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001-427-009-9 O Brasil de JK .·. : . -.· ... ... O BRASIL DE JK Angela de ·castro Gomes organizadora Clovis de Faro Gerson Moura Helena Bomeny Maria Antonieta P. Leopoldi Maria Victoria Benevides Mônica Pimenta Velloso Salomão L. Quadros da Silva Sheldon Maram Editora da Fundação Getulio Vargas - CPDOC ~ ~ cdlçao re<C"rvadas a Fundação Getulio Vargas P:z;a óe Bou.fogo, 190 CEP 22253 E \Td3d3 a n-produção total ou parcial desta obra ~Tight ~ Centro de Pesquisa e Documcntaçao de llistõria Contempor:inca do Bras i I 1' edição- 1991 CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAÇÃO DE HISTÓRIA CONTEMPORÂNEA DO IJRASIL- CPDOC Coordenaçao editorial : Cristina Mary Paes da Cw~-..~ Revisão de texto: Dora Rocha FlaksnL1n EOITORA DA f'UNDAÇÂO GETULIO VARGAS Chefia: Francisco ele Castro Azevedo Coordcnaç:io editorial : Dmnião Nascimento Editoração de texto: Ercilia Lopes ele Souza (supervisara) Editoração de arte: Cl'sar R. Garcia (supervisor); Jayr Ferreira Vaz, Leci IJrêda de Paula, Rozalra Conceiçiio de Arnüjo (digitadores); ElisalJ\;UI Aldcrctc (técnica em OTP); Marilza Azevedo IJarlx>za, Osvaldo Moreira da Silva (paginadorcs); Aleidis de Beltran, Fatirrm Carorú, Heloisa Vieira, Renato Barraca (revisores) Supervis:1o grMica: llelio Lourenço Netto Capa: Marcos 'l\1pper Fotos das capas: F1mdação Oscar Nkmeycr Apoio: r-M_E_M_O __ -R-IA--, BRASIL Unive rs idade Fede ral de Per rli,Jmbuco nR23 BIBLIOTECA CENTRAL CIDADE UNIVERSITÁRIA A- CEP. 50670-901- Recife-Pernambuco· Brasil I b Cl8: ~ /~ {l1119 j 1\ o. C)~ .0., ~ O Brasil de JK/Angela de Castro Gomes (org.); Clovis de faro et a!. - Rio de Janeiro: Ed. da Fw1dação Getulio VargasfCPDOC, 1991 168p. Inclui bibliografia I. O Brasil - História- 1956-1961. 2.1Jrasil- Relações Exteriores - 1956-1961.3. Brasil - Condições econômicas - 1956-1961.4. Eleições - BrasiL 5. Cultura popular - BrasiL 6. Nacionalismo. I. Gomes, Angcla de Castro, 1948-, coord. 11. Faro, Clovis de, 1941-. III. Centro de Pesquisa c Doctuncntação de Histõria Contemporânea elo nrasiL CDD 981.0633 CDU 981.083.3 SUMÁRIO Introdução 1 Angela de Castro Gomes O governo Kubitschek: a esperança como fator de desenvolvimento 9 Maria Victoria Benevides Avanços e recuos: a política exterior de JK 23 Gerson Moura A década de 50 e o Programa de Metas 44 I Clovis de Faro e Salomão L Quadros da Silva Crescendo etn meio à incerteza: a política econômica do governo JK (1956-60) 71 Maria Antonieta P. Leopoldi Juscelino Kubitschek e a política presidencial 100 Sheldon Maram A dupla face de Jano: romantismo e populismo 122 Mônica Pimenta Velloso Utopias de cidade: as capitais do modernismo 144 Helena Bomeny Introdução Qual a cor dos anos dourados? Os "bons tempos" "O descontentamento provocado nos últimos anos da Ve- lha República determinara na mentalidade do povo brasi· leiro uma inclinação cuja interpretação psicológica a tornava facilmente compreensível. O espírito popular so- fre invariavelmente de uma incapacidade de criar imagi- nativamente wn futuro melhor que o presente. Assim, nas épocas de desânimo e descontentamento, o sentimento público regride ao passado em uma ânsia romântica de encontrar alívio aos seus infortúnios no ressurgimento de formas arcaicas de organização social e política que, co- loridas pela distância se lhe afiguram haver-lhe proporcio- nado tranqüilidade e bem-estar." Azevedo Amaral A idéia de, em inicias dos anos 90, organizar um livro sobre o Brasil de JK nasceu de um conjunto de circunstâncias. A primeira, e talvez a mais significativa de todas, está traduzida na epígrafe de Azevedo Amaral, pequeno trecho extraído de seu clássico trabalho O Estado autoritário e a realidade nacional, publicado em 1938 como uma apologia dos tempos que então se inauguravam: os tempos do Estado Novo. Voltado para o futuro que então se desenhava, "grande" e "moderno", o autor nos remete à dinâmica histórica e nela destaca o tema fundamental da nostalgia dos "bons e velhos tempos". Ensinam-nos a história, a sociologia e ainda outras ciências sociais que não só o povo brasileiro, mas todos os povos, em todos os tempos, ao vivenciar gtoroentos..de <;Xise profunda, p..r.ocuram enç_ontrar no p~o "alívio para seus infortúniQs", além de esperança e coragem. Esta fantástica viagem ao "paraíso terrestre" pode tomar a forma de "espaços sonhados" (regiões fabulosas; ilhas da fortuna) ou de "tempos imaginários" (a idade de ouro; a pureza das origens) . . Em muitos casos, a distinção entre tempo e espaço não é em absoluto essencial, havendo uma interseção entre eles que configura um "preciso" momento - cronológico ou mítico, não importa - da história desse povo. A questão de saber se essa nostalgia dos "bons tempos" tem fundamentos "objetivos", ou se não é nada mais do que uma idealização, não elimina nem minimiza o ponto central da reflexão que se pretende empreender. Trata-se.. sim, de reconhecer a presença e a força deste mito dos "bons tempos" e de se":! valor ao mesmo tempo explicativo - ele pode fornecer chaves para a can- preensão do passado e do presente - e mobiliza dor - ele pode abrir cam 515: dinamismo o tempo para o futuro. 1 Myllena Realce Myllena Realce Myllena Realce Alê:n cilsso, e fundamental destacar o caráter de construção deste mito, isto ~ 'i'le tambern os "bons tempos" foram inventados e que o mergulho no passado e sempre um ato de recriação da geração presente. Com esta pers- pectiva, é possível entender que uma viagem ao paraíso perdido pode ser bem mais do que a incapacidade ... de ru;gjetar ,lliT1 ful!!!:Q_ ~or, como sugere Azevedo Amaral. Ela também pode ser interpretada como um penoso e complexo esforço de aprendizado político que, sem deixar de possuir a face da idealização do passado, fixa-se na dimensão de uma possível avaliação compreensiva desse mesmo passado que, sob os olhos do presente e do futuro, emerge em uma dialética de "sonho" e "realidade" impossível de ser desfeita. Sem dúvida, o povo brasileiro vive hoje, mais uma vez, um momento de grande dificuldade e profundo desencanto. Aliás, há muito talvez o mundo não venha experimentando momentos de tão grande perplexidade. É dentro deste contexto maior, nacional e internacional, que o "lugar" dos anos 50, em especi a I para nós bras i leitos, pode ser melhor situado. Não é casua I que de forma tão recorrente estejamos assistindo a manifestações políticas e culturais de reinvenção deste passado ao mesmo tempo tão próximo e tão distante. Não é fortuito que a memória coletiva venha consagrando a identifi- cação deste tempo com a expressão "os anos dourados". Estamos, assim, no centro de uma construção histórica que se afigura como um mito, à qual se quer "retornar" em busca do que de melhor o brilho do ouro pode oferecer, mesmo que com certo risco de cegar. JK, o sucessor de Vargas Nestes "anos dourados" há sem dúvida uma grande figura: o presidente Juscelino Kubitschek. Os "anos dourados" são, portanto, basicamente os anos do governo JK. A trajetória da apenas centenária República brasileira, tão cheia de golpes .e governos de exceção, explica em boa parte o lugar de destaque reservado ao presidente civil que conseguiu ser eleito, tomar eosse e empossar seu sucessor, atravessando todo o seu mandato como um líder que soube e pôde absorver e neutralizar conflitos dentro da legalidade institucional do país. Ou seja, e é bom assinalar, a presença de conflito,SJ1ão prejudica o brilho do presidente e do período, mas ao contrário ressalta-o, dimensionando suas qualidades. Na verdade, cada vez tem ficado mais claro o grau de tensão que marcou o governo JK, que mesmo antes de ter início foi garantido por um "contragolpe preventivo" pelo qual o ministro do Exército depôs o então presidente Café Filho. Mas a presença dos militares não se restringe a este episódio original, nos dois sentidos da palavra. As forças armadas retomaram~ cena políticacom leva11tes, todos controlados pelo mesmo ministro e futuro candidato à presi- dência da República, o marechal Henrique Teixeira Lott. Conforme a tradição política do país, pelo menos aquela assentada desde os anos 30, presidente e ministro do Exército são figuras sine qua non para a manutenção ou destruição das normas institucionais vigentes. _9óis Monteiro, Eurico Gaspar Dutra, 2 Myllena Realce Myllena Realce Zenóbio da Costa e Lott são nomes imprescindí.Y.ds àrompree_nsão da história política deste Brasil _Qe 1930 a 1960. Mas não apenas os militares tiveram o papel de desencadear conflitos. De forma inteiramente diversa e com desdobramentos distintos, estudantes e trabalhadores pressionaram o presidente JK, que contava neste campo com o auxílio precioso de seu vice-presidente petebista, João Goulart. Neste sentido, o que se mantém na memória sobre o período é a resistência das instituições políticas democráticas, ou seja, o funcionamento dos mecanismos eleitorais; a atuação dos partidos políticos e do Congresso; a presença do Judiciário, e last but not least, o papel do Executivo. Mesmo que se discuta, como se discute, o grau de democracia então vigente, a questão da legalidade institucional permanece como um trunfo na rememoração. Este trunfo fica porém muitíssimo mais forte porque está associado a um projeto de crescimento e "modernização" econômica do país, conhecido como "desenvolvimentismo". Assim, a proposta de que o desenvolvimento econô- mico caminhasse junto com o desenvolvimento político acabou por associar Brasil "moderno" a Brasil "democrático". Mais ainda, a idéia de que tudo isso não se faz sem cultura, ou dito de maneira mais conforme aos anos 50, sem que as forças do "atraso" sejam suplantadas, qualificou o tipo de esperança que se mobilizou na época como recurso político. O sonho, para Juscelino, pode ter começado nos anos 40, quando era prefeito de Belo Horizonte, enquanto Benedito Valadares era interventor em Minas e Getúlio Vargas era "chefe" do Estado Novo. Certamente, os momentos de glória iniciaram-se na priÍneita metade dos anos 50, quando governou Minas e construiu a Pampulha, e encontraram seu apogeu com a presidência e com Brasília, já na segunda metade da década. O colapso, por sua vez, começou em 1964, com a cassação do mandato e a certeza de que o processo de industrialização iria aprofundar-se sob a égide de governos autoritários. A total desilusão veio nos anos 70, com a derrota na Academia Brasileira de Letras (1975), seguida da morte em 1976. Mais uma vez, como os historiadores conhecem bem, a trajetória de um personagem político funciona como fio condutor para se repensar a trajetória de um "tempo", de uma geração. Recentemente, quando do falecimento de José Guilherme Merquior, Celso Lafer escreveu um ensaio para o Jornal do Brasil onde caracteriza com finura o que estou pretendendo fixar como o clima de uma época. "( ... )em inúmeras ocasiões, José Guilherme e eu conversamos sobre o que explicava a identidade da nossa (geração). Ponderávamos que, tendo acordado para a vida das idéias na presidência de Juscelino, haurimos dessa experiência uma confiança nas inúmeras possibilidades do nosso país. Tínhamos em mente, também, que havíamos estudado numa época em que era muito viYo o debate na universidade brasileira e no cenário nacional, e que isso nos tn:L--cc;. do ponto de vista da abrangência dos interesses. Avaliávamos crue. ::xr-- Myllena Realce Myllena Realce Myllena Realce Myllena Realce Myllena Realce Myllena Realce Myllena Realce ... ;,..-=,s companheiros de geração, tivemos a oportwúdade de realizar estudos :5.:: pas-graduação no exterior, e assim adquirir não só uma visão mais ampla 6s coisas como também o rigor e a disciplina intelectual que, regra geral, a ~:riversidade, nos grandes centros, oferece aos que a ela têm acesso. Concluía- mos, destas conversas, que a nossa geração teve mais oportwúdades intelec- tuais do que a que nos antecedeu, e não enfrentou, como a que nos sucedeu, a dura experiência de se formar nos anos plútnbeos do regime militar. "2 Para os intelectuais da geração dos anos 50, para os homens em geral desta geração, ou mesmo para aqueles que pertencem a gerações anteriores ou posteriores, a idéia de um tempo com mais oportwúdades e esperanças é bem visível e não deve ser menosprezada~ A operação que delineia este'"tempo" destaca-o daquele que vem "antes" e "depois", e elege a figura de Juscelino como seu símbolo. Um dos caminhos para se refletir sobre o como e o quando esta operação ganhou contornos mais precisos pode ser o exame do papel que o próprio Juscelino desempenhou nessa construção. Os homens públicos são, em geral, os primeiros a se preocupar e a trabalhar com sua próprl'a imagem, realizando . investimentos de naturezas diversas, de menos ou mais longo prazo, e recor- rendo a profissionais especializados e à tecnologia avançada. O herói pode ser assim um dos primeiros construtores do mito e, como tal, é útil examinar sua própria visão de si mesmo e de seu tempo. Em um exercício rápido, vou procurar levantar certas sugestões a partir do depoimento de Juscelino Kubitschek. Poderia utilizar seu longo e conhecido livro de memórias, Meu caminho para Brasília (Rio de Janeiro, Bloch, 1975), mas vou preferir trabalhar com sua entrevista, concedida a Maria Victoria Benevides em duas etapas (1974 e 1976), e interrompida por seu falecimento. Os motivos que me levam a esta escolha não se prendem ao fato de a entrevista trazer revelações distintas do livro de memórias. Na verdade, ela cobre um período mais curto e repete a mesma narrativa. Minha preferência advém do tom coloquial, de diálogo, que a entrevista possui, trazendo o depoente para bem próximo de nós, através da presença e da interferência do entrevistador. 3 O primeiro e mais importante aspecto a ser ressaltado no trabalho de Juscelino ao construir sua própria imagem é a preocupação e o desejo de associá-la às tradições democráticas do povo brasileiro desde seus primórdios. Neste contexto, o fato de ser mineiro é fundamental. De Minas Gerais, de suas cidades do ouro, vem a história de nossa luta pela liberdade, vem Tiradentes. A narrativa de JK destaca essa herança, reforçada pela trajetória de menino pobre e órfão de pai, que estuda com dificuldade e esforço com o apoio e carinho da família. Em suas próprias palavras:"( ... ) quando perguntam por que desenvolvi esse sentimento democrático ... Eu bebi isso no leite, no café, no ar de Diamantina, nas serenatas de minha terra. "4 De Juscelino a JK um longo aprendizado teria sido feito, mas sempre dentro cbs "virtudes mineiras" da modéstia, da pa~cia e da habilidade politica. 1-;-- Frisando seu inicial distanciamento da vida política e marcando a importância da formação-profissional como médico, Juscelino acaba por tecer sólidos laços entre uma e outra experiência de vida. A carreira como médico se inicia pelas mãos do cunhado e amigo Júlio Soares, e é nesta qualidade que ele conhece Benedito Valadares e toma-se seu próximo. O momento é bem simbólico: era 1932 e Juscelino era capitão-médico das forças legalistas que combatiam os revoltosos paulistas no front do túnel da Mantiqueira. Foi no consultório médico que, segundo Juscelino, ele aprendeu a ouvir as pessoas, a entender seus medos e desejos e a derrubar formalidades, sem perda de autoridade. Desta fonna, quando convidado para ser chefe de gabinete do interventor Valadares, sentiu-se como em um consultório, ouvindo os chefes políticos municipais, filtrando os problemas que deveriam ou não chegar ao interventor, atendendo, protelando ... Pela narrativa de JK, fica nítido o quanto ele valorizava esta vivência e o quanto atribuía a ela a marca de seu estilo político pessoal: agudo psicologi- camente; tolerante e agradável, mas decidido e inflexível para alcançar os objetivos políticos definidos como necessários e desejáveis.5 O ingressona política, ocorrido, como diz JK, "quando a providência me trouxe ao palco", emerge, ao mesmo tempo, como uma surpresa e uma demanda de amigos com vínculos farrúliares. O casamento é fato-chave, já que a casa dos sogros é local de reunião de políticos importantes como Gabriel Passos e Gustavo Capanema.6 Uma vez na política, nos anos 30, e no Partido Social Democrático mineiro, a partir de 1945, a carreira passa a fluir. Mas a democracia no Brasil tem caminhos caprichosos, e não é fácil construir uma história a ela associada. A carreira de Juscelino não poderia ser uma exceção, iniciada que foi sob os auspícios de Benedito Valadares, no plano estadual, e de Getúlio Vargas, no plano federal. Neste ponto é impossível não ressaltar a ambigüidade que marca as relações entre Juscelino e Getúlio Vargas. A proximidade é por demais evidente. JK foi prefeito de Belo Horizonte e governador de Minas Gerais quando Getúlio estava no poder, primeiro como ditador, depois como presidente eleito pelo povo. Mas sobretudo JK foi o sucessor de Vargas. Ele foi o presidente eleito para governar o país após o suiCÍdio, com tOda a herança política da experiência anterior. Em seu próprio relato, Juscelino aproxima-se de Vargas, reconhecendo e respeitando seu talento e grandeza política, mas também procura se distanciar dele, em busca de um compromisso diferente e mais forte com a democracia. Afinal, há leituras historiográficas que ressaltam que no período da chamada democracia populista JK teria sido, por seu estilo, o único Qr~idente não-populis- ~ urna vez que Dutra não entra sequer em consideração para configurar as características do período. Contudo, há outras leituras que, mesmo distinguindo o estilo pessoal de JK- muito distante do de Jango ou do de Jânio -, susten:.:un que ele levou ao máximo as virtualidades do populismo. É bom lembrar porém que, para muitos dos que conviveram com Getúlio, e também para ~ analistas, ele teria sido um líder popular, mas não "populista". ! I .-\ a.."!lbigüidade destes laços não cessou com a morte de JK. Enterrado nos b:-aços do povo em pleno regime militar, Juscelino lembrava Vargas, como 1ancredo Neves lembrou Vargas e JK. É preciso que se reconheça que, em nossa história, são poucos os nomes de políticos retidos pelo "homem comum", vale dizer, pelo povo. É muito difícil, portanto, buscar modelos que possam se afigurar como exemplares. Getúlio Vargas continua a ser, sem a menor dúvida, um deles, e Juscelino também. Um delicado e complexo conjunto de circunstâncias históricas colaborou nos dois casos para isso, e ambos os políticos nele tiveram ativo papel, realizando um grande investimento. O Brasil de JK Organizar um livro sobre a segunda metade dos anos 50 em inícios dos anos 90 obedeceu também a razões muito prosaicas. Embora o conjunto de temas presente neste período encontre-se mencionado ou mais ou menos extensiva- mente tratado em uma grande série de trabalhos, não são tantos, paradoxal- mente, os livros que se concentram em uma análise específica dos anos JK. Além disso, a bibliografia mais especializada está datada dos anos 70, valendo registrar aqui, apenas como exemplos, os livros de Maria Victoria Benevides, O governo Kubitschek (1976), e de Mítiam Limoeiro Cardoso, Ideologia do desenvolvimento (1977).7 Revisitar os anos JK, com a perspectiva e a motivação dos anos 9J, surgiu como um empreendimento adequado e proveitoso. O livro é composto por artigos inteiramente independentes uns dos outros, que procuram traçar um painel do período, destacando certas problemáticas que o marcaram fortemt;nte e realizando uma espécie de balanço analítico, que aponta tanto para os governos anteriores quanto para os posteriores. O primeiro deles vem assinado por Maria Victoria Benevides, que retoma sua reflexão, discute críticas que recebeu e atualiza sua visão do "juscelinis- mo ". Como é a dinâmica da política nacional que se encontra primordialmente em foco, são vários os atores em cena. Sob os holofotes, o próprio presidente e os partidos políticos que garantiram o "equilíbrio instável" do governo: PSD e PTB em aliança, e a UDN em vigilante oposição. Além deles, os militares, cada vez mais participativos e menos arbitrais, segundo a autora; a burocracia do Estado, com destaque para a administração paralela, herdada de Vargas e não inventada por JK; os empresários e os trabalhadores, reunidos numa única estratégia de peleguismo; e também a Igreja, rapidamente citada por seu deslocamento em defesa das reivindicações populares. O segundo artigo é o de Gerson Moura, que analisa os avanços e recuos da política exterior de JK, defendendo a tese de que, neste governo, já se percebiam as mudanças que ocorriam na ordem internacional, não havendo, contudo, condições políticas de acompanhá-las mais abertamente. Desta for- ma, nem a política externa independente de Jânio Quadros foi tão abrupta e inovadora, nem a política de alinhamento do Brasil com os Estados Unidos foi 6 tão simples e automática como a maioria das análises sobre o período JK parece sugerir. · A seguir, dois artigos procuram caracterizar e discutir uma dimensão estratégica dos anos JK: a da política econômica então adotada, seus desdo- bramentos e impasses. Clovis de Faro e Salomão L. Quadros da Silva analisam o Programa de Metas, identificado como uma bem-sucedida e~eriênciª-._d~ _planejamento econômico ~ B~il. O texto nao tem como objetivo realizar uma análise econôrruca tou{ courr, mas sim traçar um quadro informativo sobre os anos 50, destacando o impacto do plano e avaliando seus resultados, bem como o do próprio governo. Já o artigo de Maria Antonieta P. Leopoldi privilegia o processo de tomada de decisões na área econômica, demonstrando onde e como eram planejadas e executadas as políticas do governo, e quem interferia mais ou menos diretamente nesse processo. Alguns exemplos de políticas econômicas - como a cambial, a de comércio exterior e a industrial - são debatidos, com a finalidade de destacar as oportunidades, as dificuldades e, por fim, os impasses do crescimento em meio à incerteza. O texto de Sheldon Maran traz de volta, e com destaque, à cena política o presidente JK no momento de sua sucessão. Eleições presidenciais no Brasil são, por tradição, momentos extremamente delicados e reveladores de nossa dinâmica política. A sucessão de JK, mesmo tendo sido cumprida conforme os ritos institucionais, não foi uma exceção, como o autor deixa claro. Traba- lhando no âmbito das escolhas dos atores políticos, Maran nos esclarece sobre a situação dos partidos e dos planos de seus principais líderes, Um outro par de textos fecha o volume. Mônica Pimenta Velloso traça um amplo panorama da questão cultural nos anos 50. Mais uma vez a ambigüidade é presença forte, pois o que a autora deil\a claro, ao lado da riqueza e da euforia culturais, é a dificuldade de se conceberem projetos que integrassem de forma mais substantiva uma ampla parcela da população brasileira. Os intelectuais, com suas distintas formações e concepções, são os personagens que povoam o artigo. Finalmente, o Brasil de JK entra também para a memória nacional com um emblema da modernidade: a "Nova Cidade", a "Utopia de Lúcio", o sonho nacional de realização da igualdade. O texto de Helena Bommeny vai ao encontro dos dois tempos modernistas que tiveram nos mineiros protagonistas atentos. A estrada que liga Belo Horizonte a Brasília é a que traça a linha da utopia, mas é também a que denuncia os imprevistos não anunciados na proposta de igualdade. De uma forma geral, todos os textos procuram caracterizar o Brasil de JK. construindo continuidades e descontinuidades com os governos de Getúlio Vargas, Jânio Quadros e até mesmo outros presidentes. A tenninologia utili- zada nos próprios títulos é sintomática do sentido estratégico deste peri<Xlo para a história recente do país: avanços e recuos, dupla face, incerteza ... De uma formatambém geral, creio que o governo e o presidente JK -saem- deste lhTo com "bom tamanho". Por isso, mineiramente, socorro-me G.e c:::. õ t"Y'!'-' g::r me ficou na memória para encerrar esta introdução. Na peça G-~ Galiki, de Brecht, há wn momento em que Galileu, preso pela ~ção, é visitado por um discípulo atônito ante a possibilidade de ver seu ~ negar suas próprias descobertas. Revoltado e desejoso de ver Galileu ~ mentir, ele o exorta, dizendo algo assim: "Pobre do povo que não tem ~-óis!" Ao que Galileu retruca: "Não, pobre do povo que precisa ter heróis." Serldo assim, deixo ao leitor a tarefa de escolher qual a cor dos anos dourados. Rio de Janeiro, agosto de 1991. Angela de Castro Gomes* Notas 1 Girardett, Raoul . Mitos e mitologias polfticas. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. 2 Lafer, Celso. A amizade na mesma geração. Jornal do Brasil, 10 mar. 1991, Idéias/En- saios, p. 7. 3 A entrevista de Juscelino Kubitschek a Maria Victoria Benevides encontra-se deposi- tada no CPDOC/FGV. 4 Kubitschek, Juscelino. Depoimento. CPDOC/FGV, 1974, p.6. 5 Vale a pena a citação: ''Eu sempre pensava, quando entrei na política, como a medicina era inspiradora dos meus atos políticos. Por exemplo, quando eu chegava no meu gabinete, eu já presidente da República, no Palácio do Catete, e chegava uma pessoa - , geralmente, a não ser as grandes figuras do Brasil, os que conseguiam aproximar-se de mim vinham numa emoção muito grande. Alguns não podiam nem falar; eram mulheres, homens. Então eu dizia: 'Olhe, meu filho, eu conheço bem toda essa gama de emoções que sentem atualmente as pessoas que se aproximam de mim, porque também passei pelas mesmas dificuldades, também procurei homens poderosos para pedir. Sempre encontrei as portas fechadas, porque os poderosos nunca abriram portas para quem precisa. Eles só abrem para quem não precisa.'( ... ) Nunca deixei uma pessoa sair desapontada do meu gabinete. À5 vezes, podia ser impossível atender ao que pediam, mas saíam com a minha palavra carinhosa, com a minha assistência, com a minha atenção." Kubitschek, Juscelino. Depoimento. CPDOC/FGV, 1976, p. 23. 6 Sérgio Miceli em seus trabalhos tem recorrentemente chamado a atenção para a importância das relações familiares e do casamento no processo de ascensão à carreira política. Ver, por exemplo, Carne e osso da elite política brasileira pós-1930. In: Fausto, Boris, org. O Brasil republicano. v. 3. São Paulo, Difel, 1981. (História Geral da Civiliza- ção Brasileira). 7 Além dos livros das duas autoras mencionadas, ambos publicados pela editora Paz e Terra, são conhecidos os trabalhos de Lafer, Celso. The planning process and the political system in Brazil: a study on Kubitschek's target plan. Ph.D Thesis. Come11 Univ. , 1970 e de Barbosa, Francisco de Assis . JK: uma revisão na política brasileira. Rio de Janeiro, José Olympio, 1960. Recentemente, foi publicado um novo livro: JK: o estadista do desenvolvimento. Brasília, Ed. Memorial JK e Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, 1991. * Pesquisadora do CPDOC e professora adjunta do Departamento de História da UFF. 8 l O governo Kubitschek: a esperança como fator de desenvolvimento Maria Victoria Benevides* Da figura e da atuação de Juscelino Kubitschek terá ficado, para adversários e admiradores, a imagem de seu espírito otimista e criador, iluminado por inegável tolerância política. Os saudosistas falariam de um capitalismo "riso- nho e franco". Nunca houve tal coisa, é claro: Mas não deixa de seduzir o fascínio do "50 anos em 5" do presidente que ousou duvidar da "eterna vocação agrícola" do país e que aliou ao desenvolvimento acelerado uma experiência bem- sucedida de governo democrático. Tão democrático quanto possível nos limites óbvios de uma democracia de elites, com forte tradição oligárquica, militarista e mesmo gol pista. Quinze anos depois da morte do presidente- cujo féretro levou às ruas, em pleno regime de opressão, uma multidão que chorava, cantava o "Peixe vivo" e pedia democracia - muito há ainda a se discutir sobre o seu modelo de desenvolvimento, assim como sobre sua brilhante personalidade política. Temas polêmicos, sem dúvida - tanto o modelo quanto a persa na - mas que permanecem associados a idéias-forças que povoam, para o bem ou para o mal, o imaginário e o deb::~te político nacional: a crença no Brasil "país do futuro", a consolidação da "identidade nacional", o desequilíbrio entre "os dois brasis", a intervenção do Estado e a "sedução da tutela", o papel dos militares "salvacionistas" e a conjugação entre liberdades públicas e desenvolvimento - enfun, as várias forn1as de que se reveste a velha questão, irresolvida, de atraso versus moderruzação. Pois foi no governo Kubitschek que se consagrou, definitivamente, o vocábulo "desenvolvimentismo", como já salientou o escritor Antonio Calla- do. Antes de JK falava-se em "fomento" e em "fomentar o desenvolvimento"; Juscelino teria sido o inventor da palavra, cuja mística ficou, na história contemporânea, inarredavelmente vinculada ao seu nome. Até hoje, qualquer sinal de "modernidade" ou de "espírito realizador" - misturados a um certo otimismo e às virtudes da conciliação política - costuma ser identificado como traço de um "juscelinismo" redivivo. Justifica-se, portanto, esta breve revisão sobre o período e o personagem. • Professora de Sociologia Política da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo- USP; membro do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea- CEDEC e da Comissão Justiça e Paz de São Paulo. É autora de O governo Kubitschek; A UDN e o udeni.smo (ambos na Ed. Paz e Terra); O governo Jânio Quadros; Violência, povo e polícia, O PTB e o trabalhismo (os três m àl.. Br.lsiliense) e A cidadania ativa: plebiscito, referendo e iniciativa popuÚlr (Ed. Áticl). 9 Minha questão inicial diz respeito ao significado do juscelinismo (se é que se pode falar em "juscelinismo") para essa juventude que tem, do governo Kubitschek (1956-61), a imagem esmaecida de um tempo marcado pelo impulso industrializante e pela mudança da capital para Brasília, no contexto de relativa liberdade política e culturaL E me pergunto, então, se esse período conteria certas características que o justificariam, coerentemente, como "is- mo"' da história politica brasileira. E até que ponto o juscelinismo estaria vinculado a outros "ismos" famosos, como popuJismo e nacionalismo, OU, em plano mais pessoal, ao getulismo? Em outros termos, pode-se dizer que o juscelinismo faz parte do "inconsciente político" nacional? Creio que vale a pena retomar a indagação básica que motivou minha pesquisa sobre o governo Kubitschek: como explicar a aparente estabilidade política do governo, cujo chefe foi o único presidente civil, depois de 1930, a assumir a presidência da República e a transferi-la ao sucessor no dia marcado pela Constituição? Pois Kubitschek assumiu o governo em circunstâncias delicadas; sua posse, e a do vice-presidente João Goulart, foram violentamente combatidas por setores antigetulistas e por civis ligados à conservadora UDN -a União Democrática Nacional (o partido de políticos de atuação recente como José Sarney, Afonso Arinos, Aureliano Chaves, José Aparecido, Antônio Carlos Magalhães, Sandra Cavalcanti e Amaral Neto, além das origens políti- cas familiares do atual presidente Collor de Mello). Empossado a partir do famoso "contragolpe preventivo" do então ministro da Guerra, general Lott, e assumindo a presidência após dois presidentes interinos, Juscelino conseguiu manter-se até o fim do mandato. Também é preciso lembrar que as crises com a renúncia de Jânio Quadros (agosto 61) e a oposição golpista à investidura do vice-presidente Goulart quase levaram o país à guerra civil. O govemo de Juscelino encrava-se, pois, num período extremamente critico, entre o suicídio de Getúlio Vargas (agosto 54) e a renúncia de Jânio Quadros. No entanto, essa experiência resultounum governo politicamente estável, apesar de marcado por crises militares no começo e no fundo período, como os levantes de Jacareacanga e de Ara garças; pelas crises provocadas por conflitos entre as três annas militares; por uma intensa ativi- dade sindical e partidária; pela ascensão dos movimentos camponeses, e pela crescente intervenção da Igreja na área político-social, sobretudo no Nordeste. Aliás, este último ponto merece uma certa qualificação, pouco lembrada nas análises políticas do período. A Igreja Católica inicia, nesta fase, sua participação política mais ativa, só que, desta vez, do lado das reivindicações dos dominados - numa ruptura sensível com aquele padrão de intervenção política no estilo da Liga Eleitoral Católica ou de apoio incondicional às "autoridades". A presença de JK nos Encontros dos Bispos do Nordeste, em 1956 e em 1959, é significativa. Juscelino contaria com o apoio da Igreja (lembre-se da aproximação ostensiva entre JK e Dom Helder Câmara) para seus projetos de desenvolvimento, assim 10 como reconheceria o importante papel da Igreja em suas mensagens sobre a criação da Sudene. Esse governo, todavia, deixou a marca de estabilidade política exatamente porque conseguiu "administrar" e superar essas crises. A negociação consistia no principal recurso do governo para enfrentar as freqüentes greves no eixo Rio-São Paulo. As lideranças sindicais e os dirigentes patronais geralmente entravam em acordo (com a intermediação dos petebistas nas Delegacias Regionais do Trabalho) sem precisar recorrer à repressão policial. As crises militares, igualmente numerosas, foram todas absorvidas no âmbito da disci- plina hierárquica. E mesmo aqueles oficiais da Aeronáutica envolvidos nas rebeliões de Jacareacanga e de Aragarças foram prontamente anistiados - embora tenham sido identificados com as forças derrotistas e reacionárias, pois seriam "contra o desenvolvimento". O documentário Os anos JK, de Silvio Tendler, mostra cenas relativas àqueles levantes onde se vêem - triste ironia - índios e caboclos arregimentados para, supostamente, "defenderem a democracia". A narração enfatiza a anistia e a reintegração dos militares revoltosos. O governo perdoava o primeiro seqüestro de avião e a câmera registra os "subversivos" desembarcando, livres e sorridentes, abraçados aos filhos e ovacionados no aeroporto. Mas será Celso Furtado quem melhor compreende a atitude de Juscelino nesses momentos de gravíssima perturbação da ordem e de contestação à sua autoridade como chefe supremo das Forças Armadas. Vejam-se seus comen- tários, por exemplo, no segundo volume de suas memórias, A fantasia desfeita (Paz e Terra, 1989): "Mais do que os ensaios de insubordinação de Aragarças e Jacat~canga, cujo alcance estava limitado por se localizarem na Aeronáu- tica, a manobra dos oficiais do Exército para firmar pé no Nordeste, região do gen..:ral Juarez Távora, candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais, preocupou Kubitscheck. Sem conhecimento efetivo da região ( ... ) se inter- rogava sobre o que fazer para evitar que a questão nordestina pusesse em risco a obra de redenção nacional que imaginava estar realizando." Além das crises militares, deve ser enfatizado que, apesar de contar com confortável maioria parlamentar (fruto da histórica aliança PSD-PTB), o governo era alvo constante da virulenta oposição udenista. A UDN - através sobretudo de sua implacável "Banda de Música" - especializou-se na dením- cia dos "escândalos" da administração e na obstrução aos projetos do Execu- tivo. "A UDN sempre me trouxe de canto chorado" - dizia JK cotn ironia desprovida de ressentimentos. "É uma expressão lá de Minas, quer dizer sempre na mira para atacar, sempre perseguindo, uma perseguição medonha" (entrevista à autora). Isso porque não há dúvidas de que Juscelino era, para amigos ou inimigos, apresentado e identificado como "herdeiro" de Getúlio. O que não foi simples. Embora encarnasse, em sua trajetória política, o estilo do pessedismo mineiro (o poderoso PSD que, com honrosas exceções como Tancredo Neves, afastara-se de Getúlio no final de seu governo), estava c:.aro para JK que apenas uma sólida bandeira trabalhista-getulista congraçaria c H apoio popular após o trauma do suicídio. Foi por isso, aliás, que Juscelino insistiu na aliança eleitoral com o PTB e no nome de João Goulart, apesar de saber que enfrentaria a imediata oposição udenista e militar: "Eu sabia que uma aliança com o PTB era imprescindível; somente uma aliança muito forte poderia enfrentar a oposição e sair vitoriosa. E somente com um candidato que conseguisse a reconciliação entre o voto rural do PSD e o voto urbano do PTB ... : o nome de Goulart era o que reunia maiores possibilidades" (JK, entrevista à autora, 1.4. 7 4 ). Assim, Juscelino e J ango, personificando a herança getulista, consagraram o "ponto ótimo" da aliança PSD-PTB, solidamente reinstalada no poder. · Creio que, mais do que estável, esse período representaria um "equilíbrio instável", graças aos "mecanismos de compensações" entre as variáveis que, no meu livro, assinalei: a cooptação dos militares; a forte aliança PSD-PTB, indispensável no Congresso em virtude das disputas orçamentárias; o de- senvolvimento do Programa de Metas e a "administração paralela", ou seja, uma "administração de notáveis", um módulo de eficiência, e, como o nome o indica, paralelo à administração formal que devia ser mantida. Nesse sentido, e sob a égide dos poderes concentrados nas mãos do presidente da República, o Executivo conseguia implementar uma política inovadora sem destruir o clientelismo já tradicional na administração brasileira. Deu certo. Pois essa "administração paralela" - ampliada e dinamizada a partir de breve ensaio no segundo governo Vargas - era uma forma de evitar o imobilismo do sistema sem contestá-lo,. uma vez que os novos órgãos funcionavam como centros de assessoria e execução, enquanto os antigos continuavam a corres- ponder aos interesses das clientelas políticas, sobretudo regionais (Francisco de Assis Barbosa considera que essa tática de Kubitschek antecipava, de certa forma, o que faria o presidente Kennedy, na linha da política iniciada nos tempos de Roosevelt, com o New Deal). Em breve resumo sobre o governo Kubitschek, considero que se poderia caracterizar o "juscelinismo" por uma política que, nas palavras de Celso Lafer, procurou a conciliação entre o velho e o novo, entre a elite e as massas. Esse "ismo" também se identifica com um novo tipo de nacionalismo que se distanciava do nacionalismo getulista pela ênfase concedida ao capital es- trangeiro, cujo ingresso privilegiado constituiria o principal motivo da crítica das esquerdas ao governo. Esse nacionalismo de certa forma confundia-se com desenvolvimentismo em termos de mobilização de recursos e de apoio e também no nível ideológico, graças ao grupo dos intelectuais articulados em tomo do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). 12 tenção da "paz e tranqüilidade" no campo; a criação de empregos e a mobili- zação do voto urbano, e o controle sobre as reivindicações sindicais, princi- palmente através do vice João Goulart, que dominava o Ministério do Traba- lho. Para a classe empresarial o Programa de Metas tinha evidentes atrativos. O pre;idente enfatizava incentivos, e não ordens ou proibições. Isso significa- va estímÚlos à inversão privada, legislação favorável à obtenção de financia- mentos externos, créditos a longQ.._ptazo, baixa taxa de jy,ros e reserva de mercado interno para as produ~~ substitutivas de importações (lembre-se o êXJto aãindústria automobilísti~esse ponto, vale a pena lembrar a obser- - vaçaõdeRoberto Gusmão: "Nenhum presidente da Confederação Nacional das Indústrias ou de confederações estaduais - como a FIESP- fez oposição ao governo JK. Quando se fala pejorativamente em peleguismo da liderança sindical operária é preciso lembrar que, do outro lado,havia também o peleguismo dourado das classes produtoras: tão dependentes do governo quanto os pelegos sindicais" (entrevista à autora, 16.5.75). A preocupação com o "discurso" juscelinista não pode, é claro, ser desvin- culada da conjuntura política (daí por que considero do maior interesse entender a conjugação entre um estudo de ciência política e uma perspectiva de historiador político). Entendo por conjuntura política aquele nível onde se defrontam e se integram evoluções estruturais de longa e média duração. E também acontecimentos que podem destoar, quer por serem relativamente imprevisíveis, quer por ocorrerem em contextos diferentes. Nesse sentido, entendo que, numa análise sobre o governo Kubitschek, é possível apontar tendências estruturais que já vinham desde os anos 30, como o lento cresci- mento da participação substantiva - e não apenas arbitral - dos militares na política. E, pelo lado do imprevisível, avulta como fenômeno singular a personalidade de Juscelino Kubitschek. Se é verdade que não se avalizam análises históricas em termos meramente personalizantes, é igualmente verdade que são exatamente nessas coJ?junhJ.Tas e encmzillzadas que o óomem faz a Hístóría. No caso específico de Juscelino, ele disporia daquilo que o cientista político David Easton denomina "talento das autoridades", ou seja, sensibilidade para captar o estilo de política possível no momento de demandas conflitantes. Mais do que a encarnação da velha "conciliação" - recorrente na história de nossas elites - o talento de JK consistia na provocação contagiante de um "estado de espírito" de esperança e otimismo. Afonso Arinos de Mello Franco identifica este "estado de es- pírito", por exemplo, ao evocar a construção da nova capital: "Brasília foi a exaltação da esperança nacional, do sentimento de grandeza, do aspecto sentimental da esperança de cada um" (entrevista à autora). Além disso, avesso a qualquer radicalismo, JK repudiava o refrão da ''infiltração comunista", tão ao gosto de carcomidos, civis e militares, aquele velho temor ironizado por ~fário de Andrade, na década de 40, como a "assombração medonha". Medo- nha é a miséria, que gera a revolta, dizia Juscelino. E, assim, até mesmo o Partido Comunista, apesar de ainda na ilegalidade, desfrutava de wna ce:-..a liberdade de ação - dispunha de ativa imprensa própria, vendida em bancas, e lideres importantes, como Luiz Carlos Prestes, apareciam em conúcios (Prestes, aliás, apoiou JK publicamente, por ocasião do rompimento com o Fundo Monetário Internacional e trabalhou ostensivamente pela candidatura do marechal Lott à sucessão presidencial). A imprensa oposicionista, de esquerda ou de direita (como o tablóide sensacionalista Maquis, ligado à UDN carioca mais radical e golpista), gozava de ampla circulação, praticamente sem atrito com a censura. A historiadora Maria Yedda Linhares escreveu, na ocasião do lançamento de meu livro, as críticas mais contundentes a este tipo de argumentação. "O seu modelo, assim como um navio que é lançado ao mar, não flutua. Isto porque o concreto - ou seja, a história - sobre a qual ele foi construído parece não ter levado em conta outros fatores, ou outras variáveis, igualmente fundamen- tais", como "a relação dialética entre desenvolvimento acelerado de um país subdesenvolvido, periférico e dependente e a recuperação do capitalismo no plano internacional da guerra fria" ( ... ), "o imperialismo" ( ... ) e "as classes sociais, o que elas são e representam no jogo político" (Opinião, 17 set. 1976). Creio que, com outros termos e outra abordagem teórica, aproximo tais considerações quando discuto o esgotamento do modelo - inclusive pelos motivos salientados por Maria Y edda - tanto do ponto de vista da participação dos militares (sensíveis ao "imperialismo", à "guerra fria" e à "luta de classes") quanto do ponto de vista da política econômica. É assim que, para a compreensão do período, eu incluiria não apenas aquelas evoluções já presentes na década de 30, mas também as brechas franqueadas ao capitalismo periférico, o que permitiu a autonomia das macrodecisões de investimento e os desdobramentos estruturais do capitalismo central na década de 50. Tais considerações, embora brevíssimas, são necessárias porque a política econômica juscelinista acabou tomando-se o eixo para a análise, positiva ou negativa, desse importante período de nossa experiência democrá- tico-populista que vai de 1946 a 1964. E por que populismo? Até que ponto podemos associar populismo a juscelinismo e considerar Juscelino Kubitschek um líder populista? A meu ver, foi o presidente que levou ao máximo as virtualidades do período populista. Mas, integrado numa época onde predominou o populismo, não exibia as características "tradicionais" do populista, como, por exemplo, João Goulart, pelo apelo do trabalhismo, Adernar de Barros, no sentido paternalista, com aspectos reacionários, ou ainda Jânio Quadros, com sua versão de populismo moralista-autoritário. E ainda sobre o "discurso juscelinista" e a possível aproximação com o populismo, é importante lembrar que nele não há uma caraterística essencial ao pensamento reacionário, no sentido de que este distingue-se, sob qualquer vertente política ou ideológica, pela vontade explícita de volta à situação anterior, de exaltação do passado. O futuro é sempre a referência maior de JK e seu discurso. 14 Se não era "tradicionalmente" populista, poderíamos falar de "ideologia" do juscelinismo? Nas análises sobre "ideologias", interessa-me especialmente o confronto das ambigüidades e das contradições, partes integrantes de qualquer discurso político - como, aliás, de qualquer linguagem simbólica. Interessa-me o que há de lógico nas ambigüidades, já que tais ambigüidades possuem uma "lógica própria", muito mais importante do que a redução a oposições contraditórias e muitas vezes antagônicas. Portanto, a lógica dessas ambigüidades e contra- dições constitui o perfil ideológico, tanto de um partido quanto de um governo, e identifica determinado projeto político (nesse ponto, lembro o estudo verda- deiramente clássico do saudoso mestre Victor Nunes Leal que, em Coronelis- mo, enxada e voto, desenvolve a idéia de que o coronelismo não significa a redução das polaridades entre o poder público e o poder privado, mas sensíveis complementaridades entre o público e o privado). A meu ver, a ambigüidade mais visível nos discursos juscelinistas refere-se, de início, à conjugação entre o nacionalismo da herança varguista e um novo modelo de desenvolvimento amarrado ao capital estrangeiro. Tais contra- dições compõem o perfil ideológico do governo e se inserem no projeto político que, no caso do juscelinismo, era o projeto de desenvolvimento econômico, aqui entendido não como crescimento "tradicional", mas cresci- mento com mudança estrutural ,_profundamente _dependente de p_klnos es- -. pecfficos de execução num prazo detenninado. No juscelinismo está clara a proposta para o futuro, em termos ideológicos da "construção do novo" - país, Estado e nação - e uma proposta prática de mudança na administração pública. É assim que o populismo toma outro sentido com Juscelino, além de ser a expressão de uma aliança vitoriosa e virtualmente contraditória entre um partido conservador de base rural, como o PSD, e uma agremiação de base urbana, como o PTB. Isso não significa dizer que um governo proveniente do PSD não dispusesse do voto urbano e do apoio das camadas emergentes. E aqui voltamos para outro aspecto daquele populismo. Pois um ponto da maior relevância deve ser enfatizado: Juscelino foi eleito por apenas 36% dos votos válidos (contra os 49% de Getúlio em 1950 e os 55% de Dutra em 1945) e sabia que teria que enfrentar o "complexo de minoria". Assim, não somente apostou com sucesso nas composições partidárias e outros compromissos assumidos na campanha (no velho sistema do clientelismo) como, sobretudo, desenvolveu uma com-preensão mais "moderna" sobre o populismo. O que significava dimensionar pragmaticamente a ampliação da participação política através do voto, conse- qüência da Carta de 46 e das novas franquias eleitorais. Em outros termos, JK compreendeu que, se o voto era necessário para conferir legitimidade ao sistema e ao seu governo (apesar de todas as distorções e insuficiências da representação via partidos, atuantes porém precários do ponto de vista da representatividade democrática), a contrápartida do governante, para canalizar o apoio dos grupos e classes emergentes, era justamente a maciça criação de dllf'egos. A euforia desenvolvimentista e, especificamente, a fundação de B..-asilia e a implantação da indústria automobilística, no âmbito do Programa de Metas, converteram-se na resposta de um novo e "moderno" populismo. É nesse sentido que entendo a argumentação de um arguto analista do fenômeno do populismo, como Francisco Weffort, que chama a atenção justamente para os aspectos contraditórios do fenômeno: "O populismo não era apenas esse fenômeno de liderança, de comando político, de organização política que tentei descrever. ( ... )era também um fenômeno de Estado, não marginal ao processo político, era um dos travejamentos da estrutura de poder do Brasil, embora não fosse o único( ... ) e os populistas eram grandes políticos nacionais ( ... )Na verdade, não há, no populismo, representação alguma na qual o representado possa fazer a sua voz ser ouvida - mas o populismo é contraditório no sentido de ser democrático, quando alguém no poder reco- nhece a emergência de certas reivindicações que vêm vindo pela base e busca, dentro do possível, atendê-las: ao fazer isso, introduz novos atores no cenário político" (1976, p. 176). E continua: "O período de meados dos anos 50 foi de crise geral do populismo latino-americano, e o populismo brasileiro, em que pesem suas particularidades, não é uma exceção à regra. As quedas de Arbens na Guatemala (1953) e de Perón na Argentina (1955), o curto ~ass~o _ período de Rojas Pinilla na Colômbia (IDT- [957), sem detxar C! e mencionar o trágico destino..9ue ~taria reservado à revolução boliviãnã de-1953- todos esses acontecimentos indicam as maneiras muitodiversas pelas quais os sistemas políticos latino-americanos recebiam (e respondiam) os primeiros impactos da nova linha de expansão do sistema capitalista internacional( ... ). o que transformou o caso brasileiro num caso à parte foram as peculiaridades da crise de hegemonia que caracteriza a história do país desde os anos 30, e, em particular, o lugar estratégico que estas circunstâncias de crise deveriam reservar para o aparelho de Estado e, em especial, para a figura de Getúlio Vargas" (1979, p.5). ~ Resumindo, o populismo juscelinista pode ser visto como um tipo de conciliação, ao mesmo tempo modernizante e conservadora, e como um "novo" nacionalismo voltado para as experiências de um capitalismo perifé- rico e dependente do capital estrangeiro. Sobre esse ponto, aliás, é importante destacar a releitura, inovadora e polêmica, feita por Fiori e Lessa, sobre o segundo governo Vargas. Ao negar as interpretações mais correntes sobre o "radicalismo nacionalista e popular" do projeto de Getúlio, sobretudo a partir da "crise de 1953", os autores enfatizam que não houve rupturas ou desconti- nuidades maiores entre a proposta de desenvolvimento de Vargas e a de JK. "A vitória da industrialização pesada e a euforia da segunda metade dos anos cinqüenta não se deveu, pois, à derrota de um suposto projeto nacionalista e popular de desenvolvimento. O Plano de Metas não foi mais nem menos 'pró-imperialista'do que o plano implícito no conjunto das mensagens e iniciativas de Vargas" (1983, p. 31). 16 No entanto, creio ainda que, mesmo no plano mais simples da "retórica" e da "imagem" em relação ao nacionalismo da herança varguista, o de- senvolvimentismo possuía vantagens que o tomavam mais atraente, mais "pragmático", como recurso dos mais eficientes, tanto para a mobilização quanto para a legitimação . .. Para a hurguesia-industrial-tmi- ex.pansão,.. ao contrário do getulist""llo, o_desenvolvi1ne11tismo e'{itava a ênfase na intervenção estatal na economia. Para os trabalhadores, o nacionalismo podia ser uma abstraçao, uma palavra de ordem, uma bandeira, um ideal, e o dé- senvolvimentismo era concreto, porque dele emanavam frutos imediatos, como o já citado atendimento às demandas específicas por empregos e serviços básicos. Já P.ara os militares, o-.desenvolvitllentismo_tepresentava o que mais tarde seria identificado como a ideglogia do "Brasil grande potência", pela multiphcação de recursos para_aQa_relhaiT)ento bélico, comunicação e trans- .eortes. Para a esquerda em geral (onde o debate ideológico se tornou cada vez mais débil entre o nacionalismo, digamos, autêntico, e o nacionalismo com tinturas entreguistas), a questão estava esmaecida pela política conciliadora do Partido Comunista. O PC acreditava na "revolução burguesa" e via a entrada do capital estrangeiro como um mal muito menor do que a oposição no "estilo udenista", anti popular, anti progressista e antigetulista. No govern~ Kubitschek, no entanto, a manutenção da ordem foi tão impor- tante quanto a defesa das liberdades políticas. Relembro a famosa frase: "Meu governo"- dizia Juscelino -" se assent'!_IE!_m.!_riE_é." Es~ tri~ ~ra formado _ pelo Ministério da Guerra, chefiado pelo marechal Lott, pelo comjlndo do I Exércffo,exerêíaõperogetierãl- Odilio ·ne 1_ys, _e pela chefia d~.J:ol!~ - D1sitlto e era :L esta ultima bastante importante, numa época em que o governo não dispunha de centrais de informação militares, como hoje. Aliás, aquela frase seria depois ironizada pelo ex-ministro Afonso Arinos, pata quem o tripé de Juscelino "tinha uma perna só: a bota do general Lott". Mas é bem verdade que, ao contrário de Getúlio, que tev,' três ministros da Guerra, e de Jango, com quatroLJuscelino manteve um único ministro na chefia das or s Armadas. O general Lott tomou-se o" 1a or o regime", controlando qualquer envolvimento eartidário dos militares e impedindo que o Exército concretizas- - se a fatalidade latino-ameri~ana de se tomar_" o g~nde eartido fardado". A~sim é que o Clube Militar permanece, pela primeira vez, à margem das cons- pirações e do enredamento com a pregação golpista das etemas "vivandeiras dos quartéis". Pois embora se mantivesse viva a divisão entre o grupo do li de novembro e o do 24 de agosto, as Forças Armadas, no seu conjunto, tinham interesse em apoiar a política econômica do governo. O Programa de Metas não prejudicava o atendimento às emergências de equipamentos e aumentos salariais; o orçamento dos militares crescia junto com o PNB. E mantinham-se inalterados os interesses "não-negociáveis" dos militares, cotno a Petrobrás e o controle sobre os minerais energéticos. ~ão há negar, no entanto~ s~ o discurso juscelinista idemificava a ordem ~lica como r~uisito ~ara o desenvolvimento, enfatizava também a suboc- tí c#nação das exigências de "ordem" à manutensão do§_ direitos civis, o respeito ã Consti~ção. Os militares eram, sem dúvida, essencialmente importantes para a estabilidade do governo sem, contudo1 abalar de maneira irreve~ível os alicerces do põderclVil. Tõtharam-se co-resgonsáveis pelo_ programa de desenvolvimento- e dele muito se beneficiaram- mas não de forma isolada, e srm ern con,pmto com.as demais.forças políticas que atuam nas democ_racias -por mais incipientes gue sejam --:_,__cotllo as lideral!Ças partidárias, os setores da-imp~e aqueles emJ?..resários que participavam dos Grupos de Trabalho e dos Grupos Executivos criados especialmente para implementar o Programa de Metas. Porlãrifo, a cooptação dos militares, que gradativamente foram assumindo posições de mando nos postos executivos (reforçando mna tendência já visível nos governos anteriores) também avulta como característica do período. Tais virtualidadestiveram seu ponto máximo no governo Kubitschek, e por esse ângulo é que entendo classificá-lo como "apogeu do populismo". No entanto, por se tratarem de virtualidades típicas de uma determinada conjuntura, esgotaram suas possibilidades no final do governo. Essa cooptação foi decisiva no período 1956-61: em meu livro O governo Kubitschek procedo a um levantamento dos oficiais militares que detiveram cargos executivos na administração pública e nos setores mais importantes da economia nacional. Contudo, essa participação cresce e muda sensivelmente quando o legalismo militar começa a alterar-se- por influências externas, em face dos rumos socializantes da revolução cubana, mas também pela eferves- cência política interna. O que antes significava mn legalismo constitucional- militar, de respeito à Constituição e subordinação à lei, passa a ser um legalismo condicionado a uma postura basicamente anticomunista e que considerava "subversiva .. toda e qualquer manifestação popular, na cidade e no campo, sendo que estas últimas se tornaram substancialmente mais agudas no final do governo. Em sua análise sobre o período, Hélio Jaguaribe lembra "a política de adiamentos estratégicos" do governo JK, para impedir o confronto direto com as forças opositoras, e que consistia em jogar para a frente os problemas que resultariam nas crises de 61-64. Nesse sentido, encerro estas notas sustentando que o sistema politico era estável no jogo das forças políticas, porém instável do ponto de vista institucional. A extrema improvisação institucional do governo Kubitschek tornou-se responsável pela instabilidade futura. Essa improvisação que marcou o governo e teve seu ponto culminante na "adminis- tração paralela" - apontava, por um lado, a fragilidade institucional, já crônica desde a década de 30, e, por outro, o esgotamento daquelas virtuali- dades que marcaram o apogeu do populismo no período. Nesses termos, aquelas próprias variáveis que garantiam o apogeu foram também responsáveis pelo declínio do sistema. O Programa de Metas, o apoio da aliança PSD-PTB, a mobilização pelo desenvolvimento e a cooptação dos militares - variáveis básicas para se entender o êxito do governo Kubitschek, 18 - , esgotaram sua eficácia no período. Na medida em que mudaram as zonas de incerteza na economia, pelo próprio crescimento econômico (incerteza situada nas propostas de financiamento externo), a "administração paralela" perdeu sua eficácia, o recurso à inflação e ao capital estrangeiro começou a declinar, não apenas em termos pragmáticos, como em termos da legitimação de um novo nacionalismo. E embora se tratasse de uma inflação razoavelmente baixa, comparada a niveis posteriores, ela se converteria no principal eixo dos ataques ao governo. E facilitou, sobremaneira, a ascensão de Jânio Quadros, que se apresentava com a autoridade de quem poria "ordem no caos". O apoio conjtmto do PSD-PTB também foi declinando pelo esfacelamento dessa aliança; o crescimento do PTB (o partido que mais cresceu no período) começou a ameaçar a posição hegemônica do PSD, que se aproxima de seu tradicional adversário- a UDN. _O~róprios frutos do crescimento econômico mudaram o perfil da econo- mia nacional, em termos daSforças políticas conflitantes e no quadro das relações írltei-nacionãis. Paradoxalmente, na medida em que o de- senvolvimento mobilizava camadas sociais cada vez mais reivindicativas - porém sem condições de serem absorvidas institucionalmente pelo sistema - contribuía para o declínio das virtualidades dos "anos dourados" que signifi- caram, com todas as contradições e ambigüidades, a experiência mais brilhante de nossa democracia liberal-burguesa. Num_Q_aís como o Brasil, marcado por desigualdades sociais tão absurdas e desequilíbrios econômicos crescentes, essa democracia·- sempre para "os de cima"- pode "dar certo", mas apenas durante um certo tempo. Enfun, o esgotamento das virtualidades do modelo desenvolvimentista revela seus aspectos mais discutíveis: asconseqüências, a longo prazo, da entrada em massa do capital estrangeiro; a descapitalização do meio rural, com os efelfOstliUIIiplicadores do inchaço urbano, des~mprego e subemprego; a inflação e o crescimento da dívida_externa, com o dese.quilibrio do ba lanço de pag~s etc. Passada a euforia, o prenúncio da ctise.exigia uma política de estabilização (tentada, sem sucesso, no govemo Kubitschek, por iniciativa do ministrOLucas Lopes) e de ausleridade. O otimismo jamais igualável da democracia juscgínista seria substituído pela catTãilCa autoritária, moralista e vingativa do janismo. A vitória de Jânio Quadros em 1960 seria a maior derrota de JK que,ale'1Tíãe não fazer seu sucessor, não lograra consolidar, no empre- sariado que tanto o apoiara, a crença duradoura nas virtudes da democracia para a construção de um capitalismo mais contemporâneo do mundo civiliza- do. (Aliás, uma questão incômoda permanece: em nome de que a burguesia acabou aceitando, em 1964, a substituição de um Estado liberal-burguês por um Estado militar e tecnocrático?) Francisco de Assis Barbosa enfatiza o compromisso radical de Juscelino ~om a legalidade democrática. "Foi um ponto de honra de seu governo; resistiu as rentações de continufsmo, possível através de uma reforma constitue~ l9 qne lhe pennitiria a reeleição. Seu desejo era o de despertar o gigante adormecido, como dizia sempre, mas sem quebra das normas constitucionais. Sua obsessão: passar o governo ao seu sucessor, eleito pelo povo, garantir a continuidade e a normalidade democrática. E isso ele conseguiu. Deu conta do recado. Com audácia, energia e confiança, como disse André Malraux" (entrevista à autora) . .. Juscelino foi a prova personificada de que o regime democrático é viável ( ... ) Sua vocação de tolerância, sua capacidade de compreensão, sua tenaci- dade, sua jovial confiança no poder da ação fizeram dele um criador de otimismo, um desbravador de caminhos. Foi isto que o povo identificou nele. E por isso, tão grande parte do povo se identificou com ele" ( ltéja, 25 ago.l976, p. 8). Tais palavras não pertencem a um fiel admirador e correligionário - mas ao mais ferrenho adversário que JK e seu governo tiveram que enfrentar: Carlos Lacerda. E não se trata de um necrológio "il moda cordial" brasileira (pois Lacerda não perdoava inimigos nem mesmo mortos), mas o reco- nhecimento de que, mais do que o lugar-comum da "tolerância e da simpatia", percebia no governante a marca de um carisma para a formação de um ethos positivo e criador. Em 1990, comentando com agudeza e pungência a torpeza da campanha presidencial vitoriosa - que se valera da fraude, das negociatas, da mentira, da manipulação da miséria e do cinismo do "guerra é guerra" -a escritora Marilene Felinto confessava o sentimento de vergonha de ser brasileira e resumia, numa frase, o desamparo angustiado de tantos jovens de hoje: "tenho trinta anos na cara e nenhum ano de esperança pela frente" (Folha de S. Paulo, p. 3, "A coisa errada"). Esse desencanto, esse brutal complexo de inferioridade de "ser brasileiro" (e as filas de espera por mais de um ano no consulado para se obter a cidadania italiana? E a onda imigratória de jovens na ilusão de fugir para as luzes do "primeiro mundo"?) é, mais do que tudo, a desgraça de uma nação. Nação que se identifica na comunidade cultural e política, mas só se mantém, só se consolida "como nação" se houver crença no futuro. Pois foi justamente essa crença no futuro, essa esperança nos destinos da nação que fizeram de Juscelino um presidente singular na nossa história. Singular porque não encontramos paralelo em nenhum outro. De ~ficou o carisma do "pai dos pobres", fortalecido pelo radicalismo do sangue derramado,.más ele não incutiu esperança no povo, que nele venerava o protetor austero e insubs- tituível. O presidente Jânio Qu~dros também não, pois falava muito mais em "vigiar e punir" do que em criar e desenvolver; e sentimentos nacionaisde delação e vingança são, evidentemente, incompatíveis com otimismo e es- perança. E João Goulart, marcado pelo fardo de ser o novo e contraditório "herdeiro de Getúlio", não conseguiu enfrentar e superar a devastadora campa- nha de propaganda do terror: a ameaça do comunismo "ateu e solerte". O que foi decisivo para incutir em grande parte da opinião pública o medo e· o ódio ao "inimigo interno" - e nesse clima de guerra civil ideológica não é possível florescer qualquer tipo de sentimento nacional positivo. 20 - E nosso primeiro presidente civil depois do regime militar, José Sarney, apesar de comprazer-se com uma auto-imagem de "generosidade e espírito conciliador à moda de Juscelino", precipitou a desesperança a niveis insus- peitados após o efêmero "Plano Cruzado". (É razoável supor que Tancredo Neves, como o candidato do consenso das "diretas indiretas", lograsse alcançar a marca da esperança - mas só houve tempo para a manifestação popular de "orfandade". Talvez tenha sido, no brevíssimo espaço da ascensão, doença e morte, um novo cavaleiro da esperança.) Mas Fernando Collor, em apenas um ano de governo, conseguiu reverter completamente as expectativas de metade dos eleitores que acreditaram nas promessas e nas possibilidades de realização de quem também se apresentava como um "novo Juscelino"- na determina- ção e na radicalidade de suas propostas de "modernização". Deu no que deu. Pesquisas da Standard, Ogilvy & Mather revelam que 74% da classe média brasileira estão pessimistas (F olha de S. Paulo, p.2, 21 jul. 1991 ), e reportagem especial de um semanário descreve o que chama de verdadeiro êxodo dos desesperançados, identificando-o como uma nova "diáspora" (Veja, 32,ago. 1991). É claro que não podemos perder o senso crítico em relação à superficiali- dade e ao lado ingênuo e ufãillsta daquela retónca Oa época - "o país do futuro'-:-Mas não resta dúvida de que JK, com sua personalidade na qual Afonso Mt:J.os percebia "imaginação, entusiasmo e fé de um visionário do real" - conseguiu ~r, por um certo tempo, o necessário "equilíbrio ESicológicÕ" da-nação. Essa é, a meu ver, a marca inconfundível de um estadista. Consciente ou inconscientemente --=eesiOu convencida de que não se tratava de uma política deliberada, mas de algo intrínseco à personalidade, do "talento da autoridade"- Juscelino transmitiu a esperança, obrigação de todo homem público. Pois, sem esperança, como será possível construir, criar, participar, acreditar em seu próprio país? Sem esperança no futuro estaremos sempre, ressentidos ou aparvalhados, ''estrangeiros em nossa terra" -ou, em analogia com o que constatava Sérgio Buarque de Holanda, ameaçados pelo "demônio pérfido e pretensioso", aquele que nos torna "comparsas desatentos do mundo em que habitamos". Talvez seja nesse sentido que podemos compreender melhor com~.!~ no répudiava, com_veemência- e até mesmo com uma certa repugnância pelos derrotistas e acomodados, que se comportavam como na imagem dos "caranguejos" - as cassandras da fatalidade, ~xora.bili.dade..do_subde senvolvimento num país como o Brasil. Em seu discurso de despedida é enfático: "Não ~echo os olhos à realidade. Conheço e reconheço que é um trabalho imenso o que desafia os nossos administradores e homens públicos. Sei que o pauperismo continua a afligir-nos, a danificar-nos. Sei que não foram extintas as fontes do sofrimento e da miséria. Mas, ao mesmo tempo em que me dou_conta disso, dou-me conta, também, de que já não aceitamos um destino negativo." O presidente Juscelino foi, sem dúvida, um grande político nos moldes do que já se convencionou denominar "modernização conservadora". Mas sacu- diu o pais do marasmo "caranguejeira" e conseguiu incutir, no brasileiro, algo mais do que o fugaz e alienante sentimento da "pátria em chuteiras". Durou pouco e trouxe algumas conseqüências funestas - sobretudo no plano da credibilidade institucional. Se vivo fosse, estaríamos em campos diferentes; mas tenho certeza de que Juscelino Kubitschek teria com o meu partido - o Partido dos Trabalhadores - um ·diálogo mais respeitoso e democrático do que muitos dos chamados "liberais" da já velha "Nova República" e deste triste, apagado é vil "Brasil novo". Referências bibliográficas BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. O governo Kubitschek: de- senvolvimento e estabilidade política. 3. ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. LAFER, Celso. The planning process and the política[ system in Brasil. PhD. Thesis. Cornell University, 1970. BARBOSA, Francisco de Assis. Juscelino Kubitschek: uma revisão na política brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro, Guanabara, 1988 (e entrevista à autora). FRANCO, Afonso Arinos de Mello. A escalada (memórias). Rio de Janeiro, José Olympio, 1965 (e entrevista à autora). JAGU_ARIBE, Hélio. Sociedade, mudança e política. São Paulo, Perspectiva, 1975. WEFFORT, Francisco. Democracia e movimento operário: algumas questões para a história do período 1945- 1964. Revista de Cultura Contemporânea, CEDEC, n. 1, 1978 ; n. 2, 1979. . LESSA, Carlos & FlORI, José Luis. Relendo a política econômica: as falácias do nacionalismo popular do segundo governo Vargas. Instituto de Economia Industrial, UFRJ, out. 1983. 22 Avanços e recuos: a política exterior de JK Gerson Moura* O governo de Juscelino Kubitschek (1956-61) situa-se em plena vigência do que se convencionou chamar de "guerra fria .. entre as duas superpotências. Ancorados em supostos ideológicos aparentemente irreconciliáveis, EUA e URSS constituíam então dois poderes que se confrontavam em termos politi- co-estratégicos e ideológicos e se afmnavam como centro e liderança de dois blocos antagônicos que porfiavam pela adesão e lealdade do restante da humanidade. De fato, são notáveis na década de 50 a guerra de propaganda, a corrida armamentista, assim como as doutrinas estratégicas que tomavam próxima a possibilidade de um conflito nuclear de caráter apocaliptico -tudo procurando reduzir a complexidade do sistema internacional a uma ordem bipolar simples, à qual deveriam amoldar-se os demais estados nacionais. No entanto, na segunda metade dos anos 50, nem os blocos que se antago- nizavam eram perfeitamente coesos no seu interior e nem o restante da humanidade se dispunha a aderir completamente à liderança das superpotên- cias. Esses elementos perturbadores da ordem bipolar, embora não fossem suficientes para demolir os alicerces da guerra fria, constituíam contudo .. sinais dos tempos" para estadistas mais atentos e que buscavam uma adequa- da inserção de seus países na ordem internacional. 'Firmemente atado ao sistema de poder norte-americano, desde que se consolidara a aliança com os EUA no decorrer da II Guerra Mundial, o Brasil parecia destinado ao alinhamento automático na sua política exterior. Posição inteiramente assumida entre 1945-50 por identidade ideológica (governo Dutra)eparcialmenterenegadaentre 1950-54porumpragmatismoimpossível (governo Vargas), o alinhamento automático parecia então se inscrever na lógica da situação geopolítica brasileira, assim como parecia ser o ponto de partida da politica exterior de JK. De acordo com o secretário de &tado norte-americano, em comunicado ao presidente Eisenhower, o presidente eleito Kubitschek revelara-lhe a aspiração de mirar-se no exemplo e ganhar o respeito do povo americano, dizendo-lhe as seguintes palavras: "Sou um conservador; e quero renovar nossa amizade .. (com o povo americano).' É gerahnente em termos de alinhamento aos EUA que se tem analisado a politica exterior do governo JK. Desse ponto de vista, as eventuais d'iscrepâncias juscelinistas ao modelo do .. alinhamento" constituiriam incidentes de menor monta ou até mesmo exceções que confmnariam a regra .. * Pesquisador do CPDOC e autor, entre outras obras, c;leAutonomia na dependência (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980), 11o Sam chega ao Brasil (São Paulo, Brasiliense, 19&.!) e Estados Unidose América Latina (São Paulo, Contexto, 1990). O que hoje parece mais claro é que nem a "política externa independente" - que se inaugura com Jânio Quadros em 1961 - constitui fenômeno que nasce da noite para o dia por um carisma presidencial, nem a política exterior de JK pode ser explicada pelo puto e simples automatismo do alinhamento ao Ocidente ou aos EUA. O que emerge do período 1956-61 é a imagem de uma política externa matizada, complexa, cheia de ambigüidades, fragilidades, descompassos e contradições, mas que, por isso mesmo, já indicava uma necessidade e um desejo de mudança em relação ao modelo proposto pelos EUA em 1945 e amplamente vigente nos anos do pós-guerra. A impressão que se tem é de que o governo JK já se dava conta das mudanças que se operavam na ordem internacional, embora não fosse capaz de acompa- nhá-las plenamente e nem de tirar delas todas as conseqüências, tanto por inibições e contradições internas, como por constrangimentos externos. Pode- se, ·no entanto, acompanhar a gestação de formulações e posições de inde- pendência ·em meio à reafmnação de posições de alinhamento. O "novo" e o "velho" na política exterior de JK aparecem não apenas em linhas paralelas, mas também em linhas cruzadas, justapostas e até misturadas, o que torna difícil uma caracterização univoca do período. Daí a permanente impressão de avanços e recuos na política exterior de JK. 1. As relações internacionais: rachaduras nos blocos Na segunda metade dos anos 50 alguns elementos perturbadores começaram a afetar o mundo bipolar que as· superpotências tinham edificado desde 1945. É bem verdade que a guerra ideologica se intensificava e aumentava o poder de destruição e o nível técnico dos armamentos. Transformada a paz num puro "equilíbrio pelo terror" gerado pela estratégia da "retaliação maciça", a visão da guerra era a de um evento total, apocalíptico, coin perdas irreversíveis para a humanidade. Mas em meio a essa polarização aguda, o pretenso monolitismo polftico dos blocos começava a apresentar fissuras, como se evidenciou em 1956 com a crise de Suez e a insurreição húngara. Ao mesmo tempo, o avanço da luta anticolonial criava uma nova realidade de nações que não aceitavam a camisa-de-força do alinhamento às potências e reivindicavam urna terceira posição, que negava os pressupostos mesmos da guerra fria. A crise de Suez - Expressão do nacionalismo de terceiro mundo, a naciona- l ização do canal de Suez em julho de 1956 pelo presidente egípcio Nasser provocou uma intervenção militar conjunta anglo-franco-israelense no final daquele ano e se transformou rapidamente numa crise aguda de contornos internacionais. A pronta reação da ONU, condenando a intervenção e apresen- tando a cena inédita de soviéticos e norte-americanos unidos na condenação à agressão, obrigou a um imediato cessar-fogo. Seguiu-se a formação de uma força de paz das Nações Unidas para garantir a retirada dos intervencionistas 24. - da zona do canal (tropas franco-britânicas) e na península do Sinai (israe- lenses). EUA e URSS não se dispuseram a serem arrastados a um conflito que poderia degenerar numa guerra global, a partir de uma crise que não fora por eles desencadeada. Ao mesmo tempo, não podiam manter-se alheios à crise, sob pena de perda de prestígio entre as nações do mundo árabe e do terceiro mundo em geral; daí a condenação ao intervencionismo. Mas esta posição comprometia a solidez do bloco liderado pelos EUA, e cedo se percebeu no Ocidente que a crise de Suez constituía "um golpe sofrido pela unidade ocidental".2 Como notou Ronaldo Sardenberg, a crise de Suez deixou óbvio, ao menos para os franceses, "que a solidariedade americana não deveria ser presumida automática". 3 Pouco tempo depois de Suez, a França de De Gaulle contestaria a liderança norte-americana no Ocidente. Àquela altura, a criação da Comunidade Econômica Européia (1957) cons- tituía também um elemento novo na competição européia-norte-americana no mercado internacional, ao favorecer as indústrias localizadas nos países-mem- bros em detrimento da importa,,;ão de terceiros países (inclusive os EUA). Desse modo, tanto no plano das relações políticas como no das relações econômicas internacionais, a noção de um bloco ocidental monolítico e coeso -fundamento da liderança incontestável dos EUA- começava a sofrer seus primeiros arranhões. A insurreição húngara - O aparente monolitismo do bloco soviético sofr"u também uma rachadura severa em 1956, com as revoltas húngara e polones< Esses movimentos ocorreram na esteira da desestalinizaçào, isto é, das refor- mas moderadas que se aplicaram ao modelo stalinista na URSS e às suas cópias da Europa ocidental. Em junho de 1956, iniciaram-se manifestações na Polônia por melhores condições de vida, por liberdade política e pela retirada das tropas soviéticas estacionadas no país. Nos meses seguintes, o setor reformista do PC polonês (Gomulka) conseguiu assumir e manter a liderança do movimento político, afirmando seu próprio caminho para o socialismo e assegurando à URSS que a Polônia manter-se-ia aliada da URSS nos quadros do Pacto de Varsóvia. Simultaneamente, os acontecimentos poloneses animavam a oposição hún- gara e provocavam enormes manifestações em Budapeste no início de outubro de 1956. A facção reformadora do PC húngaro (Imre Nagy) inspirava-se nos programas de Gomulka, mas o movimento de massas (operários, estudantes, camponeses, intelectuais) rapidamente assumiu o controle, superando em muito as disposições reformistas da equipe de Nagy, que fora conduzido à liderança do governo no bojo da agitação política. Na verdade, "o movimento de massas foi tão poderoso e tão radical que em alguns dias pulverizou literalmente o PC e todo o aparelho de Estado". E "tudo o que subsistia como poder estava nas mãos da juventude armada e nos conselhos operários-~ A abolição do sistema de partido único exigida pelos conselhos revolucionãrit:~S nos últimos dias de outubro ampliou a presença de tropas soviéticas nos primeiros dias de novembro. Em 12 desse mês, os tanques soviéticos atacaram a resistência civil e o governo Nagy, embora ainda se passasse um mês antes que os fiéis a Moscou se impusessem definitivamente aos conselhos operários e revolucionários. 5 A tragédia húngara repercutiu intensamente no Ocidente e foi amplamente utilizada como elemento da luta ideológica, mas as reações norte-americanas à intervenção soviética não passaram de condenações ver- bais, marcando o reconhecimento de Washington de que os soviéticos tinham pleno direito de manter intocadas as bases do seu poder na Europa oriental. 6 A insurreição húngara e a agitação polonesa revelavam a natureza do bloco soviético, assim como as dificuldades de manter a sua coesão interna. E assim como a crise de Suez, também desmentiam a inexorabilidade do conflito entre os dois blocos. Ao mesmo tempo, o reconhecimento mútuo dos interesses vitais das superpotências evidenciava que a bipolaridade era o discurso da dominação interna aos blocos, mas não a regra básica do jogo político internacional. Interessava aos poderes hegemônicos, mas pouco ou nada tinha a oferecer aos aliados subordinados. Estes começavam a tirar suas próprias conclusões. Descolonização e não-alinhamento - Na segunda metade dos anos 50, o ímpeto da descolonização alcançou a África e concluiu a independência nacional de quase toda a Ásia. O marco simbólico da ligação entre os dois processos foi exatamente a Conferência de Bandllllg (Indonésia), em 1955, que resultou da articulação de estados da Ásia Jntro-oriental, do Oriente Médio e do Norte da África, na busca de uma posição comum na luta contra o colonialismo e o racismo. Bandung constituiu UtÍl marco e um estímulo na luta contra a ideologia da dominação colonial. Os autores chamam a atenção para o impacto produzido pela conferência, em termos "psicológicos" ou de "fermentação de idéias" em toda a África.7 Exatamente
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