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84 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II Unidade II 5 O BRASIL: AUTORITARISMO E MASSAS Três importantes momentos da história do pensamento político brasileiro serão estudados neste tópico: o coronelismo, o autoritarismo e o populismo. Todos surgem como decorrência do momento histórico vivido pela sociedade brasileira e ainda hoje influenciam significativamente. 5.1 O coronelismo No Brasil, o autoritarismo está presente em vários momentos da vida social, econômica e política. Basta observarmos com cuidado para perceber que existe uma tradição histórica e cultural que permite que o autoritarismo esteja presente entre nós. Seja na atuação do Poder Público, seja na relação entre particulares, os traços de autoritarismo são encontrados no cotidiano nacional. Vamos entender nesta obra por que ocorrem determinados fatos, assim como nossa herança histórica e política. Analisar‑se‑ão, ainda, os possíveis mecanismos para o Brasil superar essa tendência autoritária. Após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, foi constituído um governo provisório no Brasil que era chefiado por Deodoro da Fonseca, que é considerado o protagonista do ato de ruptura do Império e deposição de D. Pedro II. Se a passagem do regime monárquico para a República no Brasil não teve maiores conflitos, o mesmo não se pode dizer dos anos posteriores, que foram marcados por forte confronto entre os militares e os liberais, proprietários de terras e de comércio. Os próprios militares estavam divididos entre aqueles que apoiavam Deodoro da Fonseca e os partidários de Floriano Peixoto. Entretanto, essa questão não chegava a amedrontar, porque o forte espírito de dever que marca a vivência e a cultura militar fazia que os oficiais se unissem em torno de uma ideia: a contraposição às concepções liberais. Os militares desejavam um governo central federal forte, uma forma de ditadura que se prolongasse e garantisse estabilidade, segurança e respeito à ordem. Nesse sentido, a autonomia das províncias era vista como um arranjo político indesejável, porque favorecia a autoridade dos donos do poder econômico, ou seja, os liberais. Estes, por sua vez, temiam que a força marcial tomasse para si o governo republicano e permanecesse no poder, com alternância apenas entre eles próprios. Tal questão, além de desagradar os liberais, também assustava a Europa, e isso era negativo para os interesses dos produtores 85 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO brasileiros, que desejavam obter crédito no exterior. Sem estabilidade política e sem liberdade para o desenvolvimento econômico, esse crédito não viria para cá. Na tensão política entre esses interesses opostos, foi eleita uma Assembleia Nacional Constituinte e aprovada uma nova Constituição Federal, em fevereiro de 1891, que substituiu a de 1824, que havia sido outorgada por D. Pedro I após a Independência. Essa Constituição, a primeira do Período Republicano, adotou a forma federativa, o presidencialismo; esta deu aos Estados (novo nome das províncias) autorização para exercer atividades diversificadas, inclusive contrair empréstimos no exterior e organizar forças militares públicas e estaduais, bem como cobrar impostos, (inclusive de exportação), o que foi de grande valia para Estados como São Paulo, porque o café era um produto bastante exportado naquele momento histórico. Além disso, o Estado assumiu parte das funções que eram da Igreja Católica, que, por sua vez, deixou de ser a religião oficial do país. O casamento reconhecido passou a ser somente o civil, os cemitérios foram tornados públicos e administrados pelos municípios, e foi determinada a liberdade de culto religioso. Contudo, apesar de todas essas mudanças significativas, o período da Primeira República, também denominada usualmente de República Velha, ainda não permitia a ampla participação popular. É certo que o voto passou a ser direto e universal, sem que fosse necessário provar renda, como acontecia no tempo da Constituição de 1824, quando era preciso comprovar ser dono de valores equivalentes a quatrocentos a oitocentos mil réis para poder votar a fim de eleger o deputado federal e o senador. Além disso, esta Carta exigia que o eleitor fosse maior de 25 anos e homem. A Primeira Constituição da República modificou tudo isso; suprimiu a exigência econômica que era bastante restritiva, porque só os grandes proprietários de terra podiam exercer o direito de voto. É certo que essa Constituição não avançou tanto, pois não permitia o voto feminino, mas era mais democrática que a de 1824. Isso não foi suficiente, no entanto, para que a população efetivamente participasse da vida política. Em outras palavras, as elites e os militares continuaram decidindo os principais aspectos políticos e econômicos do país. Embora a população de ex‑escravos, indígenas, brancos e mulatos pobres fosse a maioria do país, a política oficial não tinha espaço para a participação desses brasileiros. Por qual motivo isso acontecia? São várias as razões, mas sem dúvida uma delas é porque o coronelismo ainda dominava o país. Mas o que é coronelismo, quem eram esses coronéis? Esses indivíduos eram civis e proprietários de terras que haviam recebido do Governo o título de Coronel da Guarda Nacional, por isso exerciam o poder a seu bel‑prazer nas regiões em que estavam localizados, distribuindo cargos por compadrio e determinando o resultado das eleições a partir da ampla prática do voto de cabresto. 86 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II Herança do Período Imperial, a Guarda Nacional deixaria seus traços por muito tempo na história política do Brasil. Não é difícil identificarmos em nossos dias rastros desse legado, principalmente nos locais mais isolados e com dificuldade de comunicação e de acesso. No prefácio da obra Coronelismo, enxada e voto (1976), significativa contribuição de Victor Nunes Leal para as reflexões sobre esse fenômeno político e social, expõe‑se o seguinte: A Guarda Nacional, criada em 1831, para substituição das milícias e ordenanças do período colonial, estabelecera uma hierarquia, em que a patente de Coronel correspondia a um comando municipal ou regional, por sua vez dependente do prestígio econômico ou social de seu titular, que raramente deixaria de figurar entre os proprietários rurais. De começo, a patente coincidia com um comendo efetivo ou uma direção, que a Regência reconhecia, para a defesa das instituições. Mas, pouco a pouco, as patentes passaram a ser avaliadas em dinheiro e concedidas a quem se dispusesse a pagar um preço exigido ou estipulado pelo poder público, o que não chegava a alterar coisa alguma, quando essa faculdade de comprar a patente não deixava de corresponder a um poder econômico, que estava na origem das investiduras anteriores. Recebida de graça, como uma condecoração, acompanhada de ônus efetivos, ou adquirida por força de donativos ajustados, as patentes traduziam prestígio real, intercaladas numa estrutura social profundamente hierarquizada como a que costuma corresponder às sociedades organizadas sobre as bases do escravismo. No fundo, estaria o nosso velho conhecido, o latifúndio, com os seus limites e o seu poder inevitável (LIMA SOBRINHO, 1976, p. 13). Destaca‑se ainda uma prática arbitrária dos coronéis: [...] não raro o “Coronel” dilatava seus domínios territoriais, à custa de propriedades usurpadas, aos adversários ou aos próprios amigos, pela pressão de cabras, que o “Coronel” mobilizava, para criar, no dono de pequenas propriedades, a convicção de que era melhor vendê‑las do que abandoná‑las, pela impossibilidade de nelas continuarem. No sistema do “Coronelismo” [....] o que nele se tratava era uma hegemonia econômica, social e política, que acarretava, por sua vez, o filhotismo, expresso numregime de favores aos amigos e de perseguições aos adversários. Mas a paixão pela terra cresce tanto, que leva o “Coronel” a incluir, na expansão de sua propriedade, as terras dos próprios correligionários, tranquilizando a sua consciência com a avaliação exagerada dos preços espoliativos que oferece (Ibidem, p. 15, grifos do autor). 87 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Coronelismo pode ser considerado como um termo brasileiro, ou um brasileirismo, como a ele se refere o Prof. Basílio de Magalhães, mencionado no trabalho de Victor Nunes Leal, e que sua origem se deve aos coronéis da Guarda Nacional. Com o tempo, o autor ressalta que o termo passou a ser utilizado não apenas por aqueles que tinham a designação oriunda de sua inserção na Guarda Nacional, mas também para se referir a todos os que tinham algum papel relevante na política local, ou seja, os chefes políticos, quase sempre grandes proprietários de terra. Estes se tornavam automaticamente coronéis na visão dos sertanejos, do povo sofrido, que vivia na cidade ou nas fazendas, mas sempre em regime de dependência das elites econômicas. A Guarda Nacional, criada em 18 de agosto de 1831 pelo Padre Diogo Antônio Feijó, foi uma ideia dos liberais e estava subordinada ao Ministro da Justiça. Todos os coronéis possuíam uniforme com as insígnias próprias do posto e com este traje marchavam para as ações de guerra, assim como o utilizavam nas solenidades cívicas e religiosas em suas regiões. Quase sempre o coronel era o chefe político da região e, dentre outros benefícios que recebia, um deles é bastante interessante: quando fosse preso ou estivesse sujeito a processo criminal, não poderia ser recolhido às prisões comuns, devendo ocupar as chamadas “salas livres” das cadeias públicas da localidade onde residia. Mesmo depois de extinta durante a República, a ação desses oficiais continuou entranhada nas práticas políticas nacionais, e a designação continuou a ser aplicada a todos os chefes políticos regionais, em especial àqueles que também representavam o poder econômico local. Os coronéis conduziam o processo eleitoral e foram responsáveis pelo chamado voto de cabresto, que consistia em eleições totalmente direcionadas por eles, ou seja, fraudadas, com o objetivo de conseguir o resultado desejado. Cabresto é o arreio feito de corda ou de couro utilizado para controlar a marcha dos animais. Nessa modalidade de votação, a população recebia ordem do coronel para votar em um candidato escolhido por ele ou nele mesmo. Para isso, os eleitores eram conduzidos pelo coronel ou por seus capangas, e não raro eram utilizados mecanismos de fraude para garantir o resultado desejado. Esses “guarda‑costas” dos militares eram chamados de capangas. A diferença destes para os verdadeiros guarda‑costas é que eles praticam atos ilícitos a mando de seus chefes e são protegidos por eles em relação a tais. Muitas vezes atuavam como matadores profissionais e causavam profundo temor na população local. Machado de Assis (1961) afirmou que, no Brasil, a ciência política acha um “limite na testa do capanga”. Infelizmente, hoje não é difícil encontrar no Brasil resquícios dessas práticas. Em 12 de fevereiro de 2005, morreu assassinada a freira Dorothy Mae Stang, também conhecida como Irmã Dorothy, em Anapu, no estado do Pará. Ela lutava em defesa da população rural pobre contra o arbítrio dos grandes proprietários rurais, por isso foi assassinada por capangas. 88 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II Lembrete Infelizmente, essas práticas ainda são comuns no Brasil. Em 12 de fevereiro de 2005, morreu assassinada a freira Dorothy Mae Stang, também conhecida como Irmã Dorothy, em Anapu, no estado do Pará. Ela lutava em defesa da população rural pobre contra o arbítrio dos grandes proprietários rurais. Destacam‑se a seguir os vários papéis que os coronéis exerciam: Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento primário desse tipo de liderança é o “coronel”, que comanda discricionariamente um lote considerável de votos de cabresto. A força eleitoral empresta‑lhe prestígio político, natural coroamento de usar privilegiada situação econômica e social de donos de terras. Dentro da esfera própria de influência, o “coronel” como que resume em sua pessoa, sem substituí‑las, importantes instituições sociais. Exerce, por exemplo, uma ampla jurisdição sobre seus dependentes, compondo rixas e desavenças e proferindo, às vezes, verdadeiros arbitramentos, que os interessados respeitavam. Também se enfeixavam em suas mãos, com ou sem caráter oficial, extensas funções policiais, de que frequentemente se desincumbe com a sua pura ascendência social, mas que eventualmente pode tornar efetivas com o auxílio de empregados, agregados ou capangas. Essa ascendência resulta muito naturalmente de sua qualidade de proprietário rural. A massa humana que tira a subsistência das suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância e abandono. Diante dela, o “coronel” é rico. Há, é certo, muitos fazendeiros abastados e prósperos, mas o comum, nos dias de hoje, é o fazendeiro apenas “remediado”: gente que tem propriedades e negócios, mas não possui disponibilidades financeiras; que tem o gado sob penhor ou a terra hipotecada; que regateia taxas e impostos, pleiteando condescendência fiscal; que corteja os bancos e demais credores, para poder prosseguir em suas atividades lucrativas. [...] Completamente analfabeto, ou quase, sem assistência médica, não lendo jornais, nem revistas, nas quais se limita a ver figuras, o trabalhador rural, a não ser em casos esporádicos, tem o patrão na conta de um benfeitor. E é dele, na verdade, que recebe os únicos favores que sua obscura existência conhece. Em sua situação, seria ilusório pretender que esse novo pária tivesse consciência do seu direito a uma vida melhor e lutasse por ele com independência cívica. O lógico é o que presenciamos: no plano político, ele luta com o “coronel” e pelo “coronel”. Aí estão os votos de cabresto, que resultam, em grande parte, da nossa organização econômica rural (LEAL, 1976, p. 37, grifo do autor). 89 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Victor Nunes Leal ressalta que, por vezes, embora a literatura brasileira não tenha sido condescendente com a figura dos “coronéis”, sempre tratados de forma caricata e muito crítica, eles foram responsáveis pelos únicos benefícios sociais obtidos pelos municípios, como escolas, médicos, campos de futebol, construção de praças, bem como pela instalação de sistema de água e esgoto e de rede elétrica. É o resultado da pressão política aos governadores e secretários de governo, ou mesmo às autoridades federais, que viabiliza melhores condições para os municípios ou para as regiões que o coronel tem sob seu comando. Leia o excerto a seguir: É comum denominar a Primeira República “república dos coronéis”, em uma referência aos coronéis da antiga Guarda Nacional, que eram em sua maioria proprietários rurais, com uma base local de poder. O coronelismo representou uma variante de uma relação sociopolítica mais geral – o clientelismo – existente tanto no campo quanto nas cidades. Essa relação resultava da desigualdade social, da impossibilidade de os cidadãos efetivarem seus direitos, da precariedade ou da inexistência de serviços assistenciais do Estado, da inexistência de uma carreira no serviço público. Todas essas características vinham dos tempos da Colônia, mas a República criou condições para que os chefes políticos locais concentrassem maior soma de poder. Isso resultou principalmente em ampliação da parte dos impostos atribuída aos municípios e da eleição de prefeitos (FAUSTO, 2006, p. 149). O coronelismo encontrou no Brasil uma condição favorável de desenvolvimentoporque o sistema de patronagem já era nosso velho conhecido. Este é o sistema de apadrinhamento ou de compadrio, que faz as classes sociais economicamente menos abastadas buscarem obter favorecimento junto aos mais poderosos, independentemente de possuírem ou não direito a esses benefícios. A frase “Quem não tem padrinho morre pagão.”, até hoje utilizada por muitos de nós corriqueiramente, segundo alguns pesquisadores, tem origem na proteção da patronagem. Veja a seguinte afirmação: Enquanto o liberalismo continuava a ser uma utopia para as elites, para a grande maioria da população brasileira enredada num sistema de patronagem e clientelismo, o liberalismo não era senão retórica vazia. Por isso o liberalismo no Brasil não chegou a ter o efeito mascarador que chegou a ter em outros países. Não se tornou hegemônico. Essa função foi desempenhada pela ética da patronagem. Estabelecendo relações verticais definidas em termos de favores recíprocos entre indivíduos das classes dominantes e os das classes subalternas, a patronagem ocultou tensões entre raças e entre classes (com exceção, evidentemente, das relações entre senhores e escravos). Através da patronagem, indivíduos de talento, pertencentes às classes subalternas, eram cooptados pelas elites. Atrás de cada self‑made man havia sempre um padrinho para lembrá‑lo de que 90 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II não teria sido bem‑sucedido por sua própria conta. Essa experiência era resumida num ditado popular: “Quem não tem padrinho, morre pagão”. No sistema de clientela e patronagem os políticos não eram vistos como representantes do povo, mas como padrinhos. O Estado aparecia como distribuidor de benesses, e os direitos dos cidadãos, como concessões ou privilégios. O sistema de patronagem, baseada em lealdades pessoais e troca de favores, implicava a subserviência do eleitorado ao chefão local, a conivência das Cortes de justiça com as classes dominantes, o sistemático desrespeito pela lei e a legitimação do privilégio (VIOTTI DA COSTA, 2010, p. 169, grifo do autor). A patronagem, o compadrio, a proteção do apadrinhamento pode ser encontrada até hoje na vida política e social brasileira, tanto nos pequenos como nos grandes centros urbanos. Sempre há alguém que acredite que um político importante pode lhe conseguir um emprego, uma vaga no serviço público, uma oportunidade de trabalho na campanha eleitoral, uma vaga na creche ou na escola pública, enfim, um favor qualquer que o beneficiado pretende pagar com lealdade e fidelidade eternas, em especial nos períodos de campanha eleitoral, com o trabalho na distribuição de santinhos, divulgação de cartazes do candidato, obtenção de autorização para pintar propagandas nos muros etc. Todas essas características da vida política e social nacional favoreceram a formação do autoritarismo, uma tendência que no Brasil assume diversas dimensões. Observação É muito comum a prática de autoritarismo por parte de pessoas que possuem poder legal em nosso país. Recentemente, ganhou destaque no noticiário brasileiro o caso de um juiz de Direito, no Rio de Janeiro, que processou uma agente de trânsito que o havia parado em uma blitz da operação Lei Seca. Ele simplesmente disse que não poderia ser fiscalizado porque era juiz. Saiba mais Para obter uma visão literária do poder dos coronéis na Bahia, leia: AMADO, J. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Livraria Martins, 1958. O filme também é bem interessante, mas o livro retrata melhor os aspectos políticos da época e da região. 91 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO 6 O AUTORITARISMO E O PENSAMENTO POLÍTICO Frequentes crises políticas levaram o governo de Deodoro da Fonseca a ser substituído pelo de Floriano Peixoto, e, em 1894, a oligarquia fez prevalecer sua opinião e conseguiu eleger um presidente civil. O temor de que a sucessão de militares no poder gerasse um regime ditatorial obrigou as forças econômicas oligárquicas a se organizar para eleger um presidente que fosse a favor de seus interesses. E não foi apenas Prudente de Morais, o primeiro presidente civil da República, que atendeu aos desejos dos fazendeiros, pois os presidentes subsequentes também agiram da mesma forma. Tinha início o período que ficou conhecido como política do “café com leite”, concepção criada devido à alternância, no poder, de presidentes dos Estados de São Paulo e Minas Gerais, grandes produtores de café e de leite, respectivamente. Eram novos tempos, não há dúvida. Com a chegada de indústrias e da maior concentração em áreas urbanas, a população cresceu e a economia se diversificou. As cidades eram o novo local para a vida política, econômica e social. Ainda que as oligarquias dominassem a vida política, começavam a aparecer os movimentos populares, as primeiras manifestações políticas do povo organizado. A movimentação política popular se deve de alguma forma à chegada dos imigrantes no início do século XX, em especial os italianos, que vinham de um país cuja política era bem conturbada e estavam acostumados a manifestações e tensões políticas. A propósito, boa parte desses imigrantes vivia em situação econômica e social muito precária, praticamente fugidos da fome e da miséria para buscar trabalho no novo mundo e tentar “fazer a América”, como eles mesmos diziam. Nesse mesmo período, emigraram para o Brasil espanhóis, japoneses, alemães e sírio‑libaneses, além de portugueses, que sempre tiveram familiaridade com o Brasil, inclusive pelo idioma praticado nos dois países. Esse momento marca também a formação da organização operária, em razão do aumento de fábricas, em especial em São Paulo. Esse movimento operário foi muito importante para a política do país. Difundiu suas ideias por meio de jornais, panfletos e revistas, nas quais escreveram jornalistas, políticos e líderes operários. O movimento operário era defensor de ideias socialistas sob inspiração das ideias de Marx e Engels, em especial na célebre obra O manifesto comunista. Grupos de estudo e difusão do pensamento socialista já podiam ser encontrados a partir de 1889, e eles realizaram dois importantes congressos no Rio de Janeiro e em São Paulo. A repressão a essas ideias foi forte e contínua, inclusive, com a aprovação de leis que causaram a expulsão de vários imigrantes que eram líderes políticos das massas de trabalhadores. Apesar da repressão, o Partido Comunista se organizou no Brasil em março de 1922, com o propósito de se tornar protagonista nas lutas pela conquista dos direitos para os trabalhadores. O movimento anarquista também foi relevante nesse momento histórico, com a criação da Confederação Operária Brasileira, em 1906, que adotava uma política anarquista, que tinha por ideia fundamental a 92 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II negação do Estado e, consequentemente, a ampla liberdade da criação de associações e comunidades que se regeriam por suas próprias regras. Os anarquistas criaram escolas com prática de educação libertária e até uma comunidade, a Colônia Cecília, no Paraná, regida inteiramente por princípios afins. Contudo, as concepções que influenciaram mais fortemente o autoritarismo no Brasil vieram do movimento tenentista, que ocorreu durante a década de 1920. Em 1922, os tenentes promoveram uma rebelião no Forte de Copacabana para se manifestar contra o regime político de Arthur Bernardes, então Presidente da República, e que representava os interesses da oligarquia mineira. Os oficiais rebelados foram combatidos pela parte da tropa militar que era leal ao presidente. Então, 17 tenentes e um civil decidiram resistir e saíram pela avenida Atlântica para protestar, e houve um confronto que vitimou 16 deles. O fato ficou conhecido como Os dezoito do Forte. Em 1924, os tenentes tentaram novamente derrubarArthur Bernardes, desta vez se rebelando em São Paulo, naquela que ficou conhecida como a Revolução de 1924. Desse movimento surgiu a Coluna Prestes, organizada por Luís Carlos Prestes e João Alberto, que, em 1925, começou a percorrer o país com o objetivo de difundir as ideias do socialismo e de uma revolução do povo para ocupar o poder político. Esta chegou a ter 1.500 componentes. O movimento era contínuo; enfrentou destacamentos militares e até capangas de coronéis, percorrendo 24 mil quilômetros até chegar ao Paraguai e à Bolívia, sem nunca ter sido derrotada. Seus líderes se exilaram, mas continuarem a conspirar contra o governo. Figura 14 – A marcha da Coluna Toda essa agitação ou efervescência política e social contribuiu para que as ideias em torno de um governo forte, centralizador e autoritário começassem a florescer em vários níveis sociais. O fator determinante, no entanto, foi a divisão das oligarquias de Minas Gerais e São Paulo ocorrida no momento da sucessão do Presidente Washington Luís, que governou de 1926 a 1930. Em conformidade com os acordos políticos desses Estados, o próximo presidente deveria ser mineiro. O governador Antonio Carlos estava pronto para assumir o cargo, mas foi preterido em benefício de Júlio Prestes, outro paulista, o que provocou a cisão política entre os dois Estados. 93 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Foi o que bastou para que fosse criada a Aliança Liberal, grupo que reuniu o descontente Antonio Carlos, de Minas Gerais, com Getúlio Vargas, do Rio Grande do Sul, e João Pessoa, da Paraíba. Getúlio se candidatou a presidente junto com João Pessoa, como vice, e ambos foram derrotados. Aparentemente, aceitaram a situação, mas houve um episódio trágico, o assassinato de João Pessoa, no Recife. Após uma discussão, que tinha motivos particulares e públicos, o fato acabou por ser o estopim de uma revolta que reanimou o movimento dos tenentes. Estes se uniram aos descontentes com o resultado das urnas e determinaram o início da Revolução de 1930, que conduziu Getúlio Vargas ao poder. A Revolução de 1930 não foi feita por representantes de uma suposta nova classe social, fosse ela a classe média ou a burguesia industrial. A classe média deu lastro à Aliança Liberal, mas era por demais heterogênea e dependente das forças agrárias para que no plano político se formulasse um programa em seu nome. [...] Os vitoriosos de 1930 compunham um quadro heterogêneo, tanto do ponto de vista social quanto político. Tinham‑se unido contra um mesmo adversário, com perspectivas diversas: os velhos oligarcas, representantes típicos da classe dominante regional, desejavam apenas um maior atendimento à sua área, maior soma pessoal de poder, com um mínimo de transformações; os quadros civis mais jovens inclinavam‑se a reformular o sistema político e se associaram transitoriamente com os tenentes, formando o grupo dos chamados “tenentes civis”; o movimento tenentista – visto como uma ameaça pelas altas patentes das Forças Armadas – defendia a centralização do poder e a introdução de algumas reformas sociais; o Partido Democrático pretendia o controle do governo do Estado de São Paulo e a efetiva adoção dos princípios do Estado liberal, que aparentemente asseguraria seu predomínio. A partir de 1930 ocorreu uma troca da elite do poder sem grandes rupturas. Caíram os quadros oligárquicos tradicionais; subiram os militares, os técnicos diplomados, os jovens políticos e, um pouco mais tarde, os industriais. Desde cedo, o novo governo tratou de centralizar em suas mãos tanto as decisões econômico‑financeiras quanto as de natureza política. Desse modo, passou a arbitrar os diversos interesses em jogo (FAUSTO, 2006, p. 181). Getúlio Vargas enfrentaria no início de seu governo a revolta paulista de 1932, conhecida como Revolução Constitucionalista, da qual saíram como mártires quatro jovens paulistas: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo. A sigla de seus nomes ficou muito conhecida: MMDC. Os paulistas pegaram em armas contra o governo de Getúlio Vargas por entender que ele havia adotado o autoritarismo proposto pelo movimento tenentista, na medida em que evitava convocar uma Assembleia Nacional Constituinte. 94 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II Figura 15 – Cartaz de Convocação para o Movimento Constitucionalista de 1932 Como resultado desse conflito, foi convocada a Constituinte que elaborou a Constituição de 1934, que, no entanto, teve vida curta. Getúlio Vargas assumiu o poder como representante de grupos que desejavam participar das decisões políticas e econômicas, mas sem se constituírem propriamente como um partido organizado ou como um movimento. Eram descontentes da antiga política oligárquica, acrescidos de novos atores sociais e econômicos, mas não tinham um projeto de governo planejado ou ao menos esboçado. Isso permitiu a Getúlio Vargas adotar medidas governamentais centralizadoras, incentivar a participação militar nos assuntos do Estado, ao mesmo tempo que tratou de desenvolver a indústria e legislar na proteção dos trabalhadores. Leia a seguinte definição sobre autoritarismo: Na tipologia dos sistemas políticos, são chamados de autoritários os regimes que privilegiam a autoridade governamental e diminuem de forma mais ou menos radical o consenso, concentrando o poder político nas mãos de uma só pessoa ou de um só órgão e colocando em posição secundárias as instituições representativas. Nesse contexto, a oposição e a autonomia dos subsistemas políticos são reduzidas à expressão mínima e as instituições destinadas a representar a autoridade de baixo para cima ou são aniquiladas ou substancialmente esvaziadas (STOPPINO apud BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 94). Alberto Torres, Azevedo Amaral, Oliveira Viana e Francisco Campos são considerados, na história do pensamento político brasileiro, como os melhores representantes do pensamento autoritário que dominou a prática política no Brasil no período de Getúlio Vargas, de 1930 a 1945, com maior destaque 95 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO durante o chamado Estado Novo, que teve início em 1937; e durante o período de 1964 a 1985, período conhecido como Ditadura ou Golpe Militar de 1964. Alberto Torres já foi apresentado neste trabalho, e Oliveira Viana será estudado no próximo tópico. Quais são as linhas mestras do pensamento autoritário? A força do Estado e o controle da sociedade civil, que é impedida de se organizar ou ao menos tem essa possibilidade bem restrita, embora por vezes possa votar em candidatos a cargos do Legislativo e do Executivo, porém sem ampla liberdade. O autoritarismo desmobilizador destaca o suposto amorfismo da sociedade brasileira, além da irracionalidade do comportamento coletivo dos grupos dominados. Para evitar a desagregação da ordem, decorrência lógica da ausência de direção no âmbito da sociedade civil, o Estado surge como instituição redentora. Um Estado forte, capaz de reintegrar, pelo voluntarismo esclarecido de suas elites, os átomos dispersos do organismo nacional. [...] Na análise de Debrun é acentuada uma característica essencial do pensamento político autoritário no Brasil, pelo menos na sua versão estatista e tecnocrática: a desconfiança em relação a qualquer forma de mobilização autônoma da sociedade civil, mormente dos setores populares, considerados depositários do individualismo exacerbado e da irracionalidade. Deste modo, o autor parece tocar o núcleo deste sistema ideológico. O que em última análise explicaria o apelo mais sistemático à desmobilização – pois é disto que se trata – é a suposta debilidade do povo. A coerção, embora exercida contra o povo, far‑se‑ia, conforme os ideólogos autoritários, em seu nome e para o seu próprio bem (SILVA, 2004, p.91). No Brasil, o autoritarismo não precisou de muito para se instalar. A população que não era proprietária de terras nem de comércio era, verdadeiramente, carente de maior experiência de mobilização política e social, principalmente porque estava privada de educação de qualidade, em especial no ensino básico. Nessa realidade, o autoritarismo teve campo fértil para se proliferar. A situação era herança do grande período de tempo em que a escravidão vigorou no país, sem que tivesse se constituído um contingente de trabalhadores assalariados para se organizarem a partir de necessidades comuns, ou seja, para discutir e reivindicar seus direitos e as melhores políticas governamentais para garantir seus interesses. Há, de certa forma, uma recorrência brasileira a soluções autoritárias, pois, do contrário, não haveria explicação para momentos tão próximos em que ela foi considerada a solução mais eficaz. Assim, temos a República, instaurada e comandada por militares; o governo de Getúlio Vargas, inspirado por ideologia autoritária; o Estado Novo, de 1937 a 1945, profundamente ditatorial; e, 19 anos depois, em 1964, um outro golpe militar e mais 19 anos de ditadura comandada por militares e pela elite econômica e social. 96 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II Atentemos à seguinte reflexão: Sem o mesmo colorido, mas com maior eficácia, ganhou força, no Brasil dos anos de 1930, a corrente autoritária. O padrão autoritário era e é uma marca da cultura política do país. A dificuldade de organização das classes, da formação de associações representativas e de partidos fez das soluções autoritárias uma atração constante. Isso ocorria não só entre os conservadores convictos como entre os liberais e a esquerda. Esta tendia a associar liberalismo com o domínio das oligarquias; a partir daí, não dava muito valor à chamada democracia formal. Os liberais contribuíam para justificar essa visão. Temiam as reformas sociais e aceitavam, ou até mesmo incentivavam, a interrupção do jogo democrático toda vez que ele parecesse ameaçado pelas forças subversivas. Devemos distinguir, porém, entre o padrão autoritário geral e a corrente autoritária, em sentido ideológico mais preciso. A corrente autoritária assumiu com toda consequência a perspectiva do que se denomina de modernização conservadora, ou seja, o ponto de vista de que, em um país desarticulado como o Brasil, cabia ao Estado organizar a nação para promover dentro da ordem o desenvolvimento econômico e o bem‑estar geral. O Estado autoritário poria fim aos conflitos sociais, às lutas partidárias, aos excessos da liberdade de expressão, que só serviam para enfraquecer o país (FAUSTO, 2013, p. 305). Curiosamente, ainda hoje, quando as reclamações da população ganham força e, como em 2013, o povo vai às ruas reclamar, surgem vozes defendendo a volta da ditadura militar para reorganizar a sociedade, garantindo ordem e desenvolvimento (ou seria progresso?). A herança autoritária brasileira é enorme e só será devidamente compreendida e superada quando a democracia participativa for uma realidade mais consistente no país. Os elementos temáticos da ideologia autoritária [....] confluem para formar uma concepção de Estado considerada a única compatível com a realidade social brasileira. Para que a crise fosse superada, para que a nação pudesse ser organizada e para que o povo (incapaz politicamente) fosse educado, seria necessária a instituição de uma forma de Estado que atribuísse ampla liberdade de movimentos aos governantes. Quando mais desimpedida a ação das elites estatais, mais rapidamente entraríamos na condição de nação organizada. A persecução desta ampla liberdade de movimentos para os governantes conduz a um conjunto de reformas institucionais cujo resultado agregado é a hipertrofia do Poder Executivo central. O Executivo é considerado o poder estatal responsável pela ação do Estado sobre a sociedade. É por meio do Executivo que o Estado age para criar uma sociedade de características homogêneas, disciplinada e de povo obediente, capaz de dar suporte a uma nação organizada. Os ideólogos 97 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO autoritários apresentam o Executivo estatal como um poder condutor de reformas (SILVA, 2004, p. 185). O autoritarismo vivido pelo Brasil no período de Getúlio Vargas e, mais tarde, na Ditadura Militar de 1964 marcou profundamente a nação brasileira, que até hoje tem dificuldade para se organizar amplamente, de forma plural, para contemplar todos os segmentos sociais e suas necessidades, principalmente para conseguir mudanças na organização social, política e econômica que efetivem seus direitos. Contudo, o governo de Getúlio Vargas não seria conhecido apenas pelo autoritarismo. O populismo também seria utilizado para garantia da governabilidade do grupo que estava no poder. Vamos entender melhor como isso ocorreu? Saiba mais Para obter mais dados sobre o período da Ditadura Militar e se informar sobre exposições, o site do Museu da Resistência é excelente. Acesse: <http:// www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/>. Acesso em: 30 jan. 2015. 7 O POPULISMO NA POLÍTICA BRASILEIRA Em 1937, um novo episódio viria tumultuar a vida política brasileira: o golpe de Getúlio Vargas e a instalação do Estado Novo. Dois grupos políticos haviam se organizado no Brasil, e ambos causavam preocupação para o governo, porque se opunham de forma radical e poderiam incitar distúrbios e desavenças na população. O primeiro era a Ação Integralista Brasileira, criada em 1932, liderada por Plínio Salgado; o segundo era a Aliança Nacional Libertadora (ANL), que reunia socialistas, comunistas e democratas liderados por Luís Carlos Prestes. Este último grupo desejava afastar Getúlio Vargas do poder. Então, o governante aplicou um golpe na política, proibindo a realização das eleições para presidente. Permaneceu à frente do Poder Executivo nesse período, conhecido como Estado Novo, e reprimiu violentamente os grupos políticos organizados, determinando a prisão de muitos participantes, inclusive de Luís Carlos Prestes e de importantes membros da ANL. Contribuiu para isso uma tentativa de golpe do Partido Comunista, em novembro de 1935, que não resultou em nada, mas que ofereceu a Getúlio Vargas os motivos necessários para a transformação do país em uma ditadura. E o governo que se forma a partir desse momento é uma ditadura. Prisões arbitrárias são realizadas, perseguições políticas são constantes, um órgão especial para a repressão e tortura de inimigos políticos 98 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II é criado e, como se tudo isso não bastasse, uma nova Constituição Federal é outorgada, feita por um único homem, Francisco Campos, um pensador de linha ideológica autoritária, como mencionamos anteriormente. A Constituição Federal de 1937, em suas Disposições Finais e Transitórias, declarou o país em estado de emergência e, por essa razão, todas as liberdades civis garantidas pela própria Constituição foram suspensas. Ao mesmo tempo que podia aposentar funcionários civis e militares no interesse do serviço público ou por conveniência do regime, o presidente tinha poderes constitucionais para governar por meio de Decretos‑lei em todas as matérias de responsabilidade do Governo Federal. O estado de emergência não foi revogado durante todo o período do Estado Novo. Os governadores dos estados federativos foram substituídos por interventores, e não foram realizadas eleições para o Legislativo. Em resumo, o período do Estado Novo foi marcado pela centralização de poder político, econômico e social nas mãos do presidente. Para exercer todo esse poder sem grandes transtornos ou revoltas, Getúlio Vargas tratou de controlar fortemente a opinião pública. Para tal, censurou os meiosde comunicação e tratou de implantar um órgão de propaganda oficial do governo, com o objetivo de fornecer à população apenas e tão somente uma visão positiva do governo e de suas realizações. Outra medida para assegurar o exercício do poder centralizador foi adotar uma política trabalhista supostamente em benefício das classes trabalhadoras. Nesse aspecto reside um dos principais meios da prática do populismo. Veja a definição: Podemos definir como populistas as fórmulas políticas cuja fonte principal de inspiração e termo constante de referência é o povo, considerado como agregado social homogêneo e como exclusivo depositário de valores positivos, específicos e permanentes. Alguém disse que o Populismo não é uma doutrina precisa, mas uma “síndrome”. O Populismo não conta efetivamente com uma elaboração teórica orgânica e sistemática. Muitas vezes ele está mais latente do que teoricamente explícito. [...] O Populismo exclui a luta de classes: “é fundamentalmente conciliador e espera transformar o establishment; é raramente revolucionário” (Wills in Ionescu‑Gellner, 1971). Considerado como uma massa homogênea, o povo não se apresenta no Populismo como classe ou agregação de classes. [...] O Populismo tende a permear ideologicamente os períodos de transição, particularmente na fase aguda dos processos de industrialização. É ponto de coesão e de sutura e, ao mesmo tempo, de referência e solidificação, apresentando grande capacidade de mobilização e oferecendo‑se como fórmula homogênea a cada uma 99 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO das realidades nacionais em face das ideologias “importadas”, como uma fórmula autárquica (INCISA apud BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 2004, p. 980, grifo do autor). A definição de Ludovico Incisa e a descrição dos momentos históricos em que o populismo tem mais tendência de se concretizar são bastante adequadas ao Brasil de 1937, embora se possa afirmar que traços populistas podem ser encontrados em outros momentos de relevância. De todo modo, Getúlio Vargas tratou de colocar em prática os principais ideais do populismo, dentre eles o de ampliar os direitos da classe trabalhadora e apresentar‑se como o “doador de direitos”. Não permitiu que eles fossem interpretados como conquista dos trabalhadores em razão da importância social e econômica que possuíam. Leia a seguinte informação sobre a época: [...] representando o Estado pós‑1930, Vargas aparecia aos trabalhadores com duas faces diferentes: uma era a da repressão a seus movimentos e organismos mais rebeldes, mais independentes; outra, a do “pai dos pobres”, que “doou” aos trabalhadores os direitos trabalhistas e o sindicato. Com base nessa segunda imagem, principalmente, é que conseguiria angariar prestígio entre os trabalhadores e manter sobre eles um enorme domínio (VITA, 1998, p. 190‑1). A política trabalhista de Getúlio Vargas foi a principal responsável pela imagem de protetor dos trabalhadores. Criou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que foi inspirada na Carta Del Lavoro, da Itália fascista; criou o salário mínimo para os trabalhadores urbanos com valores variáveis em cada região do país; estabeleceu a Justiça do Trabalho; e adotou a unidade sindical, ou seja, cada categoria poderia ter um único sindicato. O governante também tratou de atrelar os sindicatos cada vez mais ao Estado. Em 1940, foi criado o imposto sindical como instrumento de financiamento do sindicato e representação máxima do vínculo deste com o Estado. Cada trabalhador, associado ou não ao sindicato, deveria doar um dia de trabalho para custear a associação. Com isso, conseguiu cooptar inúmeros líderes sindicais, que se tornaram dóceis instrumentos de manobra nas mãos do governo e sempre prontos a atender suas determinações, inclusive para denunciar os trabalhadores que fizessem parte de grupos políticos contrários ao poder vigente. Todas as categorias de trabalhadores conheceram os líderes pelegos, que, embora representassem seus colegas de profissão, estavam sempre prontos a atender aos interesses do governo, mesmo que contrários aos de suas respectivas categorias, pelo simples fato de que assim se mantinham no poder e podiam gozar do benefício de administrar sindicatos, pois estes recebiam muito dinheiro. Vejamos a definição de pelego: “Pelego” é uma cobertura de pano ou couro colocada sob a sela de um animal de montaria para amortecer o choque produzido pelo movimento do animal no corpo do cavaleiro. A ideia de amortecedor se mostrou bastante 100 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II adequada. “Pelego” passou a ser o dirigente sindical que na direção do sindicato atua mais no interesse próprio e do Estado do que no interesse dos trabalhadores, agindo como amortecedor dos atritos. Sua existência foi facilitada na medida em que não precisava atrair ao sindicato uma grande massa de trabalhadores. O imposto garantia a sobrevivência da organização, sendo o número de sindicalizados, sob esse aspecto, um fato de importância secundária (FAUSTO, 2006, p. 319). Em outra obra, o autor conclui sua reflexão abordando de forma mais objetiva a construção da imagem de “pai dos pobres” e protetor dos trabalhadores que Getúlio Vargas efetivou ao longo do período do Estado Novo: A construção da imagem de Getúlio como protetor dos trabalhadores ganhou forma pelo recurso a várias cerimônias e ao emprego intensivo de meios de comunicação. Dentre as cerimônias, destacam‑se as comemorações de 1° de maio, realizadas a partir de 1939 no estádio do Vasco da Gama, em São Januário – o maior estádio do Rio de Janeiro na época. Somente em 1944 as comemorações se deslocaram para o Pacaembu, em São Paulo. Nesses encontros, que reuniam grande massa de operários e o povo em geral, Getúlio iniciava seu discurso com o famoso “trabalhadores do Brasil” e anunciava alguma medida muito aguardada de alcance social. [...] O guia e pai doava benefícios a sua gente e dela tinha o direito de esperar fidelidade e apoio. Os benefícios não eram fantasia. Mas sua grande rentabilidade política se deve a fatores sociais e à eficácia da construção simbólica da figura de Getúlio Vargas, que ganhou forma e conteúdo no curso do Estado Novo (FAUSTO, 2013, p. 320). Com os meios de comunicação severamente censurados, com a perseguição violenta a todos os que eram contrários ao governo, benefícios aos trabalhadores e manutenção de organizações sindicais fortes e fiéis e, finalmente, com o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural vinculado ao Ministério da Justiça, que se tornou um verdadeiro ministério da propaganda positiva das ações do governo, Getúlio Vargas conseguiu ter ao seu lado a massa trabalhadora e a opinião pública em geral. Ao mesmo tempo que prendia, torturava e matava inimigos do governo, o presidente trabalhava para cooptar estudiosos, intelectuais, professores, lideranças de todos os matizes – católicos, integralistas, entre outros –, oferecendo vantagens, cargos, recursos para publicações de interesse do governo e várias outras formas para angariar apoio dos formadores de opinião. 101 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Figura 16 – Getúlio Vargas Em análise sobre o Estado Novo e o papel fundamental de Getúlio Vargas na construção do populismo, o pesquisador afirma: Foi no curso do Estado Novo que se consolidou o chamado regime populista ou, para alguns, o estilo populista do governo Vargas. O populismo de Vargas e o governo implantado pelo general Perón na Argentina foram os exemplos mais representativos desse fenômeno sociopolítico na América do Sul, correspondendo a uma época de intensa industrialização e de atração populacional, do campo e de cidades menores, para os grandes centros urbanos. O estilo varguista assentou‑se num tripé formadopelo Estado, pela burguesia nacional e pela classe operária organizada. Nesse tripé, o Estado era o polo mais relevante pelo seu papel de partícipe e impulsionador do processo de industrialização, assim como de conceder benefícios aos trabalhadores. Ressalvemos, porém, que o apoio ao regime contou ainda com outros setores sociais, em particular a nova classe média emergente, favorecida pelo desenvolvimento econômico. Populismo, personalização e carisma estão ligados. No caso do Brasil, a figura do chefe da nação cristalizou‑se como a do “pai dos pobres”, “defensor dos humildes”, “estadista à frente de um Brasil autenticamente brasileiro”. Por suas características pessoais, Vargas não era um personagem bem‑talhado para ser a encarnação desse estilo de governo. Pequeno de altura, ostentava traços de elite [...] e seus discursos eram proferidos em tom solene e monótono. Mas a grande massa viu nele uma figura paternal, cuja estatura e certos traços, em particular o “sorriso bondoso”, destacavam‑se positivamente. A máquina da propaganda encarregou‑se de acentuar esses e outros aspectos, a ponto de Vargas ser comumente chamado de “o nosso querido baixinho” e o “sorriso do velhinho” tornar‑se tema de um samba, na disputa da presidência da República, já em 1950 (FAUSTO apud SCHWARCZ; GOMES, 2013, p. 103). 102 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II Getúlio Vargas foi um grande exemplo de prática do populismo. Mas não foi o único. Em muitos cantos do país, à frente do Poder Executivo local, ou estadual, encontramos políticos que atuam de forma semelhante em pleno exercício dos princípios populistas, com maior ou menor sucesso, mas com a cartilha sempre ensinando as lições de propaganda intensiva de suas ações, figuras associadas com proteção e bondade, mas com total ausência de pluralidade no debate político. O Estado Novo terminou em 1945 na esteira dos acontecimentos políticos e econômicos decorrentes da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, a herança populista faria Vargas presidente novamente em 1950, quando voltou a ocupar o posto central da cena política. Aposentou‑se da vida política apenas com o suicídio, em 1954. Lembrete Após o suicídio de Getúlio Vargas, uma carta foi entregue à imprensa momentos após a sua morte. Ela destaca um claro exemplo de populismo, pois o presidente destaca que sofria um martírio pelo povo brasileiro, que lutava contra o vilipêndio e o escárnio das “aves de rapina”. Ressalta que seria sempre o protetor nacional e que entraria para a história. Saiba mais Para aprofundar os conhecimentos sobre os fatos históricos abordados, leia: AMADO, J. O cavaleiro da esperança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ___. Os subterrâneos da liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Há, ainda, um excelente filme: GETÚLIO. Direção: João Jardim. Brasil: Copacabana Filmes, 2014. 100 min. O escritor Jorge Amado foi militante do Partido Comunista. A primeira obra citada traz a biografia de Luís Carlos Prestes. A outra narra os acontecimentos de 1937, quando foi criado o Estado Novo. O filme Getúlio, com direção de João Jardim, lançado em 2014, conta o fim da trajetória política de Getúlio Vargas, mais especificamente os acontecimentos que o levaram ao suicídio. Vale a pena conhecer essas importantes contribuições culturais. 103 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO 8 TEÓRICOS DO PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Alguns estudiosos foram fundamentais para a formação do pensamento político brasileiro em vários momentos da história do país. Vamos estudá‑los agora destacando os principais aspectos de suas ideologias. 8.1 Joaquim Nabuco Figura 17 – Joaquim Nabuco Joaquim Aurélio Nabuco de Araújo nasceu em Recife, em 19 de agosto de 1849, e faleceu em 17 de janeiro de 1910, em Washington, nos Estados Unidos da América do Norte. Pode ser definido como político, historiador, jurista, jornalista e diplomata. Era filho de político, estudou Direito no Recife e entrou para o serviço diplomático, quando atuou em Londres e depois em Washington, no período de 1876 a 1879. Voltou ao Brasil e se tornou parlamentar, ocasião em que se engajou no movimento abolicionista. Criou, com o engenheiro André Rebouças, a Sociedade Brasileira contra a Escravidão e utilizou sua facilidade de comunicação em comícios para difundir as ideias de libertação dos escravos. Escreveu a obra O abolicionismo, em 1883. Nesse livro, o autor defende que: [...] a escravidão seria uma herança colonial que adquiriu caráter de “sistema social”, estruturadora de todas as instituições, costumes e práticas. Como empresa econômica principal, entranhou‑se na ocupação do território e, em par com a monocultura, esgotou a terra e a concentrou, gerando feudos isolados. Tolheu as atividades urbanas, impedindo o desenvolvimento de um operariado assalariado e de classes médias, e condenou os homens livres pobres à dependência dos grandes proprietários. A escravidão tornou‑se o pilar de todas as profissões e negócios, gerando uma rede de relações de clientes que invadiu o Estado e viciou toda a sociedade no seu usufruto. No sistema político, impediu a formação de um 104 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II corpo de cidadãos e de uma opinião pública autônoma, já que o direito de voto se assentava na propriedade de terras e de escravos. A sequela mais duradora seria a cultural. A escravidão estruturou um modo de vida, imiscuiu‑se na composição do povo brasileiro, adentrou a família, a religião e o trabalho, semeando em tudo os germes da decadência (ALONSO apud BOTELHO; SCHWARCZ, 2009, p. 62‑4). Nabuco tinha razão, infelizmente. As marcas do longo período de escravidão vivido no Brasil estão presentes e ainda provocam intenso debate. As cotas raciais em universidades ou no serviço público, como políticas públicas de Estado, ainda causam muita polêmica; há opiniões contrárias e favoráveis e, por vezes, até um pouco de preconceito expresso em meio a pontos de vista distintos. O preconceito racial no Brasil, a propósito, sempre negado e disfarçado em nome de uma “cordialidade” que seria a marca do brasileiro típico, pode ser sentido por milhões de negros ou descendentes diariamente, em especial na repressão policial, que, de forma subliminar, considera negros pobres sempre como suspeitos da prática de atos ilícitos. A discriminação perpassa por toda a vida nacional, embora ainda seja muito difícil encontrar quem assuma, objetivamente, que agiu ou age impulsionado por ela. A sociedade brasileira nega a existência da diferença racial, mas um simples olhar já enxerga que a quantidade de negros ou descendentes nas salas de aula das melhores universidades públicas do país, nos cargos de direção das grandes empresas, na condição de cientistas e pesquisadores em grandes institutos científicos em todo o país é muito pequeno ou apenas inexistente. Isso demonstra claramente que os negros não tiveram, ao longo da história brasileira, as mesmas oportunidades, e que a abolição da escravatura não foi suficiente para que tivessem as mesmas chances de ascensão social e econômica. A história da escravidão africana na América é um abismo de degradação e miséria que não se pode sondar, e, infelizmente, essa é a história do crescimento do Brasil. No ponto a que chegamos, olhando para o passado, nós, brasileiros, descendentes ou da raça que escreveu essa triste página da humanidade, ou da raça com cujo sangue ela foi escrita, ou da fusão de uma e outra, não devemos perder tempo a envergonhar‑se desse longo passado que não podemos lavar, dessa hereditariedade que não há como repetir. Devemos convergir todos os nossos esforços para o fim de eliminar a escravidão de nosso organismo, de forma que essa fatalidade nacional diminua em nós e se transmita às gerações futuras, já maisapagada, rudimentar e atrofiada. [...] Pode‑se descrever essa influência, dizendo que a escravidão cercou todo o espaço ocupado do Amazonas ao Rio Grande do Sul de um ambiente fatal a todas as qualidades viris e nobres, humanitárias e progressivas, da nossa espécie; criou um ideal de pátria grosseiro, mercenário, egoísta e retrógrado, 105 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO e nesse molde fundiu durante séculos as três raças heterogêneas que hoje constituem a nacionalidade brasileira. Em outras palavras ela tornou, na frase do direito medievo, em nosso território o próprio ar – servil, como o ar das aldeias da Alemanha que nenhum homem livre podia habitar sem perder a liberdade. Die Luft leibeigen war é uma frase que, aplicada ao Brasil todo, melhor que outra qualquer, sintetiza a obra nacional da escravidão: ela criou uma atmosfera que nos envolve e abafa todos, e isso no mais rico e admirável dos domínios da terra (NABUCO, 2000, p. 101). A análise de Nabuco é muito atual. Diversos pesquisadores basearam‑se em sua obra. Leia o trecho a seguir: Nabuco foi um monarquista convicto e declarado, que queria construir a democracia brasileira através de uma grandiosa refundação de nossa política com base na libertação dos escravos negros, que eram os verdadeiros construtores da economia e da própria alma brasileira. A refundação começaria, aliás, na própria campanha abolicionista, que inaugurou a mobilização de rua com fins políticos no Brasil. Foi um gigante intelectual, que fez a luta política com extraordinário vigor e deixou importante obra escrita, abrindo espaço para a sociologia brasileira que viria a ser desenvolvida no século XX. Sua obra principal como formulador do ideário antiescravista é O Abolicionismo, livro escrito em 1882 e publicado no ano seguinte, quando começava a fase final e decisiva da campanha abolicionista. Um livro, que trata a questão como fato social global, cuja leitura ainda hoje tem grande importância, no qual são analisadas em profundidade as consequências da escravidão sobre a população, sobre o território, sobre a economia (agricultura e indústria), sobre a sociedade, sobre o conceito do trabalho, sobre a defesa, sobre a política e sobre a própria nacionalidade do Brasil. Um livro que é realmente uma referência básica, teórica e prática, sobre os problemas criados pelo regime escravocrata e sentidos até hoje (BRAGA, 2009, p. 84‑5). Nabuco é considerado um clássico entre os pensadores do pensamento político brasileiro. Para ele, a abolição deveria ser o marco de uma verdadeira “refundação” do país, para que o Brasil fosse reconstruído tendo a liberdade e a igualdade como fundamentos. Ele queria mais que a abolição da escravatura, pretendia eliminar as consequências desse período histórico de modo que elas não maculassem o novo país que surgiria. Para esclarecer o pensamento do autor, veja o seguinte excerto: A anistia, o esquecimento da escravidão; a reconciliação de todas as classes; a moralização de todos os interesses; a garantia da liberdade dos contratos; a ordem nascendo da cooperação voluntária de todos os membros da sociedade brasileira: essa é a base necessária para reformas 106 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II que alteiam o terreno político em que esta existiu até hoje. O povo brasileiro necessita de outro ambiente, de desenvolver‑se e crescer em meio inteiramente diverso (NABUCO, 2000, p. 171). O eminente revolucionário antecipou muitos problemas que enfrentamos hoje e nos convidou e ainda nos convida à reflexão sobre o que ele chamava de “a obra da escravidão”. Para isso, ou seja, para essa grande mudança cultural, ele defendia o caminho da educação como aspecto fundamental para a refundação de um país de homens e mulheres livres e iguais. A obra de Joaquim Nabuco é atual e merece ser revisitada sistematicamente por estudiosos de Sociologia, Direito, História e Política. 8.2 Oliveira Viana Figura 18 – Oliveira Viana Francisco José Oliveira Viana nasceu na cidade de Saquarema, Rio de Janeiro, antiga Província Fluminense, em 20 de julho de 1883. Faleceu em março de 1951. Era filho de fazendeiro e perdeu o pai com apenas dois anos de idade. Cursou Direito no Rio de Janeiro e se formou em 1906. Além de advogado, foi professor de História da Faculdade de Direito de Niterói. Oliveira Viana foi membro da Academia Brasileira de Letras e ocupou posição destacada no governo de Getúlio Vargas, período em que contribuiu para a elaboração da nova legislação sindical e trabalhista adotada à época. Escreveu várias obras sobre esse assunto, em especial, Problemas de Direito Corporativo (1938), Problemas de Direito Sindical (1943), e Direito do Trabalho e Democracia Social (1951). A obra dessa grande figura é bastante estudada no Brasil. Muitos trabalhos acadêmicos discutem suas ideias e vale a pena conhecê‑las com maior profundidade. Entretanto, a história nem sempre foi assim, porque suas ideias, de Estado autoritário e seu engajamento com o governo de Getúlio Vargas, por quem era chamado com frequência para trocar ideias sobre política e economia, fizeram que Oliveira Viana fosse esquecido por longo tempo, pois era considerado reacionário e racista por parte da intelectualidade brasileira. Hoje sabemos que essas opiniões eram apenas uma maneira preconceituosa de enxergar seu trabalho, e os estudos de sua obra e de seu pensamento colocam Oliveira Viana como um clássico do pensamento político brasileiro. 107 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Os estudiosos apontam que o pensamento de Oliveira Viana teve influência da obra do engenheiro católico francês que estudava Sociologia, Pierre‑Guillaume‑Fréderic Le Play. Na Psicologia Social, chegou até Gustave Le Bon, também alcançando a Antropologia Física, com Georges Vacher de Lapouge. Entre os brasileiros, Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Alberto Torres foram as maiores influências intelectuais de Oliveira Viana. O pensamento de Oliveira Viana é qualificado como nacionalista autoritário. É inspirado pelo positivismo e por uma ciência que se construía a partir dos estudos da influência do clima e do meio natural na formação social. Leia a interessante análise sobre o autor: Oliveira Viana foi, certo, um conservador, mas também um inovador. Os temas centrais de sua obra, nas palavras de João Cruz Costa, foram “o sertão, as raças e a centralização política”. Se entendermos que a referência às raças era, na época, uma forma indireta, no mais das vezes negativa, de referência ao povo, foram também esses os temas centrais do pensamento do seu tempo. É sabido que sua visão do Brasil incluía um declarado menosprezo pelo mestiço e pelo negro, ao lado de um entusiasmo por um aristocratismo arianista que identificava nos primeiros colonizadores portugueses. Não obstante esses compromissos conservadores, Oliveira Viana criou os fundamentos da Sociologia brasileira, dando continuidade a intuições anteriores de Joaquim Nabuco e Euclides da Cunha. Ele estabeleceu uma distinção de regiões na análise da sociedade brasileira que deixou para trás as velhas abordagens do país como um todo uniforme. Definiu assim uma perspectiva intelectual que, de algum modo, se “incorporou ao cânone interpretativo de nossa realidade”. Estudando no seu primeiro livro as populações rurais do Sudeste (Rio, São Paulo e Minas), ele se propunha pesquisar nas próximas obras as do Sul e do Norte. [...] Apesar de racista, conservador e autoritário, ou talvez por isso mesmo, o fato é que Oliveira Viana inaugurou a agenda dos debates intelectuais dos anos 1920 e 1930. Nesse sentido, não creio que haja exagero na afirmação de que sua influência chegou aos anos de 1950, por meio de alguns intelectuais filiados ao Instituto Superior de EstudosBrasileiros – Iseb (WEFFORT, 2001, p. 273). A objetividade de Weffort na caracterização das ideias de Oliveira Viana não pode servir de justificativa para o preconceito contra esse pensador. Ao contrário, é fundamental compreender a ideia daqueles que nos antecederam na análise da sociedade brasileira, de sua formação e de suas opções políticas, sociais e econômicas, para que possamos discutir a sociedade contemporânea com o necessário conhecimento dos suportes teóricos que alicerçaram nossa trajetória. 108 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II É preciso ter presente o período histórico em que viveu Oliveira Viana, suas raízes rurais (filho de fazendeiro), a grande importância da oligarquia proprietária de terra durante todo o período da Primeira República e, principalmente, os transtornos políticos que o país havia enfrentado após a Proclamação da República e a sucessão de presidentes militares e civis, estes vinculados diretamente às elites econômicas de São Paulo e de Minas Gerais. Destaca‑se a importante afirmação: O período em que Oliveira Viana viveu e pensou compreende condições históricas bastante variadas, do ponto de vista econômico, político e social. Iniciando sua produção intelectual durante a Primeira República, ele a desenvolve ainda mais depois de 1930 e do Estado Novo, atingindo os primeiros anos de redemocratização do país. Ao longo de fases tão diversas, Oliveira Viana constrói sua obra, mantendo mais ou menos a mesma orientação. [...] Dedicando‑se inteiramente a atividades administrativas e ocupando o mesmo cargo, de assessoria no Ministério do Trabalho, de 1932 a 1940, além de outros postos de importância, Oliveira Viana sempre acreditou na eficiência e no caráter apolítico da administração. Torna‑se, portanto, um ideólogo da ação e da expansão administrativas, reservando para as corporações o papel fundamental: vincular a nação aos seus servidores mais dedicados. Foi um dos mais expressivos defensores do fortalecimento do Poder Executivo e também da administração, no momento em que no Brasil eles evoluíam rapidamente e cresciam em importância e poder, atuando em todos os setores da sociedade em crise. O Estado Corporativo de Oliveira Viana, por conseguinte, busca a modernização da economia capitalista brasileira e a conciliação entre capital e trabalho. Essa concepção de Estado, sem projetar rigorosamente o Estado Novo, é uma das mais elaboradas tentativas de legitimá‑lo: significa a articulação da nação, de cima para baixo, por meio do funcionamento das corporações (VIEIRA, 1981, p.100). O autoritarismo para Oliveira Viana era uma estratégia temporal destinada a desaparecer quando o povo estivesse educado e organizado para viver a verdadeira democracia. Infelizmente, esse autoritarismo funcional ou instrumental se perpetuou no pensamento político brasileiro e sustentou ideologicamente períodos como o da Ditadura Militar (1964 a 1985), além do próprio Estado Novo. Esse autoritarismo está arraigado na concepção política nacional e nos momentos de crise ou de insatisfação popular. Muitos brasileiros ainda têm a ideia de propor a volta da ditadura para que a situação no país se reorganize. Se essa herança política e cultural não pode ser creditada somente a Oliveira Viana, haja vista outros pensadores políticos que defenderam o autoritarismo ao longo da história, também não há dúvida de que ele é um legítimo representante dessa vertente do pensamento político nacional. 109 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Na atualidade, os estudiosos de nosso cenário creditam a Oliveira Viana alguns aspectos relevantes e consideram seu autoritarismo e racismo como menos importantes quando comparados com sua contribuição. Esses aspectos pertinentes estão relacionados com a análise da questão agrária, mais especificamente do latifúndio, e com a visão real do Brasil. Leiamos os prudentes comentários sobre o autor: [...] a avaliação de Oliveira Viana sobre o latifúndio se modifica de acordo com o momento histórico que analisa. Se antes, na colônia, o identifica como principal instrumento para a adaptação do colono português ao ambiente americano, depois da independência, devido à sua maior característica, a autossuficiência, passa a vê‑lo como impedimento mais sério para a tarefa de unificação nacional que então se imporia. Antes da independência, praticamente não existiria sentimento nacional. Portanto, “os que fundam, em 22, o Império, criam menos uma realidade que uma expressão nominal”. Apenas a fidelidade ao imperador teria evitado a secessão do Brasil. Por exemplo, nas Cortes portuguesas, convocadas depois da revolução liberal de 1820, os deputados brasileiros, como admitiu o futuro regente Diogo Feijó, comportavam‑se mais como representantes de suas províncias do que do país. A própria Independência só encontrou apoio mais decidido no centro‑sul, no Rio de Janeiro e em São Paulo (RICÚPERO, 2009, p. 65). Oliveira Viana foi precursor dos estudos que passaram a analisar o latifúndio a partir do aspecto social, e não apenas político e econômico, ou seja, a repercussão dessa realidade das grandes áreas de terra como um microcosmo de vida independente em relação à nação. Para ele, esse era um traço singular do Brasil que nos afastava de qualquer outra realidade do mundo, ou seja, de ingleses, norte‑americanos e franceses, mas também de outros povos da própria América, como os argentinos, que jamais tiveram a organização latifundiária como um pressuposto de sua vida política e social. O latifúndio como elemento histórico importante para a compreensão social brasileira foi uma contribuição de Oliveira Viana. Ele acreditava que era preciso assegurar a unidade nacional com um Estado forte, capaz de organizar a sociedade e ensiná‑la a se organizar para viver com solidariedade. Nesse aspecto, reforçar o poder central do Estado para manter a ordem e assegurar as liberdades individuais era essencial. Em suas obras, Oliveira Viana criticava a elite brasileira por viver distante do Brasil real e dizia que ela era estimulada por sonhos liberais que nunca se concretizaram e sem uma noção objetiva do país. Com esse idealismo, as elites se afastaram da realidade social, e os resultados políticos foram inadequados e conturbados. Na obra Populações Meridionais do Brasil, Oliveira Viana [...] elabora uma análise histórico‑sociológica orientada “pelos mais modernos padrões científicos”. Voltando‑se para as origens de nossa “formação”, para o 110 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II primeiro século de colonização, segundo sua terminologia, constrói um modelo interpretativo capaz de explicar por que, no Brasil, não éramos capazes de construir formas de solidariedade social modernas. O passado histórico mais remoto do país “continha” as causas profundas dessa falta de solidariedade, dessa incapacidade de organização autônoma de nossa população, que impossibilitava a emergência de uma moderna sociedade urbano‑industrial. [...] Para o autor, o atraso do país se devia a um descolamento entre o Brasil “real”, marcado pelo “insolidarismo”, e o Brasil “legal”, o mundo das instituições, destinado a dirigir uma nação, que ainda não existia (GOMES, 2009, p. 151). A obra de Oliveira Viana é extensa, complexa e merece especial atenção de todos os estudiosos de sociologia, sempre com o cuidado de não esquecer que ele pensou o Brasil com os recursos intelectuais de seu tempo, o que não o impede de contribuir, até hoje, para as reflexões contemporâneas. 8.3 Sérgio Buarque de Holanda Figura 19 – Sérgio Buarque de Holanda Sérgio Buarque de Holanda nasceu em São Paulo em 1902, onde viveu até 1921, quando se muda com a família para o Rio de Janeiro e lá cursou a Faculdade Nacional de Direito. Atuou como promotor no Espírito Santo,mas retornou ao Rio em 1927, onde permaneceu apenas até 1929, quando vai para Berlim, Alemanha, para ser correspondente da empresa Diários Associados, que publicava vários jornais. Na Alemanha, tem contato com a obra de Max Weber e assiste a seminários de Friedrich Meinecke. Torna‑se colaborador de revistas e retorna ao Brasil em 1931, retomando suas atividades de correspondente de agências internacionais de notícias. Em 1936, publica o livro Raízes do Brasil e inicia atividades docentes na Universidade do Distrito Federal, na cadeira de História Moderna e Contemporânea. Também leciona Literatura Comparada. 111 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO Em 1946, Sérgio Buarque volta a morar em São Paulo e no ano seguinte ingressa na Escola de Sociologia e Política como professor de História Econômica do Brasil, ocupando o lugar de Roberto Simonsen. Em 1952, muda‑se para a Itália. Lá passa dois anos ministrando aulas como professor‑convidado da cadeira de Estudos Brasileiros da Universidade de Roma. Em 1958, o pesquisador conquista, por meio de concurso público, a cadeira de História da Civilização Brasileira da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, com a tese Visão do paraíso: Os Motivos Edênicos no Descobrimento e na Colonização do Brasil, que seria publicada no ano seguinte. Sérgio Buarque de Holanda contribuiu com a fundação da Esquerda Democrática, em 1946, e em 1980, com o Partido dos Trabalhadores (PT). Aposentou‑se na universidade em 1969 e morreu em 1982, em São Paulo. Ele inicia sua trajetória intelectual fortemente influenciado pelo Modernismo, porque conviveu no Rio de Janeiro, a partir de 1921, com nomes importantes, como Prudente de Morais Neto, Graça Aranha, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto Freyre, Ribeiro Couto, dentre outros. Colaborou com artigos e ensaios em revistas e foi editor da Estética, revista que sucedeu outra importante publicação do período, a Klaxon. Na Alemanha, conviveu com o fim do período da República de Weimar e o crescimento do movimento nazista. Quando retornou ao Brasil, já tinha mais de quatrocentas páginas escritas, das quais publica parte na revista Espelhos, em 1935, e, no ano seguinte, em Raízes do Brasil, pela Livraria José Olympio, que era dirigida na época por Gilberto Freyre. A obra Raízes do Brasil tem marcas profundas da experiência modernista que Sérgio Buarque de Holanda havia vivenciado. Nela, o autor afirma que a principal razão para a colonização brasileira ter sido possível foi o fato de ter sido realizada por um país ibérico, Portugal, que estava em uma região indecisa entre a Europa e a África e que, de certa forma, já era mestiço mesmo antes de iniciar o processo de colonização. Isso teria dado a Portugal certa plasticidade e flexibilidade, viabilizando o projeto expansionista colonizador, o que não teria sido possível a outros países mais europeus, como a Holanda. Sérgio Buarque de Holanda identificou como forte traço brasileiro a cultura da personalidade, típica dos portugueses, e que estaria presente no sentimento da própria dignidade de cada homem. Em outras palavras, os valores da aristocracia estavam espalhados pelo povo lusitano e, consequentemente, tornou‑se característica dos brasileiros. Esses traços culturais contribuiriam, além do mais, para que entre os hispânicos não estivesse presente uma verdadeira ética do trabalho. O trabalho mecânico, em particular, que visa objetos externos, se chocaria com o personalismo desses povos, que insistiram no valor próprio de cada 112 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 Unidade II indivíduo. Seria bem‑considerado, em contraste, o trabalho intelectual, até como uma maneira, no caso brasileiro, de se marcar a diferença em relação aos escravos. O saber não seria, todavia, encarado como resultado do esforço, mas, de maneira aristocrática, praticamente como uma dádiva concedida a alguns poucos. No entanto, a consequência mais forte da cultura da personalidade seria, tal como percebido, por exemplo, por Aléxis de Tocqueville, na Nova Inglaterra, a extrema dificuldade de fazer vigorar o associativismo, que exige solidariedade social, até porque “em terra onde todos são barões não é possível acordo coletivo durável”. Na verdade, a solidariedade que porventura aparecesse teria muito mais o sentido de favorecer o sentimento do que o interesse, fazendo parte do âmbito doméstico e não do público (RICÚPERO, 2009, p. 108, grifo do autor). O sociólogo observa que no Brasil colonial as cidades se subordinam ao campo, porque lá está toda a riqueza e a base da organização social, que é patriarcal. Como consequência, o traço fundante da sociedade brasileira seria a proteção da família, do ambiente doméstico e daqueles que nele gravitam, sem pensamento de formação de um Estado, porque o particular se sobrepõe ao público. Veja o que destaca o eminente estudioso: O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e até uma oposição. [...] Só pela transgressão da ordem doméstica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão, contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável ante as leis da Cidade. Há nesse fato um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o corpóreo[,] e não uma depuração sucessiva, uma espiritualização de formas mais naturais e rudimentares, uma procissão das hipóstases[,] para falar como na filosofia alexandrina. A ordem família, em sua forma pura, é abolida por uma transcendência (HOLANDA, 1969, p. 101). Em consequência, o homem brasileiro carregaria para o ambiente público os traços da vivência familiar e, exatamente por isso, teria tanta dificuldade para distinguir o público do privado, para tratar objetivamente as relações, e não de forma sentimental e protecionista. O autor ainda destaca que: No Brasil, pode‑se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados 113 Re vi sã o: V ito r - D ia gr am aç ão : M ár ci o - 22 -0 1- 20 15 PENSAMENTO POLÍTICO BRASILEIRO a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal. Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. Um dos defeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar – a esfera por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós. Isso ocorre mesmo onde as instituições democráticas, fundadas em princípios neutros e abstratos, pretendam assentar a sociedade em normas antiparticularistas (HOLANDA, 1969, p. 106). Com essas reflexões, Buarque de Holanda cria a figura do “homem cordial”, que seria essencialmente a definição do brasileiro. Era o cidadão com fortes traços familiares e que tinha dificuldade em separar o público do privado, tanto quanto tinha facilidade em tratar de maneira pessoal e informal a todos quantos com quem se relacionasse, porque impessoalidade e formalidade não são traços próprios do ambiente familiar. O “homem cordial” [...] age a partir dos sentimentos que brotam diretamente do coração sem um filtro de racionalidade. Nesse sentido, por exemplo, não trata com isenção amigos e inimigos, favorecendo
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