeitos que se classificam como transexuais. Nesse sentido Saleiro refere que na Argentina surgiu uma lei em Abril de 2012 que não faz depender o reconhecimento legal de uma identidadede género de qualquer apreciação médica (2013). Todavia, não é esse ainda o panorama generalizado e a transexualidade é ainda um processo iminentemente médico, mais do que uma questão de agenciamento do self.35 Em Portugal representam um grupo de pessoas remetido a alguma invisibilidade, na medida em que o seu escasso número a isso induz. Segundo Saleiro, não haverá mais que 210 homens e mulheres transexuais em Portugal. No mesmo sentido, a administração do Hospital Júlio de Matos (espaço clínico onde se procede à prestação de cuidados médicos na área da transexualidade), afirmava - em 2007 - que a fila de espera em termos de cuidados dirigidos a transexuais era constituída por cerca de 70 indivíduos, enquanto o Hospital de Santa Maria referia ter seguido apenas 50 indivíduos na década precedente (Saleiro, 2009:2). Estes dados são-nos fornecidos por fontes médicas, pelo que mencionamos de novo o facto de haver muitos indivíduos que se entendem como transexuais e que estão fora da alçada do processo medicamente assistido de transexualidade. Contudo e como veremos no decorrer desta exposição, passaram mais travestis brasileiras dedicando-se à prostituição por Portugal, do que transexuais recorrendo ao SNS português o que poderá significar que a categoria de transexual autorizada pelo SNS não é aquela com que a maioria dos transgéneros se identifica. Na verdade, entre Agosto de 2008 a Abril de 2012, 389 travestis anunciaram no sítio mais procurado para o efeito em Portugal, o Vrip T. Tal revela não só a dimensão deste fenómeno migratório quando ajustado à escala portuguesa, como também o facto de travestis e transexuais apresentarem diferenciações no modo como dialogicamente se produzem e são produzidas por relação à, e pela estrutura, e numa outra escala, entre elas próprias enquanto categorias diferenciadas. Nesse sentido Saleiro afirma que as 35 No domínio da orientação sexual e da assunção de identidades transgéneros alguns progressos no sentido da inclusão tem-se verificado m Portugal, nomeadamente em 2003 com a contemplação no Código do Trabalho da igualdade no acesso ao emprego e trabalho independentemenete da orientação sexual, em 2007 o Código Penal inclui a orientação sexual como motivo de discriminação a par de outras dimensões do indivíduo (raça, etnia, etc), em 2004 na Constituição da República Portuguesa é acrescentada a orientação sexual ao art. nº 13 princípio da igualdade, embora sem referência à identidade de género. Ao nível europeu verificamos algumas recomendações no âmbito do Issue Paper (2009) e no Estudo do conselho da Europa indicando a necessidade da criação de estruturas nacionais especificicamente orientadas para a promoção da igualdade de género e orientação sexual, etc. Ao nível das práticas médicas algumas directrizes internacionais continuam a considerar maioritariamente as identidades transgénero, como doenças mentais. É o caso da DSM – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. (Cf. ao nível das dinâmicas sociais médicas, legais e associativismo da temática transgénero, Saleiro, 2013:150-170) 20 transexuais se encontram no “topo da hierarquia” dos transgéneros, não só por se revelarem como a categoria mais estabilizada, mas também pelo facto de ser aquela que é estruturalmente mais valorizada e respaldada. (Saleiro, 2013:251) Ainda no âmbito das identidades/corpos travestis e transexuais, e à luz de uma análise que deixa entrever a necessidade da sua realização em diversas escalas, Pelúcio vislumbra no contexto brasileiro uma outra diferenciação: as origens sociais tendencialmente distintas de umas e outras. Como refere, a grande maioria das travestis é proveniente de classes médio-baixas enquanto, que as transexuais são maioritariamente pertencentes às classes média e média alta (Pelúcio, 2006:525). Em Portugal, e concebendo os sujeitos como identidades em processo, no caso de uma travesti desejar ultrapassar a sua condição de indivíduo com perturbação de identidade e regularizar a sua socio-construção de género, ela pode nos termos da Lei n.º 7/2011 de 15 de Março no seu art.º 3, nº 1 e 2 e através de requerimento enviado a uma conservatória do registo civil, solicitar procedimento de alteração de sexo e nome, da mesma forma, em que nesses serviços se solicitam a nacionalidade portuguesa ou a realização de casamento civil. Não obstante, estes actos administrativos apenas podem ser consumados após apresentação do sujeito a um painel constituído por 2 médicos, que o diagnostiquem como um indivíduo com uma perturbação de identidade género compatível com a transexualidade.36 36 “Pela Lei 7/2011, de 15 de Março, tornou-se possível proceder à alteração de sexo e de nome no registo de nascimento sem necessidade de prévio processo judicial. O procedimento criado é da competência das conservatórias do registo civil. Têm legitimidade para requerer os cidadãos portugueses, maiores de idade, que não sejam interditos ou inabilitados por anomalia psíquica e aos quais tenha sido diagnosticada perturbação de identidade de género. Documentos a apresentar para iniciar o processo: - Requerimento do interessado que necessariamente deverá conter a indicação do seu número de identificação civil e do nome próprio com que pretende vir a identificar-se, além dos demais elementos próprios dos requerimentos. - Relatório que comprove o diagnóstico de perturbação de identidade de género, elaborado por equipa clínica multidisciplinar de sexologia clínica, o qual deve ser, pelo menos, assinado por um médico e um psicólogo.” Esta matéria é regulada pelo Instituto dos Registos e do notariado. (Disponível em http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/a_registral/registo-civil/docs-do-civil/procedimentos/#nome. Acesso em 14 de Agosto de 2014). Neste contexto não só os médicos produzem um conceito sobre a transexualidade, como os próprios indivíduos podem produzir um discurso compatível com o que outro espera, de alguém que verdadeiramente corresponda à categoria médica de transexual. http://www.irn.mj.pt/IRN/sections/irn/a_registral/registo-civil/docs-do-civil/procedimentos/#nome 21 1.6. Hermafrodita/intersexo Por se revelar uma situação de desconforto social e pessoal - um não lugar (visto que nem dentro dos parâmetros heterossexuais se encaixa num feminino ou num masculino), a solução para os hermafroditas (que possuem características genitais de ambos os sexos) passa muitas vezes, por uma cirurgia de correcção (Lima, 2006:1).37 Tal verifica-se também no caso abordado por Garfinkel quando argumentava que não é possível perpetuar a indefinição de sexo, pois ela terá consequências ao nível da construção do género, a qual mais tarde ou mais cedo será empreendida pelo actor social. Ou se pertence a um ou a outro, nunca aos dois (1967). Em quaisquer dos casos anteriores, e visto que o corpo e o sexo marcam indivíduos e delimitam a frequência de espaços sociais, masculino e feminino reflectem papéis social e historicamente (politicamente) atribuídos, pelo que o seu desempenho se realiza em espaços e áreas socialmente confinados a cada um deles. (Lima, 2006:1) Vários autores referem essa ambiguidade como um dos maiores dilemas humanos: o sexo com que se nasce e o género não compatível em que se integra “semeia a dúvida no seio da sociedade, constituindo um dos conflitos mais radicais a que se pode expor uma pessoa” (Gómez, 2002). Nos casos de mera inconformidade genital, ela pode actualmente ser corrigida pela biotecnologia médica. Ressalvam-se todavia, alguns aspectos éticos e deontológicos quando essa inconformidade é detectada precocemente. Não há forma de assegurar com antecedência que a decisão assumida em relação à correcção do
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