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http://www.editorafiel.com.br/informativo http://www.editorafiel.com.br Torturado por sua Fé Traduzido do original em inglês: TORTURED FOR HIS FAITH Copyright © Haralan Popov ISBN No. 85-99145-18-5 Oitava edição em português © 2006 Editora Fiel Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro, no todo ou em parte, sem a permissão escrita dos Editores. Tradução: João Bentes Revisão: Marilene Paschoal Francisco Wellington Ferreira Ana Paula Eusébio Pereira Diagramação: Christiane de Medeiros dos Santos Capa: Edvanio Silva Direção de Arte: Rick Denham EDITORA FIEL DA MISSÃO EVANGÉLICA LITERÁRIA Caixa Postal 81 12201-970 São José dos Campos - SP Prefácio ...................................................................................................... 5 Seqüestrado de meu lar ....................................................................... 7 Começam as noites intermináveis ...................................................... 9 “Bem vindo à Casa Branca, prisioneiro Popov!” ............................ 13 Um ateu empedernido encontra Cristo ......................................... 15 A Mão de Deus sobre um homem ..................................................... 19 A Bulgária transformou-se na “Pequena Rússia” .............................. 20 Antes espiões do que mártires cristãos ............................................. 21 As paredes da prisão falam .................................................................. 23 A “Dieta de Morte” ................................................................................ 29 A cela de punição ................................................................................ 30 O quarto dia diante da parede ........................................................... 33 O décimo dia ........................................................................................ 34 O décimo quarto dia ........................................................................... 36 Pregando o evangelho para a Polícia Secreta .................................. 43 Levando Mitko a Cristo ........................................................................ 47 A luta final ................................................................................................. 51 O cântico dos tamancos ..................................................................... 56 Índice Torturado por sua fé4 Quebrado, mas não derrotado ........................................................... 58 O trágico sofrimento dos familiares ................................................... 65 “Você é um homem morto, Haralan Popov!” ................................. 69 Classificado como não-reformado ...................................................... 74 Ruídos noturnos ................................................................................... 77 Um presente de Deus .......................................................................... 81 Persin — uma ilha de horror .............................................................. 85 Mensagem secreta em uma fotografia ................................................ 90 A véspera de Natal ................................................................................. 95 Dias de Natal na prisão ....................................................................... 98 Trabalho escravo em Persin ............................................................... 101 Na câmara de morte ........................................................................... 103 Nove meses na cova ........................................................................... 107 O incidente do feijão .......................................................................... 108 Ministério como pastor da prisão ..................................................... 113 Memorizando 47 capítulos ................................................................. 116 Pregando pelo telégrafo da prisão ..................................................... 118 Perdi meu Novo Testamento .............................................................. 124 Estudos Bíblicos no pátio da prisão .................................................. 125 Os frutos do aprisionamento ............................................................ 135 Admirável “babba” Maria .................................................................... 142 Espiões da igreja vigiam os espiões ................................................... 145 Subterrânea com Deus ....................................................................... 148 Evangelismo de aniversário ................................................................ 149 O lixeiro de Bíblias ............................................................................. 152 “Fábrica subterrânea de Bíblias” ........................................................ 155 Minha missão urgente .......................................................................... 159 Uma mensagem da Igreja Subterrânea ............................................ 165 Durante treze anos e dois meses, retido em prisões comunistas, fui sustentado por duas certezas. A primeira: eu sabia que a minha vida estava realmente nas mãos de Deus e não nas mãos de meus carcereiros comunistas. A segunda: eu queria sobreviver para dar meu testemunho e contar o que presenciei. O propósito deste livro não é mostrar a depravação dos homens — o que experimentei dia e noite durante mais de treze anos, e sim mostrar o irresistível amor de Deus. Se temos de salientar algo neste livro, que seja a verdade avassaladora do amor de Deus em meio à bestialidade humana. Na prisão, aprendi a lição do amor, como nunca havia aprendi- do. Embora eu já tivesse pregado sobre o amor de Deus em muitos púlpitos, percebi o amor dEle com um novo aspecto, no intenso de- sespero de celas subterrâneas e na fisionomia de incontáveis compa- nheiros de prisão. Destituído de todas as coisas materiais e todas as distrações, encontrei em Deus uma realidade maior do que já conhe- cera. A verdade com freqüência brilha mais intensamente onde as circunstâncias são mais obscuras. Não faço ataques políticos neste livro, pois vejo o comunismo não apenas como uma força política, mas também como “sintoma” de uma enfermidade espiritual muito mais profunda. É a “religião” do ateísmo militante. A incapacidade de destruir a fé em Deus é o Prefácio Torturado por sua fé6 “calcanhar de Aquiles” do comunismo. Os comunistas temem desesperadamente a fé em Deus. Nunca estas palavras de Paulo se mostraram tão verdadeiras: “Nossa luta não é contra o sangue e a carne”. Mas tenho outra razão para haver escrito este livro. Hoje há muitos rumores falsos, no estrangeiro, de que o comunismo está “se abrandando” para com o cristianismo e que as práticas do passado, apesar de serem más, acabaram. Fiquei chocado ao ver como essa ilusão dos comunistas é amplamente aceita. Este é um boato totalmente falso. Na verdade, por trás da Cortina de Ferro, o cristianismo está sendo atacado com maior severidade, do que fora antes. Muitos continuam morrendo nas prisões. Em vez de tentar destruir a Igreja atacando-a externamente, na Rússia e em outros países, o comunismo está subvertendo-a e controlando-a internamente. Em vez de dar fim à Igreja com um único ataque brutal, o comunismo atualmente procura estrangular a Igreja lentamente. O ataque, em nossos dias, tanto é mais sutil como é mais perigoso. Nos países comunistas, o cristianismo não é livre e franco, como alguns proclamam. Mas também não pode ser destruído. Está vivo e crescente, mesmo sob perseguição, como sucedeu à Igreja Primitiva. De fato, uma Igreja Subterrânea está viva no mundo comunista. Suas similaridades com a Igreja Primitiva são extraordinárias. Para apresentar o meu testemunho e a história da Igreja Subterrânea, escrevo este livro. Dedico-o aos milhares de irmãos em Cristo que morreram encarcerados, muitos deles ao meu lado. Também o dedico ao corpode Cristo que, em nossos dias, é torturado no mundo comunista. Haralan Popov Seqüestrado de meu lar Às quatro horas da madrugada, no dia 24 de julho de 1948, a campainha começou a tocar insistentemente. Levantei-me sonolento, vesti o roupão e fui atender. Achavam-se ali três estranhos; dois estavam com vestes civis, e o outro, com roupas militares. “Viemos para revistar sua casa”, disse o líder, trajando vestes comuns, ao mesmo tempo em que passava por mim, impetuosamente, em direção ao interior da casa silenciosa. Minha esposa, Rute, ouviu o barulho e veio unir-se a mim, na sala, onde, perplexos, observávamos os três homens vasculharem a casa inteira. Enquanto vasculhavam, pensei: finalmente, chegou a hora. Procuraram por toda parte — entre os livros, nas camas, nas estantes, nos armários, nas gavetas — durante três horas. Não deixaram de ver coisa alguma! Quando o sol começou a brilhar, cerca de sete horas da manhã, voltaram-se para mim e ordenaram-me que os acompanhasse. Eu teria de ir com eles, apenas para “um ligeiro interrogatório”, conforme explicaram. Eu não tinha a menor idéia de que o “ligeiro interrogatório” se prolongaria por intermináveis treze anos de tortura e encarcera- mento. Quando me empurravam pela porta de saída, mal vestido, Rode, minha filhinha, acordou e veio correndo para a sala. Com a rápida percepção de uma criança, ela entendeu que seu pai estava Torturado por sua fé8 sendo levado embora. Rompeu em lágrimas e começou a chorar, co- piosamente — soluçante, ela tremia. “Estão levando o papai. Estão levando o papai”, repetia ela. A cena simplesmente era demais para mim, e lágrimas afloraram de meus olhos, quando abracei Rode. Por muitas vezes, assegurei-lhe que voltaria logo, embora, no íntimo, eu soubesse ser aquele o golpe que estivera aguardando. O coração de Rode estava desolado e, apesar de todas as minhas promessas, ela não se consolava. Acho que, de algum modo, ela sabia — à maneira peculiar de uma criança — que não veria seu pai novamente. Durante tudo aquilo, meu filhinho Paulo dormia, e não tive oportunidade de dizer-lhe “adeus”. Mais tarde, Rute me disse que, após termos partido, ela se ajoelhou e, chorando, suplicou a Deus que eu fosse devolvido antes do cair da noite. Após duas ou três horas, ela foi visitada pela esposa do pastor Manoloff, que lhe contou que seu marido também havia sido levado. Caminhando para a delegacia, entre os três homens, por volta das sete horas da manhã, eu mantinha a cabeça erguida. Enquanto o “desfile” de quatro homens descia a rua, pude sentir os olhos de meus amigos, vizinhos e membros da igreja fixos em mim. Eu sabia que, desde a minha conversão, servira exclusivamente a Deus e que estava nas mãos dEle. Do fundo do coração, clamei a Deus, pedindo-Lhe sua graça para suportar tudo quanto estivesse à minha espera. Na delegacia, fui revistado da cabeça aos pés e trancado em uma cela. Ali, já havia outro homem, um armênio. A cela era imunda, repleta de papéis e lixo. Em um canto, estava um pote de barro, velho e rachado, que nos servia de “banheiro”. Transbordava e exalava um mau cheiro horrível. Passei o dia andando para frente e para trás, das oito da manhã às oito da noite, profundamente preocupado com Rute, Rode e Paulo. Começam as noites intermináveis Às oito horas da noite, abriu-se a porta da cela. Um jovem me ordenou que o acompanhasse. Ele me levou para baixo, ao segundo pavimento, a um escritório belamente mobiliado, onde me apresentou a outro jovem. Disseram-me que deveria chamá-lo de “Sr. Inspetor”. Permaneci em frente ao “Sr. Inspetor”, que lançou sua primeira pergunta: “Sabe qual é a diferença entre a milícia e a polícia?” Pensei que a pergunta fosse uma piada e respondi: “Não, não sei. Nunca me interessei por essas questões policiais”. Minha resposta o irritou, e ele gritou: “Não tente brincar comigo, prisioneiro Popov. Fique de pé, olhando para a parede e não se mova!” Isto parece uma punição insignificante, mas posso assegurar que é algo muito extenuante e doloroso para o corpo inteiro, especialmente para o cóccix. O “Sr. Inspetor” continuou a fazer-me a mesma pergunta, das oito horas da noite até à meia-noite, estando eu rigidamente de pé. A cada cinco ou dez minutos a pergunta era repetida: “Você sabe a diferença entre a milícia e a polícia?” Procurei explicar que não sabia. Quando percebi que não estava chegando a lugar nenhum, parei de responder. Ele gritou: “Nós lhe ensinaremos uma lição! Levante os braços e não mova um músculo!” Torturado por sua fé10 Finalmente, perto da meia-noite, o “Sr. Inspetor” disse: “Vou lhe dizer a diferença entre a milícia e a polícia. A polícia é empregada para resguardar os interesses dos capitalistas ricos, e a milícia cuida dos interesses do povo trabalhador e honesto”. Então foi-me permitido baixar os braços. Acabara de aprender uma dura “lição” em semântica comunista. Meus braços pesavam como troncos. Então, ele me fez outra pergunta. “Diga exatamente por que está aqui”. Respondi que naquela manhã, três homens tinham ido à minha casa, e me haviam trazido para ali. Estivera em uma cela o dia inteiro, e ninguém me dissera coisa alguma. Porém, ele replicou: “Não, você sabe por que está aqui”. “Mas não tenho certeza”, respondi, embora tivesse uma boa idéia do motivo. Depois de haver repetido a pergunta por uma hora. O “inspetor” disse: “Agora eu vou embora. Fique aqui de pé até pela manhã, quando chegarei cedo para ouvir sua resposta; então, veremos se você ainda se mostrará esperto”. Ele me deixou aos cuidados de um jovem chamado Jordan, que me retirara da cela. Jordan passou a noite sentado em uma cadeira, atrás de mim, enquanto eu permaneci em pé, olhando para a parede. Eu não sabia que não passaria apenas uma noite “em frente da parede” mas que seria forçado, posteriormente, a fazer isso por duas semanas! As últimas horas da noite, entre as três da madrugada e as sete da manhã, foram as mais difíceis. Após ter permanecido com o rosto voltado para a parede a noite inteira, sem um momento de sono, aquelas horas me pareceram longas como a eternidade. Finalmente, raiou a manhã, e Jordan levou-me de volta à cela. O armênio quis dar-me alguma coisa para comer, mas preferi esticar-me no beliche de tábuas e descansar. Estava tão cansado, que só queria dormir; mas percevejos em profusão, que haviam no leito, além de vários bichinhos rastejantes, me mantinham acordado. Antes de dar-me conta, meu corpo estava coberto por aquelas criaturas; era impossível dormir. Tive de levantar- me e caminhar para lá e para cá. Mais tarde, ouvi comentários de que as celas eram propositalmente infestadas de insetos, piolhos e vermes, para agravar as condições dos prisioneiros. Nunca descobri se isso era verdade, mas suspeito que assim fosse. Havia exércitos de insetos. Começam as noites intermináveis 11 Agora era domingo, 25 de julho; pela primeira vez, em muitos anos, não passei um domingo com a igreja. Ajoelhei-me em minha cela, e meus pensamentos se voltaram para meus irmãos e irmãs em Cristo, que estariam no culto, naquele momento. Orei em favor de meus filhos e esposa, a quem eu deixara sem dinheiro e alimentos. Como eu gostaria de estar com eles! Pedi ao Senhor que cuidasse deles no futuro, independente do que este lhes reservasse. Eu sabia que a Grande Perseguição tivera início, por amor a Cristo. Através da história da Igreja, isso já acontecera muitas vezes. E, de todo o coração, pedi a Deus que me desse forças para equiparar-me aos discípulos e mártires da Igreja Primitiva. Por certo, eu não poderia fazê-lo com minhas próprias forças. Um grilo cantou em algum lugar, entre as tábuas apodrecidas da cela; a minha alma abatida sentiu-se enlevada, e minha fé em Deus, renovada. Os interrogatórios que duravam toda a noite continuaram por uma semana. O método era sempre o mesmo. Logo que escurecia, eu era levado para baixo e tinha de ficar em pé a exatamente vinte centímetros da parede. Ali, das sete horas da noite até cerca das oito da manhã, eu era interrogado, nãome sendo permitido fechar os olhos. Se meus olhos se mostrassem sonolentos, Jordan pularia, gritando: “Pare! Pare! Isso não é permitido!” Durante o dia, eu tinha de combater os insetos, que eram abundantes, então, não podia descansar. A ninguém era servido qualquer alimento, na prisão. Todavia, a minha esposa conseguiu descobrir onde eu estava e me enviava alimentos de casa. Eu queria desesperadamente ver meus familiares, saber como estavam, mas isso não era permitido. Em uma noite de sábado, ninguém veio levar-me para baixo. Contudo, por volta da meia-noite, ouvi o som de uma chave na fechadura, e uma voz desconhecida gritou: “Popov, saia daí! Você foi transferido”. Despedi-me do armênio. Havíamos nos tornado amigos pronta- mente, e descobri, no ano seguinte, que amizades íntimas e verdadeiras se desenvolvem entre prisioneiros que compartilham dos mesmos sofrimentos. A polícia me levou para fora, onde um carro policial, comumente apelidado de “Corvo Negro”, estava à espera, com dois soldados em Torturado por sua fé12 seu interior. Seguimos pela rua principal de Sofia; e, em apenas alguns minutos, chegamos a um grande edifício branco. Era o quartel-general da “DS” — a temida Polícia Secreta. “Bem-vindo à Casa Branca, prisioneiro Popov!” A Polícia Secreta chamava-se Dershavna Sigornost ou DS. Seu centro de operações ficava em um grande edifício branco que o povo apelidara de “A Casa Branca”. Mas asseguro que essa “Casa Branca” era bem diferente da Casa Branca norte-americana! Muitos dos melhores homens de nosso país foram levados à “Casa Branca” e dali nunca saíram vivos. Havia até boatos de que a “Casa Branca” tinha seu próprio “cemitério” subterrâneo, para se livrar dos corpos de suas vítimas. Para o povo da Bulgária, o nome DS significava desaparecimento, sofrimento e morte. Por cima da porta de uma cela, estava escrita uma citação da Divina Comédia, de Dante: “Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais”. Quão apropriado! Maior é o número de pessoas que morrem ali, do que o número das que saem vivas; e aquelas que saem não sobrevivem por muito tempo, em conseqüência das torturas a que são submetidas. Falava-se que as pessoas, ao passarem perto do edifício da Polícia Secreta, podiam ouvir gritos que atravessavam as pedras do piso da rua, gritos provenientes do extenso complexo de celas subterrâneas. Mais tarde, descobri que isso era verdade. Quando o “Corvo Negro” parou, e fui introduzido no edifício, temor e insegurança invadiram-me o coração. Eu havia experimenta- Torturado por sua fé14 do uma semana de insônia e interrogatórios; meu corpo tremia e ba- lançava. Quando atravessei a porta, vieram-me à memória as palavras de Salmos 73.28: “No SENHOR Deus ponho o meu refúgio”. Eu sabia que não poderia esperar ajuda de ninguém ali na “Casa Branca”. Sussurrei uma oração: “Ó Deus, minha vida está em tuas mãos”. Meus temores começaram a desvanecer. Fui tomado por um forte sentimento de paz. A tensão de meu corpo desapareceu. Talvez a morte me esperasse na “DS”, a “Casa Branca”, mas meu coração louvava e adorava ao Senhor. Quando um homem enfrenta a morte, examina a si mesmo e medita sobre a sua posição diante de Deus. Percebe as coisas com muita clareza. Eu me resignara ao pensamento de que minha vida terrena acabaria em breve e de que em pouco tempo estaria com o Senhor. Para mim, era evidente que eu fora levado ali para morrer. Na semana que se passara, eu tinha perdido tudo o que era precioso para mim — esposa, família, igreja, lar — mas senti Deus bem ao meu lado, quando passei pela porta que me levaria ao interior do centro de operações. O guarda fitou-me com ironia e disse: “Bem-vindo à Casa Branca, prisioneiro Popov”. Fui novamente despido e revistado; depois, conduzido ao terceiro andar. Ao subir as escadas, percebi que havia uma rede de arame por sobre o poço da escada, uma rede colocada para que nenhum prisioneiro escapasse lançando-se da escada. Evidentemente, tantos prisioneiros tentaram cometer suicídio, que a rede fora colocada para apanhá-los. No terceiro andar, fui levado ao longo de um corredor escuro que tinha janelas sujas, fechadas com barras, de um lado, e fileiras de portas escuras e enferrujadas, do outro lado. Na porta das celas, havia um pequeno buraco com uma tampa corrediça. Esse buraco permitia que os guardas observassem os prisioneiros. Gemidos quase inaudíveis eram suspirados pelos ocupantes das celas. Os guardas usavam sapatos feitos de pano grosso, para que os prisioneiros não os ouvissem ao se aproximarem. Mas deixe-me contar-lhe como cheguei a esse ponto, em minha vida... Um ateu empedernido encontra a Cristo Nasci e passei a juventude na pequena, bela aldeia de Krasno Gradiste, na Bulgária. Em nossa família, havia quatro filhos, três irmãos e uma irmã. Todos nascemos em uma antiga casa de fazenda construída em estilo turco, que consistia de um quarto e uma cozinha. O teto era tão baixo que meu pai tinha de encurvar-se para não bater a cabeça nos caibros do telhado. A casa tinha um assoalho de terra, que minha mãe pintara com uma mistura de esterco, barro e água. Não cheirava bem, mas era um tipo de desinfetante, e o esterco impedia que o chão rachasse. Todos dormíamos no único quarto, no chão coberto de tapetes feitos de canas trançadas. Em um dos lados da cozinha, havia uma lareira grande e enegrecida, sobre a qual permaneciam uma série de panelas de barro, rachadas e cobertas de fuligem. O feijão que minha mãe cozinhava para nós, naqueles dias, era tão bom como a dieta diária de qualquer outro dos habitantes da aldeia. Mamãe costumava dizer: “Se alguém quiser um bom feijão, terá de cozinhá-lo em água boa”. Portanto, nós, as crianças, íamos até ao rio, algumas centenas de metros distante de casa, buscar água para o feijão. Então, o feijão era cozinhado nas panelas de barro, o que lhes dava um sabor todo especial. Tenho muitas recordações agradáveis de meus anos de infância. Os dias se passavam rapidamente: alguns Torturado por sua fé16 repletos de risos; outros, de disputas, travessuras de crianças e aven- turas. Havia dias de pobreza, trabalho árduo e tristeza em nosso lar, mas nenhuma dessas coisas fez com que nosso amor mútuo diminuís- se. De fato, serviram para nos achegarmos mais uns aos outros. Não tínhamos um grande sítio, por isso, os filhos eram enviados a trabalhar em fazendas. As coisas se tornaram especialmente difíceis para nós durante os anos de guerra, entre 1914 e 1918. Papai foi convocado ao serviço militar, e o ano seguinte quase nos levou à inanição. No inverno de 1917/1918, quando eu tinha dez anos de idade, fui enviado a trabalhar para o homem mais rico de nossa aldeia, “Vovô” Kolyo. Eu não recebia salário, mas, em troca de alimentos, conduzia os bois, enquanto “Vovô”, que tinha oitenta e sete anos, mas parecia e agia como se fosse mais novo, arava os seus campos. No verão, fui cuidar de ovelhas, na propriedade de meu tio, que ficava perto de nossa casa. A guerra terminou e meu pai voltou para casa, o que me permi- tiu continuar os estudos. Embora fôssemos pobres, meus pais conseguiram matricular-me em uma pequena escola em uma aldeia vizinha. Meus pais sentiam-se orgulhosos de minha capacidade de ler e faziam tudo quanto podiam para que eu continuasse estudando. Comecei a freqüentar as aulas vestido com roupas remendadas, fei- tas de tecidos preparados em casa, e usava sapatos do tipo mocassim, feitos de couro cru de porco, com os pelos voltados para fora. Era um espetáculo! Quando cheguei às aulas mais adiantadas, eu me sentia enver- gonhado por não ter o uniforme e os sapatos bons que os alunos deveriam usar. Como resultado passei a evitar a companhia de outros meninos e me retraia. Adquiri meu primeiro par de sapatos apropria- dos quando tinha dezessete anos de idade. Quando os calcei, minha auto-estima cresceu muito (talvez até demais!) e comecei a procurar amigos entre os meus colegas de escola. Cresci tanto egoísta como ateu. Esta é uma péssima combinação! Quando terminei o curso na escola da aldeia,fui para Ruse, uma cidade grande às margens do rio Danúbio, em busca de trabalho. Em Ruse, eu conhecia somente uma pessoa, um ex-vizinho chamado Christo, que se mudara para a cidade alguns anos antes. Christo tinha Um ateu empedernido encontra Cristo 17 um emprego na área de saneamento e morava no local de trabalho, em um quartinho com menos de dois metros quadrados. Embora fosse tão pequeno, e a maior parte do espaço fosse ocupada por uma cama, ele concordou em dividi-lo comigo. Assim, nos tornamos bons amigos. Isso aconteceu em novembro de 1925. Naquela época, houve um grande surto de desemprego na Bulgária; e eu não podia encontrar trabalho permanente. Fazia serviços ocasionais e vivia, na maior parte do tempo, do salário de meu amigo Christo. Uma noite, ele me convidou para ir a uma igreja batista, embora soubesse que eu era ateu convicto. Por causa de minha amizade com ele, não pude negar-lhe o convite. Aquela foi a primeira vez que entrei em uma igreja protestante. Eu conhecia somente a Igreja Ortodoxa e pensava que todas as igrejas eram semelhantes; por isso, fiquei surpreso ao descobrir que o interior da igreja batista era diferente da Igreja Ortodoxa. De fato, tudo era diferente! O culto era realizado em búlgaro, e não na antiga língua eslava, que os padres habitualmente empregavam e que pouquíssimos compreendiam. Em vez dos cânticos monótonos da missa ortodoxa, ouvi belos hinos, cantados nas melodias de Bach, Mendelssohn, Beethoven e outros grandes compositores. Ali, a congregação inteira participava; nas igrejas ortodoxas, somente os padres e o coro cantavam. Cheguei a ver hinários! Christo já havia aprendido os cânticos e os entoava, enquanto eu seguia as letras das músicas no hinário. As belas letras, escritas para louvar a Deus, causaram profunda impres- são em meu espírito. Nunca esperava ouvir um pastor educado e inteligente pregar tão gloriosamente sobre a sua fé em Deus, e em uma língua que eu entendia. Em nossa vizinhança, não havia uma só pessoa inteligente que ousasse reconhecer que cria em Deus. Em minha opinião, a “religião” era para os velhos e os que tinham a men- te fraca. Depois da reunião, conversamos com duas senhoras idosas que eram conhecidas na cidade como pessoas de boa educação. Elas falaram conosco sobre Deus, procurando provar que Ele existe; mas, a despeito de tudo quanto vira e ouvira na igreja, e de tudo quanto as senhoras tinham dito, meu intelecto orgulhoso se recusava a reconhecer a existência de Deus. Torturado por sua fé18 No entanto, pela primeira vez, comecei a me perguntar se eu estava certo. Naquela noite, começou uma luta espiritual em meu íntimo, uma luta que durou por muitos dias. A questão era: Deus existe mesmo? Na Igreja Ortodoxa Grega daquele tempo, os sacerdotes não preci- savam ter qualquer educação e somente pessoas idosas freqüentavam as missas. Você nunca via uma pessoa educada que acreditava em Deus. Pelo menos era assim que os ateus gostavam de pensar. Nós, que tínhamos alguma instrução, desprezávamos aqueles homens e mulheres “simples” que afirmavam ter uma “religião” ou crer em Deus. Agora eu ouvia pessoas educadas e cultas testemu- nhando abertamente que Deus existe! Essas pessoas contavam o que Jesus significava para elas e o que Ele fizera por elas. Isso me impressionou mais do que todos os sermões, e até hoje creio forte- mente na eficácia de “testemunhas vivas” para levar os homens a Cristo. Falei com Christo sobre o meu conflito, e ele disse que me apresentaria a um homem que poderia me ajudar. Pouco tempo depois, Christo convidou um homem a nos visitar. Seu nome era Petroff. Ele leu trechos da Bíblia. Não era um pregador eloqüente, mas cada palavra que dizia provava que Deus existia. Testemunhou sobre como experimentava a presença pessoal de Deus. Quando dizia o que Jesus significava para ele, seu rosto brilhava com o amor de Deus. Tornou-se óbvio para mim, naquele momento, que Deus existe. Eu via a Deus naquele piedoso homem. O testemunho de Petroff convenceu-me da existência de Deus, e comecei a buscar sincera e intensamente a Deus. Descobri que eu não estava buscando a Deus tanto quanto Ele estava me buscando. Recebi a maravilhosa experiência de salvação em Jesus Cristo, que transformou minha vida. Petroff tornou-se meu pai espiritual. Pouco tempo depois fui morar com Petroff, a fim de estar mais próximo de suas instruções bíblicas. E, com ajuda dele, consegui um emprego na estrada de ferro do governo. O trabalho era pesado, mas a felicidade de minha recém-encontrada salvação em Jesus Cristo me fazia flutuar de alegria e paz. Sentia-me imensamente feliz em Cristo! Um ateu empedernido encontra Cristo 19 A mão de Deus sobre um homem Todas as noites, Petroff e eu líamos a Bíblia, conversando sobre a Palavra de Deus, durante horas. Com o passar do tempo, outros se uniram a nós, até formar-se um bom “rebanho” de crentes. Gradual- mente, nossa pequena congregação foi tomando a forma de uma igreja, e, sob o ministério profundamente espiritual de Petroff, fomos gran- demente abençoados por Deus. No mês de fevereiro de 1929, Petroff declarou: “Haralan, Deus tem a sua mão sobre você. Ele o quer em sua obra”. Eu também havia sentido a mão de Deus sobre mim, guiando-me naquela direção. Amava profundamente meu recém-achado Senhor e orava todas as noites, prometendo-Lhe: “Deus, minha vida inteira Lhe pertence. Estou pronto para consagrar-Lhe tudo quanto tenho”. Nos anos seguintes, essa promessa foi sujeitada a testes severos, mas nunca me arrependi de havê-la feito. Servir ao Senhor é maravilhoso, mas sofrer por Ele é um privilégio ainda maior. A fim de preparar-me para o serviço de Cristo, freqüentei institutos bíblicos em Danzig e na Inglaterra, onde conheci uma jovem estudante da Bíblia, vinda da Suécia. Seu nome era Rute. Tal como sua homônima das Escrituras, ela era profundamente dedicada ao Senhor. Rute me disse: “Haralan, para onde você for, eu irei também”. Portanto, voltei à Bulgária não somente com o conhecimento da Palavra de Deus, mas também com uma esposa. Os anos seguintes foram uma dádiva divina. Houve grande tempo de colheita espiritual na Bulgária, e, em poucos anos, eu estava pastoreando a maior igreja evangélica do país. Ao mesmo tempo, evangelizava em muitos lugares. A mão de Deus mostrou-se abundante sobre todos nós, e a Palavra de Deus cresceu poderosamente na Bulgária. Por mais de dezesseis anos, pastoreei minha igreja e “me duplicava” como evangelista nas aldeias e vilas da região montanhosa, onde a Palavra de Deus ainda não se estabelecera firmemente. Então, chegaram os anos da guerra e as coisas tornaram-se dificílimas, mas Torturado por sua fé20 isso foi apenas uma pequena amostra da grande tribulação que nos esperava. Em 1944, uma negra ameaça se estendeu por todo o nosso país, trazida pelo exército russo: a ameaça do comunismo. Pouco a pouco, os comunistas conquistaram o poder, enquanto nosso país estava prostrado aos pés do Exército Vermelho. A princípio, o Partido Comunista mostrou-se bastante cooperador com os outros partidos políticos, formando até um governo de coalizão. Mas, em três anos, os outros partidos foram proscritos, os seus líderes, aprisionados, e o Partido Comunista obteve controle total. A Bulgária transformou-se na “Pequena Rússia” Nós tínhamos ouvido falar de nossos irmãos em Cristo na Rússia e de como sofriam, mas não fazíamos idéia de que a Bulgária se tornaria tão parecida com a Rússia que seria chamada — e ainda é — de “Pequena Rússia”. Preparamo-nos para enfrentar o pior, mas, estranhamente, o golpe que esperávamos não veio. De fato, estabeleceu-se um período “crepuscular” de liberdade religiosa. O fato não era que os comunistas estivessem a favor da liberdade religiosa; eles simplesmente estavam muito ocupados, consolidando seu poder político e firmando tudo em suas mãos, antes de se voltarem para “cuidar” de nós, conforme afirmavam. Portanto, em vez do golpe que esperávamos, recebemos subitamente um grande dom de Deus: três anos — de 1944 a 1947— durante os quais Deus restringiu as mãos dos comunistas, permitindo-nos trabalhar. E como trabalhamos! Noite e dia, mês após mês, evangelizamos, propagamos o evangelho e edificamos a fé dos crentes, antes que a noite escura do comunismo caísse sobre nós. Tal como havíamos sido advertidos, sabíamos que os comunistas logo viriam “cuidar” de nós. Labutamos ardentemente, com o senso de que o tempo estava se esgotando; e Deus honrou nossos labores com um grande período de colheita em toda a Bulgária. Realizei vários batismos em massa, no Mar Negro, para os muitos jovens que tinham encontrado a Cristo. Sem dúvida alguma, nosso trabalho árduo por Cristo, durante aqueles três anos “anteriores à tempestade”, fez com que nos Um ateu empedernido encontra Cristo 21 escolhessem para receber o tratamento “especial” que nos sobreviria nas prisões comunistas. A própria intensidade do nosso trabalho, durante a “calmaria antes da tempestade”, nos tornou homens marcados. Não tínhamos muito tempo. Logo que os comunistas consolidassem seu poder, sabíamos que chegaria a nossa hora. Antes “Espiões” do que “Mártires Cristãos” O primeiro sinal de que chegara a nossa hora foi uma campanha para caluniar os principais pastores evangélicos do país. Todavia, ape- sar dessa campanha, o avivamento se propagou, e novas igrejas se formaram. Por isso, o governo elaborou um procedimento mais sutil. Gradualmente, os pastores das igrejas foram tirados e substituídos por pessoas que seriam “instrumentos dóceis” nas mãos dos comu- nistas, os quais concentraram seus esforços na colocação de seus fantoches nos púlpitos. Pastores dedicados logo perderam seu lugar e conseguiam ape- nas trabalhos servis, tais como o de varredores de ruas. Quando os pastores-fantoches foram colocados em muitos púlpitos, os comunis- tas escolheram o próximo alvo: os principais líderes da igreja búlgara, das denominações batista, metodista, congregacional e evangélicas em geral. Eu era um deles. Iniciou-se uma maliciosa campanha de difamação. Éramos acusados de ser “espiões”. Era melhor sermos chamados de “espiões” do que “mártires cristãos”. Éramos descritos como “instrumentos do imperialismo”. A princípio, quando ouvi isso, sorri, perguntando a Rute: “Bem, o que você acha de estar casada com um ‘instrumento do imperialismo’?” “Então, é isso que você é!”, ela respondeu, sorrindo. A verdade nada significava para aqueles que estavam resolvidos a destruir a Igreja Cristã. Nós, os quinze líderes das denominações evangélicas da Bulgária, fomos citados publicamente. Obviamente, não éramos culpados das acusações lançadas contra nós, mas uma campanha difamatória foi iniciada para distorcer tudo quanto tínhamos dito e feito, a fim de nos denegrirem. Foi Torturado por sua fé22 divulgado, por meio dos jornais e outros meios de comunicação, que tínhamos revelado segredos de nosso país para os ingleses e os americanos. Deste modo, iniciou-se a campanha que nos conduziria à prisão e à tortura. Durante os treze anos e dois meses seguintes que passei na prisão, perguntei-me freqüentemente por que razão Deus nos permitiu tal coisa. O longo período de exame próprio ajudou-me a compreender melhor o ensino bíblico que diz que precisamos passar por sofrimento antes de entrarmos no reino de Deus. Paulo e Barnabé ensinaram aos discípulos da Ásia Menor: “Atra- vés de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus” (Atos 14.22). O apóstolo Pedro diz a mesma coisa: “Nisso exultais, embora, no presente, por breve tempo, se necessário, sejais contristados por várias provações, para que, uma vez confirmado o valor da vossa fé, muito mais preciosa do que o ouro perecível, mesmo apurado por fogo, redunde em louvor, glória e honra na revelação de Jesus Cristo” (1 Pedro 1.6-7). A primeira reação natural do homem, quando contempla o sofrimento, é pensar que ele é intenso demais para ser suportado. Procuramos evitá-lo; mais tarde, porém, descobrimos que o sofrimento se torna de grande valor, e é mais precioso do que o ouro. O sofrimento foi um fogo pelo qual nossas igrejas tiveram de passar, a fim de que toda a palha e todo o restolho fossem queimados, deixando o ouro puro a resplandecer mais fulgurantemente do que nunca. Nesse processo, a “estrutura” da igreja seria destruída ou subvertida, mas permaneceria uma igreja verdadeira, viva, o Corpo de Cristo, a Igreja Subterrânea. Tudo isso estava à nossa espera. Esses foram os acontecimentos que me tiraram da posição de ateu fervoroso para a atual posição de pastor que estava enfrentando a tortura por causa de Cristo, na temida “Casa Branca”. As paredes da prisão falam Fui conduzido ao longo do corredor até à cela de número 21. A chave volumosa rangeu na fechadura e fui empurrado para dentro. E, mais uma vez, fui afastado do mundo exterior. Na cela havia um jovem, chamado Tsonny que me disse estar ali por três meses, sem nunca lhe haverem dado o motivo para seu encarceramento. Em um canto da cela, havia um balde que, pelos seis meses seguintes, seria nossa privada. Esses baldes eram uma característica padronizada da vida na prisão. Eram esvaziados apenas raramente e, às vezes, trans- bordavam. Por muitas vezes, levavam a tampa, e o mau cheiro era insuportável. Havia somente o cimento frio do chão para dormirmos; e as paredes eram de pedra encardida. Elas estavam repletas de lemas, orações, slogans e citações, rabiscadas na superfície, com al- gum objeto duro, por ocupantes anteriores. As paredes eram quase um diário ou crônica de condenados. Em certos lugares, as paredes pareciam ter sido pintadas de vermelho escuro; mas, sob um exame minucioso, percebi que aquele vermelho não era tinta. Era o sangue de inúmeros percevejos que, enquanto se arrastavam pelas paredes, tinham sido mortos por outros prisioneiros. As “paredes vermelhas” de outras celas também se tornariam uma visão comum, nos anos seguintes. Naquela primeira noite na DS, matei quinhentos e trinta e nove percevejos, muitos dos quais tinham sugado o meu sangue. Para desviar nossos pensamentos da situação, Torturado por sua fé24 Tsonny e eu os contamos (Nunca mais tentamos isso!). Nas paredes, podíamos ler as aflições e anseios dos prisioneiros anteriores. Eu quase podia descrever a personalidade, os pesadelos, as esperanças e os sonhos deles refletidos naquelas escritas tristes. Uma das escritas dizia: “Quando você entrar aqui, creia em Deus e ore a Santa Teresa”; evidentemente, isso havia sido gravado por um católico romano. Uma elegia de Pushkin estava escrita em russo, em todo o comprimento da parede. Continha três versos, os quais memorizei. Por cima da porta, alguém rabiscara um antigo provérbio latino: “Dum spiro spero”, que significa: “Enquanto eu respirar, esperarei”. Senti que conhecia os ocupantes anteriores daquela cela, devido aos rabiscos na parede. Quantas narrativas de bravura humana, desespero e sonhos des- pedaçados pude ver nas paredes daquela cela e de incontáveis outras, durante treze anos! Criei a prática de escrever versículos da Bíblia e palavras de consolo nas paredes de cada cela que ocupasse, na esperança de que tais palavras proporcionariam consolo e ajuda aos próximos ocupantes. As paredes das celas não foram somente o “papel” no qual eu rabisquei versos bíblicos, mas também foram, mais tarde, “tábua de ressonância” do “Telégrafo da Prisão”, pelo qual eu enviava mensagens da Palavra de Deus aos homens de celas adjacentes. Quão admirável e justo, pensava eu, era que as paredes erguidas para aprisionar homens se tornassem “papel” para a Palavra de Deus e “fio” para o Telégrafo da Prisão, a fim de transmitirem as boas- novas. Mas, visto que aquela era a primeira vez em que passava por tal provação e que a primeira semana fora tão chocante, foi-me difícil preservar a coragem. Todos os prisioneiros garantem que os primeiros meses são sempre os piores. Eu pensava comigo mesmo: “Se o homem que rabiscou na parede as palavras ‘Enquanto eu respirar, esperarei’ pôde manter viva a sua esperança, certamente eu, que sou crente,poderei colocar toda a minha vida nas mãos de Deus”. Preguei um sermão para mim mesmo e me senti melhor. Embora não soubesse o que aconteceria naquele dia, senti segurança, serenidade e paz em meu As paredes da prisão falam 25 coração. Assim como o apóstolo Paulo, eu resolvera que ficaria “contente em toda e qualquer situação”. Passei exatamente cinco meses na cela 21, de 1o de agosto a 31 de dezembro. A cela 21, na “Casa Branca” da DS, tornou-se uma “câmara de tortura” para mim. Cada vez que penso naquela cela, um frio me perpassa a espinha. Em 2 Coríntios 12.4, o apóstolo Paulo falou sobre “palavras inefáveis, as quais não é lícito ao homem referir”. Contudo, eu gostaria de falar sobre o indescritível sofrimento que é difícil de ser expresso em linguagem humana ou na forma escrita. Visto que eu me sentia exausto por ficar de pé cada noite, por uma semana, deitei-me sobre o assoalho frio e me estiquei. Repenti- namente, havia um estalido fortíssimo, como se um tiro de rifle automático tivesse sido dado no corredor. “Que foi isso?”, perguntei a Tsonny. Ele sorriu e explicou que o ruído era feito intencionalmente pelos guardas, a fim de assustar os prisioneiros e impedi-los de dor- mir. O ruído era feito com um golpe forte de uma barra de ferro, dado nas portas das celas; isso produzia ruídos como de um tiro de rifle. Naquela noite, foi repetido a cada dez minutos; e por todas as noites, durante cinco meses. Era quase impossível dormir, e esse era, exata- mente, o resultado tencionado. Na manhã de 2 de agosto, fui levado de minha cela a um confor- tável escritório, no andar térreo. Para minha surpresa, encontrei ali um jovem que eu conhecia bem. Seu nome era Veltcho Tchankov. Meu coração saltou de alegria quando vi aquele jovem! Eu o conhe- cia desde que ele era menino. Também sabia que ele era um comunista. Quando os comunis- tas chegaram à Bulgária, nos calcanhares do Exército Vermelho, em 1944, Veltcho se unira imediatamente a eles. Nos três anos seguintes, ele se tornara o chefe da Polícia Secreta de Burgas. Apesar das diferenças de nossa maneira de viver, há muito parecia que tínhamos uma espécie de respeito mútuo. Portanto, alegrei-me por vê-lo nova- mente e pensei que aquele seria o primeiro raio de esperança, desde meu aprisionamento. Mas, como ele havia mudado! Um mês depois, fiquei sabendo que Veltcho, meu “velho amigo”, fora o organizador de toda a campanha contra os pastores evangélicos! Eu vi o que o poder é capaz de fazer com um homem. Torturado por sua fé26 Quando os comunistas estão fora do poder, freqüentemente se mostram cordiais, cooperadores e brandos. Mas, se chegarem ao poder, veremos o que eles realmente são! Aqueles que “brincam” com o comunismo devem lembrar-se da história de Veltcho, o “gentil” comunista que obteve poder. Os partidos comunistas quando estão fora do poder parecem propositalmente “razoáveis” e gentis; mas, logo que chegam ao poder, revelam a sua verdadeira natureza. As prisões estavam repletas de pessoas que pensavam que os comunistas eram somente outro partido político. Muitas das pessoas que diziam serem os comunistas “apenas outro partido político”, e que os toleravam, foram executadas quando eles tomaram o poder. Os países ocidentais que toleram partidos comunistas devem tomar cuidado! Aqueles “pequenos” partidos talvez pareçam brandos agora, mas, se conquistarem o poder, esses países verão a verdadeira natureza dos comunistas, assim como aconteceu conosco! Eu disse: “Veltcho, é ótimo vê-lo novamente”. Ele me olhou com hostilidade e disse: “Conhecemo-nos um ao outro, Popov, e eu lhe aviso que, se quiser ver novamente sua esposa, terá de fazer exata- mente o que eu lhe disser”. “Mas, o que fiz eu, Veltcho?” Ele replicou, gritando: “Nunca me chame de Veltcho, novamente. Sou o Camarada Tchankov, e você é o prisioneiro Popov. Nunca esqueça isso!” Ele prosseguiu: “Você precisa reprovar os seus crimes. Se confessar isso, será muito mais fácil para você. O Governo do Povo é muito clemente, e perdoaremos todos os seus crimes. Sabemos que você é uma pessoa boa, mas terá de conformar-se a nós e à nova sociedade que estamos erigindo”. Eu ouvi estas palavras — “terá de conformar-se a nós”, durante treze anos. Em seguida, uma torrente de palavras fluiu dos lábios de Veltcho. “Repito: você precisa conformar-se a nós e confessar os seus crimes!”, gritou ele. “Se você se recusar a obedecer-me, estará fazendo o pior erro de sua vida; e só terá de lamentar-se. Aprenderá que não As paredes da prisão falam 27 estamos brincando e não permitiremos que você se transforme em um mártir religioso. Você gostaria disso, não é mesmo, Popov? Pois bem, não vamos lhe dar essa chance. Se fizéssemos de você um mártir religioso, isso fortaleceria os cristãos. Não permitiremos que isso aconteça. Você pensa que somos estúpidos? Vamos caluniá-lo e difamá-lo até os cristãos mencionarem o seu nome com desgosto”. Fiquei espantado ante as palavras de Veltcho. Seu plano era diabolicamente astuto e ele falava como um homem insuflado pelo maligno. Eu repliquei: “O povo da Bulgária me conhece. Eles saberão a verdadeira razão”. Veltcho apenas riu. Mais tarde percebi que eu estava lutando contra especialistas em fazerem o preto parecer branco, e a verdade parecer mentira. Os nazistas eram cruéis, mas os comunistas são cruéis e diabo- licamente astutos. Na prática, esta é a verdadeira diferença entre os nazistas e os comunistas. As ameaças de Veltcho se cumpriram mais tarde, com precisão matemática, ponto por ponto. Veltcho ordenou-me que voltasse à cela. Retornei em completo desespero. Contei a Tsonny a conversa que tivera com Veltcho. Ele me aconselhou a nunca confessar qualquer coisa que eu não tivesse feito. O conselho era bom, mas impossível de ser seguido nos meses que se passariam. Sentei-me, quase atordoado. Eu pensara que os comunistas eram apenas homens mal orientados. Mas aquele encontro com Veltcho me abalou profundamente. Percebi que estava combatendo a astúcia e a maldade do próprio Satanás. Pela primeira vez, a enormidade do que eu enfrentava e a astúcia daqueles homens diabolicamente inspirados me atingiram. A “Dieta de Morte” Essa dieta começou com a fome. Os sentimentos de fome — tal como os de amor — são impossíveis de descrever. Minha ração alimentar diária consistia de duas fatias de pão e seis colheres de “sopa”, que, na realidade, não passava de água temperada, viscosa e pútrida. A dieta era cuidadosa e cientificamente designada para sustentar escassamente a vida — e nada mais. Os prisioneiros chamavam-na “Dieta de Morte”. Consistia principalmente de água, sendo suficiente apenas para manter um pulso fraco. Ao mesmo tempo, era suficiente para estimular os sucos gástricos, fazendo com que a pessoa sentisse fome com mais intensidade do que se nada tivesse para comer. Se uma pessoa não come nada, ela morre gradualmente, mas as suas papilas gustativas ficam neutralizadas, e a pessoa é misericordi- osamente poupada das dores infernais da fome. Não fui poupado disso. As duas fatias de pão e as seis colheres de “sopa” chegavam às seis horas da tarde. Desapareciam em dois minutos e não havia mais alimento até ao dia seguinte, à mesma hora. O alvo era “que- brantar-me”, e confesso que a fome é um instrumento terrível e eficaz. E, por causa da fome, sentia-me como atacado por malária. Tais sen- sações me acompanharam, dia e noite, durante os cinco anos seguintes. Deve ser entendido que os comunistas não procuravam aplicar- me uma “lavagem cerebral”. Sabiam que nunca conseguiriam isso. A Torturado por sua fé30 lavagem cerebral implica em modificar completa e permanentemente o caráter de uma pessoa, fazendo com que sua mente torne-se totalmente dedicada a uma maneira de pensar diferente. Os comunistas sabiam que nunca conseguiriam fazer isso comi- go e nem o tentaram. O intuito deles era quebrar a minha vontade — ameaçando, insistindo, torturando, abusando e submetendo-me à fome, até que minha vontade ficasse totalmente vencida, e arruinada. Elessabiam que, depois de minha vontade ter sido completamente quebrada e de haverem arrancado de mim tudo quanto desejassem, eu recuperaria a vontade e voltaria ao bom senso. Portanto, a tática deles não foi a de aplicar-me uma lavagem cerebral, e sim a machucar-me e levar-me tão além do limite da re- sistência humana, que, por algum tempo, eu simplesmente perderia a vontade própria. A lavagem cerebral exige um tratamento alternada- mente bom e mau. Destruir a vontade de uma pessoa é mais simples — requer apenas espancamentos brutais e incansáveis, fome e tortu- ra que aumente progressivamente em intensidade de horror, até chegar a um clímax em que a pessoa não mais tenha vontade própria. Essa foi a tática deles... e começaram-na com fúria e brutalidade. Fome, insônia e ficar de pé com a face voltada para a parede, semana após semana, são os principais “instrumentos” no quebranta- mento da vontade de um homem. Este tratamento pode transformar uma pessoa racional e inteligente em um animal. A única coisa que resta, depois desse tratamento, é o instinto animal de procurar algo para comer. Meu guarda costumava dizer que eu “deveria tornar-me mais quieto do que a água e mais baixo que a grama”. A cela de punição Em 5 de agosto, sob a “dieta de morte”, fui posto em prisão solitária e sujeitado a um interrogatório ininterrupto de vinte e quatro horas por dia. Havia três interrogadores, cada qual trabalhando por oito horas. Isso lhes permitia conservar a tortura física e psicológica por vinte e quatro horas diárias. A cela de confinamento solitário tinha uma aparência bastante incomum. As paredes eram branquíssimas, pintadas com uma tinta de esmalte branco lustroso. Foi-me ordenado A “Dieta de Morte” 31 que permanecesse em frente da parede, à distância de vinte centímetros, e que conservasse os olhos abertos, bem abertos. Meu interrogador começou gritando: “Não se mova um centímetro!” “Não feche os olhos por um momento sequer!” “Não divida seu peso numa perna por vez!” “Não mova um músculo!” “Não faça isto... Não faça aquilo...” Assim ele gritava, enquanto eu permanecia em frente da parede. Após alguns momentos, meus olhos queimavam como se houvesse ferros quentes encostados neles. A vinte centímetros, eu estava tão perto daquela parede branquíssima que os meus olhos não conseguiam mais centralizar-se. Sugiro que os leitores experimentem isso por alguns momentos apenas. Os olhos da pessoa se rebelam. Lutam para fechar- se ou para focalizar-se em algo, mas não podem. É algo terrivelmente doloroso; e, quando eu somente piscava, meu interrogador batia no lado de meu rosto. A dor em meus olhos se tornava insuportável. “Fale-me sobre as suas atividades como espião!”, gritava o interrogador. “Sou pastor”, eu respondia, “tenho trabalhado para Cristo durante toda a minha vida. Nunca espionei”. O interrogador me dava outro golpe no lado da cabeça. Meus ouvidos tiniam com o impacto da pancada; ele gritava novamente: “Conte-me como você espionava para os americanos”. Novamente eu retrucava: “Sou pastor, um servo de Deus. Tenho trabalhado somente para Ele. Nada sei a respeito de suas acusações de espionagem”. Mais tarde, no decorrer dos anos de brutalidade, fiquei tão in- sensível a tais espancamentos, que eles me afetavam apenas fisica- mente. Todavia, no começo de meu aprisionamento, aqueles golpes me afetavam e desorientavam, tanto física como psicologicamente. O interrogador que me espancava era um homem enorme e severo. Nos anos seguintes, encontrei tempo para refletir sobre aqueles guardas e interrogadores. Sempre procurava orar mais por um guarda quando ele me espancava. Percebia que, em certo sentido, eles eram casos mais tristes do que nós, a quem eles espancavam. Torturado por sua fé32 Que tragédia imensa era a deles! Pouco a pouco, enquanto brutalizavam os prisioneiros e os maltratavam, desciam a escala de humanidade até chegarem ao nível das feras. Seus rostos, após certo tempo, desafiavam a descrição e tornavam-se como animais. Nós, os prisioneiros, eventualmente nos recuperávamos, mas os guardas sofriam um aleijamento permanente de sua humanidade. Assim, durante os espancamentos, eu procurava conservar minha perspectiva e orava em favor deles. Descobri que, verdadeiramente, isso diminuía a dor dos golpes. “Fale-me sobre o seu trabalho como espião!”, gritava o interro- gador. “Sou pastor e...” — antes que eu pudesse terminar a sentença, outro golpe violento me atingia o lado do rosto. Surgiu um padrão de procedimento durante aquele primeiro longo dia. Eu era forçado a permanecer absolutamente parado, sem mover um músculo, os olhos queimando como bolas de fogo, a olhar fixamente para a parede re- brilhante, a vinte centímetros de distância. Por detrás de mim, a voz de meu interrogador continuava gritando: “Fale-nos sobre suas ativi- dades como espião!” Eu respondia: “Sou apenas um pastor. Nunca fiz outra coisa, senão pregar o evangelho”. Recebia um golpe violento na cabeça, seguido de alguns minutos de silêncio. Novamente, era feita a pergunta; em seguida, havia a minha resposta e, outra vez, recebia a pancada. À medida que as horas se passavam, as perguntas se tornavam menos freqüentes. Eu perguntava a mim mesmo por que motivo o interrogador esperava tanto entre as perguntas. Após uma hora ou duas, a verdade brilhou em meu cérebro: o próprio tempo era uma arma deles. O tempo esta- va do lado deles, que contavam com o seu efeito fatigante para quebrantar-me. Hora após hora, naquele primeiro dia, repetiu-se aquele padrão de pergunta: resposta, golpe, pausa, pergunta, resposta, golpe. Perdi todo o senso de passagem do tempo. Eu sentia apenas aquele fogo em meus olhos, e fechá-los, ao menos por um minuto, tornou-se uma obsessão para mim. Meu corpo estava entorpecido. Eu perdera todo o senso do tempo, e só era trazido de volta à realidade pelo som diferente da voz de um novo interrogador; isso indicava que se haviam passado oito horas e que um novo turno se iniciara. A “Dieta de Morte” 33 Agora as pausas entre as perguntas eram mais longas; às vezes, chegavam a uma hora inteira. Eles não tinham pressa. A noite chegava e passava como uma eternidade. O sono me fazia pesar as pálpebras, mas, se as fechasse momentaneamente, eu recebia um golpe. Minhas pernas doíam. Meu corpo inteiro se rebelava; mas eu não podia mover um músculo sequer. Tudo se tornava enevoado, e o próprio tempo parecia cessar. Entorpecido, repentinamente ouvi a voz aguda e nova de meu primeiro interrogador, que gritava: “Então, Popov, você continua aqui! Pois bem, estou descansado. Começaremos tudo de novo!” Então, percebi que um dia inteiro se passara, e o primeiro de meus interroga- dores voltara à sua tarefa. A fome brotava em meu estômago. Antes eu já fora sujeitado à fome, recebendo apenas migalhas de pão. Agora, porém, eu não tinha nem mesmo migalhas. Quando eu recebera a ração, aquelas migalhas pareciam tão pouco. Agora, não tendo nada, até as migalhas pareciam um banquete! O quarto dia diante da parede Hora após hora se passou. Os dias chegavam e terminavam. O período da meia-noite até à manhã era o pior. Agora, fazia quatro dias em que eu não dormia, não comia, nem me mexia. O interrogador me observava com especial cuidado para apanhar-me quando a cabeça inclinava ou os olhos fechavam. Os interrogadores se deleitavam especialmente quando me apanhavam movendo um músculo ou piscando os olhos, como desculpa para me darem um golpe. Além disso, usavam sapatos de feltro, de modo que eu não sabia dizer se estavam bem atrás de mim ou do outro lado da sala. No quarto dia, a fome desapareceu, e uma profunda sede tomou o seu lugar. O sangue começou a descer para as pernas, que come- çaram a inchar. Meus lábios ficaram ressequidos, rachados e sangrentos. Então, iniciou-se outro nível de punição. Os interrogado- res começaram a comer ruidosamente e a beber água perto mim, para aumentar minha sede. A tortura não era somente física, mas também mental. Torturado por sua fé34 A sede profunda e intensa não se comparavaa nada que eu já houvesse experimentado ou ouvido antes. Era como uma bola de lava incandescente queimando o estômago e rachando os lábios. Uma terrível febre consumia e destroçava o meu corpo. Estabe- leceu-se a desidratação, e a agonia tornou-se quase insuportável. Até hoje, quando leio sobre um homem que morre de sede no deserto, as intensas dores da sede atingem-me novamente e, onde quer que eu esteja, preciso beber grandes goles de água. Outra pessoa sorvia água prazerosamente a pouca distância de mim. Mas bastava um leve tremor em meus lábios partidos e ressecados, para que eu fosse espancado sem qualquer aviso. A sede assolava dentro de mim, como se fosse uma febre intensa. Até hoje não sei explicar como pude permanecer de pé, durante todos aqueles dias e noites. Tinha de ser Deus comigo, pois ninguém possui tal força dentro de si mesmo. Lentamente, o interrogatório cessou e se transformou em um jogo de espera, em que os interrogadores aguardavam meu colapso. Em minha condição febril, comecei a ter alucinações. Pequenas manchas, na parede branca, à minha frente, tornaram-se vivas. Eu via rostos de pessoas: de Rute, Paulo e Rode; e, depois, dos guardas. Padrões girantes de cores vivas assemelhavam-se a um caleidoscópio maluco diante de mim. Eu tinha certeza de que estava ficando louco. O décimo dia O colapso ainda não chegara. Perdi todo o senso do tempo. Um dia se obscurecia em outro. Minhas pernas inchadas tornaram-se imensas, entupidas de sangue, devido à completa imobilidade. Meus lábios abriram-se em grandes rachaduras e sangravam. Minha barba estava longa, pois, desde que fora aprisionado, não me fora permitido lavar-me ou barbear-me. Meus olhos eram bolas de fogo. No entanto, de alguma maneira, eu continuava de pé. Na décima noite, algum tempo depois da meia-noite, ouvi que meu interrogador roncava, enquanto dormitava involuntariamente. Movimentei meu pescoço endurecido para a direita e para a esquerda. À esquerda, a menos de dois metros, havia uma janela. Visto que A “Dieta de Morte” 35 estava escuro do lado de fora, pude ver o reflexo na janela, como num espelho. Recuei, horrorizado. Era o reflexo de um monstro! Vi uma figura horrível, enfraquecida, pernas inchadas, olhos como buracos vazios na cabeça, uma longa barba coberta de sangue, escorrido de lábios partidos, sangrentos e horrendamente inchados. Era uma figura grotesca, horrorosa. Fui repelido por ela. Subitamente, ocorreu-me: aquela figura horrenda, sangrenta e grotesca, era eu mesmo! Eu era aquele “monstro”. Minha mente entorpecida absorveu lentamente aquele fato, e lágrimas me vieram aos olhos. Repentinamente, senti-me esmagado, tão sozinho, tão desamparado. Senti-me próximo de como Cristo deve ter se sentido quando exclamou: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Eu não podia derramar lágrimas, mas o meu corpo suspirava com lágrimas não derramadas. Então, naquele momento de desespero completo e esmagador, ouvi uma voz tão clara e distinta como qualquer voz que costumava ouvir. Dizia: “Nunca te deixarei, nem te abandonarei”. Foi uma voz tão audível que olhei para meu interrogador, que cochilava, certo de que ele também a ouvira; mas ele continuava dormindo. A presença de Deus encheu a Cela de Punição e um calor divino me envolveu, infundindo forças à casca que era o meu corpo. Isso produziu um efeito físico definido e surpreendente sobre mim. Meu interrogador acordou num sobressalto. Chegou ao meu lado e pôde sentir que algo tinha acontecido. Ele não sabia dizer o que era, mas estava tão cônscio da diferença que correu para fora e voltou com outro oficial. Não podiam compreender. Ouvi as vozes ansiosas e murmurantes dos interrogadores, por trás de mim, procurando descobrir o que acontecera. Parecia que eu estava tão revigorado e vivo, inspirado com força nova. Em minha vida, nunca me sentira tão próximo de Deus como naquele momento. Ele se tornou tão próximo de mim; meu coração anelava por vê-Lo. Senti a presença de Deus tão perto e era tão maravilhoso, superior a qualquer outra sensação que já tive. Foi um prelúdio de como será estar com Deus na eternidade; e eu não queria que acabasse. Torturado por sua fé36 Orei pedindo a morte. Anelava pela morte, que era uma porta bendita mediante a qual eu veria a Cristo, a quem amava e servia há muito tempo. O décimo quarto dia A presença de Deus enlevou-me por longo tempo, mas, no décimo quarto dia, a fome, a sede e o ardor intenso em meus olhos tornaram- se excessivos. Era claro que eu estava morrendo. Eu me sentia desligado de tudo. Então, é assim que se morre, eu pensei. A qualquer minuto verei a Cristo. O guarda percebeu que alguma coisa estava acontecendo e saiu correndo, tendo voltado com um médico. O médico olhou para mim e disse ao oficial: “Este homem está morrendo!” Suas vozes pareciam vir de longe. Evidentemente, não estavam preparados para deixar- me morrer, porque senti que estavam me levando para algum lugar. O que deve ter sido uma hora depois, voltei à consciência, em minha cela. A julgar pelo olhar de horror, estampado na face de Tsonny, penso que minha aparência era horrível. Eu não podia mover-me. Minhas pernas estavam inchadas como as de um elefante. Meus lábios estavam rachados e sangravam. Meus olhos eram profundos buracos negros na cabeça, e as pupilas estavam vermelhas como o fogo. Durante uma semana não pude focalizar os olhos nem usá-los adequadamente. Quando a consciência retornou lentamente, Tsonny me disse em que data estávamos. Eu não podia acreditar. Eu estivera de pé, sem alimentos e sem água por catorze dias! Não posso explicar como aquilo fora possível. Mais tarde, naquele mesmo dia, trouxeram-me alimentos e água e me permitiram descansar. Em meio a muita dor, meu colega de cela ajudou-me a levantar minhas imensas pernas inchadas, amparando-as contra a parede, para que o sangue diminuísse a pressão. Caí em profundo sono e pensei que o pior já tinha passado. Mas não tinha. Na noite seguinte, depois da meia-noite, fui chamado outra vez ao andar térreo, para ser interrogado, dessa vez por um oficial de nome Eleas. Havia quatro ou cinco homens esperando por mim, na A “Dieta de Morte” 37 sala. Quando entrei, fui recebido com zombaria, escárnio e humilha- ções. Então, começaram a esmurrar-me. Rodei pelo cômodo e caí; fui levantado do chão e esmurrado novamente. É óbvio que eles ti- nham resolvido adicionar mais torturas físicas à tortura mental. Durante todas essas coisas, permaneci em silêncio. Embora eu tivesse adquirido um pouco de forças, com o descanso, ainda estava muito fraco, e o menor empurrão me fazia cair. Não me batiam severamente, pois isso me teria feito cair inconsciente. Finalmente, Eleas carregou sua pistola, segurou-me pelo colarinho e foi me puxando para o corredor. Eu sangrava profusamente no nariz. O ambiente estava escuro como carvão. Ele foi me empurrando à sua frente até ao fim do corredor, onde havia uma pequena luz que brilhava. Eleas mantinha a sua pistola pressionada contra as minhas costas em todo o tempo. Quando chegamos na luz, ele gritou: “Pare! Fique de frente para a parede!” Fiquei na posição habitual, observando respingos de sangue e perfurações do impacto das balas no reboco da parede. É óbvio que o escuro fundo daquele corredor subterrâneo era o lugar onde muitos tinham encontrado a morte. Eleas apagou a luz. Estava frio e muito escuro. A morte pairava pesadamente na atmosfera opressiva. Eleas pressionou a pistola na parte de trás de meu pescoço. “Popov”, ele disse, “já toleramos bastante a sua teimosia. Esta é a sua última noite. Você terá de morrer devido à sua obstinação por ser recusar a confessar sua espionagem. Estou lhe dando a última oportunidade. Enquanto eu conto até cinco, você poderá pensar de novo e confessar que é um espião. Se você for sensato, viverá, mas, se não, atirarei ao contar cinco”. Eu estava certo de que ele atiraria em mim, pois milhares haviam sido mortos a tiros na “Casa Branca” da DS, antes de mim. Eu sabia que aquela gente cumpria suas ameaças.O pensamento da morte como uma ponte para a eternidade relampejou em minha mente. Eu veria a Jesus! Eu estava certo de que aquele tormento infernal logo acabaria. Era como se a eternidade já estivesse começando para mim e restasse apenas a formalidade da morte. Mentalmente, eu estava preparado e já me achava “com Cristo”. Agora esperava somente que o tiro ecoasse, e eu seria levado Torturado por sua fé38 ao céu, nas asas dos anjos — para Jesus, meu Salvador. Havia um imenso anseio no coração por aquele magnificente momento em que eu veria a Jesus. Quão atraente tudo aquilo era para mim. Toda aquela tortura terminada. Ver a Jesus! Estar com Cristo! Muitas pessoas não gostam de pensar sobre a morte. Temem e tremem diante dessa palavra, porquanto encaram a morte como uma figura terrivelmente negra. Por que as pessoas temem a morte? Primeiramente, porque não crêem em Deus. Para aqueles que ainda não aceitaram a Jesus Cristo como seu Salvador, a morte é a mais terrível das experiências. As pessoas temem a morte porque não têm certeza de sua salvação. Seu pecado as torna cônscias de que terão de prestar contas após a morte. No entanto, para aquele que crê em Jesus e está certo de sua fé e de sua salvação, por meio do sangue purificador de Cristo, não existe morte. Não cremos na morte porque ela não existe para aqueles que estão em Cristo Jesus. Em João 11.26, Jesus disse a Marta, irmã do falecido Lázaro: “Todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente”. Em seguida, dirigiu a Marta uma notável pergunta: “Crês isto?” Se existe uma certeza neste mundo incerto, esta certeza é a Palavra de Deus. Passarão os céus e a terra, mas a Palavra de Deus nunca passará. Até aquele momento eu não imaginava como seria a morte; contudo, para mim a morte não era um espectro obscuro, e sim um anjo que viria libertar-me. Para mim a morte não parece escura e repugnante. Pelo contrário, é cheia de luz e alegria, visto que Apocalipse 14.13 nos diz: “Bem-aventurados os mortos que, desde agora, morrem no Senhor”. E Salmos 116.15 nos diz: “Preciosa é aos olhos do SENHOR a morte dos seus santos”. Verdadeiramente, para aqueles que são salvos, a morte não somente é um portal para os céus, mas também um arco de triunfo pelo qual marchamos com alegria triunfante e um cântico glorioso. Eleas começou a contar vagarosamente, fazendo uma longa pausa entre cada número, para dar-me chance de gaguejar a minha confissão. “Um...” — uma longa pausa; “dois...” — outra longa pausa; “três...” Ele contava muito demoradamente, pressionando, em todo o tempo, a pistola em minha cabeça, para que eu pudesse senti-la. Ele A “Dieta de Morte” 39 acreditava que a morte me assustaria. Mas Eleas não podia ver o que acontecia dentro de mim! Não sabia que eu estava aguardando o momento em que eu veria o meu Mestre, a quem eu amava mais do que qualquer outra coisa, a quem eu servia e a respeito de quem eu havia pregado. Quando Eleas continuou com um longo e arrastado q-u-a-t-r-o, algo quase inacreditável aconteceu. O Espírito Santo desceu sobre mim em maior medida do que antes. Aconteceu comigo o mesmo que aconteceu com Gideão, relatado em Juízes 6.34: “Então, o Espírito do SENHOR revestiu a Gideão”. E tornei-me tão corajoso quanto Gideão, e tão forte como Sansão. Não me considero um homem corajoso, mas o Deus de Gideão é o meu Deus; Ele estava comigo naquele escuro corredor. Eleas fez uma pausa, depois de haver contado até “quatro”, mas fez uma pausa longa demais para mim. Ouvi uma voz que vinha de dentro de mim — sem temor, forte, exigente. Gritava: “Não espere, não espere. Atire, direto na cabeça”. Eleas deu um salto para trás, tomado de pânico e terror. Ele nunca esperara aquilo, nem eu o tinha esperado! Ele não conseguia entender (nem eu) de onde me viera aquela força! Eu estava tão fraco e debilitado que dificilmente podia andar. Eleas, porém, ficou ainda mais surpreso do que eu. Eu me preparei para receber o tiro mas, em vez disso, recebi uma pancada seca contra a parte de trás do crânio. Naquele momento fugaz, antes que a inconsciência tomasse conta de mim, percebi que Eleas apenas tentara me enganar, para arrancar uma confissão, e não quisera realmente matar-me. Uma dor de desapontamento — tão real quanto a dor física — brotou em meu coração, uma dor muito maior do que a dor que rachava a minha cabeça. Fiquei profundamente, profundamente desapontado. Estava pronto para enfrentar a morte, porém ainda me encontrava nesta vida... tão pronto para encontrar-me com Cristo, mas ainda estava com Eleas. Por que a morte me fora negada? Antes de a inconsciência toldar-me os sentidos, clamei no profundo de meu coração: “Deus, fui fiel até à morte, mas ela não veio”. Fui levado de volta à cela, onde me jogaram, inconsciente. Quando Torturado por sua fé40 acordei, Tsonny havia me empurrado contra a parede e estava enxugando o sangue que escorria atrás de minha cabeça. Ter estado tão perto de Deus e despertar em uma cela da DS! Isso foi um desapontamento esmagador. Mas consegui balbuciar uma oração: “Senhor, não seja feita a minha vontade, e sim a tua”. Caí em profundo e demorado sono. Mais tarde, a porta da cela foi aberta e um novo prisioneiro ali colocado. Sentou-se em um canto da cela, como se estivesse enver- gonhado, e não disse uma palavra sequer. Gradualmente, tornou-se mais conversador. Disse que seu nome era Nickolai Gantchef, que servira por muitos anos na guarda do palácio real de nosso anterior rei Boris e que fora detido sob a acusação de ser monarquista e haver tomado parte em conspirações. Tsonny suspeitou dele, mas eu, em minha credulidade, e ainda sofrendo dos espancamentos, acreditei em todas as declarações de Nickolai como verdadeiras. Mais tarde, fiquei sabendo que aquele homem fora colocado em nossa cela para espionar Tsonny e a mim. Pouco tempo depois, Tsonny foi retirado da cela. Um ano mais tarde, encontrei-o novamente em outra prisão. Ele me contou que Nickolai fora aos líderes e disse que Tsonny lhe parecia esperto e desconfiara dele. Por isso, os líderes deveriam tirar Tsonny da cela, a fim de que ele, Nickolai, continuasse seu trabalho de tentar quebrantar- me. Nickolai e eu ficamos sozinhos na cela. Ele conseguiu muitas informações a meu respeito, informações que, em minha inocência, lhe dei. Mais tarde, fiquei sabendo que colegas da prisão eram obrigados a espionar seus companheiros de celas, por meio de ameaças de dano a seus familiares. Depois, percebi que a aparência desanimada de Nickolai, quando o vi pela primeira vez, era de vergonha. Mas a Polícia Secreta aprendia rapidamente quais eram os pontos mais vulneráveis de um prisioneiro — seus filhos, sua esposa, por exemplo; e usava essa arma sem misericórdia. O trabalho de Nickolai consistia em descobrir o meu ponto vulnerável. Não tardou em descobri-lo. Naturalmente, era minha esposa e meus filhos. Eu me sentia extremamente preocupado a respeito deles. Rute estava sozinha, com dois bebês para alimentar e cuidar, e, eu estava incapacitado de ajudá-la. A “Dieta de Morte” 41 No entanto, até aqueles informantes que conheci na prisão e que ocasionalmente me causaram tanto castigo, eu procurava amar e compreender, ao invés de odiar. Eles também eram vítimas, tal como eu. Era comovente o fato de que os prisioneiros tentavam freqüente- mente falar com dureza sobre sua esposa e seus filhos, para que a Polícia Secreta imaginasse que não se importavam com os familiares, deixando-os, assim, em paz e sem danos. Muitas vezes, ouvi homens amaldiçoando sua esposa e seus filhos, como quem não se importava com eles; em seguida, tais homens, se voltavam, ocultavam o rosto entre as mãos e choravam em soluços. Os informantes não se encontravam somente onde campanhas sistemáticas eram planejadas (como aquela que fizeram contra mim). Estavam em todos os lugares: prisões, acampamentos, casas, empresas e igrejas. A fim de melhorar sua situação nas prisões e aliviar os próprios sofrimentos, muitos prisioneiros se ofereciam para tornarem- se informantes. Os comunistas nãodormem tranqüilos, enquanto não sabem a respeito de todos: o que as pessoas pensam sobre eles ou o que dizem sobre eles. Conseqüentemente, em toda a Bulgária, dificilmente existia uma cela, um quarteirão, uma empresa ou uma igreja sem um informante que denunciasse tudo o que era dito. Isto é tão ruim hoje como o foi naqueles dias. Pregando o evangelho para a Polícia Secreta No início de setembro de 1948, fui entregue aos cuidados de um advogado cujo nome era Peter Manoff, que deveria conduzir o interrogatório até que eu “confessasse”. Todas as noites eu era ordenado a escrever informações sobre mim mesmo, meu trabalho, meus amigos e os amigos de meus amigos — tudo quanto os comunistas quisessem saber a respeito de mim. Isso parecia inofensivo e me daria oportunidade de descansar, pelo que comecei a escrever. Resolvi incluir um testemunho sobre Cristo em todos os lugares possíveis. Queriam que eu registrasse, especialmente, tudo o que acontecera em minha vida. Isso se harmonizava, às mil maravilhas, com meu plano. Deu-me muitas oportunidades de contar aos meus interrogadores o que Cristo significava para mim! Eu sabia que eles tinham de ler o que eu escrevesse, pelo que preenchi tudo com a Palavra de Deus e com o meu testemunho. Manoff estava ocupado o dia inteiro no tribunal, trabalhando como promotor público; à noite, ele vinha passar-me novas tarefas e escolher novo guarda. O único sono que usufruí, durante um mês inteiro, foram “cochilos” rápidos. Eu tinha permissão de voltar à cela de manhã, ao meio-dia e à noite, talvez por quinze minutos em cada vez. Continuava recebendo as duas fatias de pão e a água temperada que chamavam de “sopa”, todos os dias. Torturado por sua fé44 Eu usava aquele breve período para descansar e dormir um pouco. Sentia-me extremamente fraco, por causa da falta de sono e da desnutrição. Seria interessante ler o que escrevi durante aquelas noites. Devo ter escrito mais de duas mil páginas ao todo, algumas vezes até quarenta páginas em uma única noite! A cada noite, eu recebia um assunto sobre o qual tinha de escrever. Tomar um assunto escolhido e encontrar um meio lógico de incluir um testemunho sobre Cristo tornou-se um jogo para mim. Realmente, tornei-me eficiente nisso. Em qualquer assunto que me dessem, eu encontrava uma maneira de incluir um testemunho! Não penso que eles apreciavam isso, mas tudo estava tão bem conectado, que parecia fazer parte do restante da história. Isso os enfurecia; mas, afinal de contas, Cristo se tornara parte de minha vida diária desde que me converti. Embora odiassem a Palavra de Deus esta era a Palavra de Deus e, eles mesmos eram os que mais precisavam dela. Tive uma das melhores oportunidades quando me ordenaram que escrevesse sobre o treinamento bíblico, em Danzig: contar que professores e amigos eu tive ali e que cursos me ensinaram. Aquela foi, realmente, uma notável oportunidade. Transcrevi as lições com detalhes, assim como os meus professores me haviam ensinado. Imagino que aqueles foram os primeiros interrogadores comunistas a receberem lições da Bíblia! Em seguida, perguntaram-me sobre os dias de instrução na Escola Bíblica, em Londres. Realmente arei com prazer aquele campo. Ali eu estava, em uma prisão comunista, usando papel e tinta comunistas para contar aos comunistas o que me fora ensinado da Palavra de Deus. Eles me tinham dito: “Popov, queremos todos os detalhes!” Eu lhes dava todos os detalhes. Aqueles foram alguns dos dias mais maravilhosos que tive na prisão. Escrever sobre as aulas bíblicas fez tudo voltar à memória. Um dia, eles me disseram: “Popov, já é o bastante. Não queremos saber mais nada sobre a sua vida na Escola Bíblica e sobre o seu Deus lendário!” Mas, agradeço a Deus por aquele tempo; em que eles foram expostos à Palavra, gostando ou não. Ordenaram que me limitasse à situação na Bulgária. Eu sempre tentava encontrar um meio de voltar à Palavra de Deus e ao que o Senhor significava para Pregando o evangelho para a Polícia Secreta 45 mim. Realmente “forcei” em alguns pontos, mas usualmente conseguia introduzir minha “mensagem do evangelho”. Com freqüência, me pergunto quantos comunistas foram alcançados por minha mensagem. No entanto, eles também eram espertos. O grande volume de meus escritos capacitou-os a selecionar incidentes isolados, aqui e acolá, para distorcê-los. Sem meu conhecimento, as pessoas mencio- nadas no manuscrito eram interrogadas e assediadas. Uma dessas pessoas era um irmão na fé, chamado Marko Kostoff, que trabalhava no cais de Burgas, um porto do Mar Negro. Perguntaram- lhe se tínhamos conversado no porto; e, nesse caso, o que havíamos conversado. Na Bulgária, um pastor visita habitualmente os membros de sua igreja em seus lares, pelo menos uma vez por mês. Durante as minhas visitas, eu falava sobre Deus, as necessidades da família e assim por diante. Se o chefe da família trabalhasse nos campos, eu conversava sobre a semeadura e a colheita. Se alguém trabalhasse na estrada de ferro, eu conversava com ele sobre o que fazia. Portanto, durante as minhas visitas pastorais, eu conversava com Marko sobre o porto e seu trabalho, bem como sobre assuntos espirituais. Meus interrogadores resolveram tirar proveito disso. Marko relembrou, nos interrogatórios a que foi sujeitado, que às vezes conversávamos sobre o trabalho dele, no porto. Mencionou que, em certa ocasião, falamos a respeito de um barril de queijo. Estavam embarcando barris cujos rótulos continham o nome “marmelada”, em um navio que se destinava à Rússia, e aconteceu que um dos barris caiu no cais e estourou, revelando que continha queijo. Na Bulgária, naquela época, não havia como alguém obter queijo em parte alguma, porque as autoridades estavam enviando secretamente todo o suprimento de queijo para a Rússia, sob o rótulo de “marmelada”. Marko me falara sobre aquela “marmelada” de aparência estranha. E também lembrou que tínhamos conversado sobre aquele incidente. Desta maneira, as autoridades afirmaram que eu “obtivera informações sobre atividades portuárias, passando-as aos ingleses e americanos”. De modo semelhante, os membros de minha igreja que eram operários da estrada de ferro ou de fábricas, relembraram que eu conversara com eles sobre o seu trabalho. Com muito cuidado, as autoridades estavam criando um caso Torturado por sua fé46 contra mim, mostrando-se extremamente cautelosas para não transmitirem a impressão de que eu estava sendo perseguido por causa de minha fé em Deus. Certa noite, fui levado a uma sala, no quarto pavimento, onde recebi ordem para sentar e escrever. Nessa altura, eu era um esqueleto faminto, movimentando-me com estupor, em um mundo de semiconsciência. A janela daquela sala dava para um pátio; e, no outro lado deste pátio, havia uma ala ocupada pela Polícia Secreta. Notei uma janela iluminada, do outro lado da ala. Através daquela janela, vi um homem sendo torturado. Ele era mantido no chão, com os pés para cima. Dois homens o seguravam embaixo, enquanto um terceiro, armado de um cacete de borracha dura, batia com toda a sua força nas solas nuas dos pés do pobre homem. Através das janelas fechadas, eu podia ouvir distintamente o ruído das pancadas, vindo do outro lado do pátio. O homem urrava de agonia e dor. Os golpes continuaram, até que o homem caiu em inconsciência; mas, apesar disso, os golpes não cessaram. Certamente, aquele homem nunca mais conseguiu andar com os próprios pés e sem ajuda. A cena ficou gravada em mim. Naquele momento e em incontáveis noites que viriam, eu fechava os olhos, para não ver, e tapava os ouvidos, para não ouvir. E orei: “Ó Deus, ajuda-me a desligar o meu cérebro e não pensar!” Mais tarde, reiniciei minha lenta e dolorosa escrita, porém os meus pensamentos não se afastavam daquele homem. Sentia-me profundamente triste por causa dele. Contudo, o invejava. Voluntariamente eu teria trocado de lugar com ele. Sua provação durou apenas algumas horas, mas, ainda que a tortura continuasse por dois dias, tudo teria terminado para sempre. Teria
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