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Maria Anita Carneiro Ribeiro UM CERTO TIPO DE MULHER I Irernnsf 2or1 Ma-ria Anita Carneiro Ribeiro livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Ltngua portuguaa de t99o,ado no Brasil em zoog. Gocthe, 54 Botafogo rlcJaneiro I nl I c.p zzzgr-ozo (zt) z54o-oo76 Editorial sadora Travassos Editorial istina Parga uardo Süssekind SaIomé r certo tipo de mulher - Rio de ]aneiro :7lehas, zorr, r90 p.;2r cm. Inclui [ribliografia rsnN 978-85-75 ZZ -977_7 iiiil?r1,lT;,.1. Neurose obsessiva. 3. Freud, sigmund. 4. Lacan, ]acques. cDD:150,195 cDu: t59.964,2 iros dc Castro Editora Ltda. Sumario Apresentação Prefácio Feminina e francesa O enigma d.A. mulher: histeria e ob§essão As damas obsessivas e o falo ... E nâo nos deixeis cair em tentação Seu único e inesquecível homem: Deus Uma máscara de mulher A dor de Medeia Um pouco de poesia e beleza Um "quê" de melancolia Posf;ácio l-1 13 23 l I I 1f (l r) í.f () r) (, r) {) {) () ,) () r) () r) r) ) 1) r) 1) () r) ,i i) ) , T 4L 59 79 99 L2t L37 159 L67 r-87 letras.com.br I www.Tletras,com.br ( ( í I Os que possam pensar que é por razõu ligadas a seu sexo aui osiuieitos acolhem aisa ou aquelafaceta da neurose' veraoi nesta oportunidade, o quanto o que é da ordem ila atrutura na neurosq deixa muito pouca margem à determinação pela posição do sexo, no sentido biológico' (J. Lacan, Serninário v) I A meus filhos, loana e Thiago, com muito amor. A mew pais, que queiam escreverlívros. -t j=' I Apresentaçâo Dez anos seParam a primeira ediçáo de [Jm certo tipo de mulher, em 2oo1, e a presente edição. Durante este temPo, continuei a estudar, movida pelos desúos da clínica e também pelos traba- lhos apresentados por colegas em simpósios, jornadas e reuniôes científicas e pelos alunos, na minha instituição de psicanálise e nas universidades onde ensinei e nas que ainda ensino' Foram estes desafios que me levaram a fazer acréscimo nos capítulos 5 e 9 (antigo capítulo 8). São acréscimos que me pare- cem necessários e enriquecedores. Porém o que me entusiasmou de forma particular foi o novo capítulo 7, que alterou a numera- ção dos dois posteriores, e que' a meu ver, trouxe para além do título, um pouco de poesia e beleza ao liwo. Este capítulo é fruto de uma pesqúsa mais recente, e esPero que não seja muito amb! cioso desejar que traga algum esclarecimento sobre os inúmeros inigmas que a neurose obsessiva ainda apresenta' Maria Anita Carneiro Ribeiro I I Prefácio tlm certo tipo de mulher étanto o desdobramento fio a fio quanto a sustentação rigorosa da seguinte afumação: hoje, como ontem, sáo muitas as mulheres que sofrem do que Freud soube üagnos- ticar e esclarecer sob a denominaçáo de Zwangsneurose ovneu- rose obsessiva. Nesse sentido, ele é também uma resposta. Ou não ouviríamos, nrun tom entre a surpresa e a descrença, a Per- gunta que insiste:'Mas... existem mulheres obsessivas?" Lacaniana à la lettre, Maria Anita Carneiro Ribeiro parte de Freud e de sua principal contribuição à nosografia da época. Naquele momento inaugural, era-lhe necessário demonstrar que os pensamentos obsessivos e os atos compulsivos não deveriam ser classificados junto às psicoses em geral, entre o que ele chama- ria posteriormente de 'heuroses narcísicas", mas antes em série com as histerias de angústia e de conversão, entre as neuroses que seriam ditas "transferenciais'l Além disso, Maria Anita ilão des- considera a constatação clínica de que, não menos que as histéri- cas, as mulheres obsessivas nos ensinam algo "sobre este-aspecto, ç..t .gto d" f.tnit ilidrd.'l uma vez que sáo não só menos enganadas pelo falo quglelx e furono seia. mais DroDensas ao deslizamento metonímico, o qual denun-__ cia com clareza que ao *g§j"blr*939-gue despertghorror, já -_-=____--o dizlam-Freud e Lacan, il nly a quhn pas. Ee_q"t4s.-p1bw?i,-é r3 t, lt diminuta a distância que separa em um pensamento obsessivo os vocábulos Deus e merda, Cristo e pênis etc, Alguns psiquiatras anteriores a Freud demonstraram conhe_ cer a alta incidência da patologia obsessiva em mulheres, ainda que a considera§sem um dos tipos clínicos da psicose. por essa razão, somos conduzidos, no primeiro capíttrlo, pelos mean- dros de textos da psiquiatria clássica, a partir dos quais a autora retoma, uma a [una, as diferentes formas em que essa patolo_ gia foi inicialmente definida: mânia de delíriq monomania de raciocíniq loucura da dúvida, patologia da inteligência, entre outras. Tais nomenclaturas, as quais devemos a pinel, Esquirol, J.-P. Falret e Legrand du saurle respectivamente, não eram uní- vocas, pois acentuav.rm ora a alteração da conduta dos sujeitos obsessiyos, ora sua alienação parcial. Com Falret Filho, psiquiatra que observou tratar-se de uma doença mais comum em mulhe_ res do que em homens, encontramos, como acentua Maria Anita, 'h melhor descrição da neurose obsessiva antes de Freud'i na qual os que delapadecem demonstram incessantes escrúpulos religio- sos, autorrecriminações, as mais diversas fobias, além de cuida_ dos demasiadamente longos com a toarete e o sentar-se à mesa. Foi necessário, contudo, o advento da teoria psicanarítica, para que a articulação de cada um dos diagnósticos com uma determinada direção do tratamento desvelasse para nós a cru- cial importancia do primeiro. Como veremos neste liwo, se um analista deve poder se antecipar a uma possível interrupção do tratamento, sob o argumento banal e corriqueiro de que .,tudo agora está beml precisa também saber avaliar o alcance de uma compulsão a atirar-se pela janela, esse importante elemento da 'heurose obsessiva da mulher'l É assim que se decide a manobra da transferência, e que pode formulá-la como o "delicado rimite existente entre o alivio produzido pelo ato de falar e a manuten- ção de um grau de angústia que permita ao sir;eito prosseguir sua L4 análise'l Iá no final do primeiro capítulo, podemos depreender as consequências clínicas de um ensino-aprendizagem seguido à risca através do caso clínico de uma adolescente. Mantê-la fora da internação como forma de evitar sua identifrcação com o sig- nificante "louca", à qual a destinavam as coordenadas familiares, foi a aposta bem-sucedida da psicanalista com base no diagnós- tico diferencial. Diante da subjetivação da ideia de se matar e da ausência do fenômeno elementar da alucinação verbal, conclui: não se trata de um caso de psicose, mas de neurose obsessiva de umamulher. O segundo capítulo recorre aos poetas: Marguerite Duras, Nelson Rodrigues e... Lacan. O que nele está em jogo é o enigma d'Á mulher e as diferentes formas em que ele se apresentananeu- rose obsessiva e na histeria. No texto poético desses autores, não só se vê que "roubar o homem de uma mulher é tornar-se a Outra cujo corpo será desnudado'l como também se aprende a firnção de véu do vestido, uma vez que ele encobre apenas "o lugar/vazio que é o dA mulher'l Mais, ainda: verifica-se que a morte de uma mulher não elide a questão que a castração feminina impõe, por- que disso emerge 'h busca incessante da impossível resposta'l Nesse sentido, trata-se tanto de distinguir neurose e psi- cose quanto de reconhecer a estratégia de cada tipo de neurose.  estratégia da neurose obsessiva, anunciada desde o primeiro capítulo, é então retomada e esclarecida pelo 'truque de Paris": fazer-se ver pelo inimigo nos mais diferentes lugares, porque estar em todos os lugares é não estar em lugar atgum. Estratégia de inflação imaginiíria, como a da paciente que diz: "Eu sou a maior merda do mundo!", para, desse modo, dar a entender que 'não é uma merdinha qualquer'i Nenhum obsessivo, homem ou mulhec deixa com facilidade a jaula em que se debate para enga- nar a Morte, seu mestre absoluto. 'As damas obsessivas e o fald', terceiro capítulo do liwo, ana- lisa o modo particular de degradação do Outro na neruose obses- I L5 JTI lr I 1/ il i l' siva feminina e retoma as críticas de Lacan a Fairbairn, que, em uma espécie de retornoà psiquiatria pré_psicanalitica, insistia em tratar sua paciente obsessiva como se, por trás da neurose, hou_ vesse uma psicose latente, ou seja, uma ausência de referência ao falo. Nos termos da autora, é o conceito lacaniano de semblante no lugar de Outro abs-oluto,_p_ara_aga*_rjl"dt que posteriormehte esclarece o aspecto de tombra, do falq pois ele, qual sombra interposta entre o sujeito e seu gozo, reúne sim_ bólico e imaginríriq e os opõe ao real Fazendo uso de um texto literário como se fosse um caso clínico, Maria Anita propõe outra série insügante: Bouvet, Lacan e Eça de eueiroz. Se a hóstia repre_ sentava os genitais masculinos para a paciente de Bouvet, e le o paciente de Lacan fantasiava introduzir uma hóstia na vagina da companheira, em pouco ou nada difere dessas pacientes a beata d'e o crime do padre Amaro, uma vez que um escarro rhe assomava à garganta sempre que devia prorr*.1* o nome de ]esus.;$ift_ rs4ça da histér,tca,_que situa para além do homem o Outro abso_ISg e-gbssssry3 *r**1*;.i. àffi f,ifico-deixa nr-qs-qlgggl" -o fenêtre,ela então utiliza um resumo do conto "O sinal", de Guy de Maupassant, ao qual Freud se referira a propósito dos sintomas de uma mulher obsessiva. No conto, uma baronesa em estado de grande agitação revela a uma amiga que se comportara como "uma mulher da üda": fora até a janela e frzera sinal para que um homem subisse. Nos termos de Freud então retomados, teria havido uma descarga sexual decorrente da ideia inconsciente de faire la fenêtre, e somente depois da angústia e sua interpretação, com a "angústia de cair da janela'l revelando a associação: angús- üa + janela. E, lançando mão de tun caso de sua própria clínica, uma jovem adolescente para quem "polut a janela" era o substi- tuto consciente da ideia inconsciente plena de desejo: "estar na praia nua, dando pra todo mundo I conclui com finura: "Na Viena de Freud ou no Rio de |aneiro de hoje, a mulher obsessiva dá ao jocoso faire la fenêtre de Maupassant a sua versáo trágica e mor- tífera'i Seguem-naÁ dama do tapete, A dama das lavagens e tam- bém Piggle, abem conhecida análise de Winnicott de "uma dama de dois anos e quatro meses". A releitura de seu caso, por meio da qual a autora o eleva à dignidade de paradigma, tem por objetivo das máscaras que vestem as mulheres obsessivas, quer isso se dê em suas relações com os homens, quer com o analista e/ou com Deus. Esse capítulo se inscreve na contracorrente de uma certa prática pós-freudiana, cujos fundamentos, bastante criticados por Lacan, são chamados de "teoria da relação de objeto'l O pró- prio Freud admitia que uma mulher, através da supervalorizaçáo sexual do objeto, podia amar'tomo um homerni Mais que isso, porém,'de sua observação sobre mulheres aduitas que anseiam encarnar um ideal masculino, deduz-se que, em linguagem laca- t1log qqqarrps. I"4r{9-§j q!ps.= Desdobrando então o enunciado freudiano segundo o quai "quase se pode dizer que a neurose obsessiva é uma religião par_ ticular", a autora descreve, no capítulo 4, .hs religiosrs dã signin_ cante'l como ela nos mostra, seu deslizamento metonímico não deve ser incentivado. Não se d,eve fazer.h interpretação da inter_ pretação'lpois em anáüse o obsessivo "é um 'trabarhador dedi- cadol Dito de outro modo, é necessário não levá-lo .h uma inter_ minável cadeia associativa em busca do sentidq do sentido, do sentido"''l Para esclarecer o sentido a ser dado à expressã,o faire ra r6 máticol e que ele sempre é um segundo t 17 I niana, a Penisneid pode ser rida como 'h nostalgia do faldl euer dizer, Freud preparara o terreno para que Lacan, ao retomar suas premissas, pudesse asseverarr "se a posição do sexo difere quanto ao objeto, é devido à distancia que separa a forma fetichista da forma erotomaníaca do amor.,, Mas se, com Joan Riviêre, Maria Anita demonstra que o femi_ nino é máscara, descartando quarquer ideia de uma essência ou de uma natureza femininas, é com suape quena piranha, em sua ..pro- fusão esvoaçante de cachos, minissaias, corpete justíssimo, salto plataforma, unhas longas e vermelhas e, sobretudo, um batom vermelho üvíssimo...", que erapode úrmar que amascarada femi- nina não se reduz a um sintoma. para uma mulher, aliás, a masca- rada é mesmo inevitável, porque advém de sua própria condição de não-toda inscrita na castraçãq ou na lógica fiáüca. Em "Ilma máscara de mulher,', vemos de que modo os véus são um tormento para a obsessiva, bem como a que ,turiosos extremos" podem ser levadas essas mulheres que se sabem pre_ sas aos artifícios da máscara. por meio de um debate entre Freud e clérambault, Maria Anita mostra que não há fetiche sem a refe- rência ao outro sexo, concluindo de forma bem-humorada: ,,No que diz respeito à perversâo, as mulheres estão em posição mais cômoda que a dos homens: são perversas por serem mulheres, e sua forma de amar é sempre marcada pela per-versáo do desejo.,, Em seguida, com base na releitura de Lacan do tratamento de uma mulher obsessiva por Bouvet, denominada A mulher do sapato, esclarece as diferenças entre as relaçôes de uma histérica e de uma obsessiva com o pai e com o homem, respectivamente. Enquanto a primeira denuncia a impotência do pai em lhe dar q significante de um gozo suplementar, a segunda, porque crê no pai, espera do homem a salvaçãg ou seja, enquanto a histérica quer despertar o desejo masculino exibindo a falta, a obsessiva procura fazê-lo encarnando o significante da falta. r8 O sétimo capítulo, 'A dor de Medeia'l desvenda um asPecto peculiar da neurose obsessiva em mulheres: a obsessáo infanti- cida. Por que entáo não chamá-la pelo que ela realmente é: uma obsessáo âlicida? Se de fato a dor de uma mulher obsessiva tern sempre algo de Medeia, entáo a excessiva preocupação com seus filhos não tem como consequência a privaçáo sexual. A ordem é inversa: primeiro a privação, isto é, a perda do lugar de objeto do desejo do homem, depois a fantasia de morte do(s) filho(s). Ou, nos belos termos em que a autora o enuncia, a fantasia de "imolar o filho no altar do Outro da mortdl Ousada, a autora não se furta a interrogar o mestre, propondo-nos que o deciframento freudiano segundo o qual se leria: filho + privação sexual à morte do fi1ho, lhe parece ser "um primeiro deciframento apressado do sintoma'i Trata-se antes de saber que espécie de insaüsfação antifreudiana é essa de uma mulher com a maternidade, que ato é esse de que os filhos sáo as ütimas e cuja únicaüsada é atingir o mais íntimo de um homem, o âmago mesmo de seu ser. Em suàs palavras, tanto Medeia como Madeleine sabem o que fazem e Por que o fazem. O oitavo capítulo, novidade da presente ediçáo, discute ques- tões de poesia e beleza, articulando-as com3l3efesas exclus,i- varnente ^obseTivas, a anulação e o isolamentp-'nn.Ws Neste capítulo lemos, por exemplo, que o recurso à metonímia para garantir a manutenção do recalcado não produz efeitos de poe- sia, leva, antes à confusão da neurose obsessiva com a paranoia e a melancolia. lg-ggritual§_{er-r_:"vtlrfazer e desfazer, cuja visada é anular a própria asressividade, não constroem fetiches, nem desr _1.- " - .-. ..----- -- - -. r4entem a castração. Resumidamente, as primeiras páginas do+ capítulo nos advertem dos riscos de urn diagnóstico calcado na fenomenologia. Prossegue este capítulo intihilado "um pouco de beleza e poesia'] lembrando ao leitor que, aquém ou além da neurose, 't ) 19 T ! no amor que uma mulher, seja ela histérica ou obsessiva, buscasua subsistência,i M remenre em tunção T; *TTIi,:J:Tffi,: nffiT:::T; segunda se pode dizer que ,tua forma particular de se locüzar nalinguagem não lhe permite recobrir_se de poesia,l Haveria, entãquma distância inevitáver entre as *rlh"r.. obsessivas e abereza? Não é esta a conclusão da autora. Ao contrário, seu texto nos leva a reconhecer na mascarada feminina das obsessivas, gual seja, em :.::"UT vestidos e joias, os instrumentos ..que Ih"s àao a ír.aoqe camuÍIar a morte com a beleza,l Não restadúvida de que somente uma leitura desse portepoderia ter conduzido a autora a encerrÍr o nono capíttrlo comuma importante discussão sobre as diferenças clínicas entre o lcting ouf, a passagem ao ato e o ato sintomático. É a partir dadenominação dada por Lacan aos atos de Medeia e de Madeleine- 'ãtos de uma verdadeira mulher,, _ e por concluir que é viável a leitura retroativa de uma passagem ao ato que Maria Anita des_taca'uma possíver leitura da reraçao particular da murher obses- siva com a verdade: melhor do qrl., hirrérica, a mulher obsessiva denuncia que o filho não é o falo. Enfim, tal quai o movimento da pulsão que retorna sobresi, o nono capíh:Io retoma a confusão diagnóstica entre a neu_rose obsessiva e a melancolia, ainda hoJe fre"quente, sobretudo notratamento de mulheres. A partir do ainda atual debate Freud_Âbrúam e das ultimas elaboraçôes freudianas sobre o supereu, esse- ultimo capítulo Procura avançar na anáIise dos diferentes peito do que pode ser subjetivado a partir do continente negro da feminilidade. Todo aquele que pôde privar da companhia daquela que escreveu este liwo certamente conhece um de seus üaços mais particulares: o entusiasmo com a prática analítica, algo que transparece em cada uma de suas páginas. Rio de |aneiro, 3r de março de zorr Vera Pollo modos de relação das mulheres com o amor. Se bancar o que n4osÉPgrmanece sendo algo da "ordem do inewifáwer,, -o.a ^ - *..rL ^ res, reconhecê-las cgmo escravas qlitic?yt-nJe-iAcg1.-e- uda na íva e histérica. com [Jm certo tipo de murher,o"rffia" i i i i: I clínica anaütica, dos mitos e da literatur", . upr.rrd._se algo a res_ i Feminina e francesa UMANOVA NEUROSE A palawa psicanálise foi usada pela primeira vez em r.896, num artigo intitulado 'A hereditariedade e a etiologia das neuro- ses", neste mesmo artigo Freud afirma que, levado por sua pes- quisa, foilhe necessário introduzir uma inovaçáo nosográ- fica. "Encontrei razões para situar, junto à histeria, a neurose de obsessões [...]" (p. 146). O artigo foi redigido e publicado origi nalmente em francês, e é portanto da pena do próprio Freud que vemos nascer la névrose obsasionnelle como traduçáo da palawa alemã,Zwangsneurose, assim mesmo, no feminino e em francês.' Freud reivindica assim e, como veremos a seguir, não sem razáo, a paternidade da neurose obsessiva, sua cria, surgida do rigor da pesqüsa e do cuidado meticuloso com o diagnóstico diferencial. Para nós é de extrema irnportância esta autoria assim tão claramente afirmada, pois joga por terra qualquer úrma- ção apressada do tipo "Freud se enganou ao classificar algumas mulheres como obsessivas'i Freud não pode ter se enganado pelo simples fato de que Freud inventou a neurose obsessiva e, assim sendo, neurose obsessiva é o que ele, Freud, diz ser. E se fala de mulheres obsessivas - não poucas, mas muitas - o que nos resta ' Na nota introdutória a Obsusões efobias, ]ames Strachey atribui a Kraft-Ebing, em 1867, a introdução do termo Z:angworstellung (ideia obsessiva) corno traduçáo , alemá do inglês obsxsíon,p. 72. I afazer é debruçarmo-nos sobre seus ensinamentos e deles apren- der sobre este aspecto, certamente muito obscuro, do continente negro da feminilidade. O adjetivo obsasionnelle, em francês, se deriva de obses_ sion (em inglês), que tem como raiz latina oásassus, significando "sitiado'l 'tercado'l É curioso notar como mesmo antes de Freud, esta característica de "estado de sítio" da neurose obsessiva era sublinhada pelo psiqúatra Legrand du saulle. Descrevendo o pri- meiro período daquilo que ele denomina "loucuras da dúvida,l conclui: 'iA. luta é silenciosa: o sitiado não se queixa do sitiador,, (p.s:). Embora o termo'heurose obsessiva,l cunhado para designar o que Freud afirmava ser'ma .,inovação nosográfica,i só tenha surgido em 1896, a preocupação de Freud com a obsessão e as representações obsessivas é bem anterior. Aliás, o próprio sin_ tagma 'heurose obsessiva" já está presente em sua correspondên- cia a Fliess dois anos antes de anunciáJa como,Ína nova concep- ção nosogrrífica. Comenta então com o amigo que ele tem razão em chamar-lhe a atenção para o fato de que o vínculo entre a neurose obsessiva e a sexualidade .hão é assim tão óbvio, (p. 66). Curiosamente, no texto gue os dois presumivelmente, comen- tam, 'âs neuropsicoses de defesa'l Freud não utüza o termo neu_ rose obsessiva, mas se refere apenas às representações obsessivas (Zwangsvarstellungen). É como se precisasse ganhar tempo e se aprofundar em suas pesquisas para impor com tranquilidade a nova neurose por ele descoberta. Na carta de zr de maio de rg94, diz a Fliess que se sente muito só na elucidaçâo das neruoses e comenta a ironia da ,.incongruên_ cia entre o apreço que se dá ao próprio trabalho intelectual e o valor que os outros the atribuem' (p.zà. Fala do grande sucesso que um üwo sobre as dplegias, que preparou ,,quase corn frivo- lidaddl estava obtendo, em contraste com o fracasso que e§Pe- rava'üas coisas realmente boas" entre as quais enumera um texto sobre as "Ideias obsessivas", presumivelmente (e quem Presume aqui sou eu) o texto "Obsessões e fobias" escrito no mesmo ano e publicado em 1895. No rascunho D que acompanha esta carta, "Sobre a etiologia e a teoria das principais neuroses", a neurose obsessiva jâ é apre' sentada com seu nome próprio' Mas é no Rascunho K, que acom- panha a carta de ro de janeiro de 1896, ironicamente intitulado por Freud de Um conto defadas natalino, que e1e vai firmar a des- crição de netuose obsessiva, contrapondo-a à paranoia e à histe- ria e caracterizando-a pela autorrecriminação, o que é hoje con- sagrado como o'tofrer dos pensamentos". A grande "invençãd' de Freud foi retirar a obsessão do campo das psicoses e subordiná-la ao campo da neurose ao lado da his- teria. Freud, na verdade, subverteu a perspectiva a partir da quai a psiquiatria abordava então as obsessões: como dar conta de uma "loucura" (mania) que não afetava o raciocínio? Ao centralizar a questão da obsessão em torno do pai, Freud pôde alinhar sua nova neruose ao lado da histeria. os clÁsstcos O debate da psiquiatria clássica antes de Freud, sobre aquilo que após o mestre sabemos ser a neurose obsessiva, tomou a dire- ção contrrária, ou seja, preocuPou-se em afirmar a integridade do pensamento nesta afecção. Pinel chrunou íe "mania serBielí.1 jl"_§Tg_ryry_po::ig j-glgg!"dqç-que-s-e3arss!çdza-v-a-Pelo-f ato de que se tratavam de "loucos que em nen[Yq j1otl9.n193g9-- t_.:i"* qü"t-quã-tesaõ {o=ent.ndim".lrio, " (ue estavam domi: nados de uma espécie de instinto de furor, como se uniçq-4entq iítiGssem lêsadas suas faculdades 1{etiyls' (p- +r). Neste artigo, I 24 Âpresunção édo editorJeffreyMoussaieffMasson, nanota da carta de3o.r..r994, p.6S. 25 lii. ir E--- Pinel descreve magistralmente três casos de sujeitos acometidos de um fiuor sem limites, porém isentos de atividades delirantes. Embora o autor não nos dê outros dados que permitam um diag- nóstico cabal de neurose obsessiva, os casos descritos se asseme- lham aos daqgs!*{g SIg de que são capazes alguns obsgggvos quando, prlsos na gaiola de seu naicisismõ ie-ntem-sãim"gi""- ,1@---_Ug_úaça{os. Uá bom exeúplo deste furor, toiahãnte ãpoiado na rivalidade imaginríria, está no fllme "[,lm dia de fiiria'l no qual o personagem central, encarnado por Michael Douglas, sentindo-se pressionado e ameaçado pelo cotidiano estressante da cidade grande, sai matando como um louco. Um dos aspectos interessantes de se observar é que o alvo de seus ataques é sempre um representante de uma minoria racial (minoria para os Estados Unidos, é claro). Assim, asiáticos e chicanos caem sob seus gol- pes justiceiros, ilustrando magnificamente o que Freud chamou de narcisismo da pequena diferença. O ponto mais curioso é gue, centrando a trama na ótica do herói-assassino o diretor leva o espectador a uma identificação especular maciça, deixando claro que qualquer um na sala de projeção do cinema é potencialmente um "maníaco sem delírio"nos moldes de pinel. Também outro ilustre representante da psiquiatria clássica, Esqúrol descreve um transtorno mental, a "monomania racio- nantdi que consiste em umaperturbação da conduta sem partici- pação do raciocínio: "Por mais irracionais que pareçam seus atos, estes monomaníacos sempre têm motivos mais ou menos plausí- veis para justificar-se, de modo que podemos dizer que eles são loucos razoáveis" (p. S:). A "mania sem delírio" e a "monomania raciocinante" cen- tram a classificação nosogriífica na pecúaridade de existirem maníacos que preservam o seu raciocínio. Tiú nâo é a opinião do bispo Jeremy Tayler, autor de uma curiosa observação publicada z6 ern 166o,r sobre um de seus devotos. O piedoso homem lia dois livros de devoções que tanto lhe agradavam que resolveu discipli- nar-se na tarefa, Passou a dedicar três horas por dia para ler seus üvros, e como observou que em três horas lia os livros três vezes, passou a os ler durante seis horas. Em pouco tempo já tinha che- gado ao ponto de ler durante doze horas, doze vezes seus precio- sos liwos, o que levou o sensato bispo a declarar que "seu escrú- pulo era irracional". A avaliação do bispo Tayler era guiada pelo bom sensq enquanto que o objetivo de Prgele-Elguirol era o de determi- nar o caráter específico a. "rrá;t&à-É;d";"?üàsem delí- rio. No início do artigo citado, Pinel deixa isto claro, ao se opor a Locke, para quem a loucura seria sempre acompanhada de uma perturbação no raciocínio. Ao estabelecer a diferença entre o louco e o idiota, Locke diz que: "Os loucos juntam ideias erra- das e assim constroem proposições errôneas, mas argumentam e raciocinam certo a parür delas; mas os idiotas constroem poucas ou nenhuma proposição, e quase náo raciocinam" (p. 146). Para Pinel, na "mania sem delírio', *não se adverte nenhuma alteração sensível nas funçóes do entendimento", e sim uma'terta perver- são nas funçôes afetivas", sem que se possa assinalar "nenhuma ideia dominante, nenhuma ilusão da imaginaçáo que seja a causa determinante destas funestas inclinações" (p. +s). Assim sendo, o que preocupa Pinel é a etiologia de sua "mania sem delírio" e o que o espanta é não encontrar runa ideia deli- rante que origine esta dita mania. EmíJSgÇtr[_F@t descreve minuciosamente o que ele chama de "úenaçáo parcial com pre- domínio do temor ao contato com os objetos externos". Salienta que é uma variedade de doença que tem como fundo os delírios parciais, ativos e expansivos, estando portanto do lado da mania e não da melancolia. Ressalta que é uma variedade da mesma Como observa J. Stracheyo significante obsession data, em inglês, do século xvu,p. 22. l a1 L l1ti Ir enfermidade que seu pai chamou de "doença da dúvida,i ..para resumir, em sua forma mais geral, o fato psicológico que consti_ tui seu fundamento principal" (p. +S). . -?ara Fúet Filho, trata-se de uma doença que atinge ospensa_ ,' mentos e as ações. O doente se vê compelido a repetir os mesmos ' atos e as mesmas palawas, o que implica um tesgaste excessivo da energia nervosa e intelectual'l levando o sujeito a um estado de .- tal sofrimento que o autor se surpreende que esta doença, que às vezes dura a vida inteira, 'hão desemboque nunca numa verda- i deira demência" (p. 5o). - -- O texto de Falret é sem dúüda a melhor descriçáo da neurose obsessiva antes de Freud. Como podemos ver, o autor salienta, desde o título que dá à doença, or_9úioa1;ài,iÊ9i presentes com frequência na neruose obsessiva. Oii-{ue tais doentes têm medo de tocar objetos externos com suas mãos, pois estes podem estar sujos ou podem conter alguma substância prejudicial. Têm também medo de cachorros e sobretudo de cachorros raivosos (p.+8). Fogem ao contato com todos os objetos e os objetos metá- licos "são, de ordinário, aqueles cujo contato mais lhes repugna,, (p.+S).Além disto, alguns pacientes são sujeitos a escrúpulos reli- giosos e se reprocham sem cessar. Empregam um tempo dema_ siadamente longo para fazer sua toalete, ou para se sentar à mesa. Falret vai assim enumerando, catalogando cuidadosamente, os sintomas que Freud decifrará no futuro como característicos da neurose obsessiva. É curioso verificar como a simples observa- ção clínica, sem um respaldo teórico preciso, leva o autor - cer_ tamente um grande clínico - a atribuir o mesmo peso a sintomas importantes (a repetiçáo de atos e palawas, os escrúpulos) como a sintomas secundários e acidentais (medo de cachorros raivosos e repugnância a objetos metiílicos). Falret atribui a origem deste transtorno mental a uma doença física, observando que o quadro aparece'hpós uma doença como a febre tifóide ou cólera,, (p. So), zB e surpreendentemente observa que "esta doença é mais comum na mulher, porém também se observa no homem" (p' S6). A maior incidência da neurose obsessiva nas mulheres obser- vada por Falret é facilmente expücável pelo fato, que ele próprio sublinha, de que esta é uma doença que aParece mais frequente- mente nos consultórios particulares do que nos hospitais e asi- los para úenados. Assim sendo, não espanta que em 1886 o ilus- tre alienista encontrasse mais mulheres se queixando de siirtomas obsessivos, pois até hoje a clínica comProva que as mulheres, mesmo as obsessivas, têmmaiorpropensáo a falar dos seus proble- mas, das suas falhas, do que os homens, mesmo os histéricos. Esta hipótese é confirmada por Legrand du Saulle, que reivindica ser o primeiro a isolar a "loucura da dúvida (com delírio do tato)'i como uma das quatro variedades nosológicas da loucura cornconsciên- cia. Diz ele: "A loucura de dúvida afeta muito mais às mulheres do que aos homens, pode aparecer pela primeira tÍez na puberdade e se observa quase sempre nas classes mais aitas da sociedade" (p. s6). Esta observação confirma o fato enfatizado pelo autor: a "loucura da dúvida" é doença de consultório particular. Du Saulle menospreza os trabalhos de seus antecessores e úrma ser o primeiro a de fato estabelecer a sintomatologia desta "patologia da inteligência" (p. 5z). Ele também atribui a ProPen- são à doença à herança mórbida, e dá como fatores desencadean- tes do quadro, não só uma variada lista de doenças físicas, mas também'b onanismo inveterado, uma grande emoção e um vivo pavor" (p. ss). Du Saulle também une neruose obsessiva e fobia. Sua "lou- cura de dúüda" vem acompanhada sempre do "delírio de tato'l Êm 1895, Freud publica seu artigo sobre "Obsessões e Fobia'lcom o objetivo claro de distinguir os mecanismos psíquicos e a etio- Iogia "das verdadeiras obsessões, muito diferente do das fobias" (p.l ). Este é o primeiro passo para destacar a netuose obsessiva i I I a i l: ) i com 'hfecção autônoma e independente" (p. 146), porém a rela- ção entre neurose obsessiva e fobia, ou neurose de angústia ou histeria de angústia é tã<l complexa quanto o número de designa- ções que se queira usar. Ao longo da obra de Freud, novas nuan- ças vão se delinear e uma rica trama de conceitos vai se tecer. o oracrqósrlco DIFERENCTAL... Retornemos por um momento agora para o famoso rascunho K já anunciado no inicio do capíhrlo, para tentarmos extrair dele todo o entusiasmo e a sabedoria que Freud dedica a sua nova neurose. Freud descreve as neuroses como 'hberrações patológi- cas de estados afetivos psÍquicos normais" (p. 16l). É uma defi- nição importante no que ela antecede a definição lacaniana de estrutura, e nos permite distinguir a estrutura neurótica - estado afetivo psíquico normal - da neurose desencadeada - sua aber- ração patológica. A própria estrutura da histeria, apontando para a falta e paÍa a insatisfação do desejo, permite com que, mútas vezes, os histéricos possam procurar uma análise porque 'h vida vai mal'l de um modo genérico, e será a manobra de transferên- cia, por parte do analista, que poderá desencadear a neurose de transferência para permitir o decorrer de uma análise. IáL na neruose obsessiva, 'bs q$jêA.:5,-ai_s.-difíEeis--de- rom- p e r"'- (t'acanl 193 ri; "" *j í;il;;;"; a,pêrJr_c-ul4{rnentedestffiadaataúiiflái;'ãáilocãr, a nãgar, a d.uüdgtli pó vÍunos serprocúrados como analistas quando algo, de f"to ," ,o*p.u. '- A manobra da transferência vai se dar no limite delicado entre o alíüo produzido pelo próprio ato de falar e a manutenção de um certo grau de angústia que permita ao sujeito prosseguir sua aná- üse. Os analistas conhecem bem a frequência com que as aniilises dos obsessivos são interrompidas porque'hgora está tudo bemi miraculosamente. 3o O estabelecimento do desencadeamento da neurose obses- siva é de extrema importância, no caso especial das mulheres, pois é quando será possível detectar a causa da ruptura produ- zida na estrutura de camuílagem. É o caso de uma jovem com ideias obsessivas, extremamente penosas, de se atirar pela janela.  conjunção da entrada na adolescência, com as questóes rela- tivas ao sexo que aí se impõem, juntamente com a existência de um segredo familiar relativo a um suicídio, foram os responsá- veis pela eclosão da neurose. A jovem até então tida como filha exemplar, excelente aluna, com um rendimento intelectual bri- lhante, passara a ser, de súbito, o tormento da famflia. A com- pulsão a se atirar pela janela foi muito bem decifrada por Freud (Marson, 1986, p, zt7-zt9), como um elemento importante da neruose obsessiva em mulheres, e teremos oportunidade de reto- mar depois este tema. No momento, quero apenas observar que o estabelecimento claro destas circunstâncias desencadeantes foi um dos dados que orientou a analista no estabelecimento do diagnóstico e na manobra da transferência, e a impediu de dar um rumo desastroso ao caso, que tinha inclusive indicaçáo de internação psiquiátrica. A questão do diagnóstico diferencial é postulada por Freud (rSr:) a partir de parâmetros éticos: "Se o doente náo sofre de histeria nem de neurose obsessiva, porém de parúenia, ele [o analista] não poderá manter sua promessa de cura e por isto tem motivos particulares sérios para evitar o erro diagnóstico" (p. n6).ParaFreud, este erro é "muito mais funesto" para o psicana- lista do que para o psiquiatra clínico, para quem o diagnóstico só tem "um interesse acadêmico'. Estamos, portanto, no terreno da ética: não se trata de diagnosticar para classificar. Na "lntrodução à edição alemã dos Escritos", de r973, Lacan elucida; 6o anos depois, a recomendação do mestre: "Freud o disse antes de mim: tudo numa anáüse deve ser recolhido - onde l !,, i 31 se vê que o analista não pode escapÍr - recolhido como se nada, aliás, houvesse sido estabelecido'(p. ,o).Lacan aqui se refere a um texto anterior de Freud "Conselhos ao médico sobre o trata- mento psicanalítico' (t9tz), no qual Freud enurrciaaregrafun- damental da anáIise, em duas versões: o pÍIra o analista, a atenção flutuante; o pÍIrâ o analisante, a associação liwe. É entâo da palawa do analisante, dita o mais possível sem barreiras, que o analista, numa escuta o mais possível sem pre- conceitos, vai poder verificar a relação do sujeito à estrutura que é, nos diz Lacan, estrutura de linguagem. "Pois a questão começa a partir disto - existem üpos de sintoma, existe uma clínica. Só que ela é anterior ao discurso analítico, e se este último traz-lhe uma luz, isto é seguro mas não é certo. Ora, precisamos da cer- teza porque só ela pode transmitir-se ao demonstrar-sd' (Lacan, 1973, p. ro). Aí começa a questão da dificuldade do diagnóstico diferen- cial, sinúzada por Freud no seu texto de r9r3. "Várias vezes, quando encontramos tuna neurose com sintomas histéricos ou obsessivos, porém não presentes em excesso e de curta duração - quer dizer, justamente as formas que se considerariam favo- ráveis para o tratamento - deve caber a dúúda sobre se o caso nâo corresponde a um estádio prévio da chamada dementia pra- ecox (esqrizofrenia, segundo Bleuler, parafrenia, segundo minha proposta) e, passado mais ou menos tempo, mostrará um quadro declarado desta afecção'(p. rz6). Dentro desta mesma perspec- tiva, Lacan nos adverte iO seminário As psicosa que se tomar- mos um psicótico não desencadeado em anríIise (na época ele dizia'pré-psicótico') teremos uma psicose desencadeada. O texto de Lacan de ry7 elucida ainda mais precisamente a questão. O significante cifra o gozo, e a esta operação na neu- rose Freud denomina recalque. É o recalquê que garante o deci- 32 framento pela análise: "r{.s formações do inconsciente, como as designo, demonstram sua estrutura Por serem decifráveis. Freud distingue a especificidade do grupo: sonhos, lapsos, chistes, do rflodo, o mesmo, com o qual ele opera com eles" (p. 8). ,''-^'OÍa, na psicose, a falha do recalque deixa o inconsciente a / cé,taberto. Não se trata de decifrar, porém de cifrar, ou seja, bus- I .*, no caminho inverso da análise, que o sujeito possa constrúrl. \ com as palawas um dique ao gozo que o invade. Deste modo, a \ promess" de cura não poderá ser mantida pelo analista na psi- )L ) cose. De que promessa se trata? Muito simples: da felicidade!. L- Diz Lacan: 'A boa hora, Ie bon heur, existe. Só existe isso mesmo: a felicidade, le bonheur, é questão de chancel Os 'teres" falantes são felizes, felizes por natureza, aliás, desta ultima é tudo que lhes resta. Será que por meio do discurso analítico não se poderia vir a ter um pouco mais? Eis a questão de cujo esüibi- lho eu não falaria se a resposta jâúo aqui estivessd' (p. ro). Uma aposta na felicidade, pouca que seja, nos leva do terreno da ética ao da política - a política do analista. Apostar na felicidade é apostar em ir além do sintoma, além do pai, além do espesso nó - mas para seguir além, o analista deve se apoiar na segurança de um diagnóstico que lhe garanta a presença do nó - o Édipo, o pai, o sintoma - paÍa poder ir além dele. É, segundo Lacan, 'b nó tal como um Marx o percebeu" (p. 9), porém indispensável para que a aventura analítica se dê. A certeza buscada no diagnóstico diferencial, na evidência do nó, é entretanto problemática. "Que os tipos clínicos resul- tem da estrutura, eis o que já se pode escrever, ainda que não sem hesitação. Só há certeza e só é transmissível para o discurso his- térico" (p. ro).4 histeria tem um discurso próprio, matemizado por Lacan no seminário xvII; a histeria fazlaço social, permite mais facilmente um diagnóstico positivo. A neurose obsessiva, nos diz Freud, é dialeto, não tem discurso próprio, o que dificulta, e muito, um diagnóstico preciso. I 33 O elemento básico destacado por Freud no Rascunho Kpara estabelecer o diagnóstico diferencial da neurose obsessiva, com relação à histeria e à paranoia, é autorrecriminação.Embora Freud reconhecesse, como já foi mencionado, que o vÍnculo entre neu, rose obsessiva e sexualidade não era, à primeira üsta, tão óbvio quanto o da histeria, insiste em que também nas obsessóes as cau- sas precipitantes são de naiureza sexual, e ocorrem no período precedente à maturidade sexual do sujeito. A etiologia sexual das neuroses já está assim afirmada e Freud já pode declarar que não crê "que a hereditariedade determine a escolha de neurose defen- siva específica" (Marson, 1986, p. r63). O encontro traumático com o sexo seria na neurose obses- siva, acompanhado de pÍazer, ao contrário do que ocorre na his- teria. Aqui Freud desvincula a experiência sexual prazerosa de atividade (nos meninos) ou de passividade (nas meninas), e em seguida cai em contradiçâo. Postula uma posição passiva inicial do sujeito, quer homemr Qu€Í mulher, diante do ataque sexual vindo do Outro, o que aliás é confirmado por ele próprio, trinta e cinco anos depois, ao atribuir à mãe o papel da grande sedutora, para ambos os sexos, pela via dos cuidados corporais estimulan- tes. Em 1896, entretanto, se vê obrigado a recuar num raciocí- nio contraditório, de modo a conectar a passividade ao desprazer, pouco depois de afirmar que nas meninas obsessivas a e4periên- cia passiva era prazerosa. Somente no ano seguinte, na carta de r5 de outubro de rg97, Freud nos darâ a chave para resolver esta contradição: a univer- salidadedo Complexo de Édipo. Assim, podemos compreen- der, retroativamente, como a experiência prazerosa do encontro com o sexo retorna como desprazer naneurose obsessiva, como efeito da culpa e não da passiüdade. Sendo assim, a experiên- cia inicial passiva ao convergir posteriormente com a experiên- cia prazerosa também passiva nas meninas, acrescentaria pela üa 34 da culpa desprazer à lembrança prazerosa e possibilitaria o recal- camento, mantendo-se o esquema de 1896 - Desprazer-Prazer- Recalcamento. O próprio Freud autoriza esta interPretação ao afirmar que a autorrecriminação emerge iniciaknente como "um sentimento pruo de culpa, sem nenhum conteúdo' (p. 166), para depois Iigar-se a um novo conteúdo distorcido. Assim sendo, % ideia obsessiva é produto de um compromisso, correta no que tange ao afeto e à categoria, mas falsa em decorrência do deslocamento cronológico e da substituição por analogia" (p. 166). A desloca' mento jáé então sublinhado por Freud, como o mecanismo pró- prio da neurose obsessiva. Embora Freud aborde, no Rascunho K, a neurose obses- siva, a paranoia e a histeria, a ênfase comparativa é dada entre a neruose obsessiva e a paranoia. Na neurose obsessiva a autor- recriminação é recalcada e posteriormente deslocada, enquanto que na paranoia "náo há formação e recalcamento posterior de uma autorrecriminação" (p. i68). Esta comparaçãro iâ está pre- sente no Rascunho H, de 1895, quando Freud enumera paranoia e obsessão como "disturbios puramente intelectuais" (p. ro8). No Rascunho K, Freud sublinha que o deslocamento da ideia obses- siva poderia levar a formas de delírio que, no entanto, não perten- cem à psicose (p. 16z). No Rascunho H, separa a neurose obses- siva como uma perturbaçáo que "deve sua força a um conflitoi e defiae a paranoia dizendo que sua finalidade "é rechaçar uma ideia incompatível com o eu, projetando seu conteúdo no mundo externd'(p. rro). Assim sendo, Freud responde às inquietações de Pinel e Esquirol: não se trata mais de discutir se na neurose obsessiva há ou não há delírio, ou de marcar a distância com relação à para- noia pela preservaçáo ou não das "funções do entendimento'i As construções obsessivas sã.o obviamente construções delirantes, e I 35 quem o duüdar confira a história enlouquecida do Homem dos Ratos com o tenente Â, o oficial B e os correios, que custou a Freud a elaboraçáo de um mapa (Freud, 1909, p. 166 nota 43). Lacan, nos anos 70, marcou exatamente isto ao falar dos Nomes- do-Pai, no plural. Na neurose, tal como na psicose, trata-se de fazer suplência ao impossível, ou seja, no diagnóstico não se trata de estabelecer uma diferença qualitativa entre neurose e psicose (loucos yersus não loucos), mas sim de marcar uma diferença estrutural, que tem consequências clínicas. ... E suÂs coNsequÊucres crÍNrcÁ.s Em 1895, Freud aborda a mesma questão a parür do destino dado ao que ele chama na época do "representação incompatí- vel com o eu". Na paranoia a representação é rechaçada, enquanto que na neurose obsessiva a representação é recalcada e substitu- ída, por deslocamento, pela ideia obsessiva. Muitos anos depois, Freud (r93r) vai esclarecer sobre esta representação incompatí- vel com o eu: é a representação da castraçáo materna que ame- aça o sujeito. Ora, o agente da castração simbóüca, Freud é bem claro, é o pai, e assim não é surpreendente que Lacan vá denomi- nar de significante Nome-do-Pai ao significante que na neruose vai amarrar o sujeito à linguagem: Na psicose este significante está foracluído - ou seja, a representação é rechaçada - e retorna no real, no muado exterior, sob a forma, por exemplo, das vozes alucinadas. O tormento das ideias obsessivas, que assediam o sujeito como vozes interiores, pode levar, em alguns casos, a tuna dúüda diagnóstica entre neurose obsessiva e a paranoia. É o caso da jovem já citada: aideia obsessiva de se jogarpela janela a assaltava com tal energia que poderia ser confundida com vozes que orde- nassem que pulasse. No entanto, na psicose âs vozes, retornando t6 do real, sáo exteriores ao sujeito, mesmo que seja ele quem pro- nuncie as palawas.  moça dizia múto claramente: "Não quero me matar, mas esta ideia não me sai da cabeça." Haüa portanto conflito, e a ideia era subjetivada, embora sua origem fosse des- conhecida para o sujeito, instaurando a divisão subjetiva, indica- dora do recalque. Neste caso qualquer medida protetora que tranquüzasse a analista, como a internação indicada por outro profissional, teria sido desastrosa, pois haüa na família antecedentes psiquiátricos que levariam facilmente a jovem à identificação com o signifi- cante louca, o que lhe fecharia as portas para outra saída. Como já disse, o dever do diagnóstico é ético, e assim sendo, coube à ana- lista suportar a angústia do seu ato, e manter a adolescente fora da internação, confiando no dispositivo analítico para dar conta da situação. Na verdade, o estudo comparativo entre paranoia e neurose obsessiva, embora difícil e complexo, é bem menos espinhoso do que aquele entre histeria e obsessão. No que pese o zelo de Freud em descrever e isolar a sua nova neurose, já em 1896, no mesmo ano em que lança ao mundo a neurose obsessiva, diz que'tm todos os meus casos de neurose obsessiva encontrei um fundo de sintomas histéricos" (p. 16g).Dezoito anos depois, no capítulo VII do historial clínico do Homem dos Lobos, volta a se referir ao "pequeno fragmento de histeria que regularmente se encontra no fundo de uma neurose obsessivd' (Freud, r9r8, p. 7o).lâ no caso do Homem dos Ratos, Freud dissera claramente que " a lin- guagem da neurose obsessiva é, por assim dizer; apenas um dia- leto da Iinguagem histérica" (r9o9, p. L2à.Em t926, em Inibição, Sintoma e Angústia, chega a declarar que 'h situação inicial da neurose obsessiva não é senão a da histeria, a saber, a necessá- ria defesa contra as exigências libidinosas do complexo de Édipo' (p. ros). Lacan, por sua vez, fala do "núcleo histérico da neu- I I I i I !i 37 rose" (1953), chegando a atribuir à histeria um discurso, ou seja, demonstrando como a histeria faz laço social, não havendo entre- tanto um discurso próprio à neurose obsessiva. Assim sendo, não seria mais prático sustentar que não exis- tem mulheres obsessivas e sim histéricas, com defesas obsessivas? Curiosamente, ninguém pensa na hipótese de chamar os homens obsessivos de histéricos com defesas obsessivas, o que seria coe- rente dentro do mesmo raciocínio. Deste modo, em lugar de abandonar aqui as neuróticas obsessivas com o rótu]o fácil de his- téricas prossigo com Freud e com a clínica, para examinar o ema_ ranhado complexo das relações entre histeria e obsessão. nrreRÊNcras grsllocnÁrlces DU SAULLE, r.. "La locura de la Duda (com Delirio del Tacto),,. In: Ias Absesiones. Buenos Aires: Ed. Nueva Vision, r9g5. FÂLRET, 1. e. 'toucura razonantdl In: Las Obsesiones. Buenos Aires: Nueva Vision Ed., 1985. FREUD, s. 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A peça, completamente revolucionária com relaçáo ao modelo tea- tral ügente, causou polêmica e hoje, quando seus aspectos ino- vadores já foram absorvidos pela cultura, continua a encantar o público pelo seu vaior artístico e por tocar em algo da verdade do inconsciente, através do talento de seu autor, Em um artigo em que presta homenagem a outra grande artista, Marguerite Duras, Lacan (1988 bgSl} se espanta pelo fato de que ela, a autora, através de sua obra, mostra saber sobre aquilo que ele ensina sobre a psicanálise, sem ao menos conhe- cê-lo. Para Lacan, diante da obra de arte, o psicanalista deve lembrar-se, com Freud, de que o artista o precede no tema que aborda, e procurar aprender da obra o que o artista sabe sobre o inconsciente, que ele, psicanalista, estuda. O texto que Lacan comenta em sua homenagem a Marguerite Duras é O deslumbra' mento de Lal V Stein. Coincidentemente os dois textos giram em torno de um ves- tido: o vestido negro da mulher gue arrebata o noivo de Loi numa festa do cassino, e o branco nupcial, usado por Alaíde e Lúcia I na peça de Nelson Rodrigues. É o tema do vestido que, segundo Lâcan, sustenta a fantasia de Lol: o vestido negro desnudando o corpo da Outra, num gesto que nunca se completa. O que revela- ria a queda do vestido negro senão o vazio, o nada em que a pró- pria Lol foi lançada quando o noivo a despoja do seu amor, dei- xando-a nua aos olhos dos outros, como louca? Mas que mulher não ficaria louca ao ser assim trocada por outra? É numa festa num cassino à beira-mar que Lol vê uma estranha e fascinante mulher vestida de negro arrebatar o noivo que ela, Lol, amava. Permanece inerte diante da cena, ela própria arrebatada pela visão do casal. O gênio de Marguerite Duras vai nos conduzir sutilmente ao segundo tempo da novela. Recuperada da crise provocada pela cena do cassino, Lol retorna, anos mais tarde, a sua cidade, casada e com fiIhos. Sai em peregrinação pelas ruas e reconhece uma amiga da adolescência, Tatiana, com o amante, os segue e os observa de longe. O vestido negro retorna sob a forma dos longos e negros cabelos de Tatiana, que recobrem sua nudez no encontro amoroso. O amante de Tatiana, narrador do liwo, se apaixonapor esta estranha mulher, Lol, que espia seus encontros amorosos, e ter- mina por acompanhá-la numa viagem ao cassi.no, onde se dera a cena do arrebatámento. Na ida de trem os dois se amam. Na volta, Lol, transtornada, enlouquecida, se recobra pnra lembrar ao amante que não faltasse a seu encontro com Tatiana. O liwo se encerra com a imagem de Lol deitada no campo de centeio, diante da janela onde os amântes se encontram, ela própria ape- nas uma mancha escura na paisagem. "IJm ser oferecido à mercê de todos'l dizLacan, 'âs dez e meia da noite no verãol' ÊmVatido de noiya, o vestido que recobre a nudez d' Mulher é branco, copiado de "uma fita de cinema'l Numa montagem rela- tivamente recente, o diretor, ao usar o mesmo vestido de noiva paÍa as duas irmãs, Alaíde e Lúcia, aponta para o que é este ves- 42 tido: o véu que encobre o lugar vazio que é o d' Mulher. Alaíde, Lúcia, Mme. Clessi são máscaras, véus que velam ovazio. Âiaíde, aos olhos de Lúcia, rouba-lhe o noivo. Roubar o homem de uma mulher é, em Nelson Rodrigues, em Marguerite Duras e no coti- diano da clínica, tornar-se a Outra, cujo corpo velado será inter- rogado, desnudado com o olhar. O que é que ela tem que eu náo tenho? Diante da castraçáo feminina, stuge o enigma do desejo e as respostas sempre falhas. Alaíde é a que rouba os namorados da irmã, é a que ousa dizer, e faz suavoz ecoar mesmo após sua morte, nos ouüdos culpados da irmã: - Eu sou muito mais mulher do que você, sempre fui. Mais mulher, mais o quê? Mais nada. Tanto que fazendo girar seus personagens o autor mostta, num segundo momento, que é Lúcia que encarna a Outra para a irmã, Mulher que lhe rouba o marido, a ponto defazê-lo desejar a morte dela, Alaíde. - Nem que eu morra deixarei você em paz, atteaçaÂlaíde. Nem poderia deixar, pois a morte de uma mulher não mata a questão que a castraçáo feminina impõe. "Se vocês querem saber mais sobre a feminilidade", nos diz Freud Gglz), 'dirijam-se aos poetas." E o poeta-dramaturgo nos responde, fazendo coro com Lacan: A mulher não existe! E a busca incessante da impossível resposta desliza no palco, onde o drama e o humor se misturam, fazendo borda ao vazio. Num momento cômico, em que as recor- dações delirantes de Alaíde se misturam com cenas daTraviata e de E o vento levou, a frase que faz espoucar o riso da plateia é: "O olhar daquele homem despe a gente." Scarlett O'Hara, Violetta, Mme. Clessi, Lúcia, Alaíde... Alaíde entre-duas-mortes. Logo no início da peça, o diretor do jornal á NoiÍa pergunta ao repórter carioca: - Morreu? - Ainda não. Mas vai. 43 Por meio de um personagem secundrírio temos a morte anunciada de Âiaíde. Ainda não. Mas vai. No seminrírio vrr, á Ética da psicanálise [1959-196o], Lacan intitula o capít,lo xxr 'i{ntígona entre-duas-mortes,,. A partir da heroína da tragédia de sófocles ele nos fala desta "zona limite entre a vida e a morte" onde os heróis trágicos estão situados. Nelson Rodrigues, em que pesem os seus deliciosos toques de humor, situa aí sua tragédia carioca. Também Lol V Stein está aí situada, neste "umbral entre-duas-mortes,,, .b iimite em que o olhar se torna beleza'l Este umbral é posto em cena emVestido de Noiva desde sua concepção em três planos: alucinaçáo, memória e realidade, com a peça se iniciando pelo atropelamento da heroína. É Âlaíde que enczrna este umbral. Tal como Antígona, ela está desde há muito "morta para o mundo'l Tal como Antígona, ela também .tstá con- denada a jogar num jogo cujo resultado é conhecido de antemãdl Mas ao contriirio de Antígona, que sabe a que está condenada, e que neste saber, e não recuar diante de nada, encarna o desejo puro, Aiaíde não sabe que sabe. Que ela sabe, o autor se encarega de nos informar. * Você pode morrer, minha filha. Todo mundo não morre? diz a mulher-de-véu. Alaíde não se engana: - Você quer dizer que me mata? Ao que a outra retruca, explicitando seu desejo: - Quem sabe? Você acha que eu não posso matar você? Esta cena se passa com Alaíde vestida de noiva, antes do seu casamento, fundindo sexo e morte, fusão que o autor colocará emcena, explicitamente no enterro de Mme. Clessi. A Mulher-de- véu no decorrer da peça se desvela: éLt3cia, a irmã traída e mais tarde, traidora. Porém não é só a irmã que deseja AlaÍde morta, mas também seu marido, o noivo roubado e depois desprezado. 44 Num diálogo alucinado entre Alaíde e Mme. Clessi ficamos sabendo que este desejo do casal que ela desuniu e que agora se une contra ela, ecoa seu próprio desejo, dela, Alaíde. Clessi: Quer ser como eu, quer? Alaíde (veernente): - Quero sim, quero. Clessi: - Ter a fama que eu tive. A üda. O dinheiro. E mor- rer assassinada? Sim, Alaíde queria, sim, morrer assassinada e por esta razáo no seu delírio entre-duas-mortes evoca aprostituta Mme. Clessi, que vivera na sua casa no século anterior e cujo diário lia na ado- lescência. Mme. Clessi havia sido morta Por seu amante, um menino de 17 anos. Nesta sutileza o autor nos revela o desejo mortífero que levara Âlaíde a ferir sua irmã, roubando-lhe o homem que ela - Lúcia - amava, e casando-se com um canalha a quem desprezava. Neste sem saber sabendo, Alaíde vai traçando seu destino rumo à morte anunciada, até sua consumação, Por não saber que sabe, Alaíde não tem a grandeza de Antígona, mas a peça não se redtz a Alaíde. Na cena final, as duas noivas com o mesmo ves- tido, os braços estendidos, entre elas o buquê, elevam a tragédia carioca ao universal da tragédia humana: o amor, o §exo, a morte. É disto que a psicanrílise trata. Diante da Outra mulher que lhe rouba o noivo, Lol V' Stein desmorona, enlouquece. Lol não é um paradigma da psicose pela simples razáo de que, tal como Alaíde, Lol não é um sujeito: é fruto da imaginação de um artista. Mas seguindo a orientação de Freud, podemos aprender com Duras e Nelson Rodrigues algo mais sobre a verdade da tragédia humana. Assim, pois, temos duas posições contrastantes. Para Lol a Outra existe e é tão consistente quanto o Deus de Schreber. Diante da mulher do vestido negro, não há nada a fazer, senão que- dar fascinada, reduzida ao puro olhar diante da cena. Ao retor- I 45 nÍr anos mais tarde e reencontrar Tatiana - quando o triângulo é refeito com outros atores - o que busca Lol? Certamente não é a vingança, nem tomar o homem da Outra. Isto, aliás, ocorÍe quase como se fosse à sua revelia. Lacan nos diz claramente: trata-se de orgarizat um "ser a três", montar uma cena onde ela, Lol, entre como a "terceira não excluída". Diante da cena edipiana * a irmã que lhe rouba o noivo - Lúcia se prepara para dar o troco e, destruindo a Outra, se des- truir. Lol, reduzida à posição do objeto, pura mancha no cená- rio, um ser a mercê de todos, tenta construir algo que sustente o seu mundo que já desabou: "Nua, nua, sob seus cabelos negros", repete. Nua sob seus cabelos, sob o vestido branco ou negro; nua, nua, é o enigma dA Mulher que se impoe. Na psicose trata-se de tentar construir, pela via do delírio, uma tela que, fazendo às vezes da fantasia, possa velar minimamente, o real insuportá- vel. Na neurose, esta tela da fantasia é assegurada pela amarra- ção do sujeito ao simbólico. O Édipo é então a ficçáo que prende o sujeito à estrutura. O ENIGMA DO DESEJO Que desejo me gerou? O que estou fazendo no mundo? Na psi- cose a falta de sentido radical da existência está posta a nu e resta ao sujeito tentar se proteger da melhor maneira que possa. Uns se protegem com a arte, como Joyce, mas nem todos são bem-suce- didos. O presidente Schreber se protegeu com sua missão divina de procriar homens schreberianos. O tratamento possível da psi- cose vai na direção da construção, por parte do sujeito, da tela protetora que o permita continuar üvendo. Ao anústa cabe tes- temunhar esta construÇão e, como secretário do alienado, forne- cer o dispositivo analítico para que esta construção possa se dar. +6 Na neurose, o sujeito paga um preço alto pela segurança que obtém da fantasia: o preço de estar preso numa posição fixa, tes- pondendo estereotipadamente, do mesmo lugar e com as mes- mas respostas, ao outro que a estratégia neurótica faz existir. É somente quando a segurança que o sujeito obtém da fantasia é abalada, que ele pode procurzu uma aniilise. Daí jâ podemos deduzir a delicadeza da posição éüca do analista no diagnóstico. Não se trata apenas de diagnosticar entre neurose e psicose - o que, a1iás, já é muito, uma vez que o rumo dado ao tratamento é totalmente diverso, em um e outro caso. Trata-se, no caso da neurose, de avaliar o tipo de resposta do sujeito e o tipo de per- gunta que orienta a posição fixa que ele ocupa na vida, e que o faz sofrer. Em 'A psicanáüse e seu ensino" Itg577, Lacan enfatiza que tanto na histeria como na neurose obsessiva trata-se do sujeito tentar dar uma resposta às questôes relativas ao sexo e à morte b. +Sr). A histérica "se experimenta nas homenagens dirigidas a uma outra e oferece a mulher, na qual ela adora seu próprio mistério, ao homem cujo papel ela toma sem poder gozar disto' (p. +s:). Neste jogo de enganos, tão bem exempüficado pelo caso Dora, o desejo f,ca insatisfeito e o sujeito condenado a recriar a Outra mulhe! como Lúcia, presa a Alaíde para além da morte. Lacan nos diz que a neurose obsessiva é uma estratégia mas- culina. Na estratégia feminina da histeria, a questão em jogo é sobre o sexo: sou homem ou mulher? que se resurne em: o que é uma mulher? Na neurose obsessiva "é a morte que se trata de enganar por mil ardis" (p. 454). O obsessivo se engolfa num cir- cuito fechado do qual não pode sair e cuja finalidade lhe escapa, pagando o preço de manter seu desejo impossível, pois está "sem- pre em outro Iugar do que lá onde se corre o riscd' (p. 454). Lacan compara a estratégia obsessiva ao truque que Vênus usou com Páris. No início do cerco de Troia, gregos e troianos concordaram ) 47 em resolver o conflito através de uma luta entre paris e Menelau, marido de Helena, a mulher que páris haüa seduzido. páris foi derrotado e só se salvou deüdo à proteção de Afrodite (vênus), que o envolveu numa espessa nuvem, subtraindo_o assim aos olhos do inimigo. Enquanto piiris se escondia ao lado de Helena, a deusa iludia Menelau, fazendo-o ver o inimigo em vários luga- res, precisamente onde ele não estava. A luta recomeça e Heitor, irmão de Príris e comandante dos troianos, nota que este não está presente. Vai procurá-lo e o encontra com Helena, repousand.o, enguanto os exércitos se batem, numa guerra causada por ele. Ao evocar este episódio, falando da neurose obsessiva, Lacan acenfua a covardia que subjaz à manobra obsessiva de não correr riscos, se eximindo de seu desejo. ora, se o obsessivo não arrisca, também não goza, e o gozo do qual ele assim se priva "é transfe- rido ao outro imaginário que o assume como gozo do espetáculo" , , (p. 4s4), no qual o o\essivo, preso em sua jaula, se debate para ;i : j provar que está üvolg caráter especular, narcísico, da neurose obsessiva torna o seu eu, ao mesmo tempo, inflado e vulnerável, susceptível e ameaçadol-Neste texto de ry57, Lacan sublinha o risco de uma análise conduzida pelo viés da relação dual, imagi- nária, particularmente no caso da neurose obsessiva. Uma mulher queixa-sg logo nas primeiras entrevistas, de que se considera feia, gorda, desatraente e diz, referindo_se a uma análise anterior: "Não adianta você me provar que não é nada disto. Eu sou a maior merda do mundo!, Notem bem que não é uma merdinha qualquer, é a maior do mundo. Só isto já dá a medida da dificuidade que terá o analista em desalojar esta senhora de sua jaula, mesmo que o preço pago por ser a maior _do mundo, seja o de ser uma merda. por isto Lacan nos diz que''h saída desses impasses é impensável por qualquer manobra de troca imaginiária, pois é aí que estão os impasses', (p. +Sà. A inflação imaginrária faz contraste com a presença da morte na neurose obsessiva. No caso do Homem dos Ratôs, Freud indica +8 gue esta obsessão com a morte não tem ligação com a experiência direta da morte de alguém na história pessoal do sujeito: Porém não é muitodiferente do comportamento de nosso pacienta o de outros doentes obsessivos a quem o destino não confrontou em anos tão precoces com o fenômeno da morte. Seus pensamentos se ocuPam sem cessar da duração da vida e da possibilidade da morte de outros [...]. Porém, sobretudo, eles necessitam da possibilidade da morte para solu- cionar os conÍlitos que deixan sem resolver [...]. Ássim, em cada conflito útal, esperam a morte de uma pessoa significatila para eles, na maioria das vezes uma pessoa amada, seja urn dos pais, seja um rival ou um dos objetos de amor entre os quais oscila sua inclinação. LÀcÂN s r.Évr-srRAuss Foi através do caso do Homem dos Ratos que Lacan iniciou "uma referência estruturalista em forma (o primeiro texto de Claude Lévi-Strauss sobre o mito)'l Na sessão de z6 de maio de ry56 da Sociedade Francesa de Filosofia (Bulletin), Lacan afirma que ten- tou, quase que em seguida à leitura deste texto de Lévi-Strauss, aplicar o mesmo esquema à clínica, o que fez com 'pleno sucessdl O caso utilizado foi 'h admirável anáIise que Freud fez do caso do Homem dos Ratos, isto numa conferência que eu intitulei, pre cisament., b_I]l]gi+, $U{l+jll.d.g rer;-ró!i.sd: (p., r s ). o texto de Lacan é de 1953 e a análise do mito de Édipo feita por Léü- Strauss está no artigo 'A estrutura dos mitos'i de 1955. O próprio Lévi-Strauss esclarece que entre ry52-Lg54 tentou verificar a teo- ria por uma análise exaustiva dos mitos Zuru na École Pratique des Hautes Étuda. Podemos então supor que o que Lacan utili- zotr paÍa serr Mito individual do neurótico foi uma versão inicial do texto de 1955. Em sua análise, que já se tornou clássica, sobre os mitos, Léü-Strauss propôe que: r. ' Como todo ser linguístico, o mito é formado de unida- des constitutivas I z. Estas unidades constitutivas implicam apresença daque- las que intervêm normalmente na estrutura da língua, ou seja, os fonemas, os morfemas e os semantemas. Cada uma destas formas difere da que aprecede por um mais alto grau de complexidade, e assim os mitemas são grandes uni- dades constifutivas, as mais complexas de todas. Em 1956, Lacan diz: 'Ao final de contas o que faz com que uma estrutura seja pos- sível, são razôes internas ao significante, o que faz comque umâ certa forma de troca seja concebível, ou não, são razões propria- mente aritméticas; eu creio qo. .1. [Léú-Strauss] não recuará diante deste termo'(p. rr+). Pois o que encanta Lacanno mitema é a possibüdade de rigor na formalização. É esta mesma busca de rigor que o levará anos depois a propor o mateffia, na tenta- tiva de chegar a luna transmissão o menos contaminada possível pelo imaginário. Vejamos como Lévi-Strauss (sem data) trabalha o mito de Édipo. Ele se propõ e a fazer uma demonstração 'hão no sentido que o sábio dá a este termo, mas, quando muito, no sentido do camelô [...] explicar tão rapidamente quanto possível, o funcio- namento da pequena máquina que ele trata de vender aos basba- ques" (p. 24il.O mito é separado em pequenas unidades (mite- nas) que são reagrupadas em colunas pertencentes ao mesmo "feixd: Ternos assim: Cadmo procura sua irmá Europa, raptada por Zeus Édipo esposa Jocasta, sua mãe Antígona enterra seu irmão Polinice Os Spartói se exterminam Ínufuamente Édipo mata seu pai, Laio Etéocles mata seu irmão Polinice Cadmo mata o dragão Édipo imola a Esfinge Labdaco (pai de Laio) ='le1s:' Laio = torto Édipo = "pé inchado" 5o 5r. Trata-se agora de buscar o traço comum que une o feixe de mitemas de cada coluna. O da prirneira coluna é fácil. Temos Cadmo, o fundador de Tebas, procurando sua irmã Europa,,rap- tada por Zeus. É nesta busca que Cadmo vai ao oráculo e é por ele desestimulado a prosseguir, e aconselhado a seguir uma vaca (lembrar que Zeus se disfarçara de touro para seduzir Europa) e fundar uma cidade onde esta pÍrasse para descansar. Na mesma coluna temos Édipo casando com sua mâe e Antígona, sua filha, desobedecendo as ordens do tirano e enterrando, sob o risco certo de morrer, seu irmão Polinice. Léü-Strauss propõe que esta primeira coluna seja a das relaçõa de parentaco superestimadas. Na segunda coluna, os Spartói, homens que surgem da terra armados, quando Cadmo ara aterra com os dentes do dragão que matou, eliminam-se mutuamente, só restando cinco, que ajuda- ráo Cadmo a fundar Tebas. São portanto irmãos que se matam, como Édipo mâta o pai, e seus filhos, Etéocles e Poliaices, se des- troem entre si. Daí intitular esta coluna de relaçõa de parentaco depreciadas. ' A terceira coluna diz respeito a monstros que devem ser des- truídos para garantir a vida dos homens. Lévi-Strauss diz que sáo monstros ctônicos, ou seja, gerados pela terra. Matando os mons- tros ctônicos, esta coluna representaria a negação da autoctonia dos homens (ou seja, que os homens não nascem da terra). A quarta coluna traz os nomes próprios do avô, do pai e do próprio Édipo com seus respectivos significados de c oxo, torto e pé- inchado. Lévi-Strauss nos diz que em várias lendas americanas os seres ctônicos, que nascem da terra, têm dificuldades de se manter em pé, claudicam, caem. Assim sendo, os nomes dos Labdacidas apontariam para a afirmaçao da autactania doshomens. Lévi-Strauss nos diz que,lido desta forma, o mito de Édipo exprimiria a impossibilidade em que se encontra uma sociedade que pro- fessa a crença na autoctonia do homem, de passar desta teoria ao reco- l nhecimento do fato de que cada um de nós nasceu realmente da união de um homem e de uma múher. A dificuldade é insupeÉvel. Mas o mito de Édipo oferece uma espécie de instrumento lógico que permite lançar uma ponte entre o problema inicial - nascemos de um único ou de dois? _ e o problema derivado, que se pode formular, aproximadamente: o mesmo nasce do mesmo ou de outro? (p. z+s) Na aula inàugural da cadeira de antropologia social, dada no Collàge de France, em 1960, Lévi-Strauss (rSS:) se utiiiza novamente do mito de Édipo para propor uma conexão estru- tural entre os temas do enigae,e dp irlçç:!p.. Ambos apontariam para a união impossível de dois termos: o filho que casa com a mãe, o irmão com a irmã. Trabalhando mitos de diversas ori- gens, do Édlpo grego às lendas dos índios iroqueses, passando pela saga medieval do Santo Graal, Léü-Strauss observa a con- j unção de ste s d ois tem as : 9 9 m!_tor -sobre-o-in_c_e_s,tg- ttAzem s-empre ulIl-g"qrg43..gSe:-dççit4.d_o. Assim, 'ha lenda de Édipo, o casa- mento com ]ocasta não se segue, pois, arbitrariamente à ütória sobre a Esfingd' (p. ar). O enigma, tal como o incesto, uniria o que não pode se unir: é uma pergunta à qual é postulado que não haverti raposta, e invertendo os termos, uma resposta para a qual não houve per- gunta (p.3o). A interpretação psicanalítica, operando entre o enigma e a citação, toca neste ponto mesmo de opacidade, mar- cado na estrutura, e presentificado na novela famüar do sujeito pelo drama edipiano. Éprpo E o HoMEM Dos RÀTos ]ean-Pierre Vernant (1988) diz que a leitura de Léü-Strauss do mito de Édipo é no mínimo contestável, aos olhos dos helenistas. Nos mitos gregos, os seres nascidos da terra, tais como os Spartói, não claudicam, nem apresentam defeitos na marcha, como nos 52 mitos americanos. Os Spartói tinham como marca de sua origem ctônica uma lança desenhada na espádua, autentificando sua raça de Filhos da Terra e relembrando sua vocaçâo guerreira (p. 55 nota z). Partindo de outras fontes da tradição grega sobre perso- nagens mancos ou tortos, Vernant interPreta a "mancada" de Laio no plano de seu caráter: exilado de Tebas com 1 ano de idade, após a morte de seu pai Labdaco, Laio é recebido e acolhido por Pélops. Já adulto, retribui a generosa hospitüdade estrupando Crisipo, fiIho de Pelops. "Ele manca no seu comPortamento eró- tico por uma homossexualidade excessiva [...] rompendo assirn com as regras de simetria que se impõem tanto entre os Írmantes como entre os hóspedes" (p. 6o). Crísipo se mata e Pelops lança contra Laio a maldição: os gens dos Labdacidasnão devem se perpetuar. De volta a Tebas e ao trono, Laio, advertido pelo oráculo do futuro terrível que teria o fiIho por ele gerado, Passa a ter relaçôes falhas, "mancas", "do tipo homossexual", com Iocasta. Numa noite de bebedeira, por ato falho, planta na esposa a semente do filho que o destruirá. "O gnêsios, bem nascido, se revelará assim pior que um nothos,para além da bastardia: um monstrd' (p. 6o). A crítica de Vernant a Lévi-Strauss é longa e extremamente interessante, mas no que pese uma possível "mancada" do antro- pólogo, como bem reconhece Vernant, sua aplicação dos "feixes" de mitemas já se tornou clássica. Vejamos então o uso que dela fazLacan, segundo ele próprio, com pleno sucesso, em 1953. O seu ponto de partida é a definição do mito como'b que confere uma forma discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmi- tida na definição da verdade [...]" (p. +g). No mito individual do Homem dos Ratos temos, como no esquema de Lévi-Strauss, tuna estrutura quaternária que se repete, no que Lacan chama de "pré-história" do sujeito e em sua história atual da neurose: I 53 Mulher pobre A primeira coluna liga-se à segunda coluna pela díüda. No passado, o pai do Homem dos Ratos havia perdido no jogo todo o dinheiro do seu regimento e contraíra uma dívida de honra, nunca pâga, para com o amigo que o salvara, compaÍecendo com o dinheiro. A terceira coluna une-se à quarta, através de uma brinca- deira que a mãe do sujeito costumava fazer, dizendo que o pai havia se enamorado de uma moça linda mas pobre, casando-se depois com ela, rica que lhe dera uma boa posição social. âtçp:llça1ry lgurg:e te dá a partir dq encontrqÀq-ssjeÍto 'g-gg-o39-91-"*4" :9! 1ggl4,e le-laÍq do-,teqnento dos ratosfeito pelo capita uel,_Capitão_LIemeczek.SegundoLacan, este relato tem "uma evidente função de desencadeamento,, (p. 54). No momento, em que, com múto custo, o Homem dos Ratos, o Tenente Ernest Lehrs, narra o cruel suplício, Freud [r9o9] observa em seu rosto uma expressão "que só posso resolver corno horror diante de seu gozo ignorado por ele mesmo" (p. r:a). A conjuminação do confronto com este gozo proibido e igno_ rado, corn o desejo do pai de que casasse com tuna moça rica, em detrimento da pobre, que amava, o lança num estado em que ,.as construções neuróticas do obcecado acabam às vezes por aproxi_ marem de construções delirantes" (p. S8). O acaso leva o sujeito, que estava acampado com seu regi- mento, a perder seus óculos e encomendar a seu oculista de Viena um novo pÍr. O oculista os envia pelo correio e o capi- tão Nemeczek the diz, erroneamente, que ele deveria pagar ao tenente A a importância do reembolso postal. Está armado o 54 suplício, com a entrada em jogo do último elemento que faltava: a dívida. A estrutura da'tonstelação originária que presidiu o nasci- mento do sujeito" (Lacan [rgSg], p. sS) se rePete na articulaçáo de seu drama neuróüco. 4ggf* g!-.. plóp!p--ggg-ç:1ílo Ugg {-g p4 dg,v9d9l- e.9 _!gng*g A qo iugg daquelç qqs d-e.v-e-§ei P?gs* Ora, na verdade quem haüa pago os óculos era a senhora dos óiiêit §; q*uc]⧧d a§siirÍ'a cicúpâ? õ-hryai'ê§trtituia1 diiinulher ricã, êEr-ãôniiãFõs,i ç páo â'um a Ç fiãAiiiliá"irãbiã ão AU gtgu., .oÁ quem o Hoç5rçm dos Ratos se e1.rg,r,êç.arê."." A questão é que ao ouvir do capitáo cruel que deviapagar ao Tenente A, o Homem dos Ratos completara mentalmente a jura de assim o fazer, para que o suplício dos ratos não ocorresse com a dama que amava ou com seu querido pai, aliás já morto a esta altura dos acontecimentos. Elabora entáo um esquema complexo em que daria o dinheiro ao Tenente A, que o daria à seúora dos correios que por sua vez o daria ao Tenente B, que era o verda- deiro encarregado dos correios, numa roda-viva enlouquecida da qual só consegue sair quando vai para Viena tratar-se com Freud. Podemos observar que, em sua análise, Lacan segue à risca a estrutura da demonstraçáo de Lévi-Strauss para o mito de Éaipo. E 1rqlr:ry&$.gqia-queo-drama do-lJomem-dos Ratos vai se resol- ver.Freudinicialmente_99_Bpg_o._lg-g_{g1g3loigs*qu-exÀo-que ..p1rlg"*1_q_Ti-ay3_g-.tlp.I[g-1ggp_q_Bgi.-"_...porém-muito*rap- d,a111gryg?Ilptura:lgrgryivlsqge;9v_çq!e19-.!qCa9.§_r9b-ç0e5ig o.!99ssry9 sgIsv§!?{-n, O paciente atribui um papel dúbio a Freud, entre amistoso e maligno. Imagina que Freud o quer casar com sua filha, a quem atribui muitas riquezas e que lhe aParece num sonho com óculos de merda. Diz Lacan: "O mito e o fantasma juntam-se aqui, e a experiência passionai ligada ao vivido atual da relação com o analista, é trampolim, por intermédio das iden- Pai Homem dos Ratos Amigo que paga a dÍvida de jogo Tenente A (arnigo) Mulher rica Seúora do Correio ) ,5 tifcações que ela comporta, para a resolução de um certo número de problemas" (p. 64). No Seminário II, O eu na teoria de Freud e na técnica da psi- canálise, Lacan nos apresenta o esquema L que articula o eixo imaginário (a+S). Tomando os doisprimeiros feixes de mitemas usados por Lacan, podemos rebatê-los no esguema L. Temos então que a partfu do eixo imaginrário que o tenente Lehrs vai interrogar o mestre absoluto que se perÊla por detrás do pai morto: a morte. X^ esquema L a Neste seminário Lacan nos diz que o obsessivo é sempre um outro. seja o que for que ele contar para vocês, ;<.-: , sejam quais forem os sentimentos que ele lhes trouxer é sempre os de um .. - outro que não ele mesmo {p. ll6-12il. É pela voz do outro que ele pode (Truque de páris). : Lacan nos diz gue esta objetalizaçâo de si mesmo üsa evi_ tar seu próprio desejo, apresentando-o como desejo deste outro que é seu próprio eu. Essa inflação egoica já é em si mesma mor- tificante; 'te o obsessivo se rnortifica é porque, mais do que um outro neurótico, apega-se a seu eu, o qual carrega em si o desa- possamento e a morte imaginária" (no eixo imaginrírio a _ a,) (p. :se). Mas é no eixo simbólico (A -+ S) que a mortificação do obsessivo revelará sua outra face: paruquem ele está morto? para aquele que é para ele seu senhor, aquele ocupa o lugar do Mestre. O obsessivo encarna assim o paradigma da relação senhor_es_ S6 _"x do pai aIIugo do nn cravo de Hegel. O obsessivo, escravo, aguarda a morte do Mestre cujo lugar ambiciona para si, e enquanto aguarda, se faz de morto, apagando seu desejo para náo despertar a cólera de seu seúor' Porém se ele próprio está morto, não é ele quem tem um seúor; é o outro, e assim ele está semPre em outro lugar, fora do alcance do inimigo (igual e/ou rival). Como o eu é uma instância paranoica (pois na medida em que é ideal, tudo ameaça sua integridade) o obsessivo oscila entre se fazer de morto (insensível) e ser tomado da mais viva cólera diante da ameaça que vê em toda parte . Assim, nas relações amo- rosas (os outros dois feixes dos mitemas) está dividido não só entre as damas (rica e pobre) pelas quais oscila sua inclinaçáo, como pela própria ambivalência (amor-ódio) que colore esta mesma inclinação. Lacan termina seu texto de 1953 acentuando a impossibi- lidade de conciliação para o neurótico, entre o papel social que deve desempenhar e as relações com o parceiro sexual. Pois a diüsão do obsessivo entre a mulher rica e a mulher pobre esca- moteia e oculta a questáo que é posta em primeiro plano na his- teria: o que é uma mulher? A questão elidida se faz presente no Homem dos Ratos, na dificuldade de assunção de sua virili- dade, nos diz Lacan, "tma vez que escolhi o caso de um homem" (p. 6s). E se tivesse escolhido o de uma mulher? nErEúnctes BIBLIocRÁFIcAs BULLETIN DÊ LA socIETÉ rnauçaIsr DE PHILosoPHIE, senace du z6 mai r956, xrvur, r956. DURÁs, u. O deslumbramento, Rio de |aneiro: Nova Fronteira, :-986. FREUD s. 'i4. propósito de um caso de neurosis obsessiva" (rgog). ln: Obras Complefas. Buenos Aires: Amorrortu Ed', 1996, v. x. i'La feminidad" - Conferên cia y (tyz).ln Obras Completas, Buenos Âires: Amorrortu Ed., 1996, v. xxrt. pai morto (Morte) ) Tt l LAcAN, t. O mito indívidual do neurótico (rpSa).
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