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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS - UFSCar Pesquisa Qualitativa Aplicada às Ciências Sociais Resenha Esse obscuro objeto da pesquisa - Um manual de métodos, técnicas e teses em Antropologia - Oscar Calavia Sáez O livro “Esse obscuro objeto da pesquisa” de Oscar Calavia Sáez trata-se de um manual que segue, exclusivamente, o rastro das perguntas e dúvidas levantadas por seus alunos, problemas encontrados em suas orientações e outros temas interconectados uns nos outros. Sua abordagem durante o livro tem caráter sugestivo, dando recomendações e dicas para o pesquisador iniciante acerca de tudo que constitui a elaboração de um trabalho etnográfico, desde a coleta de material bruto, em campo, até elaboração do texto, já fora de cena, definições e conceitos, etc. O livro se trata de um manual, de caráter diferente dos demais; pretende ser uma espécie de guia para viageiros e em certo sentido, um livro de autoajuda; fornece dicas, exemplos e casos específicos. A primeira coisa a se esclarecer, de forma breve, foi a própria antropologia. A ciência, atualmente, se revela um tanto indisciplinada, “que faz e desfaz o mundo com os mesmos movimentos com que se faz e desfaz a si mesma”, estando em permanente crise de identidade; ninguém consegue precisar com exatidão o que é a disciplina. A questão que se coloca, inicialmente, perpassa entre a própria cientificidade da disciplina. A antropologia, em si, é uma ciência? O autor deixa claro, em sua opinião, que sim. Mas para responder tal questão, não definitivamente, empreende três discussões: a primeira, sobre a própria objetividade da ciência, de um modo geral, abordando autores como Popper, Wittgenstein e Thomas Kuhn, acerca do ponto de vista de como as discussões da área da epistemologia vieram se desenvolvendo; o divórcio entre ciências naturais e ciências humanas (a distinção entre a ciência nomotéticas e ideográficas) e, por último, a defesa mínima de um conjunto de regras do jogo, da qual é preciso cultivar para que o campo específico do conhecimento possa se firmar enquanto ciência. A partir daí ele vai discutir as relações da antropologia com outras áreas: literatura, história, filosofia e da antropologia enquanto etnografia. O nos interessa, no entanto, é o último tópico. A antropologia, atualmente, tende a se definir como etnografia. Porém, ela nem sempre esteve disposta a se proclamar como tal. Pode-se estabelecer uma espécie de pirâmide para alocar as posições que anteriormente elas detinham: primeiramente, a antropologia, logo após a etnologia e por fim a etnografia. No entanto, esses patamares ruíram e a etnografia ascendeu na consideração dos acadêmicos. A partir do momento que a disciplina se desfez das amarras ligadas às constituições dos estados nacionais, ela passou a ser, sobretudo, ofício etnográfico. A seguir, em teoria, métodos e técnicas, o autor define brevemente sobre alguns conceitos importantes. As técnicas estão dentro de um universo muito vasto e aberto, abrangendo até mesmo a fotografia, cinematografia, armar uma barraca, dirigir um carro etc., isto é, inúmeras habilidades necessárias para uma investigação etnográfica, sendo difícil definir qual “facilita a vida do pesquisador”. No entanto, ressalva o autor, definir a observação participante como uma técnica, é um ato extremamente redutor. Ela é muito mais do que isso, “é um ambiente dentro do qual ganham um valor modificado outras técnicas também em si muito amplas”, se trata de uma arte de viver olhando em volta. O método, assim como ela, não se reduz a um conjunto de métodos. Antes de mais nada, ele é um protocolo de conduta, uma espécie de valor ético. Agir metodologicamente significa seguir até o final as pistas oferecidas pela técnica. Já a teoria, é um hipertexto, é “uma organização do texto em que todos os elementos remetem, não só a um objeto descrito, mas a outros os discursos elaborados a seu respeito”. Ela deve ser minimalista, sem que sua descrição ocupe o centro da cena. Para classificar as teorias, o autor utiliza diferentes tipos de metáforas e ao final delas enfatiza que o melhor não é apenas optar por uma ou outra, e sim a possibilidade de variar entre elas. A partir daqui, há dois capítulos que compõem um conjunto de dicas e orientações bastantes pragmáticas acerca do que o pesquisador deveria observar ao longo do processo de elaboração de sua tese. A tese é um longo escrito, mas não necessariamente um livro, já que “um bom livro é mais difícil de escrever, e mais agradável de ler, que uma boa tese sobre o mesmo tema”. Ela atende um protocolo/formato bastante repetitivo; uma espécie de formulário preestabelecido. Ela é a peça que faz a conexão entre o período de formação do pesquisador, e o longo período de formação teórica acadêmica. O pesquisador, a qual está produzindo a tese, jamais deve abrir mão de sua autoria, seja ela em conjunto ou individual. No entanto, a propriedade intelectual tem tomando com frequência, segundo ele, a forma de uma autoria por exclusão, isto é, autoria diacrítica. Um bom volume desse capítulo diz respeito a bibliografia, e dicas de como citar outros autores de maneira apropriada. E por fim, há também o projeto, que se situa entre a formação do pesquisador e a pesquisa, e deve ser formulado de maneira mais breve possível. Ele é quem dá a estrutura para a tese, fazendo uma definição provisória, se delineando em uma base segmentar. Por fim, os dois últimos capítulos constituem um bloco, isto porque o primeiro é um conjunto de recomendações para o etnógrafo iniciante conduzir a sua pesquisa, uma vez em campo, e o segundo, diz respeito ao que fazer com os dados/materiais coletados após sair de cena. O campo é o “episódio” fundamental para o etnógrafo, visto como um ritual de iniciação, tanto que sua autoridade etnográfica se constitui através de “estar lá”,O campo é um modo relativamente simples e acessível de dar ao pesquisador iniciante uma voz independente, capaz de interpelar as sumidades da academia”. Em algumas páginas o autor dialoga sobre como transformar aquilo que é “normal” para nós, em algo exótico – sem olharmos bem de perto, as coisas não são tão normais quanto parecem. Acerca de como se comportar, uma vez nele, o autor ressalta que não existe uma fórmula específica para tal questão. No entanto, todos os cuidados que você tem no contexto usual das suas relações, podem ser transferidos para tal; cuidados, gentileza, respeito, moderação, uma certa razoabilidade, etc. O campo na antropologia, em certo sentido, é ao contrário do laboratório. Ele é, precisamente, aquela situação em que o controle sobre as variáveis lhe fogem completamente das mãos, isto é, o trabalho de campo é, por definição, a situação de estudo em que se renuncia a controlar as condições do estudo. Ele é marcado pelos imponderáveis e pelo contexto. A cobaia, no caso, não é um animal, e sim o próprio antropólogo, e as variáveis são os seus conceitos. O diário de campo é, de longe, o principal elemento técnico e metodológico da pesquisa etnográfica . Ele é caracterizado por centralizar todas as atividades e ideias do atuante, sendo uma espécie de suporte físico. Em etnografia: na mesa, o autor retoma algumas observações sobre os dados, e se concentra especialmente na ideia de descrição densa. O mundo não é feito de dados, nós os produzimos, e que se esses dados são produzidos pelos sujeitos da pesquisa, eles que são potencialmente infinitos: nunca se reunirão todos os dados, e eles nunca podem ser exaustivos (ser exaustivo é o modo mais rápido de ser chegar a um erro). Tendo essa noção, é preciso tomar um grande cuidado com a enorme facilidade, atualmente, dos registros dessas informações, especialmente através da gravação. Hoje em dia, é raro encontrar alguém que se limite a levantar uma documentação etnográfica utilizando-se de meiosmanuais, dado que, o pesquisador iniciante acaba gerando uma massa intratável de materiais. No entanto, o autor dá dicas, brevemente, sobre como lidar com a tecnologia e o grande armazenamento desses dados. A etnografia que você produz na mesa sempre será uma descrição, afirma ele. Ela não é um listado de dados, mas uma operação que estabelece conexões entre eles. Na hora de os produzir, as anotações diárias se tornarão a tua base, ou até mesmo, o seu grande companheiro; teu livro de cabeceira. Essas várias leituras registradas permitirá que você veja as coisas de outra maneira, e captar fatos antes não vistos. Uma descrição densa traz os fatos junto com a interpretação. Ela incorpora intencionalidade dos atores que estão em cena, produz comparações entre esse objeto e objetos do mesmo tipo; que dá interpretações dos próprios, assim como interpretações do próprio observador e lida. A descrição etnográfica enquanto descrição densa é aquela que trata de fatores, elementos, aspectos que não são previsíveis ou que não são fotografáveis, que são muito específicos. De fato, como podemos ver, o livro se revela um longo guia de recomendações e dicas para pesquisadores iniciantes, ou até mesmo aqueles que já estão na área faz um tempo. Ele abordou tópicos importantes, mesmo que alguns pareçam óbvios, de certa maneira, definiu vários conceitos, esclareceu dúvidas, deu casos, exemplos e objeções etc., fez o papel de um bom manual; guia para viageiros. Há alguns pontos específicos que gostaria de comentar de forma positiva, como por exemplo, a questão da participação. O autor, menciona o seguinte trecho, “o pesquisador, na verdade, está bem visível aí no palco, não necessariamente no seu centro, e mais vale contar com isso”, assumindo que, não é possível, para o pesquisador querer se “invisibilizar”, ou fazer de conta que não está lá, pois este é extremamente marcante para o objeto de estudo em questão. E além do mais, como cita, não é possível produzir um relato etnográfico sem a interação social, sendo a sua presença a mediadora do comportamento nativo frente ao evento. Essa ideia se conecta, em alguns aspectos, com o autor Bruce Albert, em seu texto “Situação Etnográfica e Movimentos Étnicos. Notas sobre o trabalho de campo pós-malinowskiano”, onde afirma que a participação do etnógrafo, frente a vida nativa, é a própria condição para a pesquisa etnográfica. O ponto que quero chegar é, o pesquisador é incapaz de se tornar neutro dentro do campo de pesquisa (se tornar invisível), e há uma necessidade postulada e debatida entre muitos autores, da interação social e a participação efetiva do antropólogo frente a vida nativa, colocando em cheque o seu trabalho, pois o comportamento nativo se desenvolve através disso. Outro ponto debatido pelo autor percorre sobre a utilização do diário de campo. Este é, sem dúvida nenhuma, o objeto mais importante para se ter em campo, como no autor mesmo cita, “o diário de campo é, de longe, o principal elemento técnico y metodológico da pesquisa etnográfica (…) sem diário de campo não é uma pesquisa etnográfica”. Por mais que seja um artefato simples do dia a dia, ele é a base de sua pesquisa. Para abordar sobre o tema, recorro ao relato de Favret-Saada, em seu texto “Ser Afetado”, onde a autora, devido às circunstâncias, deixou o seu posto de observadora, adentrando ao conceito de participação observante, colocando em risco todo o seu trabalho intelectual, e se integrou aos rituais de “desenfeitiçamento”. Ela permitiu perder o controle da situação e deixar-se afetar pelo fenômeno, se apoiando exclusivamente em seu diário. A descrição no diário não era feita imediatamente, pois como mencionei, ela estava imersa na participação efetiva das celebrações, e qualquer ato, como escrever a descrição dos episódios, a faria perder todo o fenômeno presente. No entanto, assim que possível, ela “despejava” todo o turbilhão de experiências que passava em sua mente, muitas vezes complexas, ao seu diário de campo, a fim de compreender o que havia acontecido. No meio de uma vasta absorção de novas experiências, a autora agiu metodicamente, ato que permitiu estar consciente durante todo o seu percurso na pesquisa e concluir o seu trabalho. Portanto, a documentação dos fatos ante a seu diário de campo, possibilita que você contorne a situação e veja os dados com mais clareza, e, ainda mais, após sair de campo, obter percepções que antes você não havia observado, sendo o artefato físico mais precioso do antropólogo.
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