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Maria Anita Carneiro Ribeiro - Um certo tipo de mulher

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Prévia do material em texto

Maria Anita Carneiro Ribeiro
UM CERTO TIPO DE MULHER
I
Irernnsf
2or1 Ma-ria Anita Carneiro Ribeiro
livro segue as normas do Acordo Ortográfico da Ltngua portuguaa de t99o,ado no Brasil em zoog.
Gocthe, 54 Botafogo
rlcJaneiro 
I nl I c.p zzzgr-ozo
(zt) z54o-oo76
Editorial
sadora Travassos
Editorial
istina Parga
uardo Süssekind
SaIomé
r certo tipo de mulher - Rio de ]aneiro :7lehas, zorr,
r90 p.;2r cm.
Inclui [ribliografia
rsnN 978-85-75 ZZ -977_7
iiiil?r1,lT;,.1. 
Neurose obsessiva. 3. Freud, sigmund. 4. Lacan, ]acques.
cDD:150,195
cDu: t59.964,2
iros dc Castro Editora Ltda.
Sumario
Apresentação
Prefácio
Feminina e francesa
O enigma d.A. mulher: histeria e ob§essão
As damas obsessivas e o falo
... E nâo nos deixeis cair em tentação
Seu único e inesquecível homem: Deus
Uma máscara de mulher
A dor de Medeia
Um pouco de poesia e beleza
Um "quê" de melancolia
Posf;ácio
l-1
13
23
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I
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letras.com.br 
I www.Tletras,com.br
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I
Os que possam pensar que é por razõu ligadas a seu sexo
aui osiuieitos acolhem aisa ou aquelafaceta da neurose' veraoi nesta oportunidade, o quanto o que é da ordem
ila atrutura na neurosq deixa muito pouca margem à
determinação pela posição do sexo, no sentido biológico'
(J. Lacan, Serninário v)
I
A meus filhos, loana e Thiago, com muito amor.
A mew pais, que queiam escreverlívros.
-t j='
I
Apresentaçâo
Dez anos seParam a primeira ediçáo de [Jm certo tipo de mulher,
em 2oo1, e a presente edição. Durante este temPo, continuei a
estudar, movida pelos desúos da clínica e também pelos traba-
lhos apresentados por colegas em simpósios, jornadas e reuniôes
científicas e pelos alunos, na minha instituição de psicanálise e
nas universidades onde ensinei e nas que ainda ensino'
Foram estes desafios que me levaram a fazer acréscimo nos
capítulos 5 e 9 (antigo capítulo 8). São acréscimos que me pare-
cem necessários e enriquecedores. Porém o que me entusiasmou
de forma particular foi o novo capítulo 7, que alterou a numera-
ção dos dois posteriores, e que' a meu ver, trouxe 
para além do
título, um pouco de poesia e beleza ao liwo. Este capítulo é fruto
de uma pesqúsa mais recente, e esPero que não seja muito amb!
cioso desejar que traga algum esclarecimento sobre os inúmeros
inigmas que a neurose obsessiva ainda apresenta'
Maria Anita Carneiro Ribeiro
I
I
Prefácio
tlm certo tipo de mulher étanto o desdobramento fio a fio quanto
a sustentação rigorosa da seguinte afumação: hoje, como ontem,
sáo muitas as mulheres que sofrem do que Freud soube üagnos-
ticar e esclarecer sob a denominaçáo de Zwangsneurose ovneu-
rose obsessiva. Nesse sentido, ele é também uma resposta. Ou
não ouviríamos, nrun tom entre a surpresa e a descrença, a Per-
gunta que insiste:'Mas... existem mulheres obsessivas?"
Lacaniana à la lettre, Maria Anita Carneiro Ribeiro parte
de Freud e de sua principal contribuição à nosografia da época.
Naquele momento inaugural, era-lhe necessário demonstrar que
os pensamentos obsessivos e os atos compulsivos não deveriam
ser classificados junto às psicoses em geral, entre o que ele chama-
ria posteriormente de 'heuroses narcísicas", mas antes em série
com as histerias de angústia e de conversão, entre as neuroses que
seriam ditas "transferenciais'l Além disso, Maria Anita ilão des-
considera a constatação clínica de que, não menos que as histéri-
cas, as mulheres obsessivas nos ensinam algo "sobre este-aspecto,
ç..t .gto d" f.tnit ilidrd.'l
uma vez que sáo não só menos enganadas pelo falo quglelx e
furono
seia. mais DroDensas ao deslizamento metonímico, o qual denun-__
cia com clareza que ao *g§j"blr*939-gue despertghorror, já
-_-=____--o dizlam-Freud e Lacan, il nly a quhn pas. Ee_q"t4s.-p1bw?i,-é
r3
t,
lt diminuta a distância que separa em um pensamento obsessivo os
vocábulos Deus e merda, Cristo e pênis etc,
Alguns psiquiatras anteriores a Freud demonstraram conhe_
cer a alta incidência da patologia obsessiva em mulheres, ainda
que a considera§sem um dos tipos clínicos da psicose. por essa
razão, somos conduzidos, no primeiro capíttrlo, pelos mean-
dros de textos da psiquiatria clássica, a partir dos quais a autora
retoma, uma a [una, as diferentes formas em que essa patolo_
gia foi inicialmente definida: mânia de delíriq monomania de
raciocíniq loucura da dúvida, patologia da inteligência, entre
outras. Tais nomenclaturas, as quais devemos a pinel, Esquirol,
J.-P. Falret e Legrand du saurle respectivamente, não eram uní-
vocas, pois acentuav.rm ora a alteração da conduta dos sujeitos
obsessiyos, ora sua alienação parcial. Com Falret Filho, psiquiatra
que observou tratar-se de uma doença mais comum em mulhe_
res do que em homens, encontramos, como acentua Maria Anita,
'h melhor descrição da neurose obsessiva antes de Freud'i na qual
os que delapadecem demonstram incessantes escrúpulos religio-
sos, autorrecriminações, as mais diversas fobias, além de cuida_
dos demasiadamente longos com a toarete e o sentar-se à mesa.
Foi necessário, contudo, o advento da teoria psicanarítica,
para que a articulação de cada um dos diagnósticos com uma
determinada direção do tratamento desvelasse para nós a cru-
cial importancia do primeiro. Como veremos neste liwo, se um
analista deve poder se antecipar a uma possível interrupção do
tratamento, sob o argumento banal e corriqueiro de que .,tudo
agora está beml precisa também saber avaliar o alcance de uma
compulsão a atirar-se pela janela, esse importante elemento da
'heurose obsessiva da mulher'l É assim que se decide a manobra
da transferência, e que pode formulá-la como o "delicado rimite
existente entre o alivio produzido pelo ato de falar e a manuten-
ção de um grau de angústia que permita ao sir;eito prosseguir sua
L4
análise'l Iá no final do primeiro capítulo, podemos depreender
as consequências clínicas de um ensino-aprendizagem seguido à
risca através do caso clínico de uma adolescente. Mantê-la fora
da internação como forma de evitar sua identifrcação com o sig-
nificante "louca", à qual a destinavam as coordenadas familiares,
foi a aposta bem-sucedida da psicanalista com base no diagnós-
tico diferencial. Diante da subjetivação da ideia de se matar e da
ausência do fenômeno elementar da alucinação verbal, conclui:
não se trata de um caso de psicose, mas de neurose obsessiva de
umamulher.
O segundo capítulo recorre aos poetas: Marguerite Duras,
Nelson Rodrigues e... Lacan. O que nele está em jogo é o enigma
d'Á mulher e as diferentes formas em que ele se apresentananeu-
rose obsessiva e na histeria. No texto poético desses autores, não
só se vê que "roubar o homem de uma mulher é tornar-se a Outra
cujo corpo será desnudado'l como também se aprende a firnção
de véu do vestido, uma vez que ele encobre apenas "o lugar/vazio
que é o dA mulher'l Mais, ainda: verifica-se que a morte de uma
mulher não elide a questão que a castração feminina impõe, por-
que disso emerge 'h busca incessante da impossível resposta'l
Nesse sentido, trata-se tanto de distinguir neurose e psi-
cose quanto de reconhecer a estratégia de cada tipo de neurose.
 estratégia da neurose obsessiva, anunciada desde o primeiro
capítulo, é então retomada e esclarecida pelo 'truque de Paris":
fazer-se ver pelo inimigo nos mais diferentes lugares, porque
estar em todos os lugares é não estar em lugar atgum. Estratégia
de inflação imaginiíria, como a da paciente que diz: "Eu sou a
maior merda do mundo!", para, desse modo, dar a entender que
'não é uma merdinha qualquer'i Nenhum obsessivo, homem ou
mulhec deixa com facilidade a jaula em que se debate para enga-
nar a Morte, seu mestre absoluto.
'As damas obsessivas e o fald', terceiro capítulo do liwo, ana-
lisa o modo particular de degradação do Outro na neruose obses-
I
L5
JTI
lr
I
1/
il
i
l'
siva feminina e retoma as críticas de Lacan a Fairbairn, que, em
uma espécie de retornoà psiquiatria pré_psicanalitica, insistia em
tratar sua paciente obsessiva como se, por trás da neurose, hou_
vesse uma psicose latente, ou seja, uma ausência de referência ao
falo. Nos termos da autora, é o conceito lacaniano de semblante
no lugar de Outro
abs-oluto,_p_ara_aga*_rjl"dt
que posteriormehte esclarece o aspecto de tombra, do falq pois
ele, qual sombra interposta entre o sujeito e seu gozo, reúne sim_
bólico e imaginríriq e os opõe ao real Fazendo uso de um texto
literário como se fosse um caso clínico, Maria Anita propõe outra
série insügante: Bouvet, Lacan e Eça de eueiroz. Se a hóstia repre_
sentava os genitais masculinos para a paciente de Bouvet, e le o
paciente de Lacan fantasiava introduzir uma hóstia na vagina da
companheira, em pouco ou nada difere dessas pacientes a beata
d'e o crime do padre Amaro, uma vez que um escarro rhe assomava
à garganta sempre que devia prorr*.1* o nome de ]esus.;$ift_
rs4ça da histér,tca,_que situa para além do homem o Outro abso_ISg e-gbssssry3 *r**1*;.i. àffi
f,ifico-deixa nr-qs-qlgggl" 
-o
fenêtre,ela então utiliza um resumo do conto "O sinal", de Guy de
Maupassant, ao qual Freud se referira a propósito dos sintomas
de uma mulher obsessiva. No conto, uma baronesa em estado
de grande agitação revela a uma amiga que se comportara como
"uma mulher da üda": fora até a janela e frzera sinal para que
um homem subisse. Nos termos de Freud então retomados, teria
havido uma descarga sexual decorrente da ideia inconsciente de
faire la fenêtre, e somente depois da angústia e sua interpretação,
com a "angústia de cair da janela'l revelando a associação: angús-
üa + janela. E, lançando mão de tun caso de sua própria clínica,
uma jovem adolescente para quem "polut a janela" era o substi-
tuto consciente da ideia inconsciente plena de desejo: "estar na
praia nua, dando pra todo mundo I conclui com finura: "Na Viena
de Freud ou no Rio de |aneiro de hoje, a mulher obsessiva dá ao
jocoso faire la fenêtre de Maupassant a sua versáo trágica e mor-
tífera'i Seguem-naÁ dama do tapete, A dama das lavagens e tam-
bém Piggle, abem conhecida análise de Winnicott de "uma dama
de dois anos e quatro meses". A releitura de seu caso, por meio da
qual a autora o eleva à dignidade de paradigma, tem por objetivo
das máscaras que vestem as mulheres obsessivas, quer isso se dê
em suas relações com os homens, quer com o analista e/ou com
Deus. Esse capítulo se inscreve na contracorrente de uma certa
prática pós-freudiana, cujos fundamentos, bastante criticados
por Lacan, são chamados de "teoria da relação de objeto'l O pró-
prio Freud admitia que uma mulher, através da supervalorizaçáo
sexual do objeto, podia amar'tomo um homerni Mais que isso,
porém,'de sua observação sobre mulheres aduitas que anseiam
encarnar um ideal masculino, deduz-se que, em linguagem laca-
t1log qqqarrps. I"4r{9-§j q!ps.=
Desdobrando então o enunciado freudiano segundo o quai
"quase se pode dizer que a neurose obsessiva é uma religião par_
ticular", a autora descreve, no capítulo 4, 
.hs 
religiosrs dã signin_
cante'l como ela nos mostra, seu deslizamento metonímico não
deve ser incentivado. Não se d,eve fazer.h interpretação da inter_
pretação'lpois em anáüse o obsessivo "é um 'trabarhador dedi-
cadol Dito de outro modo, é necessário não levá-lo .h uma inter_
minável cadeia associativa em busca do sentidq do sentido, do
sentido"''l Para esclarecer o sentido a ser dado à expressã,o faire ra
r6
máticol e que ele sempre é um segundo t
17
I
niana, a Penisneid pode ser rida como 'h nostalgia do faldl euer
dizer, Freud preparara o terreno para que Lacan, ao retomar suas
premissas, pudesse asseverarr "se a posição do sexo difere quanto
ao objeto, é devido à distancia que separa a forma fetichista da
forma erotomaníaca do amor.,,
Mas se, com Joan Riviêre, Maria Anita demonstra que o femi_
nino é máscara, descartando quarquer ideia de uma essência ou de
uma natureza femininas, é com suape quena piranha, em sua ..pro-
fusão esvoaçante de cachos, minissaias, corpete justíssimo, salto
plataforma, unhas longas e vermelhas e, sobretudo, um batom
vermelho üvíssimo...", que erapode úrmar que amascarada femi-
nina não se reduz a um sintoma. para uma mulher, aliás, a masca-
rada é mesmo inevitável, porque advém de sua própria condição
de não-toda inscrita na castraçãq ou na lógica fiáüca.
Em "Ilma máscara de mulher,', vemos de que modo os véus
são um tormento para a obsessiva, bem como a que ,turiosos
extremos" podem ser levadas essas mulheres que se sabem pre_
sas aos artifícios da máscara. por meio de um debate entre Freud
e clérambault, Maria Anita mostra que não há fetiche sem a refe-
rência ao outro sexo, concluindo de forma bem-humorada: ,,No
que diz respeito à perversâo, as mulheres estão em posição mais
cômoda que a dos homens: são perversas por serem mulheres, e
sua forma de amar é sempre marcada pela per-versáo do desejo.,,
Em seguida, com base na releitura de Lacan do tratamento de
uma mulher obsessiva por Bouvet, denominada A mulher do
sapato, esclarece as diferenças entre as relaçôes de uma histérica
e de uma obsessiva com o pai e com o homem, respectivamente.
Enquanto a primeira denuncia a impotência do pai em lhe dar q
significante de um gozo suplementar, a segunda, porque crê no
pai, espera do homem a salvaçãg ou seja, enquanto a histérica
quer despertar o desejo masculino exibindo a falta, a obsessiva
procura fazê-lo encarnando o significante da falta.
r8
O sétimo capítulo, 'A dor de Medeia'l desvenda um asPecto
peculiar da neurose obsessiva em mulheres: a obsessáo infanti-
cida. Por que entáo não chamá-la pelo que ela realmente é: uma
obsessáo âlicida? Se de fato a dor de uma mulher obsessiva tern
sempre algo de Medeia, entáo a excessiva preocupação com seus
filhos não tem como consequência a privaçáo sexual. A ordem é
inversa: primeiro a privação, isto é, a perda do lugar de objeto do
desejo do homem, depois a fantasia de morte do(s) filho(s). Ou,
nos belos termos em que a autora o enuncia, a fantasia de "imolar
o filho no altar do Outro da mortdl Ousada, a autora não se furta a
interrogar o mestre, propondo-nos que o deciframento freudiano
segundo o qual se leria: filho + privação sexual à morte do fi1ho,
lhe parece ser "um primeiro deciframento apressado do sintoma'i
Trata-se antes de saber que espécie de insaüsfação antifreudiana é
essa de uma mulher com a maternidade, que ato é esse de que os
filhos sáo as ütimas e cuja únicaüsada é atingir o mais íntimo de
um homem, o âmago mesmo de seu ser. Em suàs palavras, tanto
Medeia como Madeleine sabem o que fazem e Por que o fazem.
O oitavo capítulo, novidade da presente ediçáo, discute ques-
tões de poesia e beleza, articulando-as com3l3efesas exclus,i-
varnente 
^obseTivas, 
a anulação e o isolamentp-'nn.Ws
Neste
capítulo lemos, por exemplo, que o recurso à metonímia para
garantir a manutenção do recalcado não produz efeitos de poe-
sia, leva, antes à confusão da neurose obsessiva com a paranoia e
a melancolia. lg-ggritual§_{er-r_:"vtlrfazer e desfazer, cuja visada é
anular a própria asressividade, não constroem fetiches, nem desr _1.- " - .-. ..----- -- - -.
r4entem a castração. Resumidamente, as primeiras páginas do+
capítulo nos advertem dos riscos de urn diagnóstico calcado na
fenomenologia.
Prossegue este capítulo intihilado "um pouco de beleza e
poesia'] lembrando ao leitor que, aquém ou além da neurose, 't
)
19
T
!
no amor que uma mulher, seja ela histérica ou obsessiva, buscasua subsistência,i M
remenre em tunção T; *TTIi,:J:Tffi,: nffiT:::T;
segunda se pode dizer que ,tua forma particular de se locüzar nalinguagem não lhe permite recobrir_se de poesia,l Haveria, entãquma distância inevitáver entre as *rlh"r.. obsessivas e abereza?
Não é esta a conclusão da autora. Ao contrário, seu texto nos leva
a reconhecer na mascarada feminina das obsessivas, gual seja, em
:.::"UT 
vestidos e joias, os instrumentos ..que Ih"s àao a ír.aoqe camuÍIar a morte com a beleza,l
Não restadúvida de que somente uma leitura desse portepoderia ter conduzido a autora a encerrÍr o nono capíttrlo comuma importante discussão sobre as diferenças clínicas entre o
lcting 
ouf, a passagem ao ato e o ato sintomático. É a partir dadenominação dada por Lacan aos atos de Medeia e de Madeleine- 'ãtos de uma verdadeira mulher,, _ e por concluir que é viável
a leitura retroativa de uma passagem ao ato que Maria Anita des_taca'uma possíver leitura da reraçao particular da murher obses-
siva com a verdade: melhor do qrl., hirrérica, a mulher obsessiva
denuncia que o filho não é o falo.
Enfim, tal quai o movimento da pulsão que retorna sobresi, o nono capíh:Io retoma a confusão diagnóstica entre a neu_rose obsessiva e a melancolia, ainda hoJe fre"quente, sobretudo notratamento de mulheres. A partir do ainda atual debate Freud_Âbrúam e das ultimas elaboraçôes freudianas sobre o supereu,
esse- ultimo capítulo Procura avançar na anáIise dos diferentes
peito do que pode ser subjetivado a partir do continente negro
da feminilidade. Todo aquele que pôde privar da companhia
daquela que escreveu este liwo certamente conhece um de seus
üaços mais particulares: o entusiasmo com a prática analítica,
algo que transparece em cada uma de suas páginas.
Rio de |aneiro, 3r de março de zorr
Vera Pollo
modos de relação das mulheres com o amor. Se bancar o que n4osÉPgrmanece sendo algo da "ordem do inewifáwer,, -o.a ^ - *..rL ^
res, reconhecê-las cgmo escravas qlitic?yt-nJe-iAcg1.-e-
uda na
íva e histérica.
com [Jm certo tipo de murher,o"rffia"
i
i
i
i:
I
clínica anaütica, dos mitos e da literatur", . upr.rrd._se algo a res_
i
Feminina e francesa
UMANOVA NEUROSE
A palawa psicanálise foi usada pela primeira vez em r.896, num
artigo intitulado 'A hereditariedade e a etiologia das neuro-
ses", neste mesmo artigo Freud afirma que, levado por sua pes-
quisa, foilhe necessário introduzir uma inovaçáo nosográ-
fica. "Encontrei razões para situar, junto à histeria, a neurose de
obsessões [...]" (p. 146). O artigo foi redigido e publicado origi
nalmente em francês, e é portanto da pena do próprio Freud que
vemos nascer la névrose obsasionnelle como traduçáo da palawa
alemã,Zwangsneurose, assim mesmo, no feminino e em francês.'
Freud reivindica assim e, como veremos a seguir, não sem
razáo, a paternidade da neurose obsessiva, sua cria, surgida do
rigor da pesqüsa e do cuidado meticuloso com o diagnóstico
diferencial. Para nós é de extrema irnportância esta autoria assim
tão claramente afirmada, pois joga por terra qualquer úrma-
ção apressada do tipo "Freud se enganou ao classificar algumas
mulheres como obsessivas'i Freud não pode ter se enganado pelo
simples fato de que Freud inventou a neurose obsessiva e, assim
sendo, neurose obsessiva é o que ele, Freud, diz ser. E se fala de
mulheres obsessivas - não poucas, mas muitas - o que nos resta
' Na nota introdutória a Obsusões efobias, ]ames Strachey atribui a Kraft-Ebing, em
1867, a introdução do termo Z:angworstellung (ideia obsessiva) corno traduçáo
, alemá do inglês obsxsíon,p. 72.
I
afazer é debruçarmo-nos sobre seus ensinamentos e deles apren-
der sobre este aspecto, certamente muito obscuro, do continente
negro da feminilidade.
O adjetivo obsasionnelle, em francês, se deriva de obses_
sion (em inglês), que tem como raiz latina oásassus, significando
"sitiado'l 'tercado'l É curioso notar como mesmo antes de Freud,
esta característica de "estado de sítio" da neurose obsessiva era
sublinhada pelo psiqúatra Legrand du saulle. Descrevendo o pri-
meiro período daquilo que ele denomina "loucuras da dúvida,l
conclui: 'iA. luta é silenciosa: o sitiado não se queixa do sitiador,,
(p.s:).
Embora o termo'heurose obsessiva,l cunhado para designar
o que Freud afirmava ser'ma .,inovação nosográfica,i só tenha
surgido em 1896, a preocupação de Freud com a obsessão e as
representações obsessivas é bem anterior. Aliás, o próprio sin_
tagma 'heurose obsessiva" já está presente em sua correspondên-
cia a Fliess dois anos antes de anunciáJa como,Ína nova concep-
ção nosogrrífica. Comenta então com o amigo que ele tem razão
em chamar-lhe a atenção para o fato de que o vínculo entre a
neurose obsessiva e a sexualidade .hão é assim tão óbvio, (p. 66).
Curiosamente, no texto gue os dois presumivelmente, comen-
tam, 'âs neuropsicoses de defesa'l Freud não utüza o termo neu_
rose obsessiva, mas se refere apenas às representações obsessivas
(Zwangsvarstellungen). É como se precisasse ganhar tempo e se
aprofundar em suas pesquisas para impor com tranquilidade a
nova neurose por ele descoberta.
Na carta de zr de maio de rg94, diz a Fliess que se sente muito
só na elucidaçâo das neruoses e comenta a ironia da ,.incongruên_
cia entre o apreço que se dá ao próprio trabalho intelectual e o
valor que os outros the atribuem' (p.zà. Fala do grande sucesso
que um üwo sobre as dplegias, que preparou ,,quase corn frivo-
lidaddl estava obtendo, em contraste com o fracasso que e§Pe-
rava'üas coisas realmente boas" entre as quais enumera um texto
sobre as "Ideias obsessivas", presumivelmente (e quem Presume
aqui sou eu) o texto "Obsessões e fobias" escrito no mesmo ano e
publicado em 1895.
No rascunho D que acompanha esta carta, "Sobre a etiologia
e a teoria das principais neuroses", a neurose obsessiva jâ é apre'
sentada com seu nome próprio' Mas é no Rascunho K, que acom-
panha a carta de ro de janeiro de 1896, ironicamente intitulado
por Freud de Um conto defadas natalino, que e1e vai firmar a des-
crição de netuose obsessiva, contrapondo-a à paranoia e à histe-
ria e caracterizando-a pela autorrecriminação, o que é hoje con-
sagrado como o'tofrer dos pensamentos".
A grande "invençãd' de Freud foi retirar a obsessão do campo
das psicoses e subordiná-la ao campo da neurose ao lado da his-
teria. Freud, na verdade, subverteu a perspectiva a partir da quai a
psiquiatria abordava então as obsessões: como dar conta de uma
"loucura" (mania) que não afetava o raciocínio? Ao centralizar
a questão da obsessão em torno do pai, Freud pôde alinhar sua
nova neruose ao lado da histeria.
os clÁsstcos
O debate da psiquiatria clássica antes de Freud, sobre aquilo que
após o mestre sabemos ser a neurose obsessiva, tomou a dire-
ção contrrária, ou seja, preocuPou-se em afirmar a integridade
do pensamento nesta afecção. Pinel chrunou íe "mania serBielí.1
jl"_§Tg_ryry_po::ig j-glgg!"dqç-que-s-e3arss!çdza-v-a-Pelo-f ato
de que se tratavam de "loucos que em nen[Yq j1otl9.n193g9--
t_.:i"* qü"t-quã-tesaõ {o=ent.ndim".lrio, " (ue estavam domi:
nados de uma espécie de instinto de furor, como se uniçq-4entq
iítiGssem lêsadas suas faculdades 1{etiyls' 
(p- +r). Neste artigo,
I
24
Âpresunção édo editorJeffreyMoussaieffMasson, nanota da carta de3o.r..r994, p.6S.
25
lii.
ir
E---
Pinel descreve magistralmente três casos de sujeitos acometidos
de um fiuor sem limites, porém isentos de atividades delirantes.
Embora o autor não nos dê outros dados que permitam um diag-
nóstico cabal de neurose obsessiva, os casos descritos se asseme-
lham aos daqgs!*{g SIg de que são capazes alguns obsgggvos
quando, prlsos na gaiola de seu naicisismõ ie-ntem-sãim"gi""-
,1@---_Ug_úaça{os. Uá bom exeúplo deste furor, toiahãnte
ãpoiado na rivalidade imaginríria, está no fllme "[,lm dia de fiiria'l
no qual o personagem central, encarnado por Michael Douglas,
sentindo-se pressionado e ameaçado pelo cotidiano estressante
da cidade grande, sai matando como um louco. Um dos aspectos
interessantes de se observar é que o alvo de seus ataques é sempre
um representante de uma minoria racial (minoria para os Estados
Unidos, é claro). Assim, asiáticos e chicanos caem sob seus gol-
pes justiceiros, ilustrando magnificamente o que Freud chamou
de narcisismo da pequena diferença. O ponto mais curioso é gue,
centrando a trama na ótica do herói-assassino o diretor leva o
espectador a uma identificação especular maciça, deixando claro
que qualquer um na sala de projeção do cinema é potencialmente
um "maníaco sem delírio"nos moldes de pinel.
Também outro ilustre representante da psiquiatria clássica,
Esqúrol descreve um transtorno mental, a "monomania racio-
nantdi que consiste em umaperturbação da conduta sem partici-
pação do raciocínio: "Por mais irracionais que pareçam seus atos,
estes monomaníacos sempre têm motivos mais ou menos plausí-
veis para justificar-se, de modo que podemos dizer que eles são
loucos razoáveis" (p. S:).
A "mania sem delírio" e a "monomania raciocinante" cen-
tram a classificação nosogriífica na pecúaridade de existirem
maníacos que preservam o seu raciocínio. Tiú nâo é a opinião do
bispo Jeremy Tayler, autor de uma curiosa observação publicada
z6
ern 166o,r sobre um de seus devotos. O piedoso homem lia dois
livros de devoções que tanto lhe agradavam que resolveu discipli-
nar-se na tarefa, Passou a dedicar três horas por dia para ler seus
üvros, e como observou que em três horas lia os livros três vezes,
passou a os ler durante seis horas. Em pouco tempo já tinha che-
gado ao ponto de ler durante doze horas, doze vezes seus precio-
sos liwos, o que levou o sensato bispo a declarar que "seu escrú-
pulo era irracional".
A avaliação do bispo Tayler era guiada pelo bom sensq
enquanto que o objetivo de Prgele-Elguirol era o de determi-
nar o caráter específico a. "rrá;t&à-É;d";"?üàsem 
delí-
rio. No início do artigo citado, Pinel deixa isto claro, ao se opor a
Locke, para quem a loucura seria sempre acompanhada de uma
perturbação no raciocínio. Ao estabelecer a diferença entre o
louco e o idiota, Locke diz que: "Os loucos juntam ideias erra-
das e assim constroem proposições errôneas, mas argumentam e
raciocinam certo a parür delas; mas os idiotas constroem poucas
ou nenhuma proposição, e quase náo raciocinam" (p. 146). Para
Pinel, na "mania sem delírio', 
*não 
se adverte nenhuma alteração
sensível nas funçóes do entendimento", e sim uma'terta perver-
são nas funçôes afetivas", sem que se possa assinalar "nenhuma
ideia dominante, nenhuma ilusão da imaginaçáo que seja a causa
determinante destas funestas inclinações" (p. +s).
Assim sendo, o que preocupa Pinel é a etiologia de sua "mania
sem delírio" e o que o espanta é não encontrar runa ideia deli-
rante que origine esta dita mania. EmíJSgÇtr[_F@t descreve
minuciosamente o que ele chama de "úenaçáo parcial com pre-
domínio do temor ao contato com os objetos externos". Salienta
que é uma variedade de doença que tem como fundo os delírios
parciais, ativos e expansivos, estando portanto do lado da mania
e não da melancolia. Ressalta que é uma variedade da mesma
Como observa J. Stracheyo significante obsession data, em inglês, do século xvu,p. 22.
l
a1
L
l1ti
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enfermidade que seu pai chamou de "doença da dúvida,i ..para
resumir, em sua forma mais geral, o fato psicológico que consti_
tui seu fundamento principal" (p. +S).
. -?ara Fúet Filho, trata-se de uma doença que atinge ospensa_
,' mentos e as ações. O doente se vê compelido a repetir os mesmos
' atos e as mesmas palawas, o que implica um tesgaste excessivo
da energia nervosa e intelectual'l levando o sujeito a um estado de
.- tal sofrimento que o autor se surpreende que esta doença, que às
vezes dura a vida inteira, 'hão desemboque nunca numa verda-
i
deira demência" (p. 5o).
- -- O texto de Falret é sem dúüda a melhor descriçáo da neurose
obsessiva antes de Freud. Como podemos ver, o autor salienta,
desde o título que dá à doença, or_9úioa1;ài,iÊ9i presentes
com frequência na neruose obsessiva. Oii-{ue tais doentes têm
medo de tocar objetos externos com suas mãos, pois estes podem
estar sujos ou podem conter alguma substância prejudicial. Têm
também medo de cachorros e sobretudo de cachorros raivosos
(p.+8). Fogem ao contato com todos os objetos e os objetos metá-
licos "são, de ordinário, aqueles cujo contato mais lhes repugna,,
(p.+S).Além disto, alguns pacientes são sujeitos a escrúpulos reli-
giosos e se reprocham sem cessar. Empregam um tempo dema_
siadamente longo para fazer sua toalete, ou para se sentar à mesa.
Falret vai assim enumerando, catalogando cuidadosamente, os
sintomas que Freud decifrará no futuro como característicos da
neurose obsessiva. É curioso verificar como a simples observa-
ção clínica, sem um respaldo teórico preciso, leva o autor - cer_
tamente um grande clínico - a atribuir o mesmo peso a sintomas
importantes (a repetiçáo de atos e palawas, os escrúpulos) como
a sintomas secundários e acidentais (medo de cachorros raivosos
e repugnância a objetos metiílicos). Falret atribui a origem deste
transtorno mental a uma doença física, observando que o quadro
aparece'hpós uma doença como a febre tifóide ou cólera,, (p. So),
zB
e surpreendentemente observa que "esta doença é mais comum
na mulher, porém também se observa no homem" (p' S6).
A maior incidência da neurose obsessiva nas mulheres obser-
vada por Falret é facilmente expücável pelo fato, que ele próprio
sublinha, de que esta é uma doença que aParece mais frequente-
mente nos consultórios particulares do que nos hospitais e asi-
los para úenados. Assim sendo, não espanta que em 1886 o ilus-
tre alienista encontrasse mais mulheres se queixando de siirtomas
obsessivos, pois até hoje a clínica comProva que as mulheres,
mesmo as obsessivas, têmmaiorpropensáo a falar dos seus proble-
mas, das suas falhas, do que os homens, mesmo os histéricos. Esta
hipótese é confirmada por Legrand du Saulle, que reivindica ser o
primeiro a isolar a "loucura da dúvida (com delírio do tato)'i como
uma das quatro variedades nosológicas da loucura cornconsciên-
cia. Diz ele: "A loucura de dúvida afeta muito mais às mulheres do
que aos homens, pode aparecer pela primeira tÍez na puberdade
e se observa quase sempre nas classes mais aitas da sociedade"
(p. s6). Esta observação confirma o fato enfatizado pelo autor: a
"loucura da dúvida" é doença de consultório particular.
Du Saulle menospreza os trabalhos de seus antecessores e
úrma ser o primeiro a de fato estabelecer a sintomatologia desta
"patologia da inteligência" (p. 5z). Ele também atribui a ProPen-
são à doença à herança mórbida, e dá como fatores desencadean-
tes do quadro, não só uma variada lista de doenças físicas, mas
também'b onanismo inveterado, uma grande emoção e um vivo
pavor" (p. ss).
Du Saulle também une neruose obsessiva e fobia. Sua "lou-
cura de dúüda" vem acompanhada sempre do "delírio de tato'l
Êm 1895, Freud publica seu artigo sobre "Obsessões e Fobia'lcom
o objetivo claro de distinguir os mecanismos psíquicos e a etio-
Iogia "das verdadeiras obsessões, muito diferente do das fobias"
(p.l ). Este é o primeiro passo para destacar a netuose obsessiva
i
I
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com 'hfecção autônoma e independente" (p. 146), porém a rela-
ção entre neurose obsessiva e fobia, ou neurose de angústia ou
histeria de angústia é tã<l complexa quanto o número de designa-
ções que se queira usar. Ao longo da obra de Freud, novas nuan-
ças vão se delinear e uma rica trama de conceitos vai se tecer.
o oracrqósrlco DIFERENCTAL...
Retornemos por um momento agora para o famoso rascunho K
já anunciado no inicio do capíhrlo, para tentarmos extrair dele
todo o entusiasmo e a sabedoria que Freud dedica a sua nova
neurose. Freud descreve as neuroses como 'hberrações patológi-
cas de estados afetivos psÍquicos normais" (p. 16l). É uma defi-
nição importante no que ela antecede a definição lacaniana de
estrutura, e nos permite distinguir a estrutura neurótica - estado
afetivo psíquico normal - da neurose desencadeada - sua aber-
ração patológica. A própria estrutura da histeria, apontando para
a falta e paÍa a insatisfação do desejo, permite com que, mútas
vezes, os histéricos possam procurar uma análise porque 'h vida
vai mal'l de um modo genérico, e será a manobra de transferên-
cia, por parte do analista, que poderá desencadear a neurose de
transferência para permitir o decorrer de uma análise.
IáL na neruose obsessiva, 'bs q$jêA.:5,-ai_s.-difíEeis--de- rom-
p e r"'- (t'acanl 193 ri; "" *j í;il;;;"; a,pêrJr_c-ul4{rnentedestffiadaataúiiflái;'ãáilocãr, a nãgar, a d.uüdgtli pó vÍunos
serprocúrados como analistas quando algo, de f"to ," ,o*p.u. '-
A manobra da transferência vai se dar no limite delicado entre o
alíüo produzido pelo próprio ato de falar e a manutenção de um
certo grau de angústia que permita ao sujeito prosseguir sua aná-
üse. Os analistas conhecem bem a frequência com que as aniilises
dos obsessivos são interrompidas porque'hgora está tudo bemi
miraculosamente.
3o
O estabelecimento do desencadeamento da neurose obses-
siva é de extrema importância, no caso especial das mulheres,
pois é quando será possível detectar a causa da ruptura produ-
zida na estrutura de camuílagem. É o caso de uma jovem com
ideias obsessivas, extremamente penosas, de se atirar pela janela.
 conjunção da entrada na adolescência, com as questóes rela-
tivas ao sexo que aí se impõem, juntamente com a existência de
um segredo familiar relativo a um suicídio, foram os responsá-
veis pela eclosão da neurose. A jovem até então tida como filha
exemplar, excelente aluna, com um rendimento intelectual bri-
lhante, passara a ser, de súbito, o tormento da famflia. A com-
pulsão a se atirar pela janela foi muito bem decifrada por Freud
(Marson, 1986, p, zt7-zt9), como um elemento importante da
neruose obsessiva em mulheres, e teremos oportunidade de reto-
mar depois este tema. No momento, quero apenas observar que
o estabelecimento claro destas circunstâncias desencadeantes
foi um dos dados que orientou a analista no estabelecimento do
diagnóstico e na manobra da transferência, e a impediu de dar
um rumo desastroso ao caso, que tinha inclusive indicaçáo de
internação psiquiátrica.
A questão do diagnóstico diferencial é postulada por Freud
(rSr:) a partir de parâmetros éticos: "Se o doente náo sofre de
histeria nem de neurose obsessiva, porém de parúenia, ele [o
analista] não poderá manter sua promessa de cura e por isto tem
motivos particulares sérios para evitar o erro diagnóstico" (p.
n6).ParaFreud, este erro é "muito mais funesto" para o psicana-
lista do que para o psiquiatra clínico, para quem o diagnóstico só
tem "um interesse acadêmico'. Estamos, portanto, no terreno da
ética: não se trata de diagnosticar para classificar.
Na "lntrodução à edição alemã dos Escritos", de r973, Lacan
elucida; 6o anos depois, a recomendação do mestre: "Freud o
disse antes de mim: tudo numa anáüse deve ser recolhido - onde
l
!,,
i
31
se vê que o analista não pode escapÍr - recolhido como se nada,
aliás, houvesse sido estabelecido'(p. ,o).Lacan aqui se refere a
um texto anterior de Freud "Conselhos ao médico sobre o trata-
mento psicanalítico' (t9tz), no qual Freud enurrciaaregrafun-
damental da anáIise, em duas versões:
o pÍIra o analista, a atenção flutuante;
o pÍIrâ o analisante, a associação liwe.
É entâo da palawa do analisante, dita o mais possível sem
barreiras, que o analista, numa escuta o mais possível sem pre-
conceitos, vai poder verificar a relação do sujeito à estrutura que
é, nos diz Lacan, estrutura de linguagem. "Pois a questão começa
a partir disto - existem üpos de sintoma, existe uma clínica. Só
que ela é anterior ao discurso analítico, e se este último traz-lhe
uma luz, isto é seguro mas não é certo. Ora, precisamos da cer-
teza porque só ela pode transmitir-se ao demonstrar-sd' (Lacan,
1973, p. ro).
Aí começa a questão da dificuldade do diagnóstico diferen-
cial, sinúzada por Freud no seu texto de r9r3. "Várias vezes,
quando encontramos tuna neurose com sintomas histéricos ou
obsessivos, porém não presentes em excesso e de curta duração
- quer dizer, justamente as formas que se considerariam favo-
ráveis para o tratamento - deve caber a dúúda sobre se o caso
nâo corresponde a um estádio prévio da chamada dementia pra-
ecox (esqrizofrenia, segundo Bleuler, parafrenia, segundo minha
proposta) e, passado mais ou menos tempo, mostrará um quadro
declarado desta afecção'(p. rz6). Dentro desta mesma perspec-
tiva, Lacan nos adverte iO seminário As psicosa que se tomar-
mos um psicótico não desencadeado em anríIise (na época ele
dizia'pré-psicótico') teremos uma psicose desencadeada.
O texto de Lacan de ry7 elucida ainda mais precisamente
a questão. O significante cifra o gozo, e a esta operação na neu-
rose Freud denomina recalque. É o recalquê que garante o deci-
32
framento pela análise: "r{.s formações do inconsciente, como as
designo, demonstram sua estrutura Por serem decifráveis. Freud
distingue a especificidade do grupo: sonhos, lapsos, chistes, do
rflodo, o mesmo, com o qual ele opera com eles" (p. 8).
,''-^'OÍa, na psicose, a falha do recalque deixa o inconsciente a
/ cé,taberto. Não se trata de decifrar, porém de cifrar, ou seja, bus-
I .*, no caminho inverso da análise, que o sujeito possa constrúrl.
\ com as palawas um dique ao gozo que o invade. Deste modo, a
\ promess" de cura não poderá ser mantida pelo analista na psi-
)L
) cose. De que promessa se trata? Muito simples: da felicidade!. L- Diz Lacan: 'A boa hora, Ie bon heur, existe. Só existe isso
mesmo: a felicidade, le bonheur, é questão de chancel Os 'teres"
falantes são felizes, felizes por natureza, aliás, desta ultima é tudo
que lhes resta. Será que por meio do discurso analítico não se
poderia vir a ter um pouco mais? Eis a questão de cujo esüibi-
lho eu não falaria se a resposta jâúo aqui estivessd' (p. ro). Uma
aposta na felicidade, pouca que seja, nos leva do terreno da ética
ao da política - a política do analista. Apostar na felicidade é
apostar em ir além do sintoma, além do pai, além do espesso nó
- mas para seguir além, o analista deve se apoiar na segurança de
um diagnóstico que lhe garanta a presença do nó - o Édipo, o pai,
o sintoma - paÍa poder ir além dele. É, segundo Lacan, 'b nó tal
como um Marx o percebeu" (p. 9), porém indispensável para que
a aventura analítica se dê.
A certeza buscada no diagnóstico diferencial, na evidência
do nó, é entretanto problemática. "Que os tipos clínicos resul-
tem da estrutura, eis o que já se pode escrever, ainda que não sem
hesitação. Só há certeza e só é transmissível para o discurso his-
térico" (p. ro).4 histeria tem um discurso próprio, matemizado
por Lacan no seminário xvII; a histeria fazlaço social, permite
mais facilmente um diagnóstico positivo. A neurose obsessiva,
nos diz Freud, é dialeto, não tem discurso próprio, o que dificulta,
e muito, um diagnóstico preciso.
I
33
O elemento básico destacado por Freud no Rascunho Kpara
estabelecer o diagnóstico diferencial da neurose obsessiva, com
relação à histeria e à paranoia, é autorrecriminação.Embora Freud
reconhecesse, como já foi mencionado, que o vÍnculo entre neu,
rose obsessiva e sexualidade não era, à primeira üsta, tão óbvio
quanto o da histeria, insiste em que também nas obsessóes as cau-
sas precipitantes são de naiureza sexual, e ocorrem no período
precedente à maturidade sexual do sujeito. A etiologia sexual das
neuroses já está assim afirmada e Freud já pode declarar que não
crê "que a hereditariedade determine a escolha de neurose defen-
siva específica" (Marson, 1986, p. r63).
O encontro traumático com o sexo seria na neurose obses-
siva, acompanhado de pÍazer, ao contrário do que ocorre na his-
teria. Aqui Freud desvincula a experiência sexual prazerosa de
atividade (nos meninos) ou de passividade (nas meninas), e em
seguida cai em contradiçâo. Postula uma posição passiva inicial
do sujeito, quer homemr Qu€Í mulher, diante do ataque sexual
vindo do Outro, o que aliás é confirmado por ele próprio, trinta e
cinco anos depois, ao atribuir à mãe o papel da grande sedutora,
para ambos os sexos, pela via dos cuidados corporais estimulan-
tes. Em 1896, entretanto, se vê obrigado a recuar num raciocí-
nio contraditório, de modo a conectar a passividade ao desprazer,
pouco depois de afirmar que nas meninas obsessivas a e4periên-
cia passiva era prazerosa.
Somente no ano seguinte, na carta de r5 de outubro de rg97,
Freud nos darâ a chave para resolver esta contradição: a univer-
salidadedo Complexo de Édipo. Assim, podemos compreen-
der, retroativamente, como a experiência prazerosa do encontro
com o sexo retorna como desprazer naneurose obsessiva, como
efeito da culpa e não da passiüdade. Sendo assim, a experiên-
cia inicial passiva ao convergir posteriormente com a experiên-
cia prazerosa também passiva nas meninas, acrescentaria pela üa
34
da culpa desprazer à lembrança prazerosa e possibilitaria o recal-
camento, mantendo-se o esquema de 1896 - Desprazer-Prazer-
Recalcamento.
O próprio Freud autoriza esta interPretação ao afirmar que
a autorrecriminação emerge iniciaknente como "um sentimento
pruo de culpa, sem nenhum conteúdo' (p. 166), para depois
Iigar-se a um novo conteúdo distorcido. Assim sendo, % ideia
obsessiva é produto de um compromisso, correta no que tange
ao afeto e à categoria, mas falsa em decorrência do deslocamento
cronológico e da substituição por analogia" (p. 166). A desloca'
mento jáé então sublinhado por Freud, como o mecanismo pró-
prio da neurose obsessiva.
Embora Freud aborde, no Rascunho K, a neurose obses-
siva, a paranoia e a histeria, a ênfase comparativa é dada entre
a neruose obsessiva e a paranoia. Na neurose obsessiva a autor-
recriminação é recalcada e posteriormente deslocada, enquanto
que na paranoia "náo há formação e recalcamento posterior de
uma autorrecriminação" (p. i68). Esta comparaçãro iâ está pre-
sente no Rascunho H, de 1895, quando Freud enumera paranoia
e obsessão como "disturbios puramente intelectuais" (p. ro8). No
Rascunho K, Freud sublinha que o deslocamento da ideia obses-
siva poderia levar a formas de delírio que, no entanto, não perten-
cem à psicose (p. 16z). No Rascunho H, separa a neurose obses-
siva como uma perturbaçáo que "deve sua força a um conflitoi
e defiae a paranoia dizendo que sua finalidade "é rechaçar uma
ideia incompatível com o eu, projetando seu conteúdo no mundo
externd'(p. rro).
Assim sendo, Freud responde às inquietações de Pinel e
Esquirol: não se trata mais de discutir se na neurose obsessiva há
ou não há delírio, ou de marcar a distância com relação à para-
noia pela preservaçáo ou não das "funções do entendimento'i As
construções obsessivas sã.o obviamente construções delirantes, e
I
35
quem o duüdar confira a história enlouquecida do Homem dos
Ratos com o tenente Â, o oficial B e os correios, que custou a
Freud a elaboraçáo de um mapa (Freud, 1909, p. 166 nota 43).
Lacan, nos anos 70, marcou exatamente isto ao falar dos Nomes-
do-Pai, no plural. Na neurose, tal como na psicose, trata-se de
fazer suplência ao impossível, ou seja, no diagnóstico não se trata
de estabelecer uma diferença qualitativa entre neurose e psicose
(loucos yersus não loucos), mas sim de marcar uma diferença
estrutural, que tem consequências clínicas.
... E suÂs coNsequÊucres crÍNrcÁ.s
Em 1895, Freud aborda a mesma questão a parür do destino
dado ao que ele chama na época do "representação incompatí-
vel com o eu". Na paranoia a representação é rechaçada, enquanto
que na neurose obsessiva a representação é recalcada e substitu-
ída, por deslocamento, pela ideia obsessiva. Muitos anos depois,
Freud (r93r) vai esclarecer sobre esta representação incompatí-
vel com o eu: é a representação da castraçáo materna que ame-
aça o sujeito. Ora, o agente da castração simbóüca, Freud é bem
claro, é o pai, e assim não é surpreendente que Lacan vá denomi-
nar de significante Nome-do-Pai ao significante que na neruose
vai amarrar o sujeito à linguagem: Na psicose este significante
está foracluído - ou seja, a representação é rechaçada - e retorna
no real, no muado exterior, sob a forma, por exemplo, das vozes
alucinadas.
O tormento das ideias obsessivas, que assediam o sujeito
como vozes interiores, pode levar, em alguns casos, a tuna dúüda
diagnóstica entre neurose obsessiva e a paranoia. É o caso da
jovem já citada: aideia obsessiva de se jogarpela janela a assaltava
com tal energia que poderia ser confundida com vozes que orde-
nassem que pulasse. No entanto, na psicose âs vozes, retornando
t6
do real, sáo exteriores ao sujeito, mesmo que seja ele quem pro-
nuncie as palawas. Â moça dizia múto claramente: "Não quero
me matar, mas esta ideia não me sai da cabeça." Haüa portanto
conflito, e a ideia era subjetivada, embora sua origem fosse des-
conhecida para o sujeito, instaurando a divisão subjetiva, indica-
dora do recalque.
Neste caso qualquer medida protetora que tranquüzasse a
analista, como a internação indicada por outro profissional, teria
sido desastrosa, pois haüa na família antecedentes psiquiátricos
que levariam facilmente a jovem à identificação com o signifi-
cante louca, o que lhe fecharia as portas para outra saída. Como já
disse, o dever do diagnóstico é ético, e assim sendo, coube à ana-
lista suportar a angústia do seu ato, e manter a adolescente fora
da internação, confiando no dispositivo analítico para dar conta
da situação.
Na verdade, o estudo comparativo entre paranoia e neurose
obsessiva, embora difícil e complexo, é bem menos espinhoso do
que aquele entre histeria e obsessão. No que pese o zelo de Freud
em descrever e isolar a sua nova neurose, já em 1896, no mesmo
ano em que lança ao mundo a neurose obsessiva, diz que'tm
todos os meus casos de neurose obsessiva encontrei um fundo
de sintomas histéricos" (p. 16g).Dezoito anos depois, no capítulo
VII do historial clínico do Homem dos Lobos, volta a se referir
ao "pequeno fragmento de histeria que regularmente se encontra
no fundo de uma neurose obsessivd' (Freud, r9r8, p. 7o).lâ no
caso do Homem dos Ratos, Freud dissera claramente que " a lin-
guagem da neurose obsessiva é, por assim dizer; apenas um dia-
leto da Iinguagem histérica" (r9o9, p. L2à.Em t926, em Inibição,
Sintoma e Angústia, chega a declarar que 'h situação inicial da
neurose obsessiva não é senão a da histeria, a saber, a necessá-
ria defesa contra as exigências libidinosas do complexo de Édipo'
(p. ros). Lacan, por sua vez, fala do "núcleo histérico da neu-
I
I
I
i
I
!i
37
rose" (1953), chegando a atribuir à histeria um discurso, ou seja,
demonstrando como a histeria faz laço social, não havendo entre-
tanto um discurso próprio à neurose obsessiva.
Assim sendo, não seria mais prático sustentar que não exis-
tem mulheres obsessivas e sim histéricas, com defesas obsessivas?
Curiosamente, ninguém pensa na hipótese de chamar os homens
obsessivos de histéricos com defesas obsessivas, o que seria coe-
rente dentro do mesmo raciocínio. Deste modo, em lugar de
abandonar aqui as neuróticas obsessivas com o rótu]o fácil de his-
téricas prossigo com Freud e com a clínica, para examinar o ema_
ranhado complexo das relações entre histeria e obsessão.
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sAURr, ,. s. "La lectura informativa'l In: Las Obsesianes, Buenos Aires:
Nueva Vision, 1985.
)
39
O enigma ü Á, mulher: histeria e obsessão
O QUE OS POETAS NOS ENSINAM
Há cinquenta e poucos anos atrás estreava nos palcos do Rio de
]aneiro a peça Vatido de Noiva, de Nelson Rodrigues (r98r),
que marcou o nascimento da moderna dramaturgia brasileira. A
peça, completamente revolucionária com relaçáo ao modelo tea-
tral ügente, causou polêmica e hoje, quando seus aspectos ino-
vadores já foram absorvidos pela cultura, continua a encantar o
público pelo seu vaior artístico e por tocar em algo da verdade do
inconsciente, através do talento de seu autor,
Em um artigo em que presta homenagem a outra grande
artista, Marguerite Duras, Lacan (1988 bgSl} se espanta pelo
fato de que ela, a autora, através de sua obra, mostra saber sobre
aquilo que ele ensina sobre a psicanálise, sem ao menos conhe-
cê-lo. Para Lacan, diante da obra de arte, o psicanalista deve
lembrar-se, com Freud, de que o artista o precede no tema que
aborda, e procurar aprender da obra o que o artista sabe sobre
o inconsciente, que ele, psicanalista, estuda. O texto que Lacan
comenta em sua homenagem a Marguerite Duras é O deslumbra'
mento de Lal V Stein.
Coincidentemente os dois textos giram em torno de um ves-
tido: o vestido negro da mulher gue arrebata o noivo de Loi numa
festa do cassino, e o branco nupcial, usado por Alaíde e Lúcia
I
na peça de Nelson Rodrigues. É o tema do vestido que, segundo
Lâcan, sustenta a fantasia de Lol: o vestido negro desnudando o
corpo da Outra, num gesto que nunca se completa. O que revela-
ria a queda do vestido negro senão o vazio, o nada em que a pró-
pria Lol foi lançada quando o noivo a despoja do seu amor, dei-
xando-a nua aos olhos dos outros, como louca?
Mas que mulher não ficaria louca ao ser assim trocada por
outra? É numa festa num cassino à beira-mar que Lol vê uma
estranha e fascinante mulher vestida de negro arrebatar o noivo
que ela, Lol, amava. Permanece inerte diante da cena, ela própria
arrebatada pela visão do casal. O gênio de Marguerite Duras vai
nos conduzir sutilmente ao segundo tempo da novela. Recuperada
da crise provocada pela cena do cassino, Lol retorna, anos mais
tarde, a sua cidade, casada e com fiIhos. Sai em peregrinação
pelas ruas e reconhece uma amiga da adolescência, Tatiana, com
o amante, os segue e os observa de longe. O vestido negro retorna
sob a forma dos longos e negros cabelos de Tatiana, que recobrem
sua nudez no encontro amoroso.
O amante de Tatiana, narrador do liwo, se apaixonapor esta
estranha mulher, Lol, que espia seus encontros amorosos, e ter-
mina por acompanhá-la numa viagem ao cassi.no, onde se dera
a cena do arrebatámento. Na ida de trem os dois se amam. Na
volta, Lol, transtornada, enlouquecida, se recobra pnra lembrar
ao amante que não faltasse a seu encontro com Tatiana. O liwo
se encerra com a imagem de Lol deitada no campo de centeio,
diante da janela onde os amântes se encontram, ela própria ape-
nas uma mancha escura na paisagem. "IJm ser oferecido à mercê
de todos'l dizLacan, 'âs dez e meia da noite no verãol'
ÊmVatido de noiya, o vestido que recobre a nudez d' Mulher
é branco, copiado de "uma fita de cinema'l Numa montagem rela-
tivamente recente, o diretor, ao usar o mesmo vestido de noiva
paÍa as duas irmãs, Alaíde e Lúcia, aponta para o que é este ves-
42
tido: o véu que encobre o lugar vazio que é o d' Mulher. Alaíde,
Lúcia, Mme. Clessi são máscaras, véus que velam ovazio. Âiaíde,
aos olhos de Lúcia, rouba-lhe o noivo. Roubar o homem de uma
mulher é, em Nelson Rodrigues, em Marguerite Duras e no coti-
diano da clínica, tornar-se a Outra, cujo corpo velado será inter-
rogado, desnudado com o olhar.
O que é que ela tem que eu náo tenho? Diante da castraçáo
feminina, stuge o enigma do desejo e as respostas sempre falhas.
Alaíde é a que rouba os namorados da irmã, é a que ousa dizer, e
faz suavoz ecoar mesmo após sua morte, nos ouüdos culpados
da irmã:
- Eu sou muito mais mulher do que você, sempre fui.
Mais mulher, mais o quê? Mais nada. Tanto que fazendo girar
seus personagens o autor mostta, num segundo momento, que é
Lúcia que encarna a Outra para a irmã, Mulher que lhe rouba o
marido, a ponto defazê-lo desejar a morte dela, Alaíde.
- Nem que eu morra deixarei você em paz, atteaçaÂlaíde.
Nem poderia deixar, pois a morte de uma mulher não mata a
questão que a castraçáo feminina impõe. "Se vocês querem saber
mais sobre a feminilidade", nos diz Freud Gglz), 'dirijam-se aos
poetas." E o poeta-dramaturgo nos responde, fazendo coro com
Lacan: A mulher não existe! E a busca incessante da impossível
resposta desliza no palco, onde o drama e o humor se misturam,
fazendo borda ao vazio. Num momento cômico, em que as recor-
dações delirantes de Alaíde se misturam com cenas daTraviata e
de E o vento levou, a frase que faz espoucar o riso da plateia é: "O
olhar daquele homem despe a gente." Scarlett O'Hara, Violetta,
Mme. Clessi, Lúcia, Alaíde...
Alaíde entre-duas-mortes. Logo no início da peça, o diretor
do jornal á NoiÍa pergunta ao repórter carioca:
- Morreu?
- Ainda não. Mas vai.
43
Por meio de um personagem secundrírio temos a morte
anunciada de Âiaíde. Ainda não. Mas vai.
No seminrírio vrr, á Ética da psicanálise [1959-196o], Lacan
intitula o capít,lo xxr 'i{ntígona entre-duas-mortes,,. A partir da
heroína da tragédia de sófocles ele nos fala desta "zona limite
entre a vida e a morte" onde os heróis trágicos estão situados.
Nelson Rodrigues, em que pesem os seus deliciosos toques de
humor, situa aí sua tragédia carioca. Também Lol V Stein está
aí situada, neste "umbral entre-duas-mortes,,, .b iimite em que o
olhar se torna beleza'l
Este umbral é posto em cena emVestido de Noiva desde sua
concepção em três planos: alucinaçáo, memória e realidade, com
a peça se iniciando pelo atropelamento da heroína. É Âlaíde que
enczrna este umbral. Tal como Antígona, ela está desde há muito
"morta para o mundo'l Tal como Antígona, ela também .tstá con-
denada a jogar num jogo cujo resultado é conhecido de antemãdl
Mas ao contriirio de Antígona, que sabe a que está condenada,
e que neste saber, e não recuar diante de nada, encarna o desejo
puro, Aiaíde não sabe que sabe.
Que ela sabe, o autor se encarega de nos informar.
* Você pode morrer, minha filha. Todo mundo não morre?
diz a mulher-de-véu.
Alaíde não se engana:
- Você quer dizer que me mata?
Ao que a outra retruca, explicitando seu desejo:
- Quem sabe? Você acha que eu não posso matar você?
Esta cena se passa com Alaíde vestida de noiva, antes do seu
casamento, fundindo sexo e morte, fusão que o autor colocará emcena, explicitamente no enterro de Mme. Clessi. A Mulher-de-
véu no decorrer da peça se desvela: éLt3cia, a irmã traída e mais
tarde, traidora. Porém não é só a irmã que deseja AlaÍde morta,
mas também seu marido, o noivo roubado e depois desprezado.
44
Num diálogo alucinado entre Alaíde e Mme. Clessi ficamos
sabendo que este desejo do casal que ela desuniu e que agora se
une contra ela, ecoa seu próprio desejo, dela, Alaíde.
Clessi: Quer ser como eu, quer?
Alaíde (veernente): - Quero sim, quero.
Clessi: - Ter a fama que eu tive. A üda. O dinheiro. E mor-
rer assassinada?
Sim, Alaíde queria, sim, morrer assassinada e por esta razáo
no seu delírio entre-duas-mortes evoca aprostituta Mme. Clessi,
que vivera na sua casa no século anterior e cujo diário lia na ado-
lescência. Mme. Clessi havia sido morta Por seu amante, um
menino de 17 anos. Nesta sutileza o autor nos revela o desejo
mortífero que levara Âlaíde a ferir sua irmã, roubando-lhe o
homem que ela - Lúcia - amava, e casando-se com um canalha a
quem desprezava.
Neste sem saber sabendo, Alaíde vai traçando seu destino
rumo à morte anunciada, até sua consumação, Por não saber que
sabe, Alaíde não tem a grandeza de Antígona, mas a peça não se
redtz a Alaíde. Na cena final, as duas noivas com o mesmo ves-
tido, os braços estendidos, entre elas o buquê, elevam a tragédia
carioca ao universal da tragédia humana: o amor, o §exo, a morte.
É disto que a psicanrílise trata.
Diante da Outra mulher que lhe rouba o noivo, Lol V' Stein
desmorona, enlouquece. Lol não é um paradigma da psicose pela
simples razáo de que, tal como Alaíde, Lol não é um sujeito: é
fruto da imaginação de um artista. Mas seguindo a orientação de
Freud, podemos aprender com Duras e Nelson Rodrigues algo
mais sobre a verdade da tragédia humana.
Assim, pois, temos duas posições contrastantes. Para Lol a
Outra existe e é tão consistente quanto o Deus de Schreber. Diante
da mulher do vestido negro, não há nada a fazer, senão que-
dar fascinada, reduzida ao puro olhar diante da cena. Ao retor-
I
45
nÍr anos mais tarde e reencontrar Tatiana - quando o triângulo é
refeito com outros atores - o que busca Lol? Certamente não é a
vingança, nem tomar o homem da Outra. Isto, aliás, ocorÍe quase
como se fosse à sua revelia. Lacan nos diz claramente: trata-se de
orgarizat um "ser a três", montar uma cena onde ela, Lol, entre
como a "terceira não excluída".
Diante da cena edipiana * a irmã que lhe rouba o noivo -
Lúcia se prepara para dar o troco e, destruindo a Outra, se des-
truir. Lol, reduzida à posição do objeto, pura mancha no cená-
rio, um ser a mercê de todos, tenta construir algo que sustente o
seu mundo que já desabou: "Nua, nua, sob seus cabelos negros",
repete.
Nua sob seus cabelos, sob o vestido branco ou negro; nua,
nua, é o enigma dA Mulher que se impoe. Na psicose trata-se
de tentar construir, pela via do delírio, uma tela que, fazendo às
vezes da fantasia, possa velar minimamente, o real insuportá-
vel. Na neurose, esta tela da fantasia é assegurada pela amarra-
ção do sujeito ao simbólico. O Édipo é então a ficçáo que prende
o sujeito à estrutura.
O ENIGMA DO DESEJO
Que desejo me gerou? O que estou fazendo no mundo? Na psi-
cose a falta de sentido radical da existência está posta a nu e resta
ao sujeito tentar se proteger da melhor maneira que possa. Uns se
protegem com a arte, como Joyce, mas nem todos são bem-suce-
didos. O presidente Schreber se protegeu com sua missão divina
de procriar homens schreberianos. O tratamento possível da psi-
cose vai na direção da construção, por parte do sujeito, da tela
protetora que o permita continuar üvendo. Ao anústa cabe tes-
temunhar esta construÇão e, como secretário do alienado, forne-
cer o dispositivo analítico para que esta construção possa se dar.
+6
Na neurose, o sujeito paga um preço alto pela segurança que
obtém da fantasia: o preço de estar preso numa posição fixa, tes-
pondendo estereotipadamente, do mesmo lugar e com as mes-
mas respostas, ao outro que a estratégia neurótica faz existir.
É somente quando a segurança que o sujeito obtém da fantasia
é abalada, que ele pode procurzu uma aniilise. Daí jâ podemos
deduzir a delicadeza da posição éüca do analista no diagnóstico.
Não se trata apenas de diagnosticar entre neurose e psicose - o
que, a1iás, já é muito, uma vez que o rumo dado ao tratamento
é totalmente diverso, em um e outro caso. Trata-se, no caso da
neurose, de avaliar o tipo de resposta do sujeito e o tipo de per-
gunta que orienta a posição fixa que ele ocupa na vida, e que o
faz sofrer.
Em 'A psicanáüse e seu ensino" Itg577, Lacan enfatiza que
tanto na histeria como na neurose obsessiva trata-se do sujeito
tentar dar uma resposta às questôes relativas ao sexo e à morte
b. +Sr). A histérica "se experimenta nas homenagens dirigidas
a uma outra e oferece a mulher, na qual ela adora seu próprio
mistério, ao homem cujo papel ela toma sem poder gozar disto'
(p. +s:). Neste jogo de enganos, tão bem exempüficado pelo caso
Dora, o desejo f,ca insatisfeito e o sujeito condenado a recriar a
Outra mulhe! como Lúcia, presa a Alaíde para além da morte.
Lacan nos diz que a neurose obsessiva é uma estratégia mas-
culina. Na estratégia feminina da histeria, a questão em jogo é
sobre o sexo: sou homem ou mulher? que se resurne em: o que
é uma mulher? Na neurose obsessiva "é a morte que se trata de
enganar por mil ardis" (p. 454). O obsessivo se engolfa num cir-
cuito fechado do qual não pode sair e cuja finalidade lhe escapa,
pagando o preço de manter seu desejo impossível, pois está "sem-
pre em outro Iugar do que lá onde se corre o riscd' (p. 454). Lacan
compara a estratégia obsessiva ao truque que Vênus usou com
Páris. No início do cerco de Troia, gregos e troianos concordaram
)
47
em resolver o conflito através de uma luta entre paris e Menelau,
marido de Helena, a mulher que páris haüa seduzido. páris foi
derrotado e só se salvou deüdo à proteção de Afrodite (vênus),
que o envolveu numa espessa nuvem, subtraindo_o assim aos
olhos do inimigo. Enquanto piiris se escondia ao lado de Helena,
a deusa iludia Menelau, fazendo-o ver o inimigo em vários luga-
res, precisamente onde ele não estava. A luta recomeça e Heitor,
irmão de Príris e comandante dos troianos, nota que este não está
presente. Vai procurá-lo e o encontra com Helena, repousand.o,
enguanto os exércitos se batem, numa guerra causada por ele.
Ao evocar este episódio, falando da neurose obsessiva, Lacan
acenfua a covardia que subjaz à manobra obsessiva de não correr
riscos, se eximindo de seu desejo. ora, se o obsessivo não arrisca,
também não goza, e o gozo do qual ele assim se priva "é transfe-
rido ao outro imaginário que o assume como gozo do espetáculo"
, , (p. 4s4), no qual o o\essivo, preso em sua jaula, se debate para
;i : j provar que está üvolg caráter especular, narcísico, da neurose
obsessiva torna o seu eu, ao mesmo tempo, inflado e vulnerável,
susceptível e ameaçadol-Neste texto de ry57, Lacan sublinha o
risco de uma análise conduzida pelo viés da relação dual, imagi-
nária, particularmente no caso da neurose obsessiva.
Uma mulher queixa-sg logo nas primeiras entrevistas, de
que se considera feia, gorda, desatraente e diz, referindo_se a
uma análise anterior: "Não adianta você me provar que não é
nada disto. Eu sou a maior merda do mundo!, Notem bem que
não é uma merdinha qualquer, é a maior do mundo. Só isto já
dá a medida da dificuidade que terá o analista em desalojar esta
senhora de sua jaula, mesmo que o preço pago por ser a maior
_do 
mundo, seja o de ser uma merda. por isto Lacan nos diz que''h 
saída desses impasses é impensável por qualquer manobra de
troca imaginiária, pois é aí que estão os impasses', (p. +Sà.
A inflação imaginrária faz contraste com a presença da morte
na neurose obsessiva. No caso do Homem dos Ratôs, Freud indica
+8
gue esta obsessão com a morte não tem ligação com a experiência
direta da morte de alguém na história pessoal do sujeito:
Porém não é muitodiferente do comportamento de nosso pacienta o
de outros doentes obsessivos a quem o destino não confrontou em anos
tão precoces com o fenômeno da morte. Seus pensamentos se ocuPam
sem cessar da duração da vida e da possibilidade da morte de outros [...].
Porém, sobretudo, eles necessitam da possibilidade da morte para solu-
cionar os conÍlitos que deixan sem resolver [...]. Ássim, em cada conflito
útal, esperam a morte de uma pessoa significatila para eles, na maioria
das vezes uma pessoa amada, seja urn dos pais, seja um rival ou um dos
objetos de amor entre os quais oscila sua inclinação.
LÀcÂN s r.Évr-srRAuss
Foi através do caso do Homem dos Ratos que Lacan iniciou "uma
referência estruturalista em forma (o primeiro texto de Claude
Lévi-Strauss sobre o mito)'l Na sessão de z6 de maio de ry56 da
Sociedade Francesa de Filosofia (Bulletin), Lacan afirma que ten-
tou, quase que em seguida à leitura deste texto de Lévi-Strauss,
aplicar o mesmo esquema à clínica, o que fez com 'pleno sucessdl
O caso utilizado foi 'h admirável anáIise que Freud fez do caso
do Homem dos Ratos, isto numa conferência que eu intitulei,
pre cisament., b_I]l]gi+, $U{l+jll.d.g rer;-ró!i.sd: (p., r s ). o texto
de Lacan é de 1953 e a análise do mito de Édipo feita por Léü-
Strauss está no artigo 'A estrutura dos mitos'i de 1955. O próprio
Lévi-Strauss esclarece que entre ry52-Lg54 tentou verificar a teo-
ria por uma análise exaustiva dos mitos Zuru na École Pratique
des Hautes Étuda. Podemos então supor que o que Lacan utili-
zotr paÍa serr Mito individual do neurótico foi uma versão inicial
do texto de 1955.
Em sua análise, que já se tornou clássica, sobre os mitos,
Léü-Strauss propôe que:
r. ' Como todo ser linguístico, o mito é formado de unida-
des constitutivas
I
z. Estas unidades constitutivas implicam apresença daque-
las que intervêm normalmente na estrutura da língua, ou
seja, os fonemas, os morfemas e os semantemas.
Cada uma destas formas difere da que aprecede por um mais
alto grau de complexidade, e assim os mitemas são grandes uni-
dades constifutivas, as mais complexas de todas. Em 1956, Lacan
diz: 'Ao final de contas o que faz com que uma estrutura seja pos-
sível, são razôes internas ao significante, o que faz comque umâ
certa forma de troca seja concebível, ou não, são razões propria-
mente aritméticas; eu creio qo. .1. [Léú-Strauss] não recuará
diante deste termo'(p. rr+). Pois o que encanta Lacanno mitema
é a possibüdade de rigor na formalização. É esta mesma busca
de rigor que o levará anos depois a propor o mateffia, na tenta-
tiva de chegar a luna transmissão o menos contaminada possível
pelo imaginário.
Vejamos como Lévi-Strauss (sem data) trabalha o mito de
Édipo. Ele se propõ e a fazer uma demonstração 'hão no sentido
que o sábio dá a este termo, mas, quando muito, no sentido do
camelô [...] explicar tão rapidamente quanto possível, o funcio-
namento da pequena máquina que ele trata de vender aos basba-
ques" (p. 24il.O mito é separado em pequenas unidades (mite-
nas) que são reagrupadas em colunas pertencentes ao mesmo
"feixd: Ternos assim:
Cadmo procura
sua irmá Europa,
raptada por Zeus
Édipo esposa
Jocasta, sua mãe
Antígona enterra
seu irmão Polinice
Os Spartói se
exterminam
Ínufuamente
Édipo mata seu
pai, Laio
Etéocles mata seu
irmão Polinice
Cadmo mata o
dragão
Édipo imola a
Esfinge
Labdaco (pai de
Laio) ='le1s:'
Laio = torto
Édipo = "pé
inchado"
5o 5r.
Trata-se agora de buscar o traço comum que une o feixe de
mitemas de cada coluna. O da prirneira coluna é fácil. Temos
Cadmo, o fundador de Tebas, procurando sua irmã Europa,,rap-
tada por Zeus. É nesta busca que Cadmo vai ao oráculo e é por
ele desestimulado a prosseguir, e aconselhado a seguir uma vaca
(lembrar que Zeus se disfarçara de touro para seduzir Europa) e
fundar uma cidade onde esta pÍrasse para descansar. Na mesma
coluna temos Édipo casando com sua mâe e Antígona, sua filha,
desobedecendo as ordens do tirano e enterrando, sob o risco
certo de morrer, seu irmão Polinice. Léü-Strauss propõe que esta
primeira coluna seja a das relaçõa de parentaco superestimadas.
Na segunda coluna, os Spartói, homens que surgem da terra
armados, quando Cadmo ara aterra com os dentes do dragão que
matou, eliminam-se mutuamente, só restando cinco, que ajuda-
ráo Cadmo a fundar Tebas. São portanto irmãos que se matam,
como Édipo mâta o pai, e seus filhos, Etéocles e Poliaices, se des-
troem entre si. Daí intitular esta coluna de relaçõa de parentaco
depreciadas.
' A terceira coluna diz respeito a monstros que devem ser des-
truídos para garantir a vida dos homens. Lévi-Strauss diz que sáo
monstros ctônicos, ou seja, gerados pela terra. Matando os mons-
tros ctônicos, esta coluna representaria a negação da autoctonia
dos homens (ou seja, que os homens não nascem da terra).
A quarta coluna traz os nomes próprios do avô, do pai e do
próprio Édipo com seus respectivos significados de c oxo, torto e pé-
inchado. Lévi-Strauss nos diz que em várias lendas americanas os
seres ctônicos, que nascem da terra, têm dificuldades de se manter
em pé, claudicam, caem. Assim sendo, os nomes dos Labdacidas
apontariam para a afirmaçao da autactania doshomens.
Lévi-Strauss nos diz que,lido desta forma, o mito de Édipo
exprimiria a impossibilidade em que se encontra uma sociedade que pro-
fessa a crença na autoctonia do homem, de passar desta teoria ao reco-
l
nhecimento do fato de que cada um de nós nasceu realmente da união de
um homem e de uma múher. A dificuldade é insupeÉvel. Mas o mito de
Édipo oferece uma espécie de instrumento lógico que permite lançar uma
ponte entre o problema inicial - nascemos de um único ou de dois? _ e
o problema derivado, que se pode formular, aproximadamente: o mesmo
nasce do mesmo ou de outro? (p. z+s)
Na aula inàugural da cadeira de antropologia social, dada
no Collàge de France, em 1960, Lévi-Strauss (rSS:) se utiiiza
novamente do mito de Édipo para propor uma conexão estru-
tural entre os temas do enigae,e dp irlçç:!p.. Ambos apontariam
para a união impossível de dois termos: o filho que casa com a
mãe, o irmão com a irmã. Trabalhando mitos de diversas ori-
gens, do Édlpo grego às lendas dos índios iroqueses, passando
pela saga medieval do Santo Graal, Léü-Strauss observa a con-
j unção de ste s d ois tem as : 
9 9 
m!_tor -sobre-o-in_c_e_s,tg- ttAzem s-empre
ulIl-g"qrg43..gSe:-dççit4.d_o. Assim, 'ha lenda de Édipo, o casa-
mento com ]ocasta não se segue, pois, arbitrariamente à ütória
sobre a Esfingd' (p. ar).
O enigma, tal como o incesto, uniria o que não pode se unir:
é uma pergunta à qual é postulado que não haverti raposta, e
invertendo os termos, uma resposta para a qual não houve per-
gunta (p.3o). A interpretação psicanalítica, operando entre o
enigma e a citação, toca neste ponto mesmo de opacidade, mar-
cado na estrutura, e presentificado na novela famüar do sujeito
pelo drama edipiano.
Éprpo E o HoMEM Dos RÀTos
]ean-Pierre Vernant (1988) diz que a leitura de Léü-Strauss do
mito de Édipo é no mínimo contestável, aos olhos dos helenistas.
Nos mitos gregos, os seres nascidos da terra, tais como os Spartói,
não claudicam, nem apresentam defeitos na marcha, como nos
52
mitos americanos. Os Spartói tinham como marca de sua origem
ctônica uma lança desenhada na espádua, autentificando sua raça
de Filhos da Terra e relembrando sua vocaçâo guerreira (p. 55
nota z). Partindo de outras fontes da tradição grega sobre perso-
nagens mancos ou tortos, Vernant interPreta a "mancada" de Laio
no plano de seu caráter: exilado de Tebas com 1 ano de idade,
após a morte de seu pai Labdaco, Laio é recebido e acolhido por
Pélops. Já adulto, retribui a generosa hospitüdade estrupando
Crisipo, fiIho de Pelops. "Ele manca no seu comPortamento eró-
tico por uma homossexualidade excessiva [...] rompendo assirn
com as regras de simetria que se impõem tanto entre os Írmantes
como entre os hóspedes" (p. 6o). Crísipo se mata e Pelops lança
contra Laio a maldição: os gens dos Labdacidasnão devem se
perpetuar.
De volta a Tebas e ao trono, Laio, advertido pelo oráculo do
futuro terrível que teria o fiIho por ele gerado, Passa a ter relaçôes
falhas, "mancas", "do tipo homossexual", com Iocasta. Numa noite
de bebedeira, por ato falho, planta na esposa a semente do filho
que o destruirá. "O gnêsios, bem nascido, se revelará assim pior
que um nothos,para além da bastardia: um monstrd' (p. 6o).
A crítica de Vernant a Lévi-Strauss é longa e extremamente
interessante, mas no que pese uma possível "mancada" do antro-
pólogo, como bem reconhece Vernant, sua aplicação dos "feixes"
de mitemas já se tornou clássica. Vejamos então o uso que dela
fazLacan, segundo ele próprio, com pleno sucesso, em 1953. O
seu ponto de partida é a definição do mito como'b que confere
uma forma discursiva a qualquer coisa que não pode ser transmi-
tida na definição da verdade [...]" (p. +g).
No mito individual do Homem dos Ratos temos, como
no esquema de Lévi-Strauss, tuna estrutura quaternária que se
repete, no que Lacan chama de "pré-história" do sujeito e em sua
história atual da neurose:
I
53
Mulher pobre
A primeira coluna liga-se à segunda coluna pela díüda. No
passado, o pai do Homem dos Ratos havia perdido no jogo todo
o dinheiro do seu regimento e contraíra uma dívida de honra,
nunca pâga, para com o amigo que o salvara, compaÍecendo com
o dinheiro.
A terceira coluna une-se à quarta, através de uma brinca-
deira que a mãe do sujeito costumava fazer, dizendo que o pai
havia se enamorado de uma moça linda mas pobre, casando-se
depois com ela, rica que lhe dera uma boa posição social.
âtçp:llça1ry lgurg:e te dá a partir dq encontrqÀq-ssjeÍto
'g-gg-o39-91-"*4" :9! 1ggl4,e le-laÍq do-,teqnento dos
ratosfeito pelo capita uel,_Capitão_LIemeczek.SegundoLacan,
este relato tem "uma evidente função de desencadeamento,, (p. 54).
No momento, em que, com múto custo, o Homem dos Ratos, o
Tenente Ernest Lehrs, narra o cruel suplício, Freud [r9o9] observa
em seu rosto uma expressão "que só posso resolver corno horror
diante de seu gozo ignorado por ele mesmo" (p. r:a).
A conjuminação do confronto com este gozo proibido e igno_
rado, corn o desejo do pai de que casasse com tuna moça rica, em
detrimento da pobre, que amava, o lança num estado em que ,.as
construções neuróticas do obcecado acabam às vezes por aproxi_
marem de construções delirantes" (p. S8).
O acaso leva o sujeito, que estava acampado com seu regi-
mento, a perder seus óculos e encomendar a seu oculista de
Viena um novo pÍr. O oculista os envia pelo correio e o capi-
tão Nemeczek the diz, erroneamente, que ele deveria pagar ao
tenente A a importância do reembolso postal. Está armado o
54
suplício, com a entrada em jogo do último elemento que faltava:
a dívida.
A estrutura da'tonstelação originária que presidiu o nasci-
mento do sujeito" (Lacan [rgSg], p. sS) se rePete na articulaçáo
de seu drama neuróüco. 4ggf* g!-.. plóp!p--ggg-ç:1ílo Ugg {-g
p4 dg,v9d9l- e.9 _!gng*g A qo iugg daquelç qqs d-e.v-e-§ei P?gs*
Ora, na verdade quem haüa pago os óculos era a senhora dos
óiiêit §; q*uc]⧧d a§siirÍ'a cicúpâ? õ-hryai'ê§trtituia1 diiinulher
ricã, êEr-ãôniiãFõs,i ç páo â'um a Ç fiãAiiiliá"irãbiã ão AU gtgu., .oÁ
quem o Hoç5rçm dos Ratos se e1.rg,r,êç.arê."."
A questão é que ao ouvir do capitáo cruel que deviapagar ao
Tenente A, o Homem dos Ratos completara mentalmente a jura
de assim o fazer, para que o suplício dos ratos não ocorresse com
a dama que amava ou com seu querido pai, aliás já morto a esta
altura dos acontecimentos. Elabora entáo um esquema complexo
em que daria o dinheiro ao Tenente A, que o daria à seúora dos
correios que por sua vez o daria ao Tenente B, que era o verda-
deiro encarregado dos correios, numa roda-viva enlouquecida
da qual só consegue sair quando vai para Viena tratar-se com
Freud.
Podemos observar que, em sua análise, Lacan segue à risca a
estrutura da demonstraçáo de Lévi-Strauss para o mito de Éaipo.
E 1rqlr:ry&$.gqia-queo-drama do-lJomem-dos Ratos vai se resol-
ver.Freudinicialmente_99_Bpg_o._lg-g_{g1g3loigs*qu-exÀo-que
..p1rlg"*1_q_Ti-ay3_g-.tlp.I[g-1ggp_q_Bgi.-"_...porém-muito*rap-
d,a111gryg?Ilptura:lgrgryivlsqge;9v_çq!e19-.!qCa9.§_r9b-ç0e5ig
o.!99ssry9 sgIsv§!?{-n, O paciente atribui um papel dúbio a Freud,
entre amistoso e maligno. Imagina que Freud o quer casar com
sua filha, a quem atribui muitas riquezas e que lhe aParece num
sonho com óculos de merda. Diz Lacan: "O mito e o fantasma
juntam-se aqui, e a experiência passionai ligada ao vivido atual
da relação com o analista, é trampolim, por intermédio das iden-
Pai
Homem dos
Ratos
Amigo que paga a
dÍvida de jogo
Tenente A
(arnigo)
Mulher rica
Seúora do
Correio
)
,5
tifcações que ela comporta, para a resolução de um certo número
de problemas" (p. 64).
No Seminário II, O eu na teoria de Freud e na técnica da psi-
canálise, Lacan nos apresenta o esquema L que articula o eixo
imaginário (a+S). Tomando os doisprimeiros feixes de mitemas
usados por Lacan, podemos rebatê-los no esguema L.
Temos então que a partfu do eixo imaginrário que o tenente
Lehrs vai interrogar o mestre absoluto que se perÊla por detrás do
pai morto: a morte.
X^
esquema L
a
Neste seminário Lacan nos diz que
o obsessivo é sempre um outro. seja o que for que ele contar para vocês,
;<.-: , sejam quais forem os sentimentos que ele lhes trouxer é sempre os de um
.. 
- outro que não ele mesmo {p. ll6-12il. É pela voz do outro que ele pode
(Truque de páris).
: Lacan nos diz gue esta objetalizaçâo de si mesmo üsa evi_
tar seu próprio desejo, apresentando-o como desejo deste outro
que é seu próprio eu. Essa inflação egoica já é em si mesma mor-
tificante; 'te o obsessivo se rnortifica é porque, mais do que um
outro neurótico, apega-se a seu eu, o qual carrega em si o desa-
possamento e a morte imaginária" (no eixo imaginrírio a _ a,)
(p. :se).
Mas é no eixo simbólico (A -+ S) que a mortificação do
obsessivo revelará sua outra face: paruquem ele está morto? para
aquele que é para ele seu senhor, aquele ocupa o lugar do Mestre.
O obsessivo encarna assim o paradigma da relação senhor_es_
S6
_"x
do pai
aIIugo
do nn
cravo de Hegel. O obsessivo, escravo, aguarda a morte do Mestre
cujo lugar ambiciona para si, e enquanto aguarda, se faz de morto,
apagando seu desejo para náo despertar a cólera de seu seúor'
Porém se ele próprio está morto, não é ele quem tem um seúor;
é o outro, e assim ele está semPre em outro lugar, fora do alcance
do inimigo (igual e/ou rival).
Como o eu é uma instância paranoica (pois na medida em
que é ideal, tudo ameaça sua integridade) o obsessivo oscila entre
se fazer de morto (insensível) e ser tomado da mais viva cólera
diante da ameaça que vê em toda parte . Assim, nas relações amo-
rosas (os outros dois feixes dos mitemas) está dividido não só
entre as damas (rica e pobre) pelas quais oscila sua inclinaçáo,
como pela própria ambivalência (amor-ódio) que colore esta
mesma inclinação.
Lacan termina seu texto de 1953 acentuando a impossibi-
lidade de conciliação para o neurótico, entre o papel social que
deve desempenhar e as relações com o parceiro sexual. Pois a
diüsão do obsessivo entre a mulher rica e a mulher pobre esca-
moteia e oculta a questáo que é posta em primeiro plano na his-
teria: o que é uma mulher? A questão elidida se faz presente no
Homem dos Ratos, na dificuldade de assunção de sua virili-
dade, nos diz Lacan, "tma vez que escolhi o caso de um homem"
(p. 6s). E se tivesse escolhido o de uma mulher?
nErEúnctes BIBLIocRÁFIcAs
BULLETIN DÊ LA socIETÉ rnauçaIsr DE PHILosoPHIE, senace du z6 mai
r956, xrvur, r956.
DURÁs, u. O deslumbramento, Rio de |aneiro: Nova Fronteira, :-986.
FREUD s. 'i4. propósito de um caso de neurosis obsessiva" (rgog). ln:
Obras Complefas. Buenos Aires: Amorrortu Ed', 1996, v. x.
i'La feminidad" - Conferên cia y (tyz).ln Obras Completas,
Buenos Âires: Amorrortu Ed., 1996, v. xxrt.
pai morto
(Morte)
)
Tt
l
LAcAN, t. O mito indívidual do neurótico (rpSa).

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