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TEXTO I - BOM E MAU, BOM E RUIM GENEALOGIA DA MORAL DE NIETZSCHE FÁBIO SANCHES ZULIANI1 “Chamar-lhes-ão destruidores e desprezadores do bem e do mal, mas eles hão de ceifar e descansar. Colaboradores que ceifem e descansem com ele, eis o que busca Zaratustra. Que se importa ele com rebanhos, pastores e cadáveres? (…) Quero unir-me aos criadores, aos que colhem e se divertem; mostrar-lhes-ei o arco- íris e todas as escadas que levam ao Super-homem2. Entoarei o meu cântico dos solitários e aos que se encontram juntos na solidão; e a quem quer que tenha ouvidos para as coisas inauditas confranger-lhe-ei o coração com a minha ventura. Caminho para o meu fim; sigo o meu caminho; saltarei por cima dos negligentes e dos retardados. Desta maneira será a minha marcha o seu fim”. Friedrich Nietzsche 1. A ORIGEM DOS VALORES BOM E MAU, BOM E RUIM Na primeira dissertação de sua obra Genealogia da Moral, Nietzsche ocupou- se em analisar a dupla gênese dos valores de juízo bom e mau (gut/böse), bom e ruim (gut/schlecht) para, então, ressaltar os dois tipos distintos de homem – senhor e escravo -, e apresentá-los como tendências morais opostas. Esta primeira dissertação também apresenta-se como crítica aos genealogistas que produziram suas pesquisas até então. Assim, “Nietzsche trabalha com o que se poderia chamar de disjunção” (Azeredo, 2000, p. 47); na qual, os juízos de valor, que se originam de dois extremos, apresentam-se como tipos morais que divergem. Criticou também em todas as investigações a significação dos juízos de valor feitas até então e a omissão da reflexão sobre os mesmos. É importante 1 Graduado em Filosofia pela Faculdade Arquidiocesana de Filosofia de Curitiba (2003); graduado em História pela Fundação Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari (2005). compreender que, em Nietzsche, pergunta-se não pelo valor, mas pelo valor dos valores bom e mau, bom e ruim; não como algo dado, estabelecido e justificado e sim, de pô-los em questão como “objeto de crítica e, inclusive, de destruição, enquanto referida às próprias condições de criação” (id. ibid., p. 48). Os estudiosos que antecederam Nietzsche, na investigação da moral, são tidos como superficiais porque utilizaram um processo a-histórico, o que impossibilitou buscar afirmações quanto ao passado da humanidade. Nietzsche mostrou a diferença entre aqueles que se baseiam na historicidade e aqueles que se baseiam na a-historicidade, relacionando os primeiros com a cor cinza e os últimos com a cor azul. O cinza simbolizava a verificação do passado por meio de documentos que provassem os fatos ocorridos na humanidade como modos de construção da moralidade; enquanto o azul, simbolizava a superficialidade e a falta de senso histórico inglesas, perdendo-se em suas hipóteses. “Meu desejo, em todo caso, era dar a um olhar tão agudo e imparcial uma direção melhor, a direção da efetiva história da moral, prevenindo-o a tempo contra essas hipóteses inglesas que se perdem no azul. Pois é óbvio que uma outra cor deve ser mais importante para um genealogista da moral: o cinza, isto é, a coisa documentada, o efetivamente contestável, o realmente havido, numa palavra, a longa, quase indecifrável escrita hieroglífica do passado moral humano!” (Nietzsche, 1998, Prefácio, § 7) Assim, como fruto dessas análises, a construção hipotética acerca do juízo de valor bom “deriva de ações altruístas que foram louvadas e reputadas por aqueles aos quais eram úteis” (Azeredo, 2000, p. 48). Mas, com o decorrer do tempo, essas origens foram esquecidas e começou-se a chamar de bom às ações altruístas, sem mais. Para os ingleses utilitaristas, o juízo do valor bom é elemento denotador de utilidade. 2 O termo em alemão, empregado por Nietzsche para a palavra “Super-homem” é Übermensch. Em alemão, a palavra Über não tem a conotação da tradução para língua portuguesa. Esta palavra quer dizer “acima”, “além”, “sobre”. A melhore tradução para Übermensch seria: Além-do-homem. Não no sentido supra-sensível ou como o Super-homem das histórias em quadrinhos, mas como um homem que está acima do homem comum, um homem destacado, aperfeiçoado. “‘Originalmente’ – assim eles decretam – ‘as ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas – como se em si fossem algo bom’” (Nietzsche, 1998, I, § 2). Um exemplo que poderia ser dado é o de Spinoza, filósofo do século XVII, que Nietzsche menciona no prefácio de sua obra. Quando Spinoza tentou se colocar além do bem e do mal, chegou à conclusão de que não existem na natureza os valores e desvalores perfeição/imperfeição, bem/mal, mas que “perfeito e imperfeito são visões ou modos finitos do pensamento humano que nascem da comparação que o homem institui entre os objetos que produz e as realidades que são próprias da natureza. Com efeito, perfeição e realidade são as mesmas coisas” (Reale, 1990, p. 432); ou seja, aquilo que é, possui existência é perfeito porque assim o é. Assim, bem e mal não são entes em si, mas constituem modos de pensar analíticos do homem, cuja referência é o próprio homem. Na ontologia spinoziana, não há considerações finalístico-axiológicas. Considerando, então, em sua Ethica, as afecções essencialmente radicadas no homem para a conservação do seu modo de ser, Spinoza concluiu que aquilo que o bem é o realmente útil. Portanto, pode-se dizer que Spinoza equiparou o bem ao útil e, quanto mais alguém buscar “o seu próprio útil, isto é, conservar o seu próprio ser, tanto mais é dotado de virtude” (Spinoza apud Reale, 1990, p. 432). Podemos ver que Spencer passaria pelo mesmo caminho trilhado por Spinoza. Portanto, para Nietzsche, se o juízo de valor bom pudesse ser relacionado com a utilidade da ação, essa não poderia em hipótese alguma ser esquecida, “uma vez que não deveria deixar de existir a utilidade dos atos que eram tidos por bom” (Azeredo, 2000, p. 49); mas, deveria ter ficado cada vez mais afixado na memória pela utilidade da ação no dia a dia. Assim, Nietzsche viu que o juízo de valor bom, nesta perspectiva, era histórica e psicologicamente insustentável no passado da humanidade. É ilógico que em um primeiro momento, uma ação não egoísta seja útil e, quando perde a sua utilidade, continua sendo boa em si mesma. Neste primeiro momento, é perceptível a impossibilidade de sustentação da assertiva, uma vez que nos psicólogos ingleses3 é peculiar as idiossincrasias, acabando por transformar “a utilidade, o esquecimento, o hábito e por fim o erro” (Nietzsche apud Azeredo, 2000, p. 49). Herbert Spencer também é idiossincrático, estabelecendo uma igualdade essencial entre valor e utilidade mencionada por Nietzsche nesta primeira dissertação. Entretanto, pode-se chegar à conclusão de que estas teorias são idiossincráticas justamente porque partiram do ponto de vista pessoal de quem as cunhou e, por isso, necessariamente teriam de se perder no azul. Contudo, para Nietzsche, o juízo de valor bom provinha daqueles que se sentiam bons, ou seja, dos poderosos, distintos, destacados, superiores, “que julgavam como boas as suas ações sem pensar na utilidade das mesmas, mas com intuito de diferenciar o seu ser, mais do que seu fazer, de um ser e fazer mais baixo e vulgar” (Azeredo, 2000, p. 50). Pode-se dizer, então que sentir-se bom está intimamente ligado àquilo que seria bom, não afirmando o valor bom como em si. Para os bons, tudo o que era baixo, vulgar, mesquinho, vil, passa por juízo de valor ruim, formando assim, uma oposição extremaao ser nobre-aristocrático. 3 Quando Nietzsche se refere aos psicólogos ingleses, está se dirigindo a Stuart Mill e Bentham. As suas teorias enfatizam bem claramente a problemática idiossincrática, a qual eram erigidas as suas genealogias da moral e a instigação acerca do que se pauta de bom/ruim, bem/mal. Bentham limitava-se a classificar os prazeres segundo a sua quantidade e circunstâncias extrínsecas que os acompanham, na qual, Stuart Mill, seu discípulo, difere pela qualidade: prazeres superiores devem ser preferidos e prazeres baixos e grosseiros, sejam quais forem as conseqüências e intensidade. Para Bentham, a necessidade de acrescentar ao motivo egoísta do interesse puramente pessoal para o motivo mais nobre do interesse geral. Estando estes dois interesses indissoluvelmente unidos e necessariamente de acordo, não há razão humana que os distinga e subordine. Contudo, Stuart Mill os distingue: admite a sua oposição possível e subordina expressamente o interesse pessoal ao interesse geral, fazendo da felicidade da humanidade o verdadeiro fundamento e a lei suprema da moral. Corrigindo a doutrina hedonista de Bentham, Stuart Mill na problemática do bem geral: reconhece que este bem geral, obtém algumas vantagens sobre o motivo egoísta; permite a generosidade, a dedicação, o esquecimento e o sacrifício de si mesmo é, além disso, mais estável e “Para mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a fonte do conceito ‘bom’ no lugar errado: o juízo ‘bom’ não provém daqueles aos quais se fez o ‘bem’! Foram os ‘bons’ mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, da primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu” (Nietzsche, 1998, I, § 2). Se essa denotação de superioridade provém de um sentir-se bom, pressupõe-se que essa designação não seja externa, mas de um impulso interno. É esse “pathos da distância” – aristocrata/escravo, como disse Nietzsche, que possibilita a criação de valores, isto é, a interioridade que é força motriz para transformar a exterioridade; por isso, criadora. É um ser superior (aristocrata) em oposição a um inferior (escravo) que marca o ponto de origem dos valores contrapostos bom e ruim (id. ibid.). Ora, se o exterior é transformado pelo interior, pelo pathos da distância, não é possível que haja uma estreita relação entre ação e utilidade, já que esses dois pontos são determinados pelo instinto de rebanho, que liga o bom às ações não egoístas, visando uma camada igualitária. Se a princípio, a avaliação é feita pelo nobre a partir do estabelecimento da distância e da diferença diante do baixo e vulgar, a moral que procede do vil só pode aspirar à igualdade. Para Nietzsche, esse desenvolvimento alcança o ápice somente no século XIX: “(…) quem nos garante que a moderna democracia, o ainda mais moderno anarquismo, e sobretudo essa inclinação pela ‘commune’ [comuna], pela mais primitiva forma social, que é hoje comum a todos os socialistas da Europa, não signifique principalmente um gigantesco atavismo – e que a raça de conquistadores e senhores, a dos arianos, não esteja sucumbindo também fisiologicamente? (…)” (id. ibid., I, § 5). A inovação trazida pela genealogia nietzscheana por meio do passado histórico da humanidade foi acompanhada por um segundo elemento: a linguagem. Os argumentos apresentados por Nietzsche partem de fatos, porque a história é menos caprichoso. fato; mas, também, buscam na etimologia o significado dos juízos de valor. Constatou, então, que a origem da palavra “bom”, que “a nuança cardeal pela qual os nobres se sentiam homens de categoria superior (…) também segundo um traço típico de caráter” (id., ibid.), passa por uma transformação conceitual do termo. O nobre, enquanto ordem social (vornehm), e bom, enquanto alma privilegiada (gut) que, neste primeiro momento, designava somente o homem simples, diferenciação de castas, sem olhar depreciativo, por conta do radical do termo alemão schlicht [simples], idêntico a schlecht [ruim]. Assim, schlechtweg e schlechterdings querem dizer “simplesmente”. Vê-se agora como pela etimologia, Nietzsche chegou a essa comparação, relacionando os dois adjetivos “simples” e “ruim” que formam respectivamente o advérbio “simplesmente”. Daí o simples estar ligado ao ruim. Outra análise interessante que Nietzsche fez da palavra bom, pela investigação etimológica, é a da “bondade de um homem ligada à camada guerreira, na qual o termo pesquisado corresponde à evolução bonus de uma palavra mais antiga ainda que seria duonus, ou seja, a palavra belum evoluiu para duelum que evolui para duen-lum que por sua vez deu origem à palavra duonus da qual surgiu bonus” (id., ibid.). Dessa maneira, o bom (bonus) estaria estreitamente ligado aos homens de disputa (duo); e do mesmo modo, a palavra bom em alemão (gut), teria derivado do termo divino (den Göttlichen), ou homem de linhagem divina (göttlichen Geschlechts) que, por sua vez, seria idêntico a um povo nobre: os godos (Goten). Para o termo do “homem nobre”, primeiramente foi usado “os poderosos, os senhores, os possuidores, de uma forma mais generalizada” (id., ibid.). Posteriormente foi utilizado o termo “veraz para designá-lo nobre (den Wahren als den Wahrhaftigen) e, em um segundo momento, o termo mendaz para designar o homem comum frente ao nobre (der lügenhaften gemeinen Mann)” (id., ibid.). Com isso, pode-se perceber a dualidade de significação e oposição expressa pelos dois tipos de homem; sendo “o traço de caráter o que interessa a Nietzsche, por indicar o modo de ser daqueles que avaliam” (Azeredo, 2000, p. 53). Ora, se as transformações das designações obtidas pelas palavras, sua possível identificação está na maneira como se valora; e, se em um dado momento histórico o bom tem um significado e posteriormente outro, essa transmutação deve ser buscada no modo de avaliação. “É a mudança de valoração que promove uma mudança de designação e, conseqüentemente, de significação” (id., ibid., p. 54). Eis o valor da investigação etimológica para o genealogista; pois, ao analisar o conteúdo semântico, entre significado e significante, é possível perceber qual a avaliação que está por trás da significação, como se organizavam e reorganizavam as relações de potência cunhadas pelas transformações de juízos de valor e a relação de forças que em um dado momento da história se torna fato e exerce um domínio, querendo enfatizar qual o objetivo daquele que procura transformar tal juízo de valor. O pathos da distância é a base dos elementos disjuntivos e é a partir dele que o nobre cunha valores. Esses elementos não têm por objetivo acabar com a desigualdade e a diferença, mas de poder mostrar que essa disjunção é parte capital na relação de forças, dominação e subjugação. Se é o traço de caráter que interessava a Nietzsche, a investigação é o que alicerça a distinção nobre/escravo supondo a interioridade como produtora, como impulso motriz de avaliação, como vontade de potência, oposta à exterioridade que é movente a um outro denotador. Pode-se dizer que, enquanto o pathos da distância cunha valores, os valores bom e ruim estabelecem distinções quanto ao modo de ser e por conseqüência do valorar. O bom, para Nietzsche era aquele que se impunha e inspirava medo, pois só assim é digno de ser temido. “O populacho”, ao contrário, é incapaz de sentir orgulho de si mesmo e nem mesmo perceber que pode ter uma alma elevada. Por isso é vil e desprezível; é a sua própria forma de ser que o constitui assim. Vê-se que há também uma dualidade extremada entre os tipos aristocrata e escravo. Há, entretanto, um ponto importante a ser buscado. O modo de valorar sofreu uma transformação, que fez do desprezível o determinante das interpretaçõese valorações a respeito das relações de potência. Se o vil é o tipo que não cria valores, é também aquele que aniquila a diferença em favor do igualitarismo. É necessário verificar como isso ocorreu. Eis a importância da genealogia como método de investigação dos elementos disjuntivos das valoração: “o nobre e o vil, respectivamente, tanto quanto referidos às forças, quanto às vontades de potência” (id, ibid., p.55). Existe, portanto, uma dupla maneira de avaliar: o que é bom segundo o nobre e, o que é bom segundo o vil. A filosofia nietzscheana “toma os fenômenos como sintomas, cujo sentido é preciso buscar na força que se expressa e na vontade de potência que estabelece a diferença de quantidade de forças em relação” (Deleuze apud Azeredo, 2000, p. 56). Isto pressupõe que existam duas forças: uma que, exercida pelo nobre determina a força dominante, e a força do dominado exercida pelo escravo. Porém, é a quantidade de força que irá determinar a qualidade, ou seja, a quantidade de forças – dominante e dominado -, é que também vai determinar a qualidade da força – ativa ou reativa. Há, então, uma diferença qualitativa e quantitativa entre as forças exercidas. Segundo a interpretação nobre-aristocrática, a força ativa, seria a predominância da sua força; enquanto a força reativa, seria aquela expressa pelo escravo, enfatizando, assim, a sua preponderância. Em Além do bem e do mal, Nietzsche fez uma distinção, apresentando as diferenças entre os juízos de valor. “As diferenciações morais de valor se originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou agradavelmente cônscia de sua diferença em relação à dominada – ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau. No primeiro caso, quando os dominantes determinam o conceito de ‘bom’, são os estados de alma elevados e orgulhosos que são considerados distintivos e determinantes da hierarquia. O homem nobre afasta de si os seres nos quais se exprime o contrário desses estados de elevação e orgulho: ele os despreza. Note-se que nesta primeira espécie de moral a oposição ‘bom’ e ‘ruim’ significa tanto quanto ‘nobre’ e ‘desprezível’- a oposição ‘bom’ e ‘mau’ tem outra origem. Despreza-se o covarde, o medroso, o mesquinho, o que pensa na estreita utilidade; assim como o desconfiado, com seu olhar obstruído, o que rebaixa a si mesmo, a espécie canina de homem, que se deixa maltratar, o adulador que mendiga, e sobretudo, o mentiroso – é a crença básica de todos os aristocratas que o povo comum é mentiroso. ‘Nos, os verdadeiros’- assim se denominavam os nobres na Grécia antiga. É óbvio que as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a ‘homens’, e somente depois, de forma derivada, a ‘ações’…” (Nietzsche, 1992, § 260) Nietzsche procurou distinguir os valores e os tipos humanos que os estabelecem e distinguem e essa distinção se dá através da consciência, pois o tipo nobre-aristocrático se auto-afirma justamente pela consciência que tem de si e, por isso, é a partir da consciência que pode criar valores. Portanto, a diferença de posição que tomam os tipos humanos é a noção básica, na qual se expressa a força motriz do nobre, levando à exposição contínua da questão moral e à problemática da relação força ativa/força reativa. A diferença notada por Nietzsche, na origem dos valores, é que o conceito de valor mau surgiu para designar ação. A diferença bom e ruim (gut/schlecht), é o modo de valorar do nobre, sempre em oposição ao nobre/desprezível. Já os valores bom e mau (gut/böse), refere-se ao homem vil, que inverte a maneira de valorar do nobre-aristocrático. Essa nova designação para o tipo vil, está intimamente ligada não mais a seu modo de ser, mas a seu modo de agir; por isso Nietzsche disse que “as designações morais de valor, em toda parte, foram aplicadas primeiro a ‘homens’, e somente depois, de forma derivada, a ‘ações’…” (id., ibid.). Se a interioridade é a força motriz que pauta valores, a ação é expressa por essa explicitação de valores e determinará a vontade de potência como fonte da ação. Sendo assim, até o desprezível pode manifestar a sua vontade de potência. Porém, é evidente que o vil não avalia como o nobre, tanto que os valores bom e ruim eram pautados segundo a relação que há com a nobreza ou a vilania e a vontade de potência de ambos. Os valores, então, tidos por bons, seriam aqueles relacionados com o nobre e, ruins, aqueles relacionados aos escravos. Se a princípio, a maneira de atribuir valores a juízos, por parte dos nobres, foi o resultado alcançado entre eles próprios, como possibilidade de sua denominação, vê-se que posteriormente há uma inversão: o bom que designava o nobre, agora designa o vil e o nobre, que era tido como bom, passou a ser tido como mau, enquanto ruim: “…perguntemo-nos quem é propriamente ‘mau’, no sentido da moral do ressentimento. A resposta, com todo rigor: precisamente o ‘bom’ da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador…” (Nietzsche, 1998, I, § 11). Ainda, em Além do bem e do mal, Nietzsche apresentou o momento que o mau não é mais designado por ruim. “Aqui está o foco de origem da famosa oposição ‘bom’ e ‘mau’ – no que é mau se sente poder e periculosidade, uma certa terribilidade, sutileza e força que não permite o desprezo. Logo, segundo a moral dos escravos o ‘mau’ inspira medo; segundo a moral dos senhores é precisamente o ‘bom que desperta e quer despertar medo, enquanto o homem ‘ruim’ é sentido como desprezível. A opressão chega ao auge quando de modo conseqüente à moral dos escravos, um leve aro de menosprezo envolve também o ‘bom’ dessa moral – ele pode ser ligeiro e benévolo -, porque em todo o caso o bom tem de ser, no modo de pensar escravo, um homem inofensivo: é de boa índole, fácil de enganar, talvez um pouco estúpido, ou seja, un bonhomme [um bom homem]” (Nietzsche, 1992, § 270). A investigação histórica realizada por Nietzsche, abraça os fatos do passado, cujos juízos de valor bom e ruim/bom e mau, alcançaram o seu ápice com a influência dos valores judeus sobre os valores romanos o que, posteriormente, levou à crítica do cristianismo, justamente porque os cristãos herdaram esta inversão; “com os judeus principia a revolta dos escravos na moral: aquela rebelião que tem atrás de si dois mil anos de história e que hoje perdemos de vista, porque – foi vitoriosa…” (Nietzsche, 1998, I, § 7). A inversão dos juízos de valor se dá por um deslocamento, ou seja, sendo a valoração proveniente da afirmação da diferença entre nobre e vil, a situação se inverte a partir da manutenção da igualdade entre ambos. Se o valor define o tipo de homem – nobre ou escravo -, e esse valor é definido por ele, é mister saber o porquê se quer alcançar a avaliação bom ou mau, isto é, a partir de quê o valor foi invertido, passou a ter uma nova conotação – bom e mau, criados para designar a moralidade relacionada às ações humanas e assim, o bom passa a designar a igualdade e a coletividade e não mais a diferença e a nobreza. “Vamos concluir. Os dois valores contrapostos, ‘bom e ruim’, ‘bom e mau’, travaram na terra uma luta terrível, milenar; e embora o segundo há muito predomine, ainda agora não faltam lugares em que a luta não foi decidida. Inclusive se poderia dizer que desde então ela foi levada incessantemente para o alto, com isto se aprofundando e se espiritualizando sempre mais: de modo que hoje não há talvez sinal mais decisivo de uma ‘natureza elevada’, de uma natureza espiritual, do que estar dividida neste sentido e ser um verdadeiro campo de batalha para esses dois opostos” (Nietzsche, 1998, § 16). A possibilidade deste embate é progressiva e revelada nesta disputa pela transmutação dos valores bom e ruim/bom e mau. Ora, admitindo-se a oposição entre estes valores, é o mesmo que dizer sim à “metafísica e seus elementos representativos” (Azeredo, 2000,p. 59); pois enquanto se está tomando esta dualidade como existente, é clara a aceitação desses valores como transcendentais. Nietzsche, na verdade, não se posicionou para além do bem e do mal, no sentido de bom e ruim, e se refere à oposição destes valores criados a partir da inversão do escravo. A negação desta dualidade é o caminho para a negação do predomínio da moral do ressentimento. O que interessou a Nietzsche foi justamente pôr-se para além da interpretação dos valores bom e ruim, bem e mal4, que surgiram para designar as ações morais humanas. Situar-se para além da oposição entre estes valores, é estar para além da “metafísica e do ressentimento como imperantes” (id., ibid., p. 60). Porém, é necessário que não se esteja para além da diferença entre as motivações internas consciente que transformam o uso externo através da avaliação, ou seja, “mediante a distinção das forças e das vontades de potência enquanto expressão de toda a realidade” (id., ibid.). 2. A MORAL ARISTOCRÁTICA E A MORAL DOS ESCRAVOS Na perspectiva nietzscheana, a designação de valores bom e mau/bom e ruim, têm a sua origem a partir de dois tipos distintos e extremos de homens que determinarão a procedência da valoração. A avaliação, que procede de uma interpretação vinda do interior, pressupõe uma segunda vinda do exterior, já que são extremos os valores. Assim, essa dualidade vai acabar dando a conotação daquilo que Nietzsche chamou de nobre/aristocrata e desprezível/escravo. Esses dois tipos distintos avaliam a vida a 4 A nota de rodapé do livro Nietzsche e a dissolução da moral de Vânia Dutra de Azeredo, faz menção à tradução para o francês de Além do bem e do mal, e explica o porquê da negação da oposição dos valores bom e ruim/bom e mau e, da qual, também fazemos referência e transcrevemos literalmente: “Esta conclusão tem por base a crença na manutenção da existência de algo, pela sua admissão, ainda que esta aceitação seja feita através do fato admitido e, o esclarecimento apresentado por Maurice de Gandillac, em nota à edição de Par-delà bien et mal, feita por Gallimard, com relação ao uso nominativo e dativo dos termos ‘bem’ e ‘mal’ na língua alemã. Nietzsche utiliza von, que corresponde a de e não vom, que corresponde a do, implicando com isso, situar-se para além de bem e mal e não para além do bem e do mal; pois jenseits requer um dativo que não está presente no título, indicando uma possível intenção na escolha. Em função da relevância da distinção para compreender o pensamento de Nietzsche, segue-se a referida nota do tradutor: ‘O leitor terá observado que nos desfazemos, na presente tradução, do título que se tornou tradicional em francês: Par-delà le bien et mal. A tradução de Jenseits von Gut und Böse, põe dois problemas. Primeiro, a ausência do artigo e o fato de que as duas palavras ‘Gut’ e ‘Böse’ estão no nominativo e não no dativo, nos determinou traduzir esse título como ‘Par-delà bien et mal’, para além de bem e mal, isto é, não para além do bem e do mal, mas para além de sua antítese (o que significa que Nietzsche não procura o domínio transcendente a dois valores opostos, mas nega a oposição mesma, como nascida do ressentimento dos fracos)”. partir de si, configurando assim, uma moral; isto é, uma moral aristocrática que se define justamente pela própria consciência que tem de si e de sua diferença frente aos outros e, uma outra subserviente, a dos escravos. “Há uma moral dos senhores e uma moral dos escravos; acrescento de imediato que em todas as culturas superiores e mais misturadas aparecem também a mediação de duas morais e, com ainda maior freqüência, confusão das mesmas e incompreensão mútua, por vezes dura coexistência – até mesmo num homem, no interior de uma só alma. As diferenciações morais de valor se originaram ou dentro de uma espécie dominante, que se tornou agradavelmente cônscia de sua diferença em relação à dominada – ou entre os dominados, os escravos e dependentes de qualquer grau” (Nietzsche, 1992, § 260). Volta-se a recorrer a investigação para analisar a procedência e estabelecimento do valor que serve de base para a avaliação. Pode surgir a questão do porquê o senhor ou o escravo estabelecem valores. A resposta plausível seria: a vontade de potência é a instância de criação dos valores e, esta vontade de potência é responsável pelo sentido e valor da interpretação. É necessário saber que, se o dominar indica uma vontade de potência, o obedecer, também, não foge à regra. Se às vontades de potência em relação são remetidos o sentido e o valor, é o sentido, o significado dessa relação, que leva à pergunta feita pelo valor dos valores e que constitui o elemento diferencial dessa relação. É característico da moral dos senhores o sentimento de superioridade e orgulho, a distância e consciência de sua diferença e, é a partir deste ponto, que faz a sua avaliação. O escravo, ao contrário, é antagônico à moral do senhor; cria a igualdade e a fraqueza geradoras de sua moral, faz sua avaliação a partir dessa perspectiva. Através do estudo da genealogia da moral, Nietzsche insistiu na dicotomia senhor/escravo e, aludindo ao tipo escravo, o descreve como o homem do ódio e do rancor. “O olhar do escravo não é favorável às virtudes do poderoso: é cético e desconfiado, tem finura na desconfiança frente a tudo ‘bom’ que é honrado por ele – gostaria de convencer-se de que nele a própria felicidade não é genuína. Inversamente, as propriedades que servem para aliviar a existência dos que sofrem, são postas em relevo e inundadas de luz: a compaixão, a mão solícita e afável, o coração cálido, a paciência, a diligência, a humildade, a amabilidade recebem todas a honras – pois são as propriedades mais úteis no caso, e praticamente os únicos meios de suportar a pressão da existência. A moral dos escravos é essencialmente a moral da utilidade” (id., ibid.). Além do utilitarismo, Nietzsche se reporta também à questão da artificialidade e do rancor neurastênico e fraco da moral escrava em relação à moral aristocrática. Os valores apregoados pelos escravos mostram a negação de si, porque não são valores de auto-afirmação. “‘Os bem-nascidos’ se sentiam mesmo como ‘felizes’; eles não tinham de construir artificialmente a sua felicidade, de persuadir-se dela, menti-la para si, por meio de um olhar a seus inimigos (como costumam fazer os homens do ressentimento); e do mesmo modo, sendo homens plenos, repletos de força e, portanto, necessariamente ativos, não sabiam separar felicidade da ação – para eles ser ativo é parte da felicidade (…) -, tudo isso, o oposto da felicidade no nível dos impotentes, opressos, achacados por sentimentos hostis e venenosos, no qual ela aparece essencialmente como narcose, entorpecimento, sossego, paz, ‘sabbat’, distensão do ânimo e relaxamento dos membros ou, nenhuma palavra, passivamente” (Nietzsche, 1998, I, § 10). Percebe-se que a moral do escravo é o que impede o desenvolvimento e o progresso; porque fundada no medo e caracterizada pela manutenção da igualdade representada pelo instinto de rebanho. Esta atitude surge pela ameaça, diferença e superioridade que o nobre representa para ele, fazendo com que o escravo não tenha vontade, impedindo-o de elevar-se e individualizar-se. Por isso, seu instinto é de rebanho, pois procura uma moral generalizadora; e assim procede como reação mediante à diferença que o amedronta. É evidente que o escravo tornou-se uma ameaça para o senhor, pois enfatizando a coletividade, começou a classificar de imoral o agir nobre-aristocrático do senhor: “(…) portanto, justamente esses impulsos serão estigmatizados e caluniados. A espiritualidade superior e independente, a vontade de estar só e mesmo a grande razão serão percebidas como perigo: tudo o que ergue o indivíduo acima do rebanho e infunde temor ao próximo édoravante apelidado de mau” (Nietzsche, 1992, § 201). O que permite ao tipo nobre criar valores, diversos da moral do escravo, que os cria a partir da negação, é a afirmação de si e de sua vida: “Enquanto toda moral nobre nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não a um ‘fora’, um ‘outro’, um ‘não-eu’ – e esse Não é seu ato criador” (Nietzsche, 1998, I, § 10). Assim, o orgulho e a satisfação senhoril fazem com que valores sejam afirmados como fundamento para os demais. “Em termos genealógicos, a expansão de uma moral de escravos remonta à própria distinção de uma aristocracia sacerdotal e uma guerreira” (Azeredo, 2000, p. 66), ressaltadas pelas preeminência espiritual e política que Nietzsche buscou através da etimologia da palavra. Em sua análise, percebeu a proeminência da casta sacerdotal que levou a casta guerreira ao declínio, ocupando o seu lugar nobre e se há uma diferença entre as duas classes nas relações de poder e de termos próprios enfatizando estas diferenças: puro (rein) e impuro (unrein) e, que, mais tarde, irão gerar os valores bom e mau. A casta sacerdotal promove uma ruptura com a casta guerreira através de sua maneira de agir na maneira de valorar mostrando que a aristocracia sacerdotal está doente e que o remédio aplicado foi pior que a doença. “De resto, cautela para tomar de antemão os conceitos ‘puro’ e ‘impuro’ de maneira demasiado ampla ou demasiado rigorosa, ou mesmo simbólica (…). O ‘puro’ é desde o princípio um homem que se lava, que se proíbe certos alimentos que causam doenças da pele, que não dorme com as mulheres sujas do povo baixo, que tem horror a sangue – e não mais, pouco mais que isso! Por outro lado, a natureza de uma aristocracia sacerdotal esclarece porque aí as antíteses de valores puderam bem cedo interiorizar-se e tornar-se mais intensas (…). Já de início existe algo de malsão nessas aristocracias sacerdotais e nos hábitos que neles vigoram, hábitos hostis à ação, em parte meditabundos, em parte explosivos sentimentalmente, cujas seqüelas parecem ser a debilidade intestinal e neurastenia quase que fatalmente inerentes aos sacerdotes de todos os tempos; mas o que foi por eles mesmos inventado como remédio para essa debilidade – não é preciso dizer que afinal demonstrou ser mil vezes mais perigoso, em seus efeitos ulteriores do que a doença de que deveria curar? A própria humanidade sofre ainda os efeitos dessas veleidades de cura sacerdotal! Lembremos, por exemplo, certas formas de dieta (abstenção de carne), o jejum, a continência sexual, a fuga ‘para o deserto’ (o isolamento de Weir Mitchell, claro que sem a subseqüente cura de engorda e superalimentação, na qual reside o mais eficaz antídoto contra toda histeria do ideal ascético): a isso junte-se a metafísica anti-sensualista dos sacerdotes, apta a fabricar indolentes e refinados, a sua auto-hipnose à maneira dos faquires e brâmanes – o Brahma usado como botão de vidro e idéia fixa – e por fim o muito compreensível enfado geral com a sua cura radical – o nada (ou Deus – o anseio de unyo mystica com Deus é o anseio budista pelo Nada, pelo Nirvana – e nada mais!)” (Nietzsche, 1998, I, § 6). Este anseio pelo nada, gerado pelo ideal ascético, causa narcose e letargia no homem, tornando-o débil. Nietzsche reforçou ainda mais esse abismo que o sacerdote causou ao homem, esse “horror ao vácuo” e, no primeiro parágrafo da terceira dissertação escrever: “ele” – o homem - “precisa de um objetivo – e preferirá ainda querer o nada a nada querer” (id., ibid., III, § 1). Decorrente disto, Nietzsche alertou para o perigo que o sacerdote representa quando postula valores, baseados na transcendência colocando em xeque o imanente. É neste momento que a alma é infundida no homem; essa lhe confere profundidade e torna-se má. É clara a oposição entre as aristocracias (guerreiras e sacerdotais), exatamente pelo antagonismo no modo de valorar. A luta travada entre as duas classes é justamente pela primazia de seu respectivo modo de valorar e suas duas morais sempre com o predomínio de uma e o declínio de outra. Embora advinda da aristocracia guerreira, a aristocracia sacerdotal não alicerçou os valores na força, mas antes, na impotência, disputando pela hegemonia de seus valores. Enquanto a moral aristocrática cultiva a força, a virilidade, a afirmação de si mesmo e a saúde, a moral ascética cultivou apenas a doença, a debilidade, a decadência e um não a si mesma. Com relação à moral aristocrática surgiu o ódio, aquele próprio dos judeus: “…perguntemo-nos quem é propriamente ‘mau’, no sentido da moral do ressentimento. A resposta com todo rigor: precisamente o ‘bom’ da outra moral, o nobre, o poderoso, o dominador…” (id. ibid., I, § 11). A argumentação histórica de Nietzsche, mostrou que sempre houve uma busca incessante dos aristocratas sacerdotes para mudar os valores nobres em valores escravos e, isso, sempre movidos pelo ódio de sua impotência e essa impotência promove o ódio, criando um círculo vicioso. O veneno inoculado pelo ideal ascético sempre promoveu a primazia do transcendente sobre o imanente, da morte sobre a vida. A destruição da moral dos senhores, pela moral dos escravos, é feita pelos seus próprios princípios, levando-a à decadência. E o povo decadente, por excelência, é o povo judeu, de quem o cristianismo, mais tarde, vai herdar a moral de ressentimento. Este povo se serviu da inversão de valores prejudicando a aristocracia senhoril, servindo-se da impotência e demência, para se vingar espiritualmente da moral nobre-aristocrática. “O judeus – um povo ‘nascido para a escravidão’, como diz Tácito e, com ele, todo o mundo antigo, ‘o povo eleito entre as nações’, como eles mesmos dizem e crêem – os judeus realizaram esse milagre da inversão dos valores, graças ao qual a vida na terra adquiriu um novo e perigoso atrativo por alguns milênios – os seus profetas fundiram ‘rico’, ‘ateu’, ‘mau’, ‘violento’, e ‘sensual’ numa só definição, e pela primeira vez, deram cunho vergonhoso à palavra ‘mundo’. Nessa inversão de valores (onde cabe utilizar a palavra ‘pobre’ como sinônimo de ‘santo’ e ‘amigo’) reside a importância do povo judeu: com ele começa a rebelião escrava na moral” (Nietzsche, 1992, § 195). A inversão de valores, por parte da moral escrava, apresentava uma amostra do que realmente se pode fazer à moral dos senhores. O maior exemplo disso foi Paulo de Tarso que, nos primeiros anos da era cristã enfatizou o valor dos escravos. Em uma de sua cartas aos habitantes de Corinto, Paulo exortava aos cristãos a respeito da loucura da cruz e da sabedoria do mundo; que para Nietzsche soou como uma sagaz inversão de valores: “Mas o que é loucura no mundo, Deus o escolheu para confundir os sábios; e, o que é fraqueza no mundo, Deus o escolheu para confundir o que é forte; e, o que no mundo é vil e desprezado, o que não é, Deus escolheu para reduzir a nada o que é (…)” (1 Cor 1: 27s). Assim, na visão nietzscheana, a epopéia da moral escrava teve força e fez sucumbir a moral senhoril. Quando Nietzsche exclamou: “Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu – ou os ‘escravos’, ou a ‘plebe’, ou o ‘rebanho’, ou como quiser chamá- lo (…)” (Nietzsche, 1998, I, § 9), quis mostrar como era fato na história, o eterno retorno: “tudo o que acontece no mundo repetir-se-á igualmente vezes e vezes” (Marías, 1967, p. 353). Mostrou-se como Roma, expoente máximo do homem guerreiro, da força, foi vencida pela Judéia, povo da moral ressentida e que, o cristianismo se firmou e cresceu, instaurando sua sede justamente em Roma. Outro fato foi o Renascimento versus a Reforma Protestante. Enquanto o Renascimento retomava os valores nobres, da força vital ascendente, do orgulho e do sensualismo; os alemães, com a Reforma Protestante, impediram o ressurgimento da nobreza romana e promoveram aliança com os valores teocêntricospara combater o retorno dos valores nobres trazidos pela Renascença. Novamente a moral do ressentimento venceu. O mesmo aconteceu com a Revolução Francesa versus nobreza política francesa dos séculos XVII e XVIII. Se o pensamento nietzscheano foi o prelúdio de uma filosofia do futuro, é bem provável que a história e os fatos se repitam novamente. Nesta luta “Roma contra Judéia, Judéia contra Roma”, o populacho venceu; a interioridade foi posta em xeque e todos os valores apregoados pelo senhor sucumbiram frente aos postulados pela exterioridade que, por sua vez, fez com que a vontade de potência estivesse fora de cogitação. Foi, portanto, uma exterioridade que, para manter sua multiplicidade de impulsos, voltou-se contra a explicitação de vida como possibilidade de vontade. Sendo assim, o valor bom passou a mau e, o mau, a bom; isto é, o modo de ser do senhor, a superioridade e consciência de sua diferença, passou a ser ruim, desprezível, pecado, mau; e os valores do escravo que vivia à base de ideais, passaram a ser os fundamentos da igualdade, da paciência, da pureza e do amor. A preeminência da vitória do valor escravo contra o valor dos senhores foi comprovada mediante a inversão de valores. Essa inversão era idealizada, mas seu método de transformar a maneira de avaliar, negando a diferença passou, a partir dessa negação, do imaginário para o efetivo, ou melhor, é pela própria inversão que se deu a vingança. Portanto, quando se tem a supremacia do transcendente em relação ao imanente, há uma negação da existência e seus valores, negando-se o indivíduo concreto e afirmando-se um idealismo platônico. Para Nietzsche, o senhor era aquele que criava, avaliava, dava sentido às coisas; e o escravo, ao contrário, pela sua reação, não criava, mas invertia. Assim, enquanto a moral dos senhores criava valores, a moral do escravo os invertia e se, o escravo não podia criar valores, podia invertê-los e levar à ruína a vigência dos valores aristocráticos com a inversão sempre produzida a partir deles. É a partir dessa inversão que a moral foi criada como eterna e efetiva, impossibilitando qualquer chance de reflexão. A moral apregoada pelo escravo foi mascarada e universaliza os valores. A miserável vida do escravo é toda projetada pela maneira como instituiu sua moral decadente e seu instinto de rebanho. Seu fundamentalismo pragmático surgiu como justificação mascarada e velada de seus impulsos. Porém, o desvelamento dessa moral do ressentimento escondida, promoveria o valor dos valores buscando a volta do valor dos senhores. Entretanto, a vitória da Judéia sobre Roma alcançou o seu objetivo levando Nietzsche a alertar sobre o perigo que a moral do ressentimento podia causar ao homem. Assim, no final do penúltimo parágrafo da primeira dissertação, ele disse: “Não pode haver dúvida: considere-se diante de quem os homens se inclinam atualmente na própria Roma (…), diante de três judeus, como todos sabem; e de uma judia (Jesus de Nazaré, o pescador Pedro, o tapeceiro Paulo e a mãe do dito Jesus, de nome Maria)” (Nietzsche, 1998, I, § 16). 3. A MORAL DO RESSENTIMENTO Para se entender a moral do ressentimento, deve-se ter em vista o triunfo da moral dos escravos, que é o ponto crucial da produção de valores. Sua maneira de avaliar define seu modo de ser, sempre relevando as relações de força, de qualidade e de vontade de potência. É o ressentimento que especifica o modo de ser do escravo. Analisando-se a reação do escravo, será possível identificar os dois extremos que o compõem, ou seja, que o fazem ser o que é e como cria seus valores. Na realidade, o escravo produz um levante, uma vingança imaginária; isto é uma reação, pois a ação é peculiar ao senhor. Os escravos não podem transformar o exterior porque não têm estímulos internos e, toda sua atuação é dirigida a outrem. Em outras palavras, se o senhor se auto-afirma, pela consciência que tem de seu modo de ser, o escravo não possui essa consciência e essa pluralidade de impulsos, logo, não têm interioridade, criando seus valores sempre exteriormente, não em si, mas em outro. Assim, o ressentimento é definido a partir da existência e negação do outro e sempre através da oposição sim/não, potência/impotência, mostrando bem que a moral do senhor surge a partir de um sim ao passo que, a moral do escravo baseia-se em um não, negando a si mesma. Pode-se perceber que as forças desencadeadas na relação estão dispostas assim: o sim está relacionado à ação enquanto o não, à reação. As disjunções sim/não são importantes na compreensão de como se formam os tipos senhor/escravo e a vontade de potência que organiza o modo de avaliação e interpretação através da ação, isto é, para cada tipo de homem haverá uma manifestação da vontade de potência. Haverá, assim, dois pontos de partida: um que surge a partir da afirmação e outro, a partir da negação. Para a classificação e distinção do tipo escravo haverá, também, uma qualificação de forças; é a intensidade da força que dirá quem será o dominador e quem será o dominado. Mas a diferença de intensidade conforme a qualidade, definirá a variação de quantidade. Igualmente se os binômios ação/reação, dominação/subjugação estiverem relacionados pela vontade de potência, a ação será atividade e, a reação, reatividade. A felicidade acontecerá de uma maneira, se buscada pela passividade e, de outra, pela atividade. Para Nietzsche, os nobres, bem nascidos, “não precisavam construir sua felicidade artificialmente, pois não acreditavam na separação de ‘ação e felicidade’” (id., ibid., I, § 10); ou seja, a felicidade caracterizava-os como homens fortes, e era vista como atividade, uma ação de força. O escravo por sua vez, construía sua felicidade através do sono, do repouso, da tranqüilidade, da narcose, ou seja, sob a forma idealizada, de um não agir, de uma passividade. Percebe-se que há uma diferença quanto o manifestação da dicotomia – ativa/passiva -, designando a proveniência do senhor ou do escravo. O ressentimento era a expressão do tipo escravo e compunha o seu modo de ser. Em contrapartida, o ressentimento também podia estar presente no senhor, mas nele, o ressentimento se esvanecia rapidamente porque olhava o escravo como ser desprezível, como algo sem importância; o senhor não se intimidava com o inimigo e isto se dava através do esquecimento. O esquecimento era importante, pois ao mesmo tempo que impelia ao ressentimento, também impedia que certos acontecimentos fossem gravados na consciência. O esquecimento funcionava como um protetor, “um amortecedor, cuja função seria impedir a impressão de tudo o que é experimentado (…); caberia enquanto vigilante, garantir a ordem física e tranqüilidade necessários para desenvolvimento, no homem, de funções nobres” (Azeredo, 2000, p. 80). Porém, no escravo, não havia a faculdade do esquecimento, o que ocorre é o contrário: a memória era aguçada. A memória fazia com que visse o seu inimigo como mau. Isso implicaria um estado patológico, causado justamente pelo não esquecimento. Foi por isso que Nietzsche referiu-se à moral dos escravos como algo patético, caduco, doente: essa era a prerrogativa do ressentimento. Assim, o escravo, definido através desse estado doentio, seria incapaz de reagir, pois partiria sempre de uma visão odiosa que guiaria a sua maneira de valorar. Assim, o escravo não criava valores, mas os postulava, invertendo-os à luz dos valores nobre-aristocráticos. Essa maneira de agir foi tida como anômala, pois as relações de força, qualidade e quantidade das vontades de potências, expressariam no senhor a auto-afirmação e, no escravo, a negação de si, a não-criação e a inversão de valores nobres. Em suma, o que acontecia ao escravo era que nunca recebia algo novo, mas estava sempre ocupado com o que vivenciava no dia a dia; criando parasi uma memória que só armazenava um marasmo rancoroso e total. Entretanto, a consciência estava exposta aos objetos e acontecimentos gravados na memória que funcionavam como um aguilhão atormentando a consciência quando criavam uma disfunção acentuada. Portanto, essa revolta imaginária por parte do escravo, era o escravo que promovia a inversão dos valores, a autonegação e, por fim, o niilismo. É bom sublinhar que, nesta perspectiva, Nietzsche chamou a atenção para o que a moral dos escravos podia causar. Foi na vitória da Judéia contra Roma que Nietzsche percebeu o triunfo da moral do ressentimento: “Sujeitemo-nos aos fatos: o povo venceu – ou ‘os escravos’, ou ‘a plebe’, ou ‘o rebanho’ (…)” (Nietzsche, 1998, I, § 9).
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