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Material apostilado produzido especificamente para o Concurso de PEB II da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo 2010. Este material possui direitos de autoria reservados à ODARA- EDUCAÇÃO E CULTURA. Sua reprodução total ou parcial somente pode ser realizada mediante autorização formal. Projeto: Adriana Cristina Guimarães Coordenação: Luiz Roberto Marighetti Diagramação: Sheila Cristina Guimarães Sumário MÓDULO I CONCEPÇÕES ENSINO E APRENDIZAGEM Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento; um processo histórico Oliveira, Marta Kohl ...................................................................................................................................... 5 O construtivismo na sala de aula Coll, César. .................................................................................................................................................. 10 Aprender conteúdos & desenvolver capacidades César Coll e Elena Martin ............................................................................................................................ 11 Ensino para a compreensão: a pesquisa na prática Gardner, Howard et al ................................................................................................................................. 15 O ensino na sociedade do conhecimento: educação na era da insegurança Hargreaves, Andy. ....................................................................................................................................... 19 Saberes docentes e formação profissional Tardiff, Maurice ........................................................................................................................................... 22 Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário Lerner, Délia ................................................................................................................................................ 26 Ensino que funciona: estratégias baseadas em evidências para melhorar o desempenho dos alunos Marzano, Robert .......................................................................................................................................... 30 MÓDULO 2 PRÁTICA DOCENTE E OS DESAFIOS DA EDUCAÇÃO A prática educativa: Como ensinar Zabala, Antoni .............................................................................................................................................. 33 A autonomia de professores Contreras, José ............................................................................................................................................ 42 Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa Freire, Paulo ................................................................................................................................................. 45 Os sete saberes necessários à educação do futuro Morin, Edgar. ............................................................................................................................................... 50 Educação: um tesouro a descobrir Delors, Jacques ............................................................................................................................................ 57 Dez novas competências para ensinar Perrenoud, Phillipe. ...................................................................................................................................... 57 Para onde vai a educação? Piaget, Jean ................................................................................................................................................. 59 Psicologia e pedagogia: a resposta do grande psicólogo aos problemas do ensino Piaget, Jean .................................................................................................................................................. 63 MÓDULO 3 - AVALIAÇÃO O novo pacto educativo: educação competitividade e cidadania na sociedade moderna Tedesco, Juan Carlos ................................................................................................................................... 65 Metáforas novas para reencantar a educação: epistemologia e didática Assmann, Hugo ........................................................................................................................................... 67 Avaliação da aprendizagem: práticas de mudança – por uma práxis transformadora Vasconcellos, Celso ..................................................................................................................................... 68 Avaliar para promover: as setas do caminho Jussara Hoffmann ....................................................................................................................................... 71 MÓDULO 4 DOCUMENTOS INSTITUCIONAIS DCN‘s para o Ensino Fundamental ................................................................................... 73 DCN´s para o Ensino Médio ............................................................................................. 76 Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ...................................................................... 83 Ideb .................................................................................................................................... 88 Prova Brasil e o Saeb ........................................................................................................ 91 PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais Terceiro e Quarto Ciclos - EF ........................................................................................... 95 PCN - Parâmetros Curriculares Nacionais Ensino Medio ................................................................................................................... 101 Proposta Curricular do Estado de São Paulo ................................................................. 106 MÓDULO 5 - LEGISLAÇÃO Constituição da República Federativa do Brasil ............................................................ 123 Lei Nº 8.069, de 13 /Julho de 1990................................................................................. 124 Lei Nº 9.394, de 20/dezembro/1996 .............................................................................. 126 Lei Nº 11.494, de 20/Junho de 2007 .............................................................................. 136 Resolução CNE CEB Nº 3, de 26 de junho de 1998....................................................... 146 Resolução CNE/CEB Nº 1, de 5 de julho de 2000.......................................................... 150 Resolução CNE/CEB Nº 2, de 11 de setembro de 2001.(*) .......................................... 152 Resolução Nº 1, 17 de junho de 2004. (*) ...................................................................... 156 Constituição do Estado de São Paulo ............................................................................. 157 Lei Nº 10.261, de 28 de outubro de 1968...................................................................... 159 Lei Complementar Nº 444, de 27 de dezembro de 1985 ............................................. 183 Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento; um processo histórico Oliveira, Marta Kohl CAPÍTULO 1 HISTÓRIA PESSOAL E HISTÓRIA INTELECTUAL Lev Semenovich Vygotsky nasceu na cidade de Orsha, próxima a Mensk, capital de Bielarus (atual Bielorrússia) , país da extinta União Sociética, em 17 de novembro de 1896. Sua família tinha uma situação econômica bastante confortável, moravam num amplo apartamento e podiam oferecer oportunidades educacionais de alta qualidade aos filhos. A casa tinha uma atmosfera intelectualizada, onde pais e filhos debatiam sistematicamente sobre diversos assuntos. A biblioteca estava sempre a disposição dos filhos e de seus amigos para o estudo individual e as reuniões de grupos. A maior parte de sua educação formal não foi realizada na escola, mas sim em casa, por meio de tutores particulares. Apenas aos 15anos é que ingressou num colégio privado, onde freqüentou os dois últimos anos do curso secundário, formando-se em 1913. Ingressou, então, na Universidade de Moscou, fazendo o curso de Direito e formando-se em 1917. Ao mesmo tempo em que seguia sua carreira universitária principal, freqüentou cursos de história e filosofia na Universidade Popular de Shanyavskii. Do mesmo modo que sua formação acadêmica, sua atividade profissional foi muito diversificada. Trabalhou em diferentes localidades dentro da ex- União Soviética, tendo saído do país uma única vez, em 1925, para uma viagem de trabalho a outros países da Europa. Foi professor e pesquisador nas áreas de psicologia, pedagogia, filosofia, literatura,deficiência física e mental, atuando em diversas instituições de ensino e pesquisa, ao mesmo tempo em que lia, escrevia e dava conferência. Sua produção escrita foi vastíssima para uma vida tão curta e, naturalmente, seu interesse diversificado e sua formação interdisciplinar definiram a natureza dessa produção.Escreveu aproximadamente 200 trabalhos científicos, cujos temas vão desde a neuropsicologia até a crítica literária, passando por deficiência, linguagem, psicologia, educação e questões teóricas e metodológicas relativas às ciências humanas. Sua morte prematura (37 anos), juntamente com o enorme volume de sua produção intelectual, marcou, de certa forma, o estilo de seus textos escritos: são textos densos, cheios de idéias, numa mistura de reflexões filosóficas, imagens literárias, proposições gerais e dados de pesquisa que exemplificam essas proposições gerais. CAPÍTULO 2 A MEDIAÇÃO SIMBÓLICA Vygotsky dedicou-se, principalmente, ao estudo daquilo que chamamos de funções psicológicas superiores ou processos mentais superiores. Isto é, interessou-se por compreender os mecanismos psicológicos mais sofisticados, mais complexos, que são típicos do ser humano e que envolvem o controle consciente do comportamento, a ação intencional e a liberdade do indivíduo em relação às características do momento e do espaço presentes. O ser humano tem a possibilidade de pensar em objetos ausentes, imaginar eventos nunca vividos, planejar ações a serem realizadas em momentos posteriores. Esse tipo de atividade psicológica é considerada “superior” na medida em que se diferencia de mecanismos mais elementares tais como ações reflexas (a sucção do seio materno pelo bebê, por exemplo), reações automatizadas (o movimento da cabeça na direção de um som forte repentino, por exemplo) ou processos de associações simples entre eventos (o ato de evitar o contato da mão com a chama de uma vela, por exemplo) Um conceito central para a compreensão das con- cepções vygotskianas sobre o funcionamento psico- lógico é o conceito de mediação. Mediação, em ter- mos genéricos, é o processo de intervenção de um elemento intermediário numa relação; a re- lação deixa, então, de ser direta e passa a ser medi- ada por esse elemento. Quando um indivíduo aproxi- ma sua mão da chama de uma vela e a retira rapida- mente ao sentir dor, está estabelecida uma relação direta entre o calor da chama e a retirada da mão. Se, no entanto, o indivíduo retirar a mão quando apenas sentir calor e lembrar-se da dor sentida em outra ocasião, a relação entre a chama da vela e a retirada da mão estará mediada pela lembrança da experiência anterior. Se, em outro caso, o indivíduo retirar a mão quando alguém lhe disser que pode se queimar, a relação estará mediada pela intervenção dessa outra pessoa. Vygotsky trabalha, então, com a noção de que a relação do homem com o mundo não é uma relação direta, mas, fundamentalmente, uma relação mediada. As funções psicológicas superiores apresentam uma Módulo 1 Concepções Ensino e Aprendizagem APEOESP - concurso 2010 - PEB II - FRANCA 6 estrutura tal que entre o homem e o mundo real existem mediadores, ferramentas auxiliares da atividade humana. Vygotsky distinguiu dois tipos de elementos mediadores: os instrumentos e os signos. O uso de instrumentos A importância dos instrumentos na atividade humana, para Vygotsky, tem clara ligação com sua filiação teórica aos postulados marxistas. Vygotsky busca compreender as características do homem através do estudo da origem e desenvolvimento da espécie humana, tomando o surgimento do trabalho e a formação da sociedade humana, com base no trabalho, como sendo o processo básico que vai marcar o homem como espécie diferenciada. É o trabalho que, pela ação transformadora do homem sobre a natureza, une homem e natureza e cria a cultura e a história humana. No trabalho desenvolvem- se, por um lado, a atividade coletiva e, portanto, as relações sociais, e, por outro lado, a criação e utilização de instrumentos. O instrumento é um elemento interposto entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho, ampliando as possibilidades de transformação. O machado, por exemplo, corta mais e melhor que a mão humana; a vasilha permite armazenamento de água. O instrumento é feito ou buscado especialmente para um certo objetivo. Ele carrega consigo, portanto, a função para a qual foi criado e o modo de utilização desenvolvido durante a história do trabalho coletivo. É, pois, um objeto social, mediador da relação entre o indivíduo e o mundo. O uso de signos “A invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar um dado problema psicológico é análoga à invenção e uso de instrumentos, só que agora no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho”. Os instrumentos, porém, são elementos externos ao indivíduo, voltados para fora dele; sua função é provocar mudanças nos objetos, controlar processos da natureza. Os signos, por sua vez, também chamados por Vygotsky de “instrumentos psicológicos”, são orientados para o próprio sujeito, para dentro do indivíduo: dirigem-se ao controle de ações psicológicas, seja do próprio indivíduo, seja de outras pessoas. São ferramentas que auxiliam nos processos psicológicos e não nas ações concretas, como os instrumentos. Na sua forma mais elementar o signo é uma marca externa, que auxilia o homem em tarefas que exigem memória ou atenção. Assim, por exemplo, a utilização de varetas ou pedras para registro e controle da contagem de cabeças de gado ou a separação de sacos de cereais em pilhas diferentes que identificam seus proprietários são formas de recorrer a signos que ampliam a capacidade do homem em sua ação no mundo. As varetas são signos: são interpretáveis como representação da realidade e podem referir- se a elementos ausentes do espaço e do tempo presente. A memória medida por signos é, pois, mais poderosa que a memória não medida. São inúmeras as formas de utilizar signos como instrumentos que auxiliam no desempenho de atividades psicológicas. Fazer uma lista de compras por escrito, utilizar um mapa para encontrar determinado local, fazer um diagrama para orientar a construção de um objeto, são exemplos de como constantemente recorremos à mediação de vários tipos de signos para melhorar nossas possibilidades de armazenamentos de informações e de controle da ação psicológica. Compreender como o processo de mediação, por meio de instrumentos e signos, é fundamental para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, distinguindo o homem dos outros animais. A mediação é um processo essencial para tornar possível atividades psicológicas voluntárias, intencionais, controladas pelo próprio indivíduo. Os sistemas simbólicos e o processo de internalização Ao longo da evolução da espécie humana e do desenvolvimento de cada indivíduo, ocorrem, entretanto, duas mudanças qualitativas fundamentais no uso de signos. Por um lado, a utilização de marcas externas vai se transformar em processos internos de mediação; esse mecanismo é chamado, por Vygotsky, de processos de internalização. Por outro lado, são desenvolvidos sistemas simbólicos, que organizam os signos em estruturas complexas a articuladas. Ao longo do processo de desenvolvimento,o indivíduo deixa de necessitar de marcas externas e passa a utilizar signos internos, isto é, representações mentais que substituem os objetos do mundo real. Os signos internalizados são, como as marcas exteriores, elementos que representam objetos, eventos, situações. Assim, como um nó num lenço pode representar um compromisso que não quero esquecer, minha idéia de “mãe” representa a pessoa real da minha mãe e me permite lidar mentalmente com ela, mesmo na sua ausência. A própria idéia de que o homem é capaz de operar mentalmente sobre o mundo – isto é, fazer relações, planejar, comparar, lembrar, etc – supõe um processo de representação mental. Temos conteúdos mentais que tomam o lugar dos objetos, das situações e dos eventos do mundo real. Quando pensamos em um gato, por exemplo, não temos na mente, obviamente, o próprio gato; trabalhamos com um idéia, um conceito, uma imagem, uma palavra, enfim, algum tipo signo, que substitui o gato real sobre o qual pensamos. 7 Odara - educação e cultura Quando trabalhamos com os processos superiores que caracterizam o funcionamento psicológico tipicamente humano, as representações mentais da realidade exterior são na verdade, os principais mediadores a serem considerados na relação do homem com o mundo. As representações da realidade tem se articulado em sistemas simbólicos. Isto é, os signos não se mantém como marcas externas isoladas, referentes a objetos avulsos, nem como símbolos usados por indivíduos particulares. Passam a ser compartilhados pelo conjunto dos membros do grupo social, permitindo a comunicação entre os indivíduos e o aprimoramento da interação social. Os sistemas de representação da realidade e a linguagem, sistema simbólico básico de todos os grupos humanos, são, portanto, socialmente dados. É o grupo cultural onde o indivíduo se desenvolve que lhe fornece formas de perceber e organizar o real, as quais vão construir os instrumentos psicológicos que fazem a mediação entre o indivíduo e o mundo. Enquanto mediadores entre o indivíduo e o mundo real, esses sistemas de representação da realidade consistem numa espécie de “filtro” através do qual o homem será capaz de ver o mundo e operar sobre ele. A palavra “avião”, que designa uma certa categoria de objetos do mundo real, é um signo mediador entre o indivíduo e o avião enquanto elemento concreto. A interação face a face entre indivíduos particulares desempenha um papel fundamental na construção do ser humano: é através da relação interpessoal concreta com outros homens que o indivíduo vai chegar a interiorizar as formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico. A cultura, entretanto, não é pensado por Vygotsky como algo pronto, um sistema estático ao qual o indivíduo se submete, mas como uma espécie de “palco de negociações”, em que seus membros estão num constante movimento de recriação e reinterpretação de informações, conceitos e significados. O processo de desenvolvimento do ser humano, marcado por sua inserção em determinado grupo cultural, se dá “de fora para dentro”. Isto é, primeiramente o indivíduo realiza ações externas, que serão interpretadas pelas pessoas ao seu redor, de acordo com os significados culturalmente estabelecidos. A partir dessa interpretação é que será possível para o indivíduo atribuir significados a suas próprias ações e desenvolver processos psicológicos internos que podem ser interpretados por ele próprio a partir dos mecanismos estabelecidos pelo grupo cultural e compreendidos por meio dos códigos compartilhados pelos membros desse grupo. As origens das funções psicológicas superiores devem ser buscadas, assim, nas relações sociais entre o indivíduo e os outros homens: para Vygotsky o fundamento do funcionamento psicológico tipicamente humano é social e, portanto, histórico. Os elementos mediadores na relação entre homem e o mundo – instrumentos, signos e todos os elementos do ambiente humano carregados de significado cultural – são fornecidos pelas relações entre os homens. CAPÍTULO 3 PENSAMENTO E LINGUAGEM Vygotsky trabalha com duas funções básicas da linguagem. A principal função é a de intercâmbio social: é para se comunicar com seus semelhantes que o homem cria e utiliza os sistemas de linguagem. Essa função de comunicação com os outros é bem visível no bebê que esta começando a aprender a falar: ele não sabe ainda articular palavras, nem é capaz de compreender o significado preciso das palavras utilizadas pelos adultos, mas consegue comunicar seus desejos e seus estados emocionais aos outros através de sons, gestos e expressões. Para que a comunicação com outros indivíduos seja possível de forma mais sofisticada, não basta, entretanto, que a pessoa manifeste, como o bebê, mas é necessário que sejam utilizados signos compreensíveis por outras pessoas, que traduzem idéias, sentimentos, vontades, pensamentos, de forma bastante precisa. Cada indivíduo vive sua experiência pessoal de modo complexo e particular, o mundo da experiência vivida tem que ser extremamente simplificado e generalizado para poder ser traduzido em signos que possam ser transmitidos a outros. A palavra cachorro, por exemplo, tem um significado preciso, compartilhado pelos outros usuários da língua portuguesa. O conceito de cachorro pode ser traduzido por essa palavra e será adequadamente compreendido por outras pessoas, mesmo que a experiência concreta delas com cachorros seja diferente da do indivíduo que utilizou a palavra. É esse fenômeno que gera a segunda função da linguagem: a de pensamento generalizante. A linguagem ordena o real, agrupando todas as ocorrências de uma mesma classe de objetos, eventos, situações, sob uma mesma categoria conceitual. Ao chamar determinado objeto de cachorro estou, então, classificando esse objeto na categoria “cachorro” e, portanto, agrupando-o com outros elementos da mesma categoria e, ao mesmo tempo, diferenciando-o de elementos de outras categorias. Um cachorro particular é parte de um conjunto abstrato de objetos que são todos membros da mesma categoria e distingue-se dos membros das categorias “mesa”, “girafa”, “caminhão”etc. E N S IN O E A P R E N D IZ A G E M APEOESP - concurso 2010 - PEB II - FRANCA 8 É essa a função do pensamento generalizante que torna a linguagem um instrumento de pensamento: a linguagem fornece os conceitos e as formas de organização do real que constituem a mediação entre o sujeito e o objeto de conhecimento. O desenvolvimento do pensamento e da linguagem Vygotsky trabalha com o desenvolvimento da espécie humana e com o desenvolvimento do indivíduo humano, buscando compreender a origem e a trajetória desses dois fenômenos. A trajetória do pensamento desvinculado da linguagem e a trajetória da linguagem independente do pensamento num determinado momento do desenvolvimento filogenético (evolução de uma espécie) essas duas trajetórias se unem e o pensamento se torna verbal e a linguagem racional. A associação entre pensamento e linguagem é atribuída à necessidade de intercâmbio dos indivíduos durante o trabalho, atividade especificamente humana. O trabalho é uma atividade que exige, por um lado, a utilização de instrumentos para a transformação da natureza e, por outro lado, o planejamento, a ação coletiva e, portanto, a comunicação social. Para agir coletivamente e de formas cada vez mais sofisticadas, o grupo humano teve de criar um sistema de comunicação que permitisse troca de informações específicas, e ação no mundo com base em significados compartilhados pelos vários indivíduos empenhados no projeto coletivo. O surgimento do pensamento verbal e da linguagem como sistema de signos é um momento crucial no desenvolvimento da espécie humana, momento em que o biológico transforma-se no sócio-histórico. Assim como ocorreu no desenvolvimento da espécie humana, num determinado momento do desenvolvimento da criança (por volta dos dois anos de idade) o percurso do pensamento encontram- se com o da linguagem e inicia-se uma nova forma de funcionamento psicológico:a fala torna-se intelectual, com função simbólica, generalizante, e o pensamento torna-se verbal, mediado por significados dados pela linguagem. Enquanto no desenvolvimento filogenético foi a necessidade de intercâmbio dos indivíduos durante o trabalho que impulsionou a vinculação dos processos de pensamento e linguagem, no ontogênese esse impulso é dado pela própria inserção da criança num grupo cultural. O discurso interior e a fala egocêntrica É a função generalizante da linguagem que a torna um instrumento do pensamento. Ao se utilizar da linguagem o ser humano é capaz de pensar de uma forma que não seria possível se ela não existisse: a generalização e a abstração só se dão pela linguagem. Mas o uso da linguagem como instrumento de pensamento supõe um processo de internalização da linguagem. Isto é, não é apenas por falar com as outras pessoas que o indivíduo dá um salto qualitativo para o pensamento verbal. Ele também desenvolve, gradualmente, o chamado “discurso interior”, que é uma forma interna de linguagem, dirigida ao próprio sujeito e não a um interlocutor externo. É um discurso sem vocalização, voltado para o pensamento, com função de auxiliar o indivíduo nas suas operações psicológicas. No estudo da transição entre o discurso socializado e o discurso interior, Vygotsky recorre à “fala egocêntrica” como um fenômeno relevante para a compreensão dessa transição. Nas fases iniciais da aquisição da linguagem a criança se utiliza, então, da linguagem externa disponível no seu meio, com a função de comunicar. Num certo determinado momento do seu desenvolvimento, a criança passa a se utilizar da linguagem egocêntrica, falando alto para si mesma, independentemente da presença de um interlocutor. A fala egocêntrica acompanha a atividade da criança, começando a ter uma função pessoal, ligada às necessidades do pensamento. Essa função claramente associada ao pensamento indica que a trajetória da criança vai, de fato, dos processos socializados para os internos. Isto é, ao tomar posse da linguagem inicialmente utilizada apenas com função de comunicação, a criança passa a ser capaz de utilizá- la como instrumento (interno) de pensamento. A questão da fala egocêntrica é o ponto mais explícito de divergência entre Vygotsky e Piaget. Para Piaget a função da fala egocêntrica é exatamente oposta aquela proposta por Vygotsky: ela seria uma transição entre estados mentais individuais não verbais, de um lado, e o discurso socializado e o pensamento lógico, de outro. Piaget postula uma trajetória “de dentro para fora”, enquanto Vygotsky considera que o percurso é “de fora para dentro” do indivíduo. CAPÍTULO 4 DESENVOLVIMENTO E APRENDIZADO Vygotsky em sua obra enfatiza a importância dos processos de aprendizagens. Para ele, desde o nascimento da criança, o aprendizado esta relacionado ao desenvolvimento e é “um aspecto necessário e universal do processo de desenvolvimento das funções psicológicas culturalmente organizadas e especificamente humanas”. Existe um percurso de desenvolvimento, em parte definido pelo processo de maturação do organismo 9 Odara - educação e cultura individual, pertencente à espécie humana, mas é o aprendizado que possibilita o despertar de processos internos de desenvolvimento que, não fosse o contato do indivíduo com certo ambiente cultural, não ocorreriam. O conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal Quando dizemos que a criança já sabe realizar determinada tarefa, referindo-se à sua capacidade de realizá-la sozinha. Vygotsky denomina essa capacidade de realizar tarefas de forma independente de nível de desenvolvimento real. Para ele, o nível de desenvolvimento real da criança caracteriza o desenvolvimento de forma retrospectiva, ou seja, refere-se a etapas já alcançadas, já conquistadas pela criança. As funções psicológicas que fazem parte do nível de desenvolvimento real da criança em determinado momento de sua vida são aquelas já bem estabelecidas naquele momento. Vygotsky chama a atenção para o fato de que para compreender adequadamente o desenvolvimento devemos considerar não apenas o nível de desenvolvimento real da criança, mas também seu nível de desenvolvimento potencial, isto é, sua capacidade de desempenhar tarefas com a ajuda de adultos ou de companheiros mais capazes. A partir da postulação da existência desses dois níveis de desenvolvimento – real e potencial – Vygotsky define a zona de desenvolvimento proximal como “a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com companheiros mais capazes”. A zona de desenvolvimento proximal refere- se, assim, ao caminho que o indivíduo vai percorrer para desenvolver funções que estão em processo de amadurecimento e que se tornarão funções consolidadas, estabelecidas no seu nível de desenvolvimento real. A zona de desenvolvimento proximal é, pois, um domínio psicológico em constante transformação: aquilo que uma criança é capaz de fazer com a ajuda de alguém hoje, ela conseguirá fazer sozinha amanhã. 4.2 – O papel da intervenção pedagógica O professor tem o papel explícito de interferir na zona de desenvolvimento proximal dos alunos, provocando avanços que não ocorreriam espontaneamente. O único bom ensino, afirma Vygotsky, é aquele que se adianta ao desenvolvimento. Os procedimentos regulares que ocorrem na escola — demonstração, assistência, fornecimento de pistas, instruções — são fundamentais na promoção do “bom ensino”. Isto é, a criança não tem condições de percorrer, sozinha, o caminho do aprendizado. A intervenção de outras pessoas — que, no caso específico da escola, são o professor e as demais crianças — é fundamental para a promoção do desenvolvimento do indivíduo. Ligado aos procedimentos escolares, mas não restrito à situação escolar, está o mecanismo de imitação. A imitação, para Vygotsky, não é mera cópia de um modelo, mas reconstrução individual daquilo que é observado nos outros. Essa reconstrução é balizada pelas possibilidades psicológicas da criança que realiza a imitação e constitui, para ela, criação de algo novo a partir do que observa no outro. Vygotsky não toma a atividade imitativa, portanto, como um processo mecânico, mas sim como uma oportunidade de a criança realizar ações que estão além de suas próprias capacidades, o que contribuiria para seu desenvolvimento. Ao imitar a escrita do adulto, por exemplo, a criança está promovendo o amadurecimento de processos de desenvolvimento que a levarão ao aprendizado da escrita. 4.3 – Brinquedo e desenvolvimento Quando Vygotsky discute o papel do brinquedo, refere-se especificamente à brincadeira de “faz- deconta”, como brincar de casinha, brincar de escolinha, brincar com um cabo de vassoura como se fosse um cavalo. Faz referência a outros tipos de brinquedo, mas a brincadeira de “faz-de-conta” é privilegiada em sua discussão sobre o papel do brinquedo no desenvolvimento. Ao brincar com um tijolinho de madeira como se fosse um carrinho, por exemplo, ela se relaciona com o significado em questão (a idéia de “carro”) e não com o objeto concreto que tem nas mãos. O brinquedo promove, assim, uma situação de transição entre a ação da criança com objetos concretos e suas ações com significados. Em síntese, percebe-se que no brinquedo a criança comporta-se de forma mais avançada do que nas atividades da vida real e também aprende a separar objeto e significado. 4.4 – A evolução da escrita na criança A questão da evolução da escrita na criança é bastante importante no conjunto das colocações de Vygotsky sobre desenvolvimento e aprendizado, por duas razões. Em primeiro lugar porque suas idéias sobre esse tema são extremamente contemporâneas, surpreendentes, mesmo quando levamos em conta que foram produzidas há aproximadamente 60 anos. Em segundo lugar porque sua concepção sobre a escrita, enquanto sistema simbólico de representaçãoda realidade está estreitamente associada a questões centrais em sua teoria (linguagem, mediação simbólica, uso de instrumentos). E N S IN O E A P R E N D IZ A G E M APEOESP - concurso 2010 - PEB II - FRANCA 10 Assim sendo, embora não seja uma questão muito explorada por Vygotsky em seus textos escritos, é bastante justificável que a língua escrita seja objeto de nossa atenção nesta revisão sobre suas concepções a respeito de desenvolvimento e aprendizado. É importante mencionar, ainda, que como a aquisição da língua escrita é, para Vygotsky, a aquisição de um sistema simbólico de representação da realidade, também contribuem para esse processo o desenvolvimento dos gestos, dos desenhos e do brinquedo simbólico, pois essas são também atividades de caráter representativo, isto é, se utilizam de signos para representar significados. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Na concepção que Vygotsky tem do ser humano, portanto, a inserção do indivíduo num determinado ambiente cultural é parte essencial de sua própria constituição enquanto pessoa. É impossível pensar o ser humano privado do contato com um grupo cultural, que lhe fornecerá os instrumentos e signos que possibilitarão o desenvolvimento das atividades psicológicas mediadas, tipicamente humanas. O aprendizado, nesta concepção, é o processo fundamental para a construção do ser humano. O desenvolvimento da espécie humana e do indivíduo dessa espécie está, pois, baseado no aprendizado que, para Vygotsky, sempre envolve a interferência, direta ou indireta, de outros indivíduos e a reconstrução pessoal da experiência e dos significados. O construtivismo na sala de aula Coll, César. O construtivismo na sala de aula. São Paulo: Ática, 1998 - cap.03 CAPÍTULO 3 UM PONTO DE PARTIDO PARA APRENDIZAGEM DE NOVOS CONTEÚDOS: O estado inicial dos alunos A concepção construtivista assinala três elementos básicos inter-relacionados que determinam o estado inicial dos alunos ao iniciarem qualquer processo de aprendizagem: Disposição para realizar a aprendizagem proposta (confluência de fatores pessoais e interpessoais); Capacidades cognitivas gerais: certos níveis de inteligência, raciocínio e memória; capacidades motoras, de equilíbrio pessoal e de relação interpessoal (instrumentos gerais); Conhecimentos prévios. Os conhecimentos prévios A necessidade de se considerar os conhecimentos prévios se justifica a partir da própria concepção construtivista. A aprendizagem de um novo conteúdo é produto de uma atividade mental construtivista realizada pelo aluno, atividade na qual constrói e incorpora, à sua estrutura mental, os significados e representações relativas ao novo conteúdo. Essa atividade construtiva não pode ser realizada no vácuo, a partir de nada. A possibilidade de aprender passa pela possibilidade de entrar em contato com o novo conhecimento a partir de algo que já conhecemos. Esses conhecimentos prévios são fundamentos da construção de novos significados. Quanto mais relações com sentido o aluno for capaz de estabelecer entre seus conhecimentos prévios e o novo conteúdo, mais significativas serão as aprendizagens. Sempre existem conhecimentos prévios nos alunos? No caso da aprendizagem escolar a questão é o estado desses conhecimentos: mais ou menos elaborados; mais ou menos coerentes. Mais ou menos pertinentes; mais ou menos adequados ou inadequados em relação ao conteúdo. Os esquemas de conhecimentos A concepção construtivista entende os conhecimentos prévios em termos de esquemas de conhecimentos que “é a representação que uma pessoa possui em um determinado momento de sua história sobre uma parcela da realidade” (Coll, 1983). Essa definição permite entender as características dos conhecimentos prévios dos alunos: Eles têm um conhecimento de aspectos da realidade com o qual puderam entrar em contato durante a sua vida e podem, portanto, ter uma quantidade maior ou menor desses esquemas; Esses esquemas podem ter elementos mais ou menos ricos ou completos conforme as experiências ou informações aos quais os alunos tiveram acesso até aquele momento de suas vidas; Os esquemas de conhecimentos provém do meio familiar, grupos de colegas ou amigos, de fontes como leitura, mídia, do próprio meio escolar, a partir da própria experiência do aluno. Os esquemas de conhecimentos não se caracterizam apenas pela quantidade de conhecimentos que contém, mas por seu nível de organização interna: as relações estabelecidas entre os conhecimentos que se integram em um mesmo esquema e pelo grau de coerência entre esses conhecimentos. A questão da organização e da coerência também se coloca quanto ao conjunto de esquemas que os alunos manejam. Os esquemas de conhecimento dos alunos podem, assim, ser mais ou menos adequados à realidade à qual se referem. Julgar a validade desses esquemas não é uma questão fácil. Se para julgar o conhecimento científico há um referencial claro o mesmo não se 11 Odara - educação e cultura aplica aos componentes atitudinais e normativos dos esquemas que correspondem a referenciais do tipo social e cultural. Considerando todos esses aspectos, a concepção construtivista entende que os alunos enfrentam a aprendizagem de um novo conteúdo possuindo uma série de conhecimentos prévios, que estão organizados e estruturados em diversos (diferentes) esquemas de conhecimentos. Os conhecimentos prévios nos processo de ensino/aprendizagem É bem conhecida a frase: “O fator mais importante que influi na aprendizagem é aquilo que o aluno já sabe”. Mas, é importante que o professor verifique tudo o que ele sabe, de fato? Uma parte? No início do processo? Durante o processo? Como fazer isso? Para podermos organizar e planejar o ensino, isto é, os critérios para determinar quais os conhecimentos prévios os aluno necessitam ter, precisamos saber quais conteúdos de aprendizagem iremos trabalhar e quais são os objetivos desse trabalho. E se eles nada sabem? Devemos lembrar que a construção de conhecimento é um processo progressivo, não é uma questão de tudo ou nada, mas uma questão de grau; No caso dos conhecimentos prévios serem total ou parcialmente inexistentes é preciso supri-los antes do ensino de novos conteúdos ou adaptar e redefinir nossos objetivos; No caso dos conhecimentos prévios serem excessivamente desorganizados ou errôneos é conveniente lançar mão de atividades específicas para resolver esse problema, antes de iniciar a aprendizagem de novos conteúdos. Mesmo tendo conhecimentos prévios, a sua atualização (perceber o sentido da aprendizagem) e disponibilidade é condição necessária para os alunos poderem realizar aprendizagens significativas. Muitas vezes a dificuldades de acessar os conhecimentos prévios está relacionada: a própria organização geral do ensino; a organização das seqüências didáticas; à falta de relação entre as áreas e a uma excessiva fragmentação das atividades. A apresentação e as introduções aos novos conteúdos, os resumos, as sínteses e as recapitulações periódicas podem ajudar os alunos a atualizarem e disponibilizarem os conhecimentos prévios necessários para a aprendizagem de novos conteúdos. A exploração dos conhecimentos prévios Sobre o que, quando e como explorar e avaliar os conhecimentos prévios de nossos alunos? O que explorar: Em primeiro lugar, os conhecimentos prévios dos alunos que serão pertinentes e necessários para poder abordar a aprendizagem dos novos conteúdos; nessa exploração a experiência docente acumulada é um referencial confiável. E segundo lugar, os aspectos a serem explorados não podem limitar-se a uma lista de fatos, conceitos, mas devem ser ampliados para as relações estabelecidas entre os elementos estabelecidos entre os elementos que fazem parte dos esquemas de conhecimento. Quando explorar: Pode ser conveniente e mais útil fazer uma exploração global e geral no início de um curso e a avaliação de aspectos mais específicos ou pontuais no início ou durante as aulas. Como explorar: Com base na concepção construtivista parece mais adequado utilizarinstrumentos de tipo aberto, sempre que possível. Qualquer que seja o instrumento de avaliação utilizando, ele deve estar articulado ao processo de ensino/aprendizagem. Ressituar os conhecimentos prévios Os comentários anteriores são suficientes para justificar o papel central dos esquemas de conhecimentos prévios dos alunos na concepção construtivista dos processos de ensino e aprendizagem escolares. Porém, não devemos esquecer que esses esquemas estão mais à disposição para realizar a aprendizagem proposta além das capacidades cognitivas e capacidades motoras, de equilíbrio pessoal e de relação interpessoal. Esses esquemas estão inter- relacionados, influenciando-se e condicionando-se mutuamente. E N S IN O E A P R E N D IZ A G E M Aprender conteúdos & desenvolver capacidades Coll, César Este livro surge de uma preocupação dos organi- zadores da obra: o temor de que um dos aspectos nucleares da proposta da reforma desencadea- da pela Lei Orgânica de Ordenamento Geral do Sistema Educacional (LOGSE) não tenha pene- trado suficientemente na prática docente. Tal coincidência deu origem a este projeto, cujo objetivo é retomar o discurso da aprendizagem e do ensino das capacidades a partir da concepção psico- pedagógica que a sustenta. A proposta curricular adotada considera que as intenções educativas que regem e orientam a edu- cação escolar devem se centrar na ajuda aos estu- dantes, para que estes possam desenvolver as ca- pacidades imprescindíveis para se tornarem cidadãos e cidadãs com plenos direitos e deveres, res- ponsáveis, críticos e ativos, em uma sociedade de- mocrática. As capacidades são as metas do ensino, o “norte” da prática na sala de aula, o referencial do sucesso ou do fracasso das instituições escolares. APEOESP - concurso 2010 - PEB II - FRANCA 12 No entanto, junto com a relevância de seu papel, nos deparamos com a dificuldade inerente à sua aqui- sição e ao seu desenvolvimento. Por isso, adquire pleno sentido e vigência uma nova apresentação da ques- tão do ensino, da aprendizagem e do desenvolvimento das capacidades no contexto da educação escolar. A EDUCAÇÃO ESCOLAR E O DESENVOLVIMENTO DAS CAPACIDADES César Coll e Elena Martin A função social da escola Todos nos desenvolvemos em diferentes con- textos educativos, e a escola é apenas um deles. Assim como sucede atualmente em algumas cultu- ras, na nossa também não existia escola até um mo- mento histórico bastante recente. Diante da falta das instituições de educação formal, a tarefa de fazer com que os novos membros façam parte do grupo social correspondente, desenvolvendo neles as capacidades próprias de sua cultura, é garantida mediante outro tipo de práticas sociais, fundamentalmente aquelas que se desenvolvem no contexto da família e dos gru- pos de pares, e mediante a progressiva incorpora- ção das crianças e dos jovens às atividades produti- vas dos adultos. Nas sociedades modernas, o aumento do conheci- mento e da especialização exige novas aprendizagens cuja aquisição não pode ser garantida mediante a par- ticipação desses tipos de práticas e de atividades, mas requer uma ajuda intencional, planejada e sistemáti- ca. A institucionalização da educação escolar no decorrer do século XIX, assim como sua universali- zação e ampliação progressiva durante o século XX, são justificadas pelo fato de que tal ajuda é decisiva para que crianças e jovens possam adquirir e de- senvolver determinadas capacidades consideradas fundamentais no grupo social do qual fazem parte. Embora seja evidente que, objetivamente a insti- tuição escolar desempenha muitas outras funções – transmissão da cultura, construção da identidade na- cional, reprodução da ordem social, formação da mão- de-obra de acordo com as exigências do mercado de trabalho, etc – a existência da educação escolar, es- pecialmente em seus níveis básicos e obrigatórios, só se legitima plenamente mediante sua indispensá- vel função de contribuir para que as crianças e os jovens adquiram e desenvolvam as competências necessárias para se incorporarem como membros de pleno direito à sociedade à qual pertencem. Desse ponto de vista, a escola é uma instituição utilizada pela sociedade para oferecer às novas gerações as experiências de aprendizagens que lhes permitam se incorporarem ativa e critica- mente a ela. A importância de sua função justifica que a escolarização seja considerada um direito de qualquer cidadão, e seu descumprimento represente um ataque à igualdade de oportunidades. A escola assim entendida é um dos recursos educativos que os grupos sociais possuem, assim como também é depositária de uma missão concreta. De fato, ao contrário do que sucede na maioria dos outros contextos de desenvolvimento, a instituição es- colar precisa definir explicitamente suas intenções educativas, isto é, estabelecer sua parcela de res- ponsabilidade na tarefa de contribuir com o de- senvolvimento e com a socialização das pessoas. Entre outras funções, o currículo desempenha jus- tamente a de concretizar as intenções educativas da escola mediante a identificação daquelas capacida- des que, embora imprescindíveis para o desenvolvi- mento e a socialização dos alunos, não são garantidas – ou são insuficientes – pelos outros contextos edu- cativos dos quais também participa. Assim o currí- culo constitui um projeto social. No currículo se estabelece o perfil dos futuros cidadãos com cuja formação a sociedade deseja contribuir. Deve ser, portanto, um projeto social am- plamente debatido, assumido e impulsionado. Nele deve ser definido o papel a ser desempenhado pela educação escolar no desenvolvimento dos futuros cidadãos e cidadãs com nível de precisão suficiente para nortear a tarefa daqueles que tem que desenvol- ver tal função: os professores. O estabelecimento das intenções educativas que devem reger a atuação da escola é, acima de tudo, o resultado de uma análise sobre o tipo de sociedade que temos e também uma decisão sobre o tipo de sociedade que queremos formar. Desse ponto de vista, a concretização das inten- ções educativas constitui um dos aspectos mais rele- vantes da ação educativa. O acerto no processo de definição do currículo não é suficiente para garantir a qualidade do ensino, mas sem dúvida, constitui um fa- tor básico para avançar nesta direção. O PAPEL DAS CAPACIDADES NA DEFINI- ÇÃO DAS INTENÇÕES EDUCATIVAS Definir as intenções educativas Um dos aspectos mais complexos do currícu- lo escolar é a definição das intenções educativas de uma forma suficientemente concreta para nortear a prática dos professores e, ao mesmo tempo, sufici- entemente aberta para permitir um ajuste à diversida- de de situações e de contextos nos quais se forma o processo de ensino e de aprendizagem. Basicamente, surgiram três alternativas no tocante a essa questão. ● Formular as intenções educativas precisando os resultados esperados da aprendizagem, isto é, aquilo que o aluno deve ter aprendido até o final do processo educativo. 13 Odara - educação e cultura ● Definir as intenções educativas por meio dos con- teúdos que os alunos devem aprender na escola. ● Concretizar as intenções educativas estabele- cendo as atividades de ensino e de aprendizagem das quais os alunos vão participar. Intenções educativas formuladas no LOGSE Levando em consideração os dados anteriores, o modelo que inspira a proposta curricular da reforma educativa impulsionada pela LOGSE opta por definir as intenções educativas, respeitando as característi- cas de um currículo aberto e realizando uma entra- da simultânea pelos resultados esperados de apren- dizagem e pelos conteúdos. De acordo com esse modelo, os resultados esperados devem se referir às capacidades cuja aquisição e desenvolvimento se pretende promover mediante a escolaridade. Dessa perspectiva, o principal referencial da ação educativa deve ser, como já mencionamos, as capaci- dades identificadas como imprescindíveis para se de- senvolver em um determinado grupo social e cultural. Desse ponto de vista, a meta daeducação escolar é desenvolver as capacidades que permitirão que os alunos continuem aprendendo e utilizando o que sabem para viver e conviver com os outros, me- lhorando o ambiente natural e social que fazem parte. Porém, as capacidades nunca são diretamente observáveis, só é possível avaliar sua aquisição e seu desenvolvimento a partir das execuções ou das ações realizadas pelos alunos em atividades ou tarefas específicas. Para discernir e avaliar o grau em que foi adquirida ou desenvolvida uma determina- da capacidade, os professores só têm a alternativa de observar o que fazem – e dizem – os alunos, e como fazem – e explicam – enquanto realizam determi- nadas atividades ou tarefas concretas. Não devemos esquecer, porém, que a finalida- de da ação docente – e, consequentemente, tam- bém o objetivo da avaliação – é promover aquisi- ção e o desenvolvimento das capacidades às quais remetem esses comportamentos, e que os alunos ma- nifestarão, inevitavelmente, de formas diferentes, em distintas situações e variados contextos. Desenvolvimento de capacidades a partir de conteúdos específicos Capacidades gerais de alto nível cognitivo como, por exemplo, o estabelecimento de relações de casualidade, adotam formas diferentes em função do domínio de conhecimento em que nos situa- mos, assim, no campo das Ciências Naturais, tende- se a estabelecer relações entre causa e efeito, en- quanto na área das Ciências Sociais é importante aprender que a explicação dos fenômenos quase sem- pre depende de diversas causas e que, com freqüên- cia, sua identificação está ligada ao contexto teórico de interpretação adotado. Algo semelhante ocorre com a capacidade de bus- car e selecionar a informação, outra das capacidades básicas para que possamos viver de forma adequada na sociedade atual. Também neste caso os procedi- mentos para buscar e selecionar a informação dife- rem consideravelmente em função da área do saber e do conhecimento em que nos situamos, porque fre- quentemente as fontes de informação são diferentes, assim como os códigos que nelas se utilizam, a maior ou menor necessidade de buscar fontes diversas ou complementares ou seu caráter primário ou secundá- rio, para citar apenas alguns dos fatores de variabili- dade mais comuns. Os conteúdos escolares são saberes culturais, historicamente construídos e organizados, seleciona- dos em um determinado momento para fazer parte do currículo escolar, devido ao interesse e à relevância que se atribui socialmente a eles. A especificidade e a peculiaridade dos conteúdos como saberes cultu- rais também estão presentes no discurso das capaci- dades. As instituições educativas assumem o man- dato social de promover nos alunos o desenvol- vimento de capacidades e a aprendizagem de conteúdos culturalmente relevantes, e ambos os ele- mentos devem, dessa perspectiva, estar presente na definição das intenções educativas, refletindo em sua conjunção o núcleo básico do projeto social e cultural que a escola tem a missão de impulsionar. A visão dos conteúdos como saberes ou for- mas culturais pressupõe uma importante mudança com relação à concepção tradicional dos conteú- dos incluídos no currículo escolar. Da perspectiva adotada, o termo “conteúdo” não se refere mais apenas aqueles fatos, conceitos ou explicações que se considera importante que os alunos conheçam, memorizem, compreendam, apliquem, relacio- nem, etc. Junto a eles aparecem outras formas ou saberes culturais, isto é, outros conhecimentos historicamente construídos e culturalmente or- ganizados, relativos a uma ampla gama de ativida- des e de práticas sociais – conhecimento e do- mínio de sistemas simbólicos, de habilidades e de estratégias de busca; de seleção e de organiza- ção da informação, de estratégias de aprendiza- gem e de resolução de problemas; conhecimento, respeito e prática de costumes e tradições, co- nhecimento, respeito e prática dos princípios que re- gem e regulam as relações entre pessoas e grupos; conhecimento, adoção e prática de atitudes e valores que regem conhecimentos individuais e grupais; e um amplo etcétera – cuja aprendizagem e assimilação pelos alunos também se considera importante. Os critérios para decidir se certos conhecimen- tos concretos devem ser selecionados para fazer parte do currículo não é apenas seu valor episte- E N S IN O E A P R E N D IZ A G E M APEOESP - concurso 2010 - PEB II - FRANCA 14 mológico, sua aceitação como conhecimento vá- lido, mas também sua relevância cultural, o valor que lhes é atribuído no âmbito de uma cultura par- ticular em um determinado momento histórico. O conceito de conteúdo escolar se amplia e se di- versifica de forma considerável para permitir a en- trada, ao lado dos fatos, de conceitos e de princípios – conhecimentos relativos a “saber” coisas – de pro- cedimentos, de habilidades e de estratégias – conhe- cimentos relativos a “saber-fazer” – assim como de valores, de atitudes e de normas – conhecimentos re- lativos a “saber ser”, “saber estar” e “saber com- portar-se” perante si mesmo e os outros. Capacidades e áreas de desenvolvimento Outro aspecto essencial do processo de definição das intenções educativas tem a ver com a decisão sobre as áreas do desenvolvimento das pessoas que a educação escolar tem de enfocar. Certamente se tra- ta de uma questão complexa e muito presente nos debates educativos atuais, devido, pelo menos em parte, ao espetacular aumento das tarefas e das res- ponsabilidades que foram sendo atribuídas às escolas no decorrer das últimas décadas. A influência dos contextos de desenvolvimento – família, escola, grupos de pares, meios de comunica- ção, educação para o lazer etc – nos processos de desenvolvimento pessoal e de socialização das pes- soas induz razoavelmente a pensar que cada um des- ses contextos tem, pelo menos em primeira instância, responsabilidades específicas no contexto daquela que, sem dúvida, é uma tarefa compartilhada por todos. As capacidades relacionadas à autonomia e às re- lações simétricas são construídas acima de tudo – ain- da que não exclusivamente – nos contextos de pares; o núcleo familiar, por sua vez, assume responsabilida- des diferentes, como o apoio ao desenvolvimento afe- tivo e emocional de seus membros. As responsabilidades da educação escolar Se considerarmos as demandas recebidas atual- mente pela escola, fica claro que a expectativa exis- tente é que a educação assuma responsabilidade no tocante a todas as áreas do desenvolvimento das pes- soas. Com efeito, quando têm de valorar a importância que diversos contextos exercem sobre a educação dos jovens, os pais consideram que a família é o con- texto que exerce mais influência em 94,9% dos ca- sos, porém a escola aparece como o segundo contex- to mais importante, com 89,9%. Essas expectativas, que podem ser reconhecidas com facilidade nas ruas e no debate social, também aparecem claramente em alguns documentos elaborados na última década por organismos internacionais com especial incidência no âmbito da educação. Em um dos mais representati- vos, para citar somente um exemplo, o relatório da UNESCO coordenado por Jacques Delors, “A edu- cação um tesouro a descobrir”, são identificados os quatro pilares da educação: ● O saber (aprender a conhecer); ● O saber fazer (aprender a fazer - colocando em prática seus conhecimentos) ● O viver (aprender a se conhecer e desenvolver a autonomia) ● O conviver (aprender a viver com os outros) Recentemente começou a ser priorizada outra fa- ceta do desenvolvimento, o saber empreender, que frisa a necessidade de adotar atitudes autônomas, tanto no âmbito da vida privada como no da vida pública e produtiva. Em suma, a função que tais instituições e foros internacionais atribuem à escola nos leva a con- siderar que a educação escolar deveria assumir responsabilidade em todas as capacidades envol- vidas no desenvolvimento global das pessoas. Certezas sobre a responsabilidade global da escola Essa responsabilidade global da escola não assu- me a mesma formaem todas as etapas educativas. Na educação básica e obrigatória há uma dupla fina- lidade: formar futuros cidadãos e cidadãs e prepará- las para prosseguir com sucesso sua formação poste- rior. Ambas as funções, terminal e propedêutica, de- vem estar presentes na estrutura e ordenamento do ensino, porém a primeira é essencial do ponto de vista do direito à educação e a igualdade de oportunidades. A tarefa de contribuir com a formação de cidadãos e cidadãs remete ao conjunto das capacidades que for- mam a natureza humana. Tipos de capacidade e áreas de desenvolvimento Destaca-se a função formativa da prática do- cente, mais importante do que meramente instru- tiva. Neste sentido se propõe uma tipologia de capa- cidades organizadas em cinco grandes áreas de de- senvolvimento: cognitivas ou intelectuais; motoras, emocionais ou de equilíbrio pessoal, de relação interpessoal e de in- serção e atuação social. A construção das capacidades ao longo da escolaridade Independente da unidade temporal para a qual as administrações educativas estabelecem as intenções educativas de caráter prescritivo – etapa, ciclo ou curso – nas normas curriculares – decretos de ensi- namentos mínimos ou de currículo – os professores são obrigados a estabelecer a ordem ou a sequ- ência em que tentarão fazer, mediante o ensino, 15 Odara - educação e cultura com que seus alunos adquiram ou desenvolvam as capacidades apresentadas nos objetivos das áreas e das matérias. A avaliação das capacidades O último passo no processo de concretização das intenções educativas refere-se às decisões relacio- nadas à sua avaliação, isto é, ao procedimento previs- to para verificar se, mediante o desenvolvimento do planejamento realizado, conseguiremos tornar reali- dade as intenções que o originaram. As atividades que os alunos devem realizar são o contexto em que exibirão uma série de comportamento observáveis que constituem, digamos, o material bá- sico para a avaliação. As atividades podem ser plane- jadas expressamente a fim de serem avaliadas, mas também podem ser as atividades e as tarefas de ensi- no e de aprendizagem previstas nas unidades didáti- cas contempladas de uma perspectiva avaliativa, isto é, como fonte de informação para saber até que pon- to os alunos adquiram as capacidades estabelecidas nos objetivos didáticos. Ensino para a compreensão: a pesquisa na prática Gardner, Howard et al INTRODUÇÃO - A IMPORTÂNCIA DA COMPREENSÃO Como os professores decidem os tópicos sobre os quais focalizar seu currículo? Como os alunos acabam compreendendo importantes matérias acadêmicas a partir desses exercícios? Como os professores aprendem a ensinar dessa maneira? Quais são as evidências de que os alunos aprendem a partir de tais desempenhos? Neste livro, um grupo de professores reflexivos e pesquisadores da Harvard Graduate School of Educacion respondem a essas questões com base em um projeto de pesquisa conjunta de seis anos. Descrevem as bases teóricas subjacentes ao marco conceitual do Ensino para a Compreensão (EpC), o processo, os resultados de sua aplicação em uma variedade de cenários de sala de aula e as implicações para a formação de professores e transformação da escola. O livro é destinado a uma ampla audiência, incluindo professores, líderes escolares, responsáveis por políticas de ensino, pais, formadores de professores e pesquisadores em educação, pois todos esses grupos devem sincronizar seus esforços a fim de tornar o EpC uma realidade nas escolas. PARTE 1 FUNDAMENTOS DO ENSINO PARA A COMPREENSÃO CAPÍTULO 1 POR QUE PRECISAMOS DE UMA PEDAGOGIA DA COMPREENSÃO? O ensino para a compreensão – a idéia de que aquilo que os alunos aprendem precisa ser internalizado e pode ser usado em muitas circunstâncias diferentes dentro e fora da sala de aula, servindo de base para um aprendizado contínuo e prolongado, sempre repleto de possibilidades – há muito tem sido endossado como uma meta educacional primordial nas escolas. Raramente, no entanto, tal meta virou norma. O amplo apelo dessa orientação educacional assim como o fracasso igualmente predominante para implementá- la ajudaram a gerar o programa de pesquisa descrito neste livro. CAPÍTULO 2 – O QUE É COMPREENSÃO? Conhecimento, habilidades e compreensão são as ações no mercado da educação. A maioria dos pro- fessores demonstra um forte comprometimento com os três. Todos querem alunos emergindo da escolari- zação ou de outras experiências de aprendizado com um bom repertório de conhecimento, habilidade bem desenvolvidas e uma compreensão do significado, da importância e da aplicação daquilo que estudam. Desta forma vale a pena perguntar qual concep- ção de conhecimento, habilidade e compreensão subs- creve o que acontece nas salas de aula entre profes- sores e alunos para estimular essas conquistas. Para conhecimento e habilidade, uma resposta aproximada vem rapidamente. Conhecimento é in- formação disponível. Temos certeza de que o aluno tem conhecimento quando ele pode reproduzi-lo ao ser perguntado. Se conhecimento é informação dis- ponível, habilidades são desempenhos de rotina disponíveis. Descobrimos se as habilidades estão presentes ativando o dispositivo. Para saber se um aluno escreve com boa gramática e ortografia, tire amostras de sua escrita. Para verificar habilidades matemáticas, aplique um teste ou dê a ele um proble- ma para resolver. A compreensão, porém, mostra-se mais sutil. Certamente não se reduz ao conhecimento. Compreender o que Colombo fez ou o que significa a primeira lei de Newton requer muito mais do que apenas reproduzir informações. Compreender é também mais que uma habilidade de rotina bem automatizada. O aluno que habilmente resolve questões de física ou redige parágrafos sobre um tema pode E N S IN O E A P R E N D IZ A G E M APEOESP - concurso 2010 - PEB II - FRANCA 16 não entender nada de física, redação ou sobre o que está escrevendo. Embora conhecimento e habilidade possam ser traduzidos como informação e desempenho de rotina à disposição, a compreensão foge a esses padrões simples. Então o que é compreensão? Uma resposta reside no cerne deste livro e deste projeto; é simples, porém repleta de implicações. Em uma frase, compreensão é a capacidade de pensar e agir de maneira flexível com o que se sabe. Dito de outro modo, a compreensão de um tópico é uma “capacidade de desempenho flexível” com ênfase na flexibilidade. Essa visão da compreensão como desempenho contrasta com outra visão da compreensão proeminente tanto em nossa linguagem cotidiana quanto na ciência cognitiva. Com freqüência, pensamos em uma compreensão como algum tipo de representação ou imagem ou modelo mental que as pessoas têm. Quando alcançamos a compreensão dizemos, “consegui”. Compreensões são coisas possuídas em vez de capacidades de desempenho. Um critério de desempenho para a compreensão Identificamos a compreensão por meio de um critério de desempenho flexível. A compreensão mostra a sua face quando as pessoas podem pensar e agir com flexibilidade em torno daquilo que sabem. Por outro lado, quando um aprendiz não consegue ir além da repetição, do pensamento e da ação rotineiros, isso sinaliza a falta de compreensão. Uma visão da compreensão como desempenho O critério do desempenho flexível indica a presença da compreensão. Mais isso nos diz o que é a compreensão? A proposta central aqui é que, sim, nos diz: não apenas as pessoas identificam a compreensão por meio do desempenho, mas também é razoável conceber a compreensão como uma capacidade de desempenho flexível. Compreender um tópico significa nada mais nada menos que ter um desempenho flexível com essa tópico – explicar, justificar, extrapolar, relacionar e aplicar de maneiras que vão além do conhecimento e da habilidade de rotina. Compreender é uma questão de ser capaz de pensar e agir de modo flexível quanto aquilo que você sabe. A capacidade de desempenho flexível é a compreensão. Uma visão de aprendizagem e ensino como desempenho A visão da compreensão como desempenhofavorece a aprendizagem processual e estimula aprendizes processuais. Ninguém vê a aquisição de um desempenho complexo como uma questão de “pegar algo”. Desempenhos requerem atenção, prática, refinamento. Desempenhos caracteristica- mente envolvem múltiplos aspectos que necessitam de coordenação cuidadosa e engenhosa. Na verdade esta é a principal implicação geral da teoria da com- preensão como desempenho: desenvolver a com- preensão deveria corresponder a chegar a um repertório de desempenhos complexos. Alcan- çar a compreensão é menos adquirir algo e mais aprender a agir de forma flexível. Um tipo de construtivismo A visão de aprendizagem para a compreensão aqui expressa possui clara tendência construtivista, desafiando a idéia de que aprender centra-se em in- formação, reenquadrando o papel do professor mais como o de um treinador e colocando bem no centro os esforços do aprendiz para construir compre- ensão. Todavia, quase todas as abordagens contem- porâneas de ensino e aprendizagem têm caráter cons- trutivista. O que torna esta aqui diferente? Uma resposta possível é que ela não deveria ser diferente demais. Existem insights consideráveis em uma variedade de abordagens contemporâneas de ensino e aprendizagem. Mais que isso, o trabalho dis- cutido neste livro revelou seguidas vezes a sabedoria da prática do professor. Muitos professores que nun- ca ouviram falar de desempenhos de compreensão têm se valido de formas criativas de ensinar que equi- valem a uma abordagem de desempenho. O que se constrói: representação versus capacidade de desempenho. Em qualquer versão do construtivismo, uma questão fundamental é o que se constrói. A resposta mais comum, implícita ou explícita, é uma representação de algum tipo – um esquema de ação ou um modelo mental. O aprendiz constrói e revê um representação mental para corresponder ao tópico. A visão de compreensão como desempenho desafia a centralidade das representações. O que o aprendiz adquire não é simplesmente uma representação, mas uma capacidade de desempenho. Aprender um tópico com compreensão não é tanto construir uma representação, para corresponder ao tópico, quanto desenvolver uma capacidade de desempenho flexível acerca dele. Na verdade, a metáfora da construção torna-se menos adequada, pode-se-ia dizer que aprendizes constroem desempenho, mas é mais natural que eles os desenvolvam ou os elaboram. Como a compreensão supostamente é a representação mental, chegar a tal representação é central. Contudo, apenas dizer às pessoas o que pensar geralmente não instila boas representações mentais; se você apenas explica as leis de Newton, as pessoas “não pegam”. Assim, a fim de chegar a uma boa representação mental, os aprendizes têm de descobri- la – se bem que com alguma ajuda – por si mesmos. A descoberta torna-se o desempenho central da compreensão. A visão da compreensão como desempenho produz um tipo de construtivismo, o qual pode ser chamado de construtivismo de desempenho 17 Odara - educação e cultura E N S IN O E A P R E N D IZ A G E M devido à sua maior ênfase em construir o repertório de desempenhos de compreensão do aprendiz, em vez de cultivar a construção de representações. PARTE 2 O ENSINO PARA A COMPREENSÃO EM SALA DE AULA CAPÍTULO 3 – O QUE É ENSINO PARA A COMPREENSÃO? Uma pedagogia da compreensão necessita de algo mais além de idéias sobre a natureza da compreensão e de seu desenvolvimento. Um marco conceitual guia deve abordar quatro questões-chaves: 1-Que tópicos valem a pena compreender? 2-O que os alunos precisam compreender sobre eles? 3-Como podemos estimular a compreensão? 4-Como podemos saber o que os alunos compreendem? O projeto de pesquisa conjunto sobre EpC desenvolveu uma forma de responder a essas questões por meio de um marco conceitual de quatro pontos. Seus elementos são: ● Tópicos de geradores ● Metas de compreensão ● Desempenhos de compreensão ● Avaliação contínua Cada elemento focaliza pesquisas em torno de uma dessas questões-chave: define o que vale a pena compreender ao identificar tópicos ou temas geradores e organizar o currículo em torno deles; esclarece o que os aprendizes precisam compreender ao articular metas claras centradas em compreensões-chaves; estimula a aprendizagem dos alunos ao engajá-los em desempenhos de compreensão que requerem deles a aplicação, a ampliação e a síntese do que sabem bem, assim como monitora e promove o progresso dos aprendizes por intermédio de avaliações contínuas de seus desempenhos a partir de critérios diretamente relacionados às metas de compreensão. Tópicos geradores Um tópico pode ser gerador quando é central ao domínio da disciplina, é acessível e interessante para os alunos, estimula as paixões intelectuais do professor e é facilmente relacionado a outros tópicos, tanto dentro quanto fora do domínio específico. O currículo construído em torno de tópicos geradores engaja os alunos no desenvolvimento de compreensões que proporcionam uma base para atividades mais complexas no domínio ou disciplina. Tais tópicos são tipicamente considerados por profissionais da área como relacionados a conceitos centrais, longas controvérsias ou importantes modos de pesquisa em sua disciplina. Metas de compreensão Metas de compreensão especificam explicitamente o que se espera que os alunos venham a compreender. Enquanto os tópicos ou temas geradores delineiam a matéria que os alunos irão investigar, as metas definem mais especificamente as idéias, os processos, as relações ou questões que os alunos compreenderão melhor por intermédio de sua pesquisa. Desempenhos de compreensão Desempenhos de compreensão são, talvez, o elemento mais fundamental do marco conceitual de EpC. A concepção da compreensão como um desempenho em vez de um estado mental sublinha todo o projeto de pesquisa conjunta no qual o marco se baseia. A visão de desempenho enfatiza a compreensão como a capacidade e a tendência de usar o que se sabe para operar no mundo. Avaliação contínua O quarto elemento do marco conceitual do EpC é a avaliação contínua dos desempenhos em relação às metas de compreensão. A aprendizagem avança a partir da avaliação de seus próprios desempenhos e de outros em relação a critérios claros. Assim, a avaliação não só amplia como também mede a aprendizagem. Por fim, se o ensino é eficaz, a avaliação do desempenho de alguém torna-se quase automática; a pessoa compara continuamente o seu desempenho atual com o ponto anterior onde estava e aonde deseja chegar. A avaliação contínua costuma ser designada como elemento mais desafiador do marco conceitual do EpC. Parte de sua dificuldade emerge porque os professores devem compreender os demais elementos do marco a fim de abordar este que ora consideramos. Eles devem especificar metas de compreensão claras e planejar desempenhos de compreensão específicos a fim de definir critérios apropriados para avaliar desempenhos. No entanto, a divulgação pública dos critérios de avaliação perturba a cultura do segredo presente na maioria das formas de avaliação das escolas e requer que os professores renunciem ao seu papel de árbitros exclusivos da excelência e negociem a autoridade intelectual com os alunos. Integração dos elementos do ensino para a compreensão Embora cada elemento do marco conceitual do EpC possa ser usado como um foco para analisar aspectos particulares da prática educacional, o poder desse marco deriva da correta integração de todos os quatro elementos. Professores que usam o marco conceitual para intensificar seus esforços de ensinar para a compreensão podem começar pensando sobre qualquer um dos elementos. APEOESP - concurso 2010 - PEB II - FRANCA 18 A natureza e o papel do marco conceitual O marco conceitual do EpC funda-se sobre uma definição de compreensão como desempenho criati- vo. Assim, a compreensão sempre envolve invenção pessoal; nunca pode ser simplesmente transmitida de um gerador para um receptor, mas deve ser constru- ída a partir da própria experiência e do trabalho inte- lectualdo aprendiz. O marco conceitual do EpC orienta professores a revisitar antigas questões sobre o que e como ensi- nar. Ele os incentiva a continuar aprendendo sobre sua matéria, enquanto desenvolvem tópicos gerado- res mais potentes, e a articular metas de compreen- são mais penetrantes. Ele os ajuda a ouvir seus alu- nos a fim de aprender como estão entendendo o cur- rículo e ajustá-lo visando a atender aos interesses, e aos pontos fortes e pontos fracos dos alunos. CAPÍTULO 4 COMO OS PROFESSORES APRENDEM A ENSINAR PARA A COMPREENSÃO? O trabalho com professores durante os anos iniciais do projeto revelou que aprender a ensinar para a compreensão é, por si só, um processo de desenvolvimento de compreensão. A partir dessa perspectiva, o próprio marco do EpC oferece uma base para orientar o processo. A pesquisa – ação combina apoio para mudança com análise do processo de mudança. Nesse projeto, a pesquisa – ação sobre aprender a ensinar para a compreensão tornou-se uma imagem refletida do processo de EpC que professores implementaram em suas classes. Para as ambas as práticas de pesquisa e ensino dos professores o marco conceitual do EpC fundamentou a definição de metas, o apoio aos desempenhos de compreensão e as oportunidades regulares de avaliar e melhorar tais desempenhos. Com o marco funcionando como a base conceitu- al dessa pesquisa, definimos quatro tipos ou estágios de compreensão do EpC, cada um associado a de- sempenhos de compreensão específicos: ● Compreensão – analisar a prática educativa em relação aos quatro elementos-chave ● Planejamento – planejar unidades de currículo que exemplifiquem todos os quatro elementos do marco do EpC ● Implementação – Ensinar uma unidade curricu- lar que implemente os quatro elementos-chave ● Integração – planejar e ensinar uma sequência de unidades curriculares durante meses para alicer- çar os desempenhos dos alunos a níveis cada vez mais elevados. CAPÍTULO 5 COMO É O ENSINO PARA A COMPREENSÃO NA PRÁTICA? O marco conceitual do EpC oferece orientação, mas faz muitas exigências ao conhecimento o ao tempo dos professores no planejamento de currículo e pedagogia. Em vez de ditar um conjunto de procedimentos de alguém de fora, o marco é um instrumento adequado que permite aos professores abordar suas próprias necessidades no planejamento curricular enquanto estimula os alunos a tomar o controle de seu aprendizado. O EpC não é um processo prescritivo nem linear. É um processo sutil que requer atenção contínua, apoio e interação. Os professores iniciam o trabalho a partir de suas paixões, interesses, necessidades e metas. Gradualmente, integram o marco conceitual à sua prática por meios de ciclos de planejamento de currículo, do engajamento dos alunos em desempenhos de compreensão, da avaliação desses desempenhos e do planejamento curricular em resposta aos avanços e problemas dos alunos. PARTE 3 A COMPREENSÃO DOS ALUNOS EM SALA DE AULA Quatro níveis de compreensão As quatro dimensões ilustram a natureza multidimensional da compreensão. Enquanto algumas dimensões podem ser mais proeminentes que outras em desempenhos específicos, a compreensão profunda envolve a capacidade de usar conhecimento em todas as dimensões. Em virtude de a profundidade da compreensão poder variar em cada dimensão, é necessário distinguir desempenhos mais fracos dos mais complexos. Foi com esse objetivo em mente que caracterizamos os quatro níveis protótipos de compreensão por dimensão: ● Ingênuo – fundamentam-se em conhecimento intuitivo. Retratam a construção de conhecimento como um processo não-problemático de entender informações que estão diretamente disponíveis no mundo. ● Principiante – são predominantemente fundamentados em rituais e mecanismos de teste e escolarização. Esses desempenhos começam a interpor alguns conceitos ou idéias disciplinares. Retratam a natureza e os objetivos da construção dos conhecimentos, assim como suas formas de expressão e comunicação como procedimentos mecânicos passo- a-passo. ● Aprendiz – são fundamentados em conhecimentos e modos de pensamento disciplinar. Demonstram uso flexível de conceitos ou idéias disciplinares. A 19 Odara - educação e cultura E N S IN O E A P R E N D IZ A G E M construção do conhecimento é vista como complexa, seguindo procedimentos e critérios tipicamente empregados por especialistas da área. ● Avançado – são predominantemente integradores, criativos e críticos. Os alunos nesse nível são capazes de transitar com flexibilidade entre dimensões, relacionando os critérios pelos quais o conhecimento é construído e validado em uma disciplina de acordo com natureza de seu objeto de estudo ou aos objetos de pesquisa na área. PARTE 4 PROMOVENDO O ENSINO PARA A COMPREENSÃO Como podemos preparar novos professores? E nosso trabalho contínuo, empenhamos uma energia considerável no apoio a professores para adquirirem controle pessoal do marco conceitual EpC e desenvolverem aspectos de sua prática de ensino em torno dele. Também introduzimos o marco nos Programas de Formação de Professores da Universidade de Harvard, acreditando que ele seria particularmente útil, aos que estão se preparando para o ensino, para terem tanto experiência teórica quanto prática com o marco conceitual como parte de sua formação. O marco conceitual propriamente dito é introduzido na metade do curso, porém muito de sua concepção é introduzida mais cedo nos currículos que constam destes cursos. Como o ensino para a compreensão pode ser ampliado nas escolas? Nenhuma inovação irá produzir uma ampla melhoria na escola pública se ela se desenvolver apenas nas mãos de professores com capacidade e apoio incomuns. As lições para aqueles que desejam integrar o conceito de EpC na prática destas escolas sugerem que basta somente a iniciativa de professores “de baixo para cima”, é preciso a liderança e o apoio de administradores “de cima para baixo” para se promover uma ampla implementação do EpC. O ensino na sociedade do conhecimento: educação na era da insegurança Hargreaves, Andy. Porto Alegre: Artmed, 2004. INTRODUÇÃO O livro do Prof. Hargreaves, baseia-se em evi- dências e pesquisas obtidas em dois projetos de re- forma do ensino médio no Canadá e nos EUA. Foram pesquisadas seis escolas canadenses e duas escolas norte-americanas durante cinco anos. As interações com os professores e diretores e os desafios colocados, mostraram os LIMITES e o PO- TENCIAL das reformas atuais do ensino em todo o mundo. Segundo o autor, apesar das evidências e experi- ências terem ocorrido nos EUA e Canadá, geralmen- te possuem implicações mundiais. A época atual, segundo o autor, é propícia para os que estão engajados em uma reforma educacional ampla. Políticas - Práticas - Conhecimentos de Pes- quisas estão alinhados e aprendendo ativamente uns com os outros. E está funcionando! Contudo ainda resta muito a ser feito, “a educa- ção deve refletir uma visão acerca do futuro, e a edu- cação do futuro precisa oferecer coerência e experi- ência comum, junto com uma prática diversificada e uma atenção individual” (A. Toffler) Não é fácil... esse futuro apresenta desafios radi- calmente diferentes e é por isso que precisa de uma abordagem diferente, são esses os desafios: 1) As demandas que se colocam hoje para os jo- vens do século XXI são profundamente diferentes dos anteriores. 2) As demandas dos jovens estão mudando. A maioria dos jovens se dizem entediados com a escola. A razão está no currículo e na forma como os en- sinamos. 3) O desafio de como os ensinamos precisa mu- dar. É preciso não apenas transmitir conhecimento, mas também o aprendizado de como aprender, ampli- ar seus horizontes e qualificar os professores. São esses os desafios enfrentados por professo- res e estudantes na Sociedade do Conhecimento, que vivem em uma economia do conhecimento. As economias do conhecimento são estimuladas e movidas pela criatividade e pela inventividade e as escolas da sociedade do conhecimento precisa gerar essas qualidades, caso contrário,
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