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1 ANÁLISE DA PRODUÇÃO ESCRITA DOS SURDOS: A INTERFERÊNCIA DA LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS Mônica de Gois Silva Barbosa1 Vagner dos Santos Barbosa2 Eixo temático 11: Estudos da linguagem Resumo Este artigo apresenta aspectos relevantes sobre a produção escrita de alunos surdos, no gênero relato de experiência vivida. Objetiva-se analisar as principais características do texto escrito pelos surdos, com o intuito de compreender as interferências da LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais, língua materna da comunidade surda brasileira, na escrita da Língua Portuguesa, sua segunda língua. O texto analisado foi escrito por uma jovem com surdez moderada, oralizada e usuária da LIBRAS, com nível médio completo. A produção foi fruto de uma atividade de Língua Portuguesa de um curso profissionalizante. A análise permitirá compreender determinadas particularidades dessa escrita nos níveis fonológico, morfológico e sintático, possibilitando a construção de sentido do texto, como também contribuirá para que professores de surdos conheçam as características da interlíngua nas produções de tais alunos. Palavras-chave: Produção escrita. Língua Portuguesa. LIBRAS. Abstract: This paper presents relevant aspects of the written production of deaf students in gender reporting experience. It aims to analyze the main features of the text written by the deaf, in order to understand the noise in LIBRAS - Brazilian sign language, mother tongue of the deaf community in Brazil, written in Portuguese, their second language. The work reviewed was written by a young man with moderate deafness, maintain oral function and user of LIBRAS, with medium full. The production was a result of activity of Portuguese Language an apprenticeship. The analysis will understand the particularities of their writing levels phonological, morphological and syntactic, allowing the construction of meaning of the text, but also will help teachers of the deaf know the characteristics of interlanguage in productions of such students. Keywords: Written production. Portuguese Language. LIBRAS. Introdução 2 A educação de pessoas surdas tem percorrido um caminho de dores, lutas e vitórias. Dentre as conquistas ressalta-se o reconhecimento da LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais) como primeira língua da comunidade surda do Brasil. Porém, esse reconhecimento não tem proporcionado as mudanças desejadas, dentre elas, o ensino do português como segunda língua. Como consequência disso, as produções escritas dos surdos são avaliadas sem levar em conta a interferência da língua materna no aprendizado da segunda língua. Diante do exposto pode-se questionar: será que o desempenho linguístico da produção escrita analisada é desprovida de sentido? Ou ainda, será que as peculiaridades da produção escrita dos surdos impossibilitam a coerência do texto? Dessa forma, neste artigo serão examinadas as influências da LIBRAS na produção escrita de surdos. Para tanto, objetiva-se aqui analisar as características dessa interferência na escrita e compreender os procedimentos de construção de sentido na escrita da pessoa surda. O artigo organiza-se em duas partes: a primeira trata-se dos pressupostos teóricos e a segunda aborda a análise do texto. A fundamentação teórica subdivide-se em três tópicos. O primeiro refere-se a um breve apanhado histórico com o intuito de contextualizar a atual situação educacional da pessoa surda. O segundo trata-se de diferenciar aspectos gramaticais da língua de sinais em relação à língua portuguesa e as implicações da LIBRAS na produção escrita da língua portuguesa. Nessa seção serão abordadas as categorias de análise. E o terceiro tópico explanará algumas características do gênero relato de experiência vivida. A elaboração deste artigo justifica-se diante da relevância do assunto por se tratar de falantes da LIBRAS aprendizes do português como segunda língua. O artigo tratará de um conteúdo relevante para pesquisadores e professores interessados em estudos linguísticos, pois possibilitará um esclarecimento sobre as características da escrita do surdo, permitindo um novo olhar sobre tais produções. Trajetória da educação de surdos Desde a Antiguidade e por quase toda a Idade Média os surdos eram vistos como incapazes de serem educados, nem mesmo exercer direitos legais, como casar e herdar bens. No início do século XVI, houve a aceitação da educação para surdos através de metodologia que desenvolvesse o pensamento através do ensino da fala e da compreensão da língua falada. Pensava-se que a habilidade de falar com a voz estava intrinsecamente associada à inteligência. Entretanto, esse ensino era restrito aos filhos de nobres, por isso, pouquíssimos surdos tinham acesso. Além disso, segundo Soares (2005), desde o início da Idade Moderna 3 os surdos eram alvos da medicina e da religião. Sendo uma deficiência relacionada a uma anomalia orgânica, a surdez-mudez3 constituía um desafio para medicina. E segundo os preceitos religiosos, deviam-se ajudar os desvalidos, entre eles, aqueles que não podiam ouvir nem falar. (SOARES, 2005) Em vários países da Europa, ouvintes desenvolveram métodos para ensinar aos surdos a língua de seu país, entre eles, destacaram-se na Itália, Girolamo Cardano; na Espanha, Pedro Ponce de Leon e Juan Pablo Bonet; na Alemanha, Samuel Heinicke e Moritz Hill, na França, Charles Michael de L’Epée que funda, em Paris, a primeira escola para surdos em 1775, entre outros. Alguns desses professores utilizaram o método “oralista puro”, que se voltava unicamente para o ensino da língua falada. Outros acreditavam que a melhor metodologia de ensino para os surdos era o “método combinado”, que utilizava a língua de sinais como meio para o ensino da fala. Dentre essas práticas, muitas vezes o conhecimento que os surdos adquiriam eram por meio da escrita. Por isso, muitos médicos desenvolveram praticas de ensinar os surdos a ler e escrever para adquirir a fala. (SOARES, 2005, p.24). Entretanto, conforme Zumthor (1993, p. 18-22) a primeira forma de comunicação humana foi a oralização, por isso a preocupação tão grande de médicos e educadores em desenvolver a fala na pessoa surda. O fato de ensinarem a escrita justifica-se por ela ser um instrumento para chegar a fala que era tão valorizada em uma sociedade que tinha a escrita como algo externo, parcial e atrasada. (ZUMTHOR, 1993, p. 18) Dos professores citados acima o que influenciou na educação dos Surdos no Brasil foi o francês Michael de L’Epée, pois vem do seu Instituto para o Brasil o professor Ernest Huet. Chega em 1855, no Rio de Janeiro, num momento social em que tais indivíduos não eram reconhecidos como cidadãos. Esse professor, em 1857, fundou a primeira escola para surdos no Brasil, o Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), antigo Instituto dos Surdos- Mudos. Foi a partir desse instituto que surgiu a Língua Brasileira de Sinais, a partir da combinação da Língua de Sinais Francesa com a língua de sinais já usada por surdos de várias regiões do Brasil. Em 1880, aconteceu o congresso de Milão. Evento internacional que resultou no fortalecimento da filosofia oralista, sendo desta forma, um verdadeiro retrocesso na educação dos surdos do mundo todo. Essa tendência proibia os surdos de utilizar qualquer tipo de comunicação através dos sinais. O descontentamento com essa metodologia e estudos realizados sobre língua de sinais, que surgiram na década de 1960, deram origem a novas propostas pedagógico-educacionais em relação à educação da pessoa surda. 4 Passou a ser adotada, a partir da década de 1970, a filosofia educacional denominada comunicação total. Essa abordagem permite o uso de sinais, gestos, leitura orofacial, datilologia, desenho etc. Admitindo o contato com os sinais, antes proibido pelo oralismo, esse método possibilitou aos surdosse dispor a aprender a língua de sinais (LS). Entretanto, esta ainda não era reconhecida como língua natural dos surdos, era apenas um instrumento para se ensinar a Língua Portuguesa (LP). Paralelamente ao desenvolvimento das propostas de comunicação total foram surgindo pesquisas sobre línguas de sinais e conseqüentemente, estudos sobre uma metodologia voltada para educação bilíngue. Segundo o bilinguismo a língua de sinais é a língua materna dos surdos e a língua Portuguesa é a segunda língua. Desta forma, a educação bilíngue contrapõe-se ao oralismo, pois trabalha com uma pedagogia visual e entende que a oralização dos surdos não é de competência educacional. Ela contrapõe-se a comunicação total porque compreende que tanto a LP como a LS têm características próprias e é incompatível articulá-las simultaneamente, visto que os surdos precisam adquirir a língua de sinais com metodologia de ensino de língua materna e aprender a LP com metodologia de ensino de segunda língua (L2). (SALLES, 2004) A aplicação dessa metodologia ainda é recente e em muitos países, como no Brasil, as experiências ainda são poucas. Faltam profissionais habilitados e ainda há resistências de muitos em considerar a língua de sinais como língua natural dos surdos. Interferências da LIBRAS na escrita da Língua Portuguesa No primeiro artigo da lei de LIBRAS nº. 10.436, de 24 de abril de 2002 lemos: “É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais – Libras e outros recursos de expressão a ela associados”. Portanto, a LIBRAS é considerada como língua, isso porque diante de análises feitos por linguistas foi constatado que apresenta características de língua: Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza visual- motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. (lei 10.436, parágrafo único) Sendo uma língua com modalidade diferente da língua oral há repercussões diretas na aprendizagem escrita da segunda língua. Por isso, a análise de produções escritas de surdos 5 tem despertado interesse de linguistas e educadores. Algumas particularidades dos textos são apontadas por autores como: Quadros (2006), Salles (2004), Faria (2001), entre outros. Deve-se ressaltar que na aprendizagem do português como segunda língua, na modalidade escrita, ocorre a articulação das propriedades da língua materna (LIBRAS) e da língua alvo, dando origem à interlíngua4. Ao se referir aos estágios de interlíngua, Quadros e Schmiedt (2006, p. 34) esclarecem: “esses estágios de interlíngua apresentam características de um sistema linguístico com regras próprias e vai em direção à segunda língua.” Isto significa que em diversos estágios da escolarização do surdo, a sua produção escrita estará sujeita a diferenciações. Por isso, nas etapas iniciais a sua escrita estará muito mais marcada pelas características da língua de sinais, enquanto que nas etapas finais desse processo, mesmo com particularidades, ela estará mais próxima do português, sua segunda língua. Isso foi comprovado pelas pesquisas realizadas por Brocado (2003, p. 308) demonstrando os estágios de interlíngua em crianças surdas. Segundo ele, no estágio de interlíngua I, observa-se o emprego predominante de estratégias de transferência da língua de sinais (L1) para a escrita da Língua Portuguesa (L2). Já no estágio de interlíngua II, segundo o autor, constata-se na escrita de alguns alunos uma intensa mistura das duas línguas, em que se observa o emprego de estruturas linguísticas da Língua de Sinais Brasileira e o uso indiscriminado de elementos da Língua Portuguesa, na tentativa de apropriar-se da língua alvo. No terceiro estágio de interlíngua, há o emprego predominante da gramática da Língua Portuguesa em todos os níveis, principalmente, no sintático. Definindo-se pelo aparecimento de um número maior de frases na ordem Sujeito- Verbo-Objeto e de estruturas complexas. Diante dessas particularidades da interlíngua, o primeiro contato com um texto escrito por um surdo é algo desconcertante para o ouvinte. Isso acontece pelo fato de o ouvinte não conhecer a realidade do surdo e desconhecer que a produção escrita em LP trata-se de segunda língua. (SALLES, 2004, p. 118). Daí a importância de conhecermos as características da LIBRAS para compreender as implicações dessa língua na aprendizagem escrita da Língua Portuguesa. Primeiramente, deve-se ressaltar que, como qualquer outra língu,a a LIBRAS apresenta suas características gramaticais próprias, diferenciando-se, portanto, da estrutura da Língua Portuguesa. A respeito disso comenta Felipe (2005, p.21): A LIBRAS, como toda língua de sinais, é uma língua de modalidade gestual-visual que utiliza, como canal ou meio de comunicação, 6 movimentos gestuais e expressões faciais que são percebidas pela visão; portanto, diferencia da Língua Portuguesa, uma língua de modalidade oral- auditiva, que utiliza, como canal ou meio de comunicação, sons articulados que são percebidos pelos ouvidos. Mas as diferenças não estão somente na utilização de canais diferentes, estão também nas estruturas gramaticais de cada língua. Diante das diferenças das duas línguas, como categorias de análise, serão levadas em consideração a repercussão de tais diferenças nos níveis fonológicos, morfológico e sintático no texto produzido pelo surdo. Tais categorias baseiam-se na pesquisa desenvolvida por Faria (2001). Aspectos fonológicos No que se refere aos aspectos fonológicos, a LP tem como unidade mínima o som (fonema), na LIBRAS a articulação das mãos são comparadas aos fonemas. Essas articulações são denominadas de parâmetros, que são: configurações de mãos - a forma da mão; ponto de articulação – o lugar onde se posiciona a mão; movimento – os sinais podem ter ou não; orientação – a direção do sinal; expressão facial/corporal – muitos sinais necessitam de expressões feitas pelo rosto/ou corpo. Assim, a partir da combinação destes parâmetros são formados os sinais que são as palavras. Em relação às expressões faciais e corporais, que se refere ao quinto parâmetro da LIBRAS, na língua oral também há ocorrências de tais recursos que não estão presentes na escrita. Sobre isso, Carvalho afirma: A comunicação oral exige, além do conhecimento das normas que regem o funcionamento da língua, o manejo de recursos não verbais e paralinguísticos, como gestos, as expressões faciais, as entonações, etc., o que não ocorre na escrita, em que a coesão é estabelecida através do uso de conectivos, recorrência a lexicalizações e estruturas de maior complexidade. (2008, p. 65) Esses recursos não verbais são imprescindíveis nas duas línguas, pois eles interferem na interpretação e entendimento dos enunciados. Além de tais recursos, os aspectos fonológicos próprios de uma língua de modalidade espaço-visual repercutem na produção de textos escritos por educandos surdos. Interferindo diretamente na ortografia, acentuação e pontuação. Aspectos morfológicos 7 Em relação à morfologia, que é a parte da gramática que estuda as palavras e os elementos que as constituem, há uma grande diferença entre as línguas em questão. No que se refere à palavra, nas línguas orais-auditivas ela é denominada de item lexical, nas línguas de sinais são os sinais. Além de estudar a flexão das palavras, a morfologia também as divide em classes gramaticais. Neste caso, também há diferenças entre essas duas línguas. Por exemplo, na LIBRAS há ausência de conectivos de ligação pelo fato de a ligação entre os elementos se estabelecer no espaço. Assim, nas frases escritas produzidas por surdos, pode-se verificar falta de concordância de gênero enúmero. Há uma tendência em escrever verbos no infinitivo, ou flexão incorreta ocasionando estruturas inadequadas. Há omissão frequente dos verbos de ligação, devido a inexistência destes na LIBRAS. O uso inadequado ou ausência de conectivos. Há também escrita do verbo no lugar do adjetivo ou substantivo e vice-versa. Aspectos sintáticos A sintaxe estuda a relação das palavras nas frases. Na LIBRAS a sintaxe é espacial. Por isso há uma diferença no emprego do objeto que pode está à direita ou à esquerda do verbo. Isso acarreta em estruturas invertidas da Língua Portuguesa, principalmente por verbos com concordância pelo fato de ter incorporações aleatórias de pontos no espaço. O ponto inicial é o sujeito e o final é o objeto. De acordo com Faria (2001, p. 1), não foi encontrado estruturação passiva em LIBRAS. Dentre as repercussões na escrita, há uma escrita sem preocupação com a posição do objeto, produzindo estruturas invertidas (Objeto-Sujeito- Verbo) Gênero: relato de experiência vivida Antes da análise do texto, percebe-se que é importante esclarecer algumas características do gênero analisado. Primeiramente, ressalta-se que gênero textual também denominado de gênero discursivo é considerado aqui como “uma forma textual concretamente realizada e encontrada como texto empírico, materializado. O gênero tem existência concreta expressa em designações diversas, constituindo, em princípio, conjuntos abertos.” (MARCUSCHI, 2001, 42-43) O texto selecionado trata-se do gênero relato de experiência vivida. E em relação à condição de produção, o texto foi fruto de uma atividade solicitada pela professora de Língua 8 Portuguesa, no ano de 2006, em um curso de capacitação de surdos para o mercado de trabalho, oferecido numa parceria SENAC/APADA/Instituto G. Barbosa na cidade de Aracaju-Sergipe. Após uma visita a um dos supermercados da rede G. Barbosa, foi feito debate em sala de aula e solicitado o relato da experiência na forma escrita. O texto pertence a uma jovem com surdez moderada e oralizada, tendo nível médio completo. Sobre a autoria, é importante salientar que o escritor “é ele que dá um rumo ao que é dito, sendo responsável único pelo que faz, desde que não experimenta o envolvimento imediato com o interlocutor, típico de uma conversa, de um diálogo” (CARVALHO, 2008, p. 66). Assim, tratou-se de uma atividade planejada e houve um distanciamento dos interlocutores. Dentre as características desse gênero pode-se destacar que se encontram presentes no texto expressões gramaticais que revelam marcas da autoria, de diálogo e de tempo. Sendo estas marcas características próprias do gênero em questão. Dentre as marcas da autoria, pode-se destacar: • Expressões que revelam sentimentos pessoais; • O autor se revela no depoimento vivido pelo uso de verbos e pronomes na primeira pessoa. A vivência das pessoas não se dá de forma solitária. Por isso, em relatos pessoais, encontram-se características gramaticais que assinalam as marcas de diálogo com outros sujeitos que participaram dessa vivência, por isso: • Rememoram-se situações vividas com outros sujeitos; • Há presença de vozes desses sujeitos no depoimento, citado de forma direta ou indireta o que eles disseram. Percebe-se também uma relação dialógica entre o enunciador e o destinatário, pois segundo Kemiac (2008, p. 29), o dialogismo constitui a realidade fundamental da língua. Sobre isso Bakhtin (2000) afirma que “um enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação verbal de uma dada esfera.” Por isso que: • O enunciador se dirige ao leitor fazendo-lhe perguntas; • Inclui o leitor, outra característica do diálogo. Quando se produz um relato recorre-se à memória. Assim sendo, percebe-se marcas de tempo no texto. No caso em questão, a autora relata seu depoimento recordando sua visita ao supermercado G. Barbosa. Desta forma, pode-se perceber: • O Jogo do “agora” com o “ontem” do “aqui” com o “lá”; 9 • Os verbos usados expressam o ato de lembrar para mostrar a relação do presente com o passado, por isso pode-se verificar verbos no presente, pretérito imperfeito e pretérito perfeito. Relato de experiência vivida Texto Eu ver uma G. Barbosa ter muito de ótimo porque As pessoa esta trabalhar muito de certo mais fica tudo As Pessoa como certo ou errado, Eu já ver uma Mulher esta Educação, Respeito mais Ele viu amiga dela porque esta conversamos verdade Porque Eu não gosta muito de trabalho. não porque ter uma chefe não fica ver nada. Eu não gosta nada aqui G. Barbosa não damo nada esta muito feito. Eu ver uma Amiga minha nome dela Monica Só Ela esta trabalho muito de certo verdade Ela esta limpa cabelo também corpo roupa esta ótimo Também muito de Sorriso Alegra Só Monia. Ela era Boa Eu ter muito Cetasa Sim Verdade. Ela não Ter erro nada. Só certo verdade. Também Banheiro ter uma Porta está quebrar Verdade Eu ver já. Porta de Banheiro quebrar esta muito de feito. Sim não Pessoa vai falar muito de chefe porque ter homem ver Banheiro. nossa fala está Pior só Banheiro esta velho por favo Troca uma Porta novo de Banheiro. As pessoal não Poder (ocupado) conversamos Os homens esta vassoura vareto chão mais Ele ter Paciência não fica raiva porque pessoa já Ter paciência mais Ele ter muito de vergonha não poder. Eu ver uma carrinho muito de coisa ter Pessoas não quero compra porque ter tudo coisa esta velho Ter trocar outro novo Só mais Na Rua Ter muitos carrinhos deixou Rua porque os homens não quero trabalho preguiça de quer Os homens esta muito de ódio também nervoso esta ver ter um Amiga dele só fica esperar quer? O homem esta trabalho certo. Ele gosta muito carrinho onde fica guardar. Ele Ela trabalhar outro fazer Papel de presente. Mais ter trabalho certo porque Eles Elas falar Ela não quero Ajuda outro Amiga também Eu não gosto de trabalho de G. Barbosa mais Pessõa gosta fazer mal outro Eu nunca fazer amiga dela só fica nada. Nós ter fica certo não pode raiva outro Amiga. Eu ver ter muito de confusão tudo Eu ver ter água chão cuidado caí 10 Análise das Marcas de interferência da LIBRAS na produção escrita da Língua portuguesa 1. Aspectos fonológicos • Ortografia: Confusão entre a posição de algumas letras no vocábulo não damo nada Porta de Banheiro quebrar esta muito de feito: compreende-se que a aluna queria dizer porta feia. Só Monia: apagamento da letra c da palavra Mônica Eu ter muito Cetasa: palavra correta certeza por favo Troca...: esquecimento da letra r Os homens esta vassoura vareto chão: palavra varrendo Nota-se também, durante todo o texto, o uso inadequado de letras maiúsculas ou a sua falta após a pontuação: Banheiro. nossa fala está Pior • Acentuação: pode ter troca de acentuação, pois há memorização da acentuação por não reconhecer as sílabas tônicas; mais Pessõa gosta fazer: sinal do til inadequado • Pontuação: Pode-se verificar que em todo o texto há ausência de pontuação, seja de ponto final, vírgula ou ainda outros. Isso acontece pelo fato de a pontuação ser aparentemente vinculada à língua oral (entoação, ritmo, timbre). Eu ver uma G. Barbosa ter muito de ótimo porque As pessoa esta trabalhar muito de certo mais fica tudo As pessoal não Poder (ocupado) conversamos Os homens esta vassoura vareto chão mais Ele ter Paciência não fica raiva porque pessoa já Ter paciência mais Ele ter muito de vergonha não poder 2. Aspectos morfológicos • Gênero: supressão ou inadequação de uso. Eu ver uma G. Barbosa: como o substantivo termina com a letra “a”, a aluna associou ao artigo uma. uma carrinho 11 ter um Amiga dele Ajuda outro Amiga • Número: as concordâncias não são empregadas corretamente. As pessoa esta As Pessoa como certo ou errado As pessoal não Poder (ocupado) conversamos Os homens esta vassoura vareto chão não pode raivaoutro Amiga os homens não quero trabalho preguiça de quer Os homens esta A aluna não compreende que o uso de “eles” substitui essas repetições equivalendo as pessoas: Ele Ela trabalhar (...) porque Eles Elas falar: • Verbos: Há uma predominância de verbos na forma infinitiva, são poucos verbos flexionados, alguns incorretamente. Eu não gosta muito de trabalho Eu ver uma G. Barbosa ter muito Eu já ver Eu ter muito Cetasa (...) Ela não Ter • Verbos de ligação: há omissão freqüente dos verbos de ligação, devido a inexistência destes na LIBRAS. As Pessoa como certo ou errado (subtende-se: as pessoas estão certas ou erradas.) porque os homens não quero trabalho preguiça de quer: (subtende-se: os homens não querem trabalhar porque estão com preguiça.) • Elementos de Ligação: Ausência de conjunção “que” e preposição “no”: Eu ver ter água chão (Subtende-se: eu vejo que tem água no chão) Usos inadequados da preposição “de”: Eu ver uma G. Barbosa ter muito de ótimo As pessoa esta trabalhar muito de certo mais fica tudo Ela esta trabalho muito de certo Ele ter muito de vergonha não poder Eu ver ter muito de confusão tudo Troca da conjunção “mas” por “mais”: Respeito mais Ele viu amiga 12 mais Ele ter Paciência Ausência da preposição “de” e “na”: Eu não gosta nada aqui Ter muitos carrinhos deixou Rua (deixados na rua) Troca da proposição “com” por “de”: Os homens esta muito de ódio (Subtende-se: Os homens estão com muito ódio) • Substantivos, Adjetivos e verbos: quando tiver o mesmo radical, há escrita do verbo no lugar do adjetivo ou substantivo e vice-versa. Trocou “quebrar” por “quebrada”: Também Banheiro ter uma Porta está quebrar Verdade. Trocou “trabalho” por “trabalhar”: Eu não gosto de trabalho de G. Barbosa Trocou “amiga” por “amizade”: Eu nunca fazer amiga dela só fica... 3. Aspectos sintáticos • Estrutura frasal: escrita sem preocupação com a posição do objeto, produzindo estruturas invertidas. Eu ver já. (Eu já vi) Troca uma Porta novo de Banheiro (Subtende-se: Trocar a porta do banheiro por uma nova) Os homens esta vassoura vareto chão (Subtende-se: Os homens estão varrendo o chão com a vassoura) Ela não quer ajuda outra amiga também (Subtende-se: Ela não quer a ajuda de outra amiga.). Considerações finais Diante da análise feita, observa-se que a escrita dos surdos não segue as mesmas construções dos ouvintes devido à interferência da LIBRAS que é a língua materna da comunidade surda. Tais singularidades são comuns a um aprendiz de segunda língua. Por outro lado, percebe-se que alguns erros são comuns também a falantes da língua portuguesa, em que são refletidos a influência da variante oral na escrita. Constata-se também a falta de domínio das estruturas sintáticas da língua portuguesa, a ausência de concordância básica, o desconhecimento de palavras do cotidiano. Há também a omissão de preposições e conectivos ou o uso inadequado e uma grande quantidade de verbos no infinitivo ou flexões inadequadas. Essas dificuldades acarretam a falta de entendimento por parte do leitor, mas verifica-se que há sentido na escrita e coerência no desenvolvimento 13 das informações do texto, pois a aluna relata passo a passo a experiência na visita feita ao supermercado. Portanto, essa construção que caracteriza uma interlíngua - percurso de aquisição de uma segunda língua, que tem no ponto de partida sua língua natural - não pode ser desqualificada pelo professor em seu processo de avaliação. A interlíngua produzida pelos surdos, não pode ser ignorada por eles, no processo de aprendizagem da língua portuguesa escrita. (SILVA, 2010) Dessa forma, este artigo aponta que a LIBRAS, sendo a primeira língua dos surdos, serve de referência para a escrita da língua portuguesa. Então, cabe ao professor interpretar o sentido presente nas produções escritas e intervir de forma que possibilite um ensino que aproxime o texto surdo da estrutura da língua portuguesa, respeitando a LIBRAS como primeira língua dessa comunidade. Assim, ele possibilita o ensino de português com metodologia de segunda língua. Referências bibliográficas BRASIL. Presidência da República. Lei nº. 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais-LIBRAS e dá outras providências. Brasília: 2002. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000. BROCADO, Sônia Maria Dechandt. A apropriação da escrita por crianças surdas usuárias da Língua Brasileira de Sinais. Faculdade de Ciências e Letras de Assis (UNESP), 2003. 439 f. Tese (Doutorado) – Área de concentração: Filologia e Linguística Portuguesa. Faculdade de Ciências e Letras de Assis, 2003. CARVALHO, Maria Leonia Garcia Costa. Relação entre língua falada, língua escrita e ensino. In.: BEZERRA, Antonio Ponciano, PEDROSA, Cleide Emilia Faye. Lingua Cultura e Ensino: Multidisciplinaridade em letras. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 2008. FARIA, Sandra Patrícia de. Interface da Língua Brasileira de Sinais-LIBRAS (variante falada pela comunidade surda de Brasília) com a Língua Portuguesa e suas implicações no ensino de Português, como segunda Língua, para surdos. Revista Pesquisa Lingüística, Brasília: LIV/UNB, fascículo 6, série 2, 2001. p.iii-xii. FELIPE, Tanya A. Libras em contexto: Curso Básico. 6 ed. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, 2005. KEMIAC, Ludmila. A constituição dialógica do gênero depoimento. In: Revista ao pé da letra: Universidade Federal de Campina Grande. v.10.1, 2008, p. 29-48. 14 MARCUSCHI, L. A. Letramento e oralidade no contexto das praticas sociais e eventos comunicativos. In: SIGNORINI, J. (org.) [et al] Investigando a relação oral/escrito e as teorias de letramento. Campinas: Mercado de letras, 2001- (coleção idéias sobre a linguagem). QUADROS, Ronice Muller de & SCHMIEDT, Magali L. P. Idéias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC, SEESP, 2006. SALLES, Heloisa; FAULSTICH, Enilde; CARVALHO, Orlene; RAMOS, Ana Adelina L. Ensino de língua portuguesa para surdos: caminhos para a prática pedagógica. Brasília: MEC/SEESP, 2004. SILVA, Elisangela Maria de Góis. A comunicação escrita do surdo: ressignificando conceitos. São Cristóvão: Sergipe, 2010. Monografia- Especialização em Teoria do texto, Universidade Federal de Sergipe. SOARES, Maria Aparecida Leite. A Educação do Surdo no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2005. ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: A “literatura” Medieval. Tradução Amalio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das letras, 1993. 1 Mestranda em letras pela UFS, Especialista em Educação Inclusiva e em Língua Brasileira de Sinais pela Faculdade Pio Décimo. Graduada em Letras Português Francês pela UFS. Professora Substituta do Departamento de Educação da UFS, campus de Itabaiana. Professora de Atendimento Educacional Especializado-AEE pela Secretaria Estadual de Educação. Membro do grupo de estudos “Inclusão escolar da pessoa com deficiência” do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe. Email: monicagsb@yahoo.com.br. 2 Especialista em Educação e Patrimônio Cultural em Sergipe pela Faculdade Atlântico. Licenciado e bacharel em História pela UFS. Professor substituto do Departamento de História da UFS, campus de São Cristóvão. Professor da rede municipal de Aracaju. Email: vagnersbarbosa@hotmail.com 3 Termo utilizado na época. 4 Denominação utilizada para designar a língua de um falante não nativo.
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