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guarapiranga 100 anos guarapiranga 100 anos São Paulo Fundação Energia e Saneamento 2014 Ricardo Araujo • Mariângela Solia Realização:Patrocinadores: Há livros que são autorais e há livros que não o são. Este “Guarapiranga 100 Anos” certamente nada tem de autoral; bem ao contrário, deve muitíssimo a muita gen- te, tanto àqueles que trabalham e militam em organizações culturais dedicadas a preservar e resgatar nossos registros históricos, quanto a fotógrafos amadores – por vezes, de tanto apuro que ‘amador’ é termo que envolve antes dedicação e afeto que técnica menos sofisticada – e às suas famílias, responsáveis pela conservação de originais e cópias que constituíram, para nós, os “autores”, revelações preciosas. Entre as instituições, um agradecimento especialíssimo é devido à Fundação Energia e Saneamento e às profissionais – principalmente Mariana Rolim, Isabel Félix, Rita Martins, Maria Isabel Chiavini Torres e Lena Silva - que nos proporcio- naram inestimável apoio técnico e estímulo amigo durante o longo tempo em que pelejamos com as pesquisas e a montagem do livro. Usufruímos da Fundação como editora e usufruímos ainda do belíssimo material iconográfico de seu acer- vo, parte dele inédito, que formou o capítulo que trata dos empreendimentos da Light no limiar do século XX. Igualmente somos devedores de outras instituições: o Departamento do Patrimônio Histórico da Prefeitura de São Paulo (DPH); o Museu Paulista; o Arquivo do Estado de São Paulo; o Memorial do Imigrante; o Instituto Geográfico e Cartográfico do Estado de São Paulo; a Biblioteca Prestes Maia, da Prefeitura de São Paulo; o Museu Municipal de Jaú; a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - Sabesp, dentre as organizações públicas; o Instituto Moreira Salles e o Instituto Martius Staden, dentre as organizações privadas. Não foi à toa que mencionamos no início do texto aqueles que “trabalham” e “militam” em todas estas instituições - é exatamente disso que se trata. E também não é à toa que obrigatoriamente lembramos aqui de um “militante” indivi- dual, fora das instituições – o Monsenhor Jamil Abib -, cujo acervo de cartões postais, ao qual nos concedeu acesso gentilíssimo, é de enorme dimensão e importância. Vale também a menção ao jornal O Estado de São Paulo, do qual aproveitamos a facilidade e a qualidade do acervo digital de suas edições. Foi igualmente importante o acesso à Enciclopédia Itaú Cultural, na sua seção de Artes Visuais (versão digital). Se algum mérito tivemos no planejamento deste livro, este foi, desde o princípio, a busca de material fotográfico em acervos familiares. Talvez nem pudesse ser de outra forma. A antiga Represa de Santo Amaro – rebatizada, no decorrer dos anos 1930, como “Represa Velha” (em oposição à nova represa do Rio Grande, depois Billings); mais tarde ainda, após um período impreciso, novo batismo e o nome que parece definitivo, Represa do Guarapiranga – foi o cenário inesquecível da vida de muitos, um motivo permanente de evocação de imagens e sentimentos que man- têm uma distância imensurável da aglomeração urbana atual, a São Paulo metro- politana de multidões, densidade, números e ritmos superlativos. Havia, portanto, motivos de sobra para que a represa, seus clubes, suas velas e seus recantos fossem fotografados por seus privilegiados usuários, e motivos também substantivos para que parte destes registros fosse conservada. Muitas destas imagens foram incor- poradas a este livro. Também relevante foi o material que pudemos localizar nos clubes que se situam às margens da represa, ou a partir do auxílio firme e eficiente de seus diretores e sócios. Foram muitos os colaboradores, e todos auxiliaram com muita alegria e entusiasmo; esperamos tê-los mencionado todos na ficha técnica das fotos e imagens e na seção final de agradecimentos. Nossa gratidão se estende aos detentores de obras e de direitos de reprodução de trabalhos de pintores que tomaram a Represa do Guarapiranga como motivo de sua expressão artística – foram os casos das telas de Ernesto de Fiori, Vitto- rio Gobbis, Raphael Galvez e Arcangelo Ianelli presentes no terceiro capítulo. Também aqui o auxílio foi desprendido, imediato, um forte impulso para que chegássemos ao termo final da pesquisa e do próprio livro. Finalmente, somos devedores daqueles que financiaram o projeto: apostaram na sua viabilidade e importância e assumiram os seus riscos quando não havia mui- to mais que uma ideia e noções preliminares dos caminhos a seguir. São eles: a Sabesp (sua diretoria: Dilma Seli Pena, Manuelito Pereira Magalhães Junior, Rui de Brito Álvares Affonso, João Paulo Tavares Papa, Luiz Paulo de Almeida Neto e, muito especialmente, Paulo Massato Yoshimoto; também os ex-diretores Marcelo Salles de Holanda e João Baptista Comparini); a Cobrape - Companhia Brasileira de Projetos e Empreendimentos (Alceu Bittencourt, Carlos Alberto Pereira, Harol- do Oliveira e Roberto Vieira); a Hagaplan Planejamento e Projetos (José Eduardo Leite, Álvaro Velloso e Edson Victor); a JNS Engenharia, Consultoria e Gerencia- mento (Nelson Nucci, Roberto Max Hermann, Leide Britto de Araujo, Sérgio Par- reira, Elton Pinho da Silva, Ana Maria Valsecchi e Waléria Cordeiro); a Associação de Engenheiros da Sabesp (Reynaldo Young Ribeiro, Viviana Nogueira Borges e João Augusto Poeta, demais diretores e membros do Conselho Deliberativo). O resultado final de “Guarapiranga 100 Anos” seria bem menos expressivo sem o belo projeto de Ronaldo da Silva Rego e sua Graphic Designers. Não é pouco mas, como se não bastasse, e sempre com imensa paciência e otimismo, Ronaldo fez bem mais: pesquisou imagens, identificou artistas e suas telas, fez todo tipo de contato necessário à produção do livro. Não poderíamos arrumar parceria melhor. Temos com ele um dever de gratidão, que também manifestamos para a sua equipe: especialmente Julie Mayumi Kume e, ainda, Célia Emy Ushizawa Takiguthi e Hamilton Breternitz Furtado. Um último esclarecimento: as obras da Represa do Guarapiranga foram concluí- das em algum momento entre março e abril de 1909. A represa já alcança, agora, 105 anos. Todavia, mantivemos o título que guardava absoluta fidedignidade à data em que começamos a desenhar o projeto. Pareceu-nos bom demais para ser deixado de lado. Este livro é dedicado aos nossos filhos: Rachel, Fábio, Mayara, Lia e Júlia. nota dos "autores" 1. O séculO de sãO PaulO 2. a light e a rePresa 3. a rePresa lOnge da cidade 4. a rePresa dentrO da cidade 8 24 70 164 ÍndiCe o séCulo de são paulo em 1872, nãO havia muitO mais que 30 mil habitantes em todo o seu território. À época, nove cidades brasileiras, Niterói, Cuiabá e São Luís dentre elas, possuíam populações mais expressivas que a pequena São Paulo de construções de taipa, quase colonial, de ruas estreitas e mal pavimentadas, que pouco ultrapassavam a co- lina central escolhida pelos jesuítas. Era ainda provinciana, embora talvez nem tanto quanto cinqüenta anos antes. Desde 1828 abrigava a Faculdade de Direito; além disso, políticos paulistas estiveram envolvidos com a turbulência do período regencial e dos primeiros anos do Segundo Reinado. A economia também mudara: a cultura do café se des- locava do Vale do Paraíba para o oeste interiorano; ensaiavam-se estímulos à imigração de mão de obra estrangeira para a lavoura, então marcada pelo braço do escravo negro. Sobretudo, São Paulo estava menos isolada do mundo. Durante três séculos, chegava-se à cidade após vencer-se a custo as encostas abruptas da Serra do Mar. Mesmo após o calçamento da Estrada do Lorena, pelo final do século XVIII, tropeiros, burros e viajantes a pé enfrentavam inclinações de até 45 graus para atingir o relevo mais suave do Planalto. A conclusão de outra rota, a estrada da Maioridade, em 1842, não tornou a viagem muito mais agradável - as chuvas intensas sobre o relevo acidentado destruíam e obstruíam trechos do percurso. A partir de 1867, porém,o mundo ficaria mais próximo. Começava a operar a São Paulo Railways, ligando a capital a Santos e, posteriormente, a Jundiaí, confirmando o papel da cidade como centro comercial e administrativo da Província. Viaduto do Chá (1892-1893), com seu piso original de madeira, de pranchões de pinho do Paraná. Vê-se a cabine do pedágio, no canto baixo à direita. No lado oposto, as casas fron- teiriças à rua Formosa e o início da rua Ba- rão de Itapetininga. Lembra Benedito Lima de Toledo que “nas cabeceiras do viaduto havia portões que se fechavam à noite”. O pedágio seria suprimido em 1897, com a encampação do viaduto pelo Município. 11 À esquerda: Largo da Sé (Ca. 1880). Enquan- to as cidades coloniais espanholas dispunham de traçado viário planejado e grandes ‘plazas’ centrais, as cidades de origem portuguesa cresceram mais ao acaso, com ruas sinuosas e estreitas e espaços apenas um pouco mais amplos, os largos, geometricamente mal defi- nidos. Situadas no antigo Largo da Sé, tanto a Catedral, à direita, datada da segunda meta- de do século XVIII, quanto a Igreja de São Pe- dro dos Clérigos, à esquerda da imagem, vi- riam abaixo em 1911-1912, para a abertura e construção das atuais praça e Catedral da Sé. Primeira foto acima: Rua Direita (1900). Ima- gem feita a partir do primeiro escritório da Light, à rua Direita, em direção à atual praça do Patriarca. Ao centro, bonde de tração ani- mal. Ao fundo, a Igreja de Santo Antônio. Segunda foto acima: Avenida Paulista (1902?). Vista do palacete de Adam Ditrik Von Büllow, empresário de origem dinamarquesa, acionista da cervejaria Antárctica. O projeto da residência é de 1895. Do alto de sua torre, Guilherme Gaensly fez as fotos mais conheci- das da avenida no início do século XX. 12 13 Cartões-postais circulados após 1910. Tempo de esportes e de lazer no Rio Tietê, local de clubes como o Canottiere Espéria, o Regatas Tietê e o São Paulo. Jorge Americano conta que “na seção Sports dos jornais escrevia-se ‘rowing’, e publicavam-se fotografias ‘como as das regatas de Oxford’: subia-se o rio a todo o esforço, ganhava-se a regata e volta- va-se, ‘à la derive’...”. 14 15 em 1900, data de novo censo demográfico, era como se houvesse ocorrido um movimento de translação. A população, urbana e rural, saltara para 240 mil habitantes. Bairros próximos ao cen- tro da cidade - Brás, Mooca, Luz e Bom Retiro - se industrializavam. Nas ruas antes desertas, surgira uma algaravia de línguas. Entre 1890 e 1899, 635 mil imigrantes desembarcaram em Santos (muitos voltaram ao país de origem, mas cerca de 30% de- les permaneceram), parte rumando para o interior, parte para a capital. Italianos predominavam larga- mente, mas era expressiva a presença de alemães, espanhóis, portugueses e brasileiros de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Destruía-se e construía-se; São Paulo reciclava a fortuna do café. Ruas tornavam- -se avenidas, novos prédios públicos eram erguidos, loteamentos de mansões e palacetes espraiavam-se dos Campos Elíseos para a colina de Higienópolis e o espigão do Caaguassu, em cuja cumeeira surgi- ria a avenida Paulista a partir de 1891. Obedecia-se a diretrizes urbanísticas que pretendiam conceder feições européias a uma aglomeração pouco antes acanhada. Mudavam os tipos e costumes urbanos. Avistava-se de longe o relógio da torre da Estação da Luz, inaugurada em 1901; revolvida pela cultu- ra do trabalho, a cidade se regia, mais e mais, pela disciplina das horas. Trabalhava-se muito, mas tam- bém havia algum divertimento, footing na Praça da República e no Jardim da Luz, festas e pic-nics nos Parques da Cantareira, Antártica e Bosque da Saúde. No litoral, o porto de Santos fora ampliado e modernizado. No interior, as plantações cafeeiras em expansão eram seguidas pelos investimentos em ferrovias - Campinas foi alcançada em 1872, Mogi Mirim em 1873, Rio Claro em 1876, Ribeirão Preto em 1883. Pela primeira vez na história brasileira, um ciclo econômico escapava à armadilha das fortunas provisórias e da inevitável e prolongada decadência; na esteira do café, as atividades urbanas cresceram e se consolidaram. A economia escorava a política, que transpunha os limites regionais: os três primei- ros presidentes civis republicanos foram paulistas. Primeira foto acima: chegada de migrantes ao Porto de Santos (Ca. 1910). Alívio após a longa e penosa travessia marítima em na- vios abarrotados; tensão e estranheza frente a um mundo desconhecido. Segunda foto acima: grupo de migrantes europeus no pátio da Hospedaria dos Imi- grantes (1896-1900). O desembarque em São Paulo era feito no bairro do Brás, na estação de trem da Hospedaria. A maioria dos imigra- dos transportava seus pertences em meios improvisados: sacos de estopa, sacolas, cai- xas; “só os mais afortunados possuíam baús e malas” (Memorial do Imigrante). À direita: viaduto da Grota Funda, da São Paulo Railways - SPR, a “Inglesa” (1889). A visão da Serra do Mar, a exuberância da Mata Atlântica e os planos agudamente in- clinados da ferrovia aterrorizaram muitos dos migrantes. A SPR precisava travar os vidros dos vagões para evitar fugas e aci- dentes dos que queriam retornar a Santos. 1616 Acima: homens, mulheres e crianças traba- lhando na cultura do café (1917). Não era um mundo apenas de italianos; espanhóis, por- tugueses, eslavos, sírios, japoneses e bra- sileiros, principalmente mineiros e cariocas, fizeram o caminho para o oeste paulista. À direita: embarque de café no Porto de San- tos (Ca. 1910). A modernização do porto foi iniciada em 1890 por um grupo de empresários brasileiros da Companhia Docas de Santos. Por ali transitavam, em direção à Europa e aos Es- tados Unidos, as imensas quantidades do café colhido em São Paulo por europeus vindos de um continente onde a oferta de mão de obra suplantava as oportunidades de trabalho. 18 19 Acima: mulheres e crianças no Jardim da Luz (década de 1900). Criado como Jardim Bo- tânico em 1798, reformado e reinaugurado como o primeiro parque público da cidade em 1825, o Jardim da Luz somente se tornou um ponto de referência para o lazer na déca- da de 1870 — após nova reforma, a instalação de um observatório e o movimento criado pela vizinha Estação da Luz. À esquerda: homens, mulheres e crianças, operários da Tecelagem Mariângela, do Gru- po Matarazzo (década de 1900?). Boa parte era italiana, da região de Bari. José de Souza Martins comenta que a Mariângela fabricava sacos de algodão para embalar a farinha de trigo produzida pelo vizinho Moinho Mata- razzo. Ambos se situavam no Brás. O con- sumo da farinha era crescente, pelos novos hábitos alimentares de pasta e pão trazidos pela imigração italiana. vista mais de PertO, POrém, a translação não fora tão com- pleta. Nas ladeiras íngremes, próximas ao triângulo central - ruas Direita, XV de Novembro e São Bento -, amontoavam-se ainda velhas casas de taipa. Na rotina dos dias úteis, as ruas constituíam propriedade predomi- nantemente masculina; as mulheres iam às compras, mas de preferência acompanhadas por maridos ou irmãos. O incômodo da poeira não era um atributo de bairros periféricos, como Pacaembu ou Perdizes. Na nova avenida Paulista, o empregado da mansão fazia sinal ao condutor do bon- de (de tração animal); em seguida, chamava a família proprietária, que aguardava no interior da residência, pouco disposta ao incômodo de uma via sem pavimentação. A indústria, ainda que florescente, era rústica, com maquinário pouco moderno e produtos básicos, desprovidos de sofistica- ção. Aumentava o contingente de operários, mas na fábrica Mariângela, do Conde Matarazzo, pouco depois da virada do século, mais de seiscentos menores de 16 anos cumpriam longas jornadas diárias de 13 horas de trabalho. A expansão da cultura cafeeira não completara o domínio das fronteiras do estado pela atividade econômica moderna: áreas imensas permaneciam desconhecidas, ocupadas por tribos indígenas remanescen-tes. O século XX ainda veria expedições de mapeamento geográfico do oeste paulista. 20 21 mas, sObrevivências de uma sãO PaulO sono- lenta, `a parte, os tempos eram de agitação urbana, modernização econômica, desigualdades sociais também modernas, capitalistas da cafeicultura, migrantes, capitães da indústria, operários, circulação ampliada de dinheiro, ferrovias e porto. Mudando a cidade e o es- tado, mudava o Brasil. Era a partida para o que se poderia chamar o século de São Paulo. A exploração do Rio do Peixe, no “extremo sertão do Estado” - hoje, a principal cidade da região é Marília -, demandou duas expedi- ções, a primeira em 1905, a segunda no ano seguinte. Em tempos de tardio mapeamento do oeste paulista, houve tensão e um confli- to com os índios Coroados. À mesma época, outras expedições fizeram o reconhecimento do baixo curso do rio Tietê, do rio Paraná e do rio Feio (atual Aguapeí). 23 2a light e a represa na virada dO séculO, apesar do crescimento rápido, as dimensões da cidade de São Paulo eram, para os padrões posteriores, ainda moderadas. Havia a colina central, onde a cidade nascera pela metade do século XVI, a várzea do Tamanduateí (Brás e Mooca), os bairros da Luz, Santa Efigênia e Campos Elíseos, as colinas da Consolação e de Higienópolis, os aglomerados da Liberdade e da Glória, a ocupação ainda inicial da avenida Paulista. Por estas áreas, andava-se muito a pé. O transporte público limitava-se a carruagens de aluguel, como os tílburis e landôs, e a vagaro- sos bondes puxados por parelhas de burros, com cinco a sete bancos, dependendo do percurso plano ou mais íngreme. Para vencer as inclinadas ladeiras do centro, acrescentava-se um burro à parelha; feito o trajeto, desatrelava-se o burro que, ao estalar de um relho no ar, descia obediente a mesma ladeira para esperar o bonde seguinte. A pequena geração de energia explicava, até certo ponto, o transporte acanhado. Parte da demanda de iluminação pú- blica e das residências era atendida por uma empresa chamada São Paulo Gas Company. Outra concessionária, a Compa- nhia de Água e Luz do Estado de São Paulo, cuidava da iluminação da área mais central da cidade, mas o fornecimento, neste caso por eletricidade, não se estendia além da meia-noite. Sua geração provinha de uma pequena e barulhenta usina a vapor instalada nas proximidades da Praça da República. Tudo somado, pouco mais de mil imóveis contariam com o serviço de energia. Quanto às indústrias, eram movidas por motores alimentados a carvão, cuja tonelada tinha um custo médio quatro vezes superior à sua cotação nos Estados Unidos e Canadá. Apesar do crescimento rápido da cidade e do espírito empreendedor demonstrado na industrialização e na construção da malha ferroviária e do porto de Santos, sobravam dificuldades à mobilização de recursos para o impulso da infraestrutura urbana básica, como energia e transportes. Diversas empresas se formaram, concessões foram efetuadas, mas os resultados não eram animadores. A Light mudaria parte desta história. Homens de negócios de Toronto constituíram, em setembro de 1899, a São Paulo Railways (depois Tramway) Light and Power Company Ltd. Contavam com o apoio de capitais ingleses e a experiência técnica americana. Iniciava-se, então, a curiosa trajetória de uma empresa que, poderosa no Brasil, permaneceria virtualmente desconhecida no Canadá. Aqui seus investimentos foram efetuados com presteza. De imediato, tiveram início as obras da hidrelétrica de Santana do Parnaíba e dos 33 km de sua linha de transmissão. A primeira etapa da obra da usina foi concluída dois anos depois. Com uma barragem de 244 metros de extensão e altura variável entre 12 a 22 metros, conforme a profundidade da rocha no leito do rio, sua capacidade de geração chegava a 2.000 KW/hora, suficiente para o atendimento da demanda de energia da cidade de São Paulo, incluindo o serviço de transporte público e de iluminação pública e particular. santana de parnaÍba Barragem de Santana do Parnaíba (1901), a ape- nas 33 km de São Paulo. No começo do século XX, a transmissão de energia elétrica somente era viável a distâncias relativamente pequenas. 26 À esquerda: trabalhadores da barragem de Santana do Parnaíba (1900). A obra chegou a mobilizar até mil operários. Na foto, o que era raro è época, é possível identificar trabalha- dores negros. Edgard de Souza, engenheiro e primeiro diretor brasileiro da Light, comenta que um depósito de granito encontrado nas vizinhanças e a boa qualidade do trabalho operário facilitaram o empreendimento. Acima: a barragem concluída (1901). 28 29 Breakfast sob a linha de transmissão de San- tana do Parnaíba a São Paulo (1901). A trans- missão de energia era feita por duas linhas independentes. Os postes eram de pinho im- portado da Geórgia. Assentamento de tubulações de aço (1904). Esta linha de adução tinha 3,65 metros de diâmetro e 701,5 metros de extensão. Era utilizada para conduzir a água represada na barragem até um pequeno reservatório próximo ao edifício da usina e à estação ge- radora. A usina começou a operar com ca- pacidade de 2.000 KW/h, suficiente para as demandas dos bondes, da iluminação pública e dos motores das fábricas. 32 Transporte de tubulações de aço (1905). O local da obra distava 13 km da estação Ba- rueri, na linha férrea Sorocabana. A geração da usina foi sucessivamente ampliada até atingir a capacidade de 16.000 KW/h em 1912. Operou até a década de 1950, quando foi desativada. usina de santana de parnaíba: ampliações sucessivas até 1912. 34 35 Vista geral das instalações da Usina de San- tana do Parnaíba. a light e os bondes antes dissO, POrém, a light inaugurOu, em maio de 1900, sua primeira linha de bondes, do Centro à Barra Funda (final da Alameda Barão de Limeira), sucedida, em poucos dias, por mais duas linhas, para o Bom Retiro e a Vila Buarque (até a rua Marquês de Itu). Outros três percursos surgiram até janeiro de 1901, sempre partindo do centro da cidade: os destinos eram a avenida Paulista, o Brás e o distante bairro da Penha. Para a geração da eletricidade necessária à operação das linhas, uma usina a vapor, provisória, foi instalada pela empresa na rua São Caetano. A hidrelétrica de Santana do Parnaíba e o desenvolvimento tecnológico das lâmpadas para a ilu- minação pública e das residências gradativamente fariam a Light assenhorear-se do mercado de energia. Foi mais um impulso à mudança da feição e dos hábitos da cidade. E da sua economia: cresceria menos o número das altas chaminés das fábricas do Brás, Mooca, Bom Retiro e Luz; a eletricidade substituiria gradativamente o coque importado. No entanto, havia mais a fazer. Quando da vazante do rio Tietê, a capacidade geradora da Usina de Parnaíba enfrentava limitações severas; uma estação especialmente escassa de chuvas, como a ocorrida em 1903, tornaria vulnerável o fornecimento. Era indispensável a regularização da vazão do rio, pela acumulação de águas numa represa a ser construída ou a montante da capital, no próprio Tietê, ou na bacia do rio Pinheiros, à época uma área de ocupação rarefeita. A Light escolheu a segunda alternativa. Viaduto do Chá e Rua Direita (1900?). O pala- cete à esquerda pertencia ao Barão de Tatuí e foi posteriormente demolido para a abertura da Praça do Patriarca e o alargamento da rua Líbero Badaró. 3838 Acima: obra de reforço da estrutura do Viaduto do Chá para suportar a passagem segura dos bondes elétricos (1902?). Trocou- -se o piso de madeira por laje de concreto, mantendo-se o uso de pranchas de madeira nos passeios laterais. Sob o viaduto, sobre- viviam as casas da rua Formosa e não havia ainda sinais das obras do Teatro São José e do Teatro Municipal, que seriam concluídas em 1909 e 1911, respectivamente. Na foto à direita: extensão de trilhos para a Estação da Luz (1902?). A modernidade urba- na chega 35 anos após a modernidade eco- nômica da linha férrea. Ao fundo, a torre do colégioSagrado Coração de Jesus; à direita, o Jardim da Luz e o prédio do Liceu de Artes e Ofícios, onde hoje funciona a Pinacoteca do Estado. 40 41 Acima, à esquerda: a rua São Bento (1902), em tomada a partir do Largo do Rosário, atual Praça Antônio Prado, em direção ao Largo São Francisco. O prédio ao lado do bonde pertencia à Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Acima, à direita: a rua XV de Novembro (1902?). Ao fundo, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Rosário. Foi demolida em 1904. As duas ruas, mais a rua Direita, formavam o famoso Triân- gulo, que concentrava as principais ativida- des comerciais e de serviços da cidade. Na página ao lado: o movimentado Largo do Tesouro (1902?). A construção de três pavi- mentos à esquerda data de 1854; erguido por Domingos de Paiva Azevedo, era o edifício mais alto da cidade quando foi registrado por Militão de Augusto Azevedo, em fotografia de 1861-1862. 42 43 o novo cenário urbano: os bondes elétricos para são paulo guarapiranga Rio Guarapiranga, ou rio M’boy Guaçu, antes da construção da barragem (1900). Foram tempos de chuva, conforme a linha d’água próxima ao portão provavelmente de um sítio. distante 2,5 km da Pequena vila de santO amarO, o rio Guarapiranga (também chamado M´boy-Guaçu) fazia seu deságue no Pinheiros. Nas proximidades deste local, projetou-se uma barragem destinada a armazenar cerca de 50 milhões de m³; o projeto foi alterado posteriormente, com a altura da barragem ampliada em dois metros para a acumulação de um volume de água quatro vezes superior. Santo Amaro era então uma vila administrativamente autônoma, abrigo de antiga colônia alemã e de economia pou- co expressiva. De suas cercanias vinha a lenha vendida de porta em porta na capital, transportada por carros puxados por juntas de bois. A ligação ferroviária com São Paulo era feita desde 1886 pela Companhia Carris de Santo Amaro, uma linha a vapor construída por um engenheiro chamado Alberto Kuhlmann. O percurso de 18 km – havia ainda um ramal meio urbano, meio rural, para o Matadouro da Vila Mariana – atravessava longas campinas e pequenas aglome- rações de casas do Alto da Boa Vista. A Light adquiriu os direitos e as instalações da falida Companhia Carris em 1900; anos depois, estendeu um ramal até o local da barragem, para o transporte de material destinado à sua construção. As obras da represa do Guarapiranga foram iniciadas em 1906. Utilizou-se o método de hidromecanização - jatea- mento com água sob forte pressão - para o desmonte de encostas à esquerda do rio, com transporte da água e do material erodido, por calhas, para a formação de 900 metros de aterro. Toda a barragem atingiu, na sua configuração original, 1640 metros de extensão e altura máxima de 15 metros. Era a maior obra do gênero, à época, em todo o hemisfério sul. O trabalho andou célere em 1907, mas no ano seguinte nem tudo correu bem. Provavelmente por problemas de projeto, ligados à ampliação da altura da barragem e da capacidade de armazenamento, toda a estrutura esteve sob a ameaça de colapso. Em um ponto onde anos antes se situara o leito do rio Guarapiranga, surgiram fissuras e vários vazamentos. O assunto virou notícia em jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, geralmente acompanhado por des- mentidos tranqüilizadores da empresa. Entretanto, o Relatório Anual de 1908 da própria Light descreve a situação em tom pesaroso e sem meias palavras. A represa foi esvaziada para que intervenções emergenciais de reforço da estrutura fossem executadas durante todo o ano. A conclusão da obra ficou para 1909. O espelho d’água imenso, inédito, foi uma mudança súbita na geografia de São Paulo, mas o cenário transformado não passaria despercebido. Em 15/08/1907, patrocinada pela Light, houve uma excursão de jornalistas dos principais periódi- cos de São Paulo ao local das obras. Tomaram um bonde no Largo São Francisco e seguiram até a Vila Mariana, de onde partiram no trem a vapor. De Santo Amaro até a barragem, utilizaram trolleys, diligências e cavalos. Todos voltaram impressionados. No dia seguinte, o jornal A Gazeta antevia que “situada em tão bello valle, uma tão vasta extensão de água ficará conhecida das pessoas que procuram diversão e que gostam de pescar, gente de perto e de longe; e para os habitantes de São Paulo o attractivo que offerece fará do lago de Santo Amaro um dos pontos mais procurados”. 44 45 Ao lado da capela, pequeno imóvel utilizado como escritório pelo engenheiro responsável pela construção da barragem de Guarapiran- ga (1906). Nas proximidades da futura barragem, área já desmatada a ser posteriormente coberta pelas águas (1906). Outras fotos, posteriores, mostram que a retirada da vegetação não foi completada, talvez pela elevação da altura da barragem, decidida durante a obra, e pela consequente ampliação da área de inundação. arrabaldes de santo amaro: sítios, pequena agricultura e fornecimento de lenha para a Capital 46 47 O centro da imagem corresponde à linha do eixo projetado da barragem. Foto tirada no sentido leste-oeste (1906). Início de desmonte das encostas à esquerda do rio por jatos d’água de alta pressão (1906). 50 51 Nas duas fotos, calhas de transporte do ma- terial erodido para formação do maciço de terra da barragem (1906). Na página ao lado, as calhas estão instaladas ao lado das en- costas da margem esquerda. Acima, vista do lago a partir da margem direita. 52 53 Acima: vista do conjunto da barragem em construção (1907). A jusante da barragem, a região do Socorro, com pequena ocupação por casas e sítios; mais adiante, a baixada do Rio Pinheiros e a acanhada aglomeração de Santo Amaro. Ao lado: detalhes da construção da barra- gem, com destaque para as calhas de trans- porte de terra (1907). 54 55 À época, a maior obra de barragem no hemisfério sul Acima: vista geral da obra (1908). Foto ti- rada no sentido noroeste-sudoeste mostra o lago já formado. Ao lado: encostas da margem esquerda e vista parcial da barragem, em uma fase in- termediária da construção (1908). 56 57 Vista da barragem a partir da encosta da margem esquerda (1908). Os problemas começam: erosão no maciço da barragem e acúmulo de água de infiltração a jusante (1908). 60 61 erosão no maciço da barragem cria uma situação de risco Engenheiro examina afloramento de água a jusante da barragem (1908). Na foto maior: nota-se que as pedras que formam o enrocamento da barragem foram removidas para a passagem do bate-estaca. Na parte alta do maciço, estão depositadas estacas-prancha de aço (1908). Na foto ao lado: água acumulada a jusante do maciço (1908). 64 6564 intervenções de emergênCia “nO cOmeçO dO anO, O PesO da barragem, combinado à pressão da água contra ela em um ponto onde há alguns anos estava localizado o leito do rio, expeliu o material fino do maciço. Uma parte erodiu para dentro do lago e outra parte para jusante na lateral da barragem, formando jorros d’água. O engenheiro imediatamente aumentou a seção naquele ponto e preen- cheu toda a camada porosa (...) foi considerado aconselhável reforçá-la, pela cravação de uma linha de estacas-prancha intertravadas, da extremidade onde fica a comporta até a outra extremidade. Estas estacas foram cravadas até a camada impermeável (...) para cravar estas estacas foi necessá- rio remover uma faixa do ‘rip-rap’ (nota: enrocamento de proteção do talude de montante, para proteção e amortecimento do arrebentamento de ondas do reservatório, ocasionadas pelo vento) e preparar um caminho para passar o bate-estacas. Para este trabalho foram solicitadas 2300 estacas de 12 polegadas de largura (30 cm) e 1150 estacas de 6 polegadas (15 cm). Foram utilizadas 1200 das primeiras e a totalidade das últimas” (Relatório Anual da Light - 1908). 66 67 Acima: trabalhadores provavelmente fazen- do a destoca e a retirada de vegetação a ju- sante da barragem (1908). À esquerda: os túneis laterais de descarga(1906). Na página seguinte: a obra concluída (1909). 3a represa longe da Cidade em 1913, a POPulaçãO da cidade de sãO PaulO já não estava distante dos 400 mil habitantes. O centro velho, em torno de um Largo da Sé em início de completa remodelação, e o centro novo, ao redor da Praça da República, mantinham-se - e conservariam esta condição por mais sessenta anos, pelo menos - como o núcleo essencial de um tecido urbano que, entretanto, já se prolongava bem mais adiante. O mapa mostra as estiradas da cidade: no sentido leste, até o bairro do Belenzinho; para oeste, de ocupação menos densa, até Perdizes e Água Branca; ao sul, até a Vila Mariana. Ao norte, vê-se os meandros do rio Tietê e a área vazia, de várzea, às suas margens. Havia, ainda, distritos mais distantes, isolados, além dos limites do mapa: Penha, Lapa, Santana, Pinheiros, o pouco povoado Butantã, Pacaembu, Alto da Móoca e Jardins ainda esperariam um pouco mais pela ocupação. Quanto à represa do Guarapiranga, permanecia um ponto remoto - mas não inalcançável. Tomava-se o bonde da Light no bairro da Liberdade e, após longo percurso, chegava-se a Santo Amaro e ao Largo do Socorro, de onde a viagem prosseguia a pé. Quem se aventurava de carro não raramente atolava em algum trecho da jornada. Apesar das dificuldades, dois ingleses, Bert Greenwood e Greg Holland, decidiram que já era hora de aproveitar o lago para velejar. Em 1917, fundaram o São Paulo Sailing Club (mais tarde, São Paulo Yacht Club - SPYC), que, a bem da verdade, sequer tinha sede. Tampouco havia barcos a vela na cidade; eles tiveram de ser construídos, até mesmo utilizando madeira que embalava mercadorias importadas pela Mappin Stores, da qual Greenwood era o superintendente. Em lugar da sede, improvisou-se um “houseboat”, onde os primeiros velejadores atracavam suas embarcações e podiam dormir - provavelmente é este barco-residência, ou barco- -dormitório, que aparece em duas fotos nas páginas seguintes. tempos remotos, primeiras velas À esquerda: barragem e represa (30/04/1909). Na página anterior: mapa da Cidade de São Paulo em 1913. 73 Acima: a embarcação junto aos veleiros é, provavelmente, o “house-boat”. A foto foi ti- rada por um estudante durante excursão de alunos do Instituto Mackenzie. No verso da foto, a data de 03/05/1927. À esquerda: veleiros na represa (década de 1920?). 74 75 Acima: veleiro observado por visitantes em local próximo à barragem (década de 1930). À direita: barcos ancorados junto à pequena península posteriormente ocupada pelo São Paulo Yacht Club. Ao fundo, em destaque, o provável “house-boat” construído pelos pri- meiros velejadores ingleses (Ca. segunda me- tade da década de 1920). 76 Os gusberti eram originários de Cremona, na região da Lombardia, terra de Antonio Stradivari, o célebre luthier de violinos, e de Claudio Monteverdi, o maior compositor italiano da primeira metade do século XVII. Quando resolveram emigrar, parte dos sete irmãos Gusberti escolheu a Argentina; Linneu, Carlos e Guido vieram para o Brasil, esta- belecendo-se em Descalvado, interior de São Paulo. Ficaram pouco por lá, transferindo-se para as proximidades da barragem do Guarapiranga pela metade da década de 1920. A ausência de energia elétrica e de pavimentação não impediu a construção de um hotel e de um restaurante, ‘Grande Recreio da Repreza’, amplo o bastante para atender cerca de 400 pessoas. Os próprios irmãos Gusberti se encarregaram, posteriormente, de pagar à Light pela rede de energia. Também construíram a primeira escola do bairro, com quatro salas de aula. Segundo Hermelinda e Étilo, filhos de Linneu, contam que à época da Pascoela (a primeira segunda-feira após o domingo de Páscoa), grupos de italianos vinham de bairros como o Brás e a Mooca até o ‘Grande Recreio da Repreza’. Comiam à larga, muitos bebiam durante horas. No fim da tarde, tropicavam pelo caminho que levava à ponte do Largo do Socorro e ao bonde de Santo Amaro, para iniciar o longo caminho de volta para casa. Linneu Gusberti faleceu precocemente em 1946. Seus irmãos Carlos e Guido sobreviveram a ele por pouco tempo e a família acabou por desistir do negócio. O prédio do restaurante ainda se mantém, descaracterizado, na Avenida de Pinedo, pouco antes da barragem. o reCreio da represa Acima: a fachada do Grande Recreio da Re- preza; havia um bosque na parte posterior da propriedade. Na foto à direita: caminhão de entregas da Companhia Antártica. No canto superior direito: um frágil hidroa- vião ancorado na margem da represa. No canto inferior direito: um barco usado para lazer. Linneu Gusberti costumava distri- buir cartões postais da represa com a propa- ganda do restaurante (Ca. 1930). 78 79 a aviaçãO ganhOu grande imPulsO durante a Primeira Guerra Mundial, mas foi na década de 1920 que aviadores da Europa e dos Estados Uni- dos se empenharam na realização de viagens transcontinentais sem escala e na busca de recordes de velocidade em voos a longa distância. Francesco de Pinedo era um desses ases. Em 1925, já havia realizado um raide extraordinário de 55 mil milhas e duração de seis meses, partindo de Roma, che- gando ao Japão e à Austrália e retornando à Itália. Dois anos depois, voltou-se para o quadrante do Atlântico. A bordo de um hidroavião Savoia-Marchetti S.55, e com dois companheiros de viagem, Carlo Del Prete e Vitale Zachetti, decolou de Gênova, passou por Roma e Cabo Verde e aportou em Fernando de Noronha e no Rio de Janeiro. Em São Paulo, fez um par de giros sobre a cidade e pousou com segurança, em 28 de fevereiro de 1927, no lago de Santo Amaro - ele mesmo es- creveria que “diante de uma multidão de italianos, que vieram de todas as partes do Estado”. Não foi, contudo, uma chegada destituída de ansiedade. Ainda no Rio de Janeiro, de Pinedo havia sido alertado sobre a existência de tocos de árvores submersos na represa, um risco assustador para o pouso do seu hidroavião. Os aviadores italianos ficaram pouco tempo em São Paulo. No mesmo dia da chegada, partiram em direção a Santos, em voo de apenas vinte minutos, e a uma profusão de escalas sul-americanas – dentre outras, Porto Alegre, Buenos Aires, Assunção, Rio Paraguai, Pantanal, Rio Madeira, Ilha de Marajó, Manaus, Paramaribo -, seguindo posteriormente para os Estados Unidos e completando o que ficou conhecido como “Raide das Américas”. Em setembro de 1933, em Nova York, tudo estava pronto para uma nova aventura, uma viagem rumo a Bagdá. Entretanto, a jornada nem mesmo foi iniciada. A aeronave se incendiou no momento da decolagem e Francesco de Pinedo faleceu tragicamente. Tinha, então, 43 anos de idade. da europa À represa de santo amaro o voo de pinedo Acima: no alto, uma impressionante multi- dão se aglomera na barragem para a recep- ção a Francesco de Pinedo e a seus compa- nheiros de viagem. Abaixo, a euforia numa rua não identificada de São Paulo. À direita: acima, o Savoia-Marchetti; abai- xo, o hidroavião pousado na represa (1927). 80 81 No alto: multidão toma conta da barragem na recepção a João Ribeiro de Barros e à sua tripulação; ao lado, o Jahu ancorado nas águas da Guarapiranga, com as encostas da margem esquerda da represa ao fundo da imagem (1927). Abaixo, duas fotos do Jahu: na primeira, com a sua tripulação; na segunda, sob a guarda de soldados da Força Pública (1927). O Jahu foi recuperado e faz parte do acervo do Museu da TAM, em São Carlos, interior de São Paulo. nem tOdOs Os aviadOres nOtáveis desta época eram europeus e americanos. Em 28 de abril do mesmo ano de 1927, foi a vez de um brasileiro, João Ribeiro de Barros, comandar um voo de travessia do Atlântico semelhante ao do italiano Francesco de Pinedo. Seu hidroa- vião Jahu, homenagem à cidade natal no interior de São Paulo, decolou às 4 horas da manhã de Cabo Verde; voou 12 horas seguidas, à média recorde de 190 km/hora e altitude de 250 metros, até alcançar a enseada norte de Fernando de Noronha. Um enredode romance precedeu o pouso bem sucedido: a jornada não tinha patrocínio e foi custeada pelo próprio comandante; o Jahu era produto da restauração e adaptação, feita por Barros e seu mecânico Vasco Cinquini, de um hidroavião Savoia-Marchetti originalmente em precário estado de conservação; após a saída de Gênova, em outubro de 1926, houve uma amerrisagem de emergência em Alicante, na Es- panha, onde, tomada como clandestina, toda a tripulação foi presa; à sombra da suspeita de sabotagem, nova partida para outra escala de emergência em Gibraltar; no trajeto até Cabo Verde, mais complica- ções mecânicas e a necessidade de desmontar e revisar os dois moto- res; finalmente, na chegada a Fernando de Noronha, a pá de uma das hélices se partiu pouco antes do pouso. Em tempos de heroísmo, o Jahu parecia voar sempre no limite da coragem e a um instante da tragédia. Barros e a sua tripulação – que contava com Cinquini, o co-piloto João Negrão e o navegador Newton Braga – demorariam a percorrer a costa brasileira. Passaram por Natal, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e San- tos, antes do pouso na represa do Guarapiranga em 1º de agosto. Tiveram uma recepção histórica. O jornal O Estado de São Paulo esti- mou que 40 mil pessoas correram a Santo Amaro para ver o pouso do Jahu. Bondes da Light, abarrotados, foram depredados por multidões que não tinham alternativa para o deslocamento até o extremo sul. No trajeto de Barros e seus companheiros até o centro da cidade, uma festa nas ruas. Cerca de 100 mil pessoas teriam se aglomerado no Lar- go da Sé – uma manifestação exaltada de alegria que contrastava, se- gundo o jornal, com o caráter habitualmente reservado dos paulistas. o voo do Jahu 82 83 afOnsO schmidt, cronista da velha cidade de ritmo lento que de- saparecia, escreveu que em São Paulo “ou faz sol de mato pegar fogo, ou deita chuva até cachorro beber água em pé”. Pois a década de 1920 teve uma coisa e outra. Em 1929, a maior enchente de que se tem registro do Rio Tietê; antes, em 1924-25, uma seca dramática: o fornecimento de energia elétrica foi racionado, bondes tiveram circulação restringida, as torneiras secaram boa parte do tempo. Schmidt lembra que a represa do Guarapiranga se converteu em uma espécie de pasto: “na parte mais fun- da, estendia-se uma lagoa choca e espessa, que mais parecia tijuco preto”. Energia e abastecimento de água viraram emergência. Com cerca de 800 mil habitantes, a cidade servia-se de vários mananciais da Serra da Can- tareira, de algumas captações pequenas mais próximas ao centro urbano e do Rio Cotia, parcialmente explorado desde 1916. Era pouco. Em 1925, a Repartição de Águas e Esgotos – RAE iniciou os estudos para o aprovei- tamento das águas do Rio Claro, situado no quadrante leste, com nascen- te nas escarpas da Serra do Mar. No entanto, a distância do manancial – a 70 km da Praça da Sé – e várias dificuldades técnicas não permitiam a sua utilização em prazo curto. Assim, em 1927, o Governo do Estado, mediante acordo com a Light, de- cidiu recorrer à represa do Guarapiranga, recuperada após a estiagem de dois anos antes. As obras para a captação e o tratamento de suas águas foram iniciadas em março-abril de 1928 e concluídas um ano depois, em março de 1929. Foi o início da utilização da represa para o abastecimento público. A vazão média inicial de 1 metro cúbico/segundo era transferida para a Estação de Tratamento de Santo Amaro, através de uma adutora de 5.660 metros de extensão; construiu-se uma ponte exclusiva para a travessia da tubulação sobre o Rio Pinheiros. Mais tarde, a estação de tratamento foi rebatizada para homenagear Theodoro Ramos, professor e matemático ligado à fundação da Universidade de São Paulo e que chegou a ser prefeito da cidade durante um curto período de três meses, em 1933. abasteCimento de água Estrutura da tomada d’água para o sistema de abastecimento implantado pela Repar- tição de Água e Esgotos – RAE (as fotos à esquerda são de 1928; o cartão postal abaixo é provavelmente do início da década de 1930). 84 85 Na página anterior: no centro da foto, canal de descarga da represa; ao lado da edifica- ção, tubulação do conduto da água para o tratamento. Nesta página: no alto, travessia da adutora sobre o Rio Pinheiros; abaixo, assentamento da adutora no Largo do Socorro (1928). 86 87 Acima: obra de assentamento da adutora (1928). Ao lado: Estação de Tratamento de Santo Ama- ro (1929). 88 clubes antigOs às margens dO riO tietê, clubes novos junto à linha d’água da represa Guarapiranga. Após o inglês São Paulo Sailing Club finalmente construir sua sede, em 1929, numa pequena península arrendada à Light, próxima da barragem, veio, em 1930, o Deutscher Segel Club, ocupando uma faixa de terreno vizinha. Em 1937, foi a vez do Clube de Campo São Paulo tornar-se proprietário de uma extensa gleba, mais ao sul. Uma década depois, em 1947, o São Paulo Athletic Club - SPAC, outra iniciativa de ori- gem britânica, adquiriu sua área nas proximidades do corpo d’água. Todos se estabeleceram no lado de Interlagos, na margem direita da represa, onde a topografia é mais suave. Todos também têm as suas histórias. O Deutscher Segel Club possuía afinidade com a presença de migrantes alemães em Santo Amaro. Os primeiros colonos vieram para a região em 1829 e enfrentaram dificuldades assustadoras de sobrevivência; decorrido um século, houve quem prosperasse. Já outras famílias, abastadas, tinham ligação com as atividades comerciais e industriais do centro da capital, e foram atraídas pela beleza do lago da Light e pelo clima mais ameno proporcionado pela proximidade da Serra do Mar. Construíram casas de veraneio nas colinas da margem esquerda, de onde certamente viam os iatistas ingleses em atividade; não demorou muito para que se juntassem a eles e, logo adiante, não só fundassem o seu próprio clube de vela (“segel”) mas construíssem a sua sede, pronta em 1932. Beneficiaram-se de um financiamento concedido por Robert Kutschat, proprietário da Cervejaria Brahma. Com o aparecimento de outros clubes perto do atual bairro da Riviera, as regatas tomaram corpo, atraíram atenções e amenizaram a ideia da represa como um ponto remoto da geografia paulista. Tudo parecia caminhar bem até que a irrupção da Segunda Guerra Mundial ameaçou a sobrevivência do Deutscher Segel Club, situação que foi contornada com a mudança de seu nome, para Yacht Club Santo Amaro - YCSA, e gestos de apre- ciável diplomacia, como a cessão de suas instalações para o treinamento de soldados do exército brasileiro. A origem do Clube de Campo São Paulo foi diferente. Um grupo de empresários, brasileiros em sua maior parte, foi o responsável por sua fundação. O propósito era juntar modalidades esportivas diversas (natação, iatismo, polo, equitação, golfe, tênis, tiro), uma boa dose de lazer, divertimento e contacto com a natureza. Tratava-se de um verdadeiro “clube de campo”, e São Paulo não contava à época com empreendimento semelhante. Provavelmente, a proposta de localização do clube partiu de um de seus sócios, Luiz Romero Sanson, que já possuía uma longa e ativa relação econômica com a região, como se verá mais adiante. Além de uma faixa junto à represa cedida pela Light, foram adquiridos cerca de 25 alqueires, onde havia a sede de um sítio e um restaurante chamado Biarritz. A construção tornou-se a sede do clube; o restaurante foi mantido. Em 02/03/1941, matéria de O Estado de São Paulo observava que o clube, com um quadro associativo formado por 700 famílias, representava “o campo e a praia a meia hora do Triângulo” (a geometria formada pelas ruas Direita, São Bento e XV de Novembro), quase todo o percurso facilitado por estradas excelentes. Quase: um antigo sócio, Trieste Smanio, citado no livro que registra a história do clube, lembra que, perto da chegada, havia um trecho complicado, o Paredão dos Eucaliptos; chovendo, “era um verdadeiro lamaçal...o primeiro a parar esperava os outros para ajudara empurrar”. Todavia, fez questão de dizer: “mas a beleza do lugar encantava...”. Já o São Paulo Athletic Club – SPAC é provavelmente o clube mais antigo da capital paulista. Sua origem remonta ao final do século XIX e a sua sede principal ainda se mantém, na discreta rua Visconde de Ouro Preto, ao lado do reservatório da Consolação, de propriedade da Sabesp. O SPAC introduziu diversos esportes de características britânicas em São Paulo e mesmo no Brasil, como o hóquei sobre grama, o squash, o badminton, o críquete, o tênis, o rugby e, o que mais nos encanta, o futebol. Um de seus sócios mais ativos foi o legendário Charles Miller. Em tempos de esporte ainda amador, o SPAC foi quatro vezes campeão da Liga Paulista de Futebol, a última vez em 1911. No ano seguinte, quando um profissionalismo não-oficial já se instalava no esporte, o SPAC abandonou a Liga. Entretanto, manteve, em caráter amador, todas as suas atividades. Nas suas instalações no Guarapiranga, o rugby e o futebol são as modalidades mais praticadas até hoje. os Clubes de interlagos Ao lado, a sede do Deutscher Segel Club, em foto tirada da gávea situada no mastro erguido em frente ao clube; abaixo, a sede vista a partir do lago (Ca. 1932). 90 91 Nesta página, sede do Deutscher Segel Club. Na foto ao lado, à esquerda, professores e alunas do Colégio Humboldt (década de 1937). Na página ao lado, manobras do exér- cito brasileiro em área do clube alemão (dé- cada de 1940). 92 93 Nesta página, curso do rio Embu-Mirim. Na página ao lado, acima, pequeno veleiro ancorado na margem esquerda da represa; abaixo, ponte na Estrada da Baronesa, ain- da hoje existente, sobre o rio Embu-Mirim (1937-1938). 94 95 celestinO Paraventi A maior parte da propriedade adquirida para formar o Clube de Campo São Paulo - incluindo a sede do sítio e o restau- rante Biarritz - pertencia a Celestino Paraventi, também um dos primeiros sócios, homem rico, de indústrias ligadas à economia cafeeira, proprietário do famoso Café Paraventi, endereço elegante da rua Líbero Badaró. Mas Celestino era bem mais que isso. Usava da sua riqueza para ajudar publicações à esquerda, como o jornal O Homem do Povo (editado por Oswald de Andrade e Patrícia Galvão , a Pagu), e atores desempregados. E ia além: Fernando Morais, em seu livro ‘Olga’, afirma que Celestino, simpatizante do Partido Comunista, abrigou Luís Carlos Prestes e Olga Benário em sua chácara no Guarapiranga quando da entrada clandestina do casal no país, em 1935, vindo de Moscou. Uma fonte familiar desmente; sustenta, porém, que Celestino teria providenciado os meios para Prestes e Olga viajarem de São Paulo ao Rio de Janeiro. Seja como for, dele se contam muitas histórias. Tenor que se apresentava em programas de rádio, Celestino Paraventi certa vez dirigia por uma rua de São Paulo quando viu dois carros colididos e seus motoristas trocando socos. Imediatamente, saiu de seu veículo e começou a cantar, a plenos pulmões, uma ária lírica. Os dois interromperam a briga, atônitos. Celes- tino entrou novamente em seu carro e foi embora. Na página ao lado, construção artesanal de barco (1937-1938). Ao centro, veleiro classe 5 metros (1937-1938). Abaixo, alinhamento de veleiros; ao fundo, a margem desabitada da represa (2.ª metade da década de 1930/1.ª metade da década de 1940?). 97 Acima: vista de uma regata (1937-1938). No alto: barcos ancorados nas proximida- des do Deustcher Segel Club; à época, os clubes não dispunham de abrigo para as embarcações, que permaneciam fundeadas (1937-1938). À direita: embarque para passeio de barco (1936). 98 99 Dias agitados na represa. As fotos na pá- gina ao lado e nesta página, abaixo, foram feitas nas proximidades dos clubes inglês e alemão (1936). 101 Nesta página, em tomada feita das colinas da margem esquerda, vista da barragem e de embarcações ancoradas em frente ao São Paulo Sailing Club (1939). Ao lado, dia de la- zer e pescaria na represa; à esquerda da foto, novamente o provável “house-boat” dos in- gleses (década de 1930?) 102 das muitas lembranças da sua meninice, Jorge Americano conta do chiado estridente que se ouvia à distância, pro- duzido pela carroça de lenha vinda de Santo Amaro, puxada por uma junta de bois e conduzida por um caipira descalço, de chapéu grande e lenço no pescoço. Ele não o diz mas é possível que entre os vende- dores de lenha que passavam pelas ruas da Capital houvesse caipiras de cabelos louros, olhos claros, alemães de origem, acaboclados. As primeiras famílias oriundas de várias das regiões que posteriormente formaram a Alemanha - unificada à época de Bismarck, em 1871 – chegaram a Santo Amaro e Itapecerica da Serra em 1829. É provável que tenham exercido alguma influência na passagem de uma rotina de subsistência para uma economia de geração de excedentes. Du- rante o século XIX, a vila autônoma de Santo Amaro, à qual se subor- dinava a freguesia de Itapecerica da Serra, desmembrada em 1877, forneceu, além da lenha, produtos agrícolas e pedras de cantaria para a sede da Província. Contudo, a característica econômica modesta, rudimentar, não se alterou tanto, mesmo com a chegada dos serviços de trem da Companhia Carris de Santo Amaro, em 1886, e dos bon- des da Light em 1913. Nas primeiras três ou quatro décadas do século XX, apesar dos esforços da produção de fazendas e chácaras, talvez Santo Amaro ainda fosse mais lembrada pelas famílias moradoras da Capital por sua associação à imagem e ao lazer nas represas - a ‘represa velha’ de Santo Amaro ou Guarapiranga, e a ‘represa nova’, ou Rio Grande (posteriormente rebatizada como ‘Billings’ em 1949), criada pela Light a partir de obras que tiveram início em 1925. A autonomia administrativa de Santo Amaro durou até 1935. Um decreto do interventor federal Armando de Salles Oliveira (posterior- mente governador eleito do Estado de São Paulo) levou à absorção do município pela Capital. Tinha, um ano antes, uma população de 27 mil habitantes. As fotos aéreas, da segunda metade da década de 1930, ainda mostram um aglomerado urbano relativamente contido. A sua alteração radical viria mais tarde, a partir de 1945, quando o bairro de Santo Amaro viu surgir um grande distrito de indústrias e empregos, e um ciclo de crescimento que em pouco tempo a tudo transformaria em uma enorme metrópole. Acima: vista aérea da represa do Guarapi- ranga e da sua margem direita, sem sinais ostensivos de ocupação; no centro da foto, o pequeno canal do Rio Pinheiros (1937). No alto: um desenho infantil de Else von Bül- low – o carro de boi conduzido por um caboclo descalço, de chapéu e lenço no pescoço, como aquele descrito por Jorge Americano (1895). À esquerda: foto aérea do núcleo de Santo Amaro (14/maio/1940). santo amaro 105 Acima: Padaria Allemã (Ca. 1891). Ao lado: portal de entrada do velho cemité- rio do distrito de Colônia Alemã – com a Se- gunda Guerra Mundial, Colônia Paulista, ou simplesmente Colônia (1933). É o mais antigo cemitério protestante de São Paulo, datando de 1840. 106 107 No alto: vista de Santo Amaro, provavelmen- te a partir da torre da Igreja da Matriz; ao fundo, a várzea do rio Pinheiros e a represa do Guarapiranga (década de 1930?). À esquerda: a praça Floriano Peixoto (década de 1930). Na página anterior: Rua Thiago Luz (década de 1930). 109 Transporte de lenha pela represa (1937). lOuis rOmerO sansOn bem merece uma alentada biografia. Cidadão britânico nascido em Trinidad- -Tobago, engenheiro formado em Caracas, na Venezuela, ele foi o personagem mais visível da Companhia Auto- -Estradas S.A., hoje relativamente esquecida. Trata-se, contudo, de um esquecimento imerecido. Os empreen- dimentos de Sanson e de sua Companhia fazem parte destacadíssima da história da cidade de São Paulo. Que paulistano, ou brasileiro, não conhece o aeroporto de Congonhas e o autódromo de Interlagos? A história começa em 1925, quando Sanson e os engenheiros Donald Derrom, deorigem canadense, e Domício de Lacerda Pacheco e Silva, com currículo na área de rodovias e na prospecção de petróleo, criaram a Derrom- -Sanson S.A. Dois anos depois, atraíram o apoio de um grupo de banqueiros e industriais paulistas, ampliaram o capital da empresa e mudaram a sua razão social para Companhia Auto-Estradas S.A. (AESA). Seu primeiro projeto foi a construção de uma rodovia, com cobrança de pedágio, entre a capital e o município ainda autônomo de Santo Amaro. Então, a área urbana de São Paulo mal se estendia até o atual Parque do Ibirapuera; quanto a Santo Amaro, não ia muito além das imediações de seu Largo da Matriz - entre uma e outra, várias chácaras loteadas sem maior sucesso comercial. Sanson e seus colegas negociaram com os proprietários a cessão de parcela de cada propriedade em troca dos futuros benefícios da estrada; recorreram ainda, de forma inovadora, a stands no trecho inicial da obra para a venda de ações do empreendimento, uma provável ideia de Henry Sanson, irmão de Louis Sanson dedicado à parte comercial da empresa. A autoestrada, batizada como Washington Luís, com piso de concreto e 16 km de extensão – o pedágio ficava em local próximo à Chácara Flora -, foi implantada entre 1928 e 1932. a Cidade Caminha para o sul À esquerda: vista aérea do platô do Aeropor- to de Congonhas (14/maio/1940). Abaixo: pista do aeroporto com avião DC-3 taxiando; à esquerda da foto, trecho da Auto-Estrada Washington Luís (Ca. final da década de 1930). 112 Auto-Estrada Washington Luís (1937). a nOva rOdOvia pretendia estruturar o caminho de São Paulo em direção ao quadrante sul, onde se situavam Santo Amaro e as duas represas, a nova Billings e a velha Guarapiranga. Confiando na sua estratégia visionária, a AESA foi adiante: planejou e desenvolveu uma série de projetos notáveis ladeados pela estrada, ou vizinhos a ela. Um deles foi o aeroporto de Congonhas, que deveria substituir com vantagens o Campo de Marte, frequentemente isolado pelas enchen- tes do rio Tietê. Localizado em um platô desocupado, “um campo coberto de verde, onde só se via capim barba-de-bode”, segundo lembrança de Miss Jean, filha única de Sanson, Congonhas foi inaugurado em 1936 com uma pista de terra de 800 metros de extensão e 30 metros de largura. O novo aeroporto resultou de uma parceria: o terreno foi adquirido pelo Governo do Estado, ficando as obras sob a responsabilidade da Companhia Auto-Estradas. 114 115 a Partir de 1937, foi a vez de um grande empreendimento urbano, a Cidade Satélite de Interlagos, um “bairro-jardim” e balneário com área total de 4 milhões de m², dividida em zonea- mentos para diferentes usos, que incluíam grandes lotes residenciais dotados de infraestrutura (água, energia, avenidas, ruas, calçadas, jardins e bosques), área reservada a atividades comerciais, um hotel e uma praia de mais de 1 km de extensão, na orla da represa Guarapiranga, com areia importada de Santos. O projeto teve a autoria do urbanista francês Alfred Agache, que já havia elaborado em 1930 um importante plano urbanístico para o Rio de Janeiro. Acima: “tendes de plage” e veleiros na praia de Interlagos (final da década de 1930). Ao lado: dia movimentado nas areias importa- das de Santos para a praia de Interlagos (final da década de 1930). Apesar dos esforços da Companhia Auto-Estradas, a ocupação da Cidade Satélite cresceria lentamente, em rit- mo aquém do esperado. 116 Vista aérea do Autódromo de Interlagos (1939-1940). hOuve mais. Em 1938, a Companhia Auto-Estradas iniciou as obras do Au- tódromo de Interlagos, numa área de mais de 1 milhão de m², na vertente da represa Billings. O autódromo, construído numa depressão do terreno, tinha seus 8 km de pista pavimentada bem visíveis das arquibancadas. Para o acesso mais curto e rápido ao seu novo empreendimento, a AESA abriu a chamada Nova Auto-Estrada, posteriormente avenida Interlagos, com 6 km de extensão e 25 metros de largura. Esta variante partia da Rodovia Washington Luís, na altura da Chácara Flora, e se dirigia até uma ponte de madeira sobre o rio Pinheiros, com três faixas para a passagem de veículos – em setembro de 1945, esta ponte seria substituída por outra de concreto, ainda existente, a última grande obra da Com- panhia Auto-Estradas. O autódromo foi finalmente inaugurado em 12 de maio de 1940 com uma corrida de motos e outra de carros, assistidas por um público de 15 mil pessoas. Era um momento incomum: dois dias antes, na Europa, o abismo da guerra criava o ‘front ocidental’, com a Alemanha invadindo sucessivamente a Holanda, a Bélgica e a França. É difícil imaginar o que se passava pela cabeça das autoridades, dos empresários e do público presentes a Interlagos naquele dia. No mesmo ano de 1940, o Governo de São Paulo assumiria o controle das ope- rações do Aeroporto de Congonhas. Cerca de uma década depois, o Autódromo seria vendido pela AESA também ao Governo, que igualmente encamparia a es- trada Washington Luís, hoje avenida. Afinal, nem tudo caminhou tão bem; houve uma desproporção entre o empreendedorismo de Louis Sanson e seus sócios, seus projetos e realizações, e o retorno dos investimentos. Mas permaneceu o legado do seu visionarismo: não é possível recontar a história da São Paulo moderna sem recorrer à história da Companhia Auto-Estradas. 118 Na página anterior: vista da Ponte de In- terlagos, sobre o rio Pinheiros, no dia de sua inauguração. Acima: o urbanista Alfred Agache, ao centro, conversa com Adhemar de Barros, interven- tor federal em São Paulo entre 1939 e 1942. À esquerda: no centro da foto, o interventor Fernando Costa e Louis Romero Sanson. To- das as fotos são de 7/setembro/1945. 121 aO cOntráriO da margem direita mais setentriOnal da represa, de topografia quase plana, que ascende suave- mente até a cumeeira que separa a bacia de drenagem da Guarapiranga da bacia da represa Billings, a margem esquerda apresenta uma morfologia mais acidentada, com encostas que assomam junto ao corpo d’água. Deste relevo inclinado, às vezes abrupto, a Light retirou os volumes de terra utilizados na construção da barragem. Também neste local, aparentemente menos propício a construções, surgiram as primeiras residências e pequenos loteamentos pioneiros. Muitos imóveis destinavam-se a uso nos finais de semana, mas outros constituíram moradias permanentes de famílias de origem estran- geira, que configuraram um estilo próprio de vida, “distante da cidade, meio fora do mundo”, desde as décadas de 1920 e 1930. Nas pro- ximidades, em estradas que cortavam a região, surgiram chácaras mais ou menos com as mesmas finalidades. Entre os seus proprietários, estavam as famílias Crespi, Ramenzoni e Prada. Tanto quanto à outra margem da represa, o acesso ainda era difícil. O caminho mais frequente se fazia pela Avenida Santo Amaro, Largo do Socorro e Estrada do Guarapiranga, por um bom tempo destituídas de pavimentação. Perto da represa, andava-se muito a cavalo; em um armazém de secos e molhados, conhecido como Bar do Germano, havia mesmo onde prender as montarias. Depois das primeiras casas e chácaras, apareceram os clubes, em um ponto que já foi conhecido como Baía dos Bandeirantes. O Yacht Club Paulista foi criado em 1933. Seus fundadores já eram sócios do Jockey Club e decidiram investir em esportes náuticos, somando-se às agremiações de predominância inglesa e alemã situadas na margem oposta da represa. No ano seguinte, surgiu o Yacht Clube Italiano, logo rebatizado como Yacht Clube Itália, já avançando sobre a península da Riviera. A sua fundação ocorreu na sede do Consulado Geral da Itália em São Paulo - entre os criadores, empresários e profissionais liberais conhecidos, como Francisco Matarazzo Sobrinho, Adriano e Raul Crespi, Agostinho Prada, Vicente Ancona Lopes, Luigi Manginelli e Gaetano Vechiotti . De maneira semelhante ao Deutscher Segel, a eclosão da Segunda Guerra exigiu diplomacia e alterações; em março de 1942, mudou-se a denominação paraYacht Club Itaupu, que permanece até hoje. Já o Clube Indiano, criado em 1930, somente se instalou junto à represa em 1946 – o nome do clube foi uma home- nagem a Mahatma Ghandi. Na Riviera Paulista, os finais de semana passaram das residências isoladas e do bucolismo à movimentação, com festas, veleiros, lanchas, praias nas pequenas enseadas da sua orla recortada, “piqueniques na margem direita onde quase não havia construções”, bares e restau- rantes. Junto a um deles, o Riviera Palace, ocorria um “footing” apreciável em dias ensolarados. Os dois clubes tinham uma vida social agitada. Nestas ocasiões, a avenida Santo Amaro enchia-se de carros; bondes e ônibus, que rumavam para a região da represa, trafegavam lotados. Aquela profecia do jornalista de A Gazeta, numa remota edição do jornal de agosto de 1907, se consumava: “o tão bello valle” e “a tão vasta extensão de água” finalmente tornaram a Guarapiranga “um dos pontos mais procurados” de São Paulo. riviera paulista: Clubes, lazer e estilo À direita, restaurante Riviera Palace (pri- meira metade da década de 1930). Abaixo, à esquerda, festa no Yacht Clube Itália para inauguração do solário e da torre (1936); à direita, “footing” na Riviera Paulista, prova- velmente em frente ao restaurante Riviera Palace (primeira metade da década de 1930). Abaixo: festa no Yacht Clube Itália para inauguração do solário e da torre (1936). 122 123 Na página anterior, veleiros da classe Olím- pico ancorados em área do Yacht Clube Itá- lia. São da mesma classe o veleiro na foto ao lado (1944) e os veleiros no corpo central da represa (1937). Na foto abaixo, a sede e o so- lário do Yacht Club Itália aparecem ao fun- do; em primeiro plano, um veleiro da classe Lightning (1937?). 124 125 À esquerda: veleiro da classe Lightining (1951). Nesta página: barcos ancorados e velas re- colhidas (década de 1940?). 126 127 Na página anterior: lancha Chris Craft, de madeira (década de 1940). Barcos a motor eram muito utilizados para caçar patos no chamado Terceiro Lago, formado pelo desá- gue do córrego Embu-Guaçu. No alto: bela vista aérea da margem esquer- da em convite para reunião de proprietários de um loteamento na área do sítio Upton- -Rowley (1932). À esquerda: sócios do Yacht Club Paulista, den- tre eles o Comodoro Manginelli, no centro da foto (década de 1930). 129 Acima: cartão postal de uma das pequenas enseadas da margem esquerda (década de 1940?). Ao lado: pescaria em dia de águas calmas e em período de estiagem; ao fundo da foto, é possível observar sinais de vegetação antes submersas (década de 1940). No canto inferior direito: a partir da pe- nínsula da Riviera, vista de área próxima ao Yacht Club Paulista (década de 1930). No canto supeior direito: sócios do Yacht Club Paulista. 130 131 Solário do Yacht Club Itália, hoje Yacht Club Itaupu (final da década de 1930, início da dé- cada de 1940?). 133 Fotos no Yacht Club Itaupu. Ao lado, a vege- tação emersa indica novo ciclo de estiagem. Abaixo, recepção a oficiais italianos (década de 1930 ou 1940?) Nas páginas 136 e 137, mapa da represa de Santo Amaro (Ca. 1930). 134 135 em janeirO de 1948, a revista O Cruzeiro publi- cou uma reportagem sobre a represa – “Santo Amaro, Refúgio do Paulistano” –, com texto de Arlindo Silva e fotos preciosas de Peter Scheier. Há muito a represa havia se tornado, sobretudo aos domingos, um local importante de lazer, e volta e meia esta sua qualidade entrava na pauta de jornais e revistas. Na década de 1940, a força econômica cada vez maior da cidade de São Paulo e o crescimento exponencial de sua população chamavam a atenção para uma es- pécie de ‘caráter paulista’, moldado pela ética e pela necessidade do trabalho. A visão regional afirmava que ‘aqui se trabalha’ e nisto estava o segredo do Es- tado, como uma locomotiva, puxar o restante do País. O contraponto do trabalho era o lazer dominical, uma interrupção da correria diária, muitas vezes opressiva, nas indústrias, no comércio, nos escritórios, no trânsito e nas ruas. Assim, a represa virava um refúgio e o foo- ting, um alívio indispensável. As fotos são, em sua maior parte, feitas na barra- gem. Quem passeia ou contempla a represa é quase sempre fotografado de costas – Scheier procura não interromper a atenção e as conversas de quem anda despreocupadamente ou se prepara para um passeio de barco. Sônia Maria Gouveia, em um trabalho sobre Scheier, diz que, fotografadas desta maneira, sem que suas identidades sejam reveladas, fica estabelecida a “igualdade nos espaços públicos, onde, em tese, todos são benvindos, sem distinção”. Footing Acima: um casal se prepara para o embarque. O vestuário, mesmo em um domingo de lazer, era formal, característica que se estenderia em São Paulo até os anos 1960 (1948). À esquerda: fila para um barco de recreio; ao fundo, visão parcial da represa, com barcos de diferentes tamanhos ancorados (1948). 139 Nesta página e na página ao lado: três tomadas feitas na crista da barragem, reveladoras da he- terogeneidade dos frequentadores da represa. Nesta página, ainda, duas crianças nissei junto à linha d’água, nas proximidades do São Paulo Yacht Club (1948). 140 141 pintores ernestO de fiOri Escultor, pintor, desenhista, Ernesto de Fiori nasceu em Roma em 1884, mas sua vida artística europeia, a partir de 1904, percorreu cidades diversas, como Mu- nique, a própria Roma, Londres, Paris, Zurique – então, durante a Guerra, um centro artístico e cultural muito movimentado, de artistas e intelectuais opo- sitores do conflito -, e uma longa estadia final em Berlim, que se prolonga de 1920 a 1936. Neste ano, deixa uma Europa em vias de desagregação e vem ao Brasil, onde residiam seu irmão médico, emigrado em 1913, e sua mãe. Dotado de temperamento forte e personalidade artística própria, por onde circulou de Fiori conduziu a sua arte com relativa autonomia, recusando filiação a tendências e grupos, eventualmente chocando-se com alinhamentos forçados durante déca- das em que tudo, política e arte, se mostrava extremado. Apesar disso, produziu e expôs muito, nos países em que residiu, na Holanda e na Suécia. No Brasil, mesmo distante dos dramas, atritos e fricções da Europa, de Fiori não se comportou de forma diferente. Embora entrosado com intelectuais e artistas plásticos importantes de São Paulo, manteve sua conduta pessoal, tangenciando correntes e modas, mas esquivando-se de adesões. A apreciação da obra elabora- da no Brasil foi dificultada pela sua morte relativamente precoce em 1945, aos 61 anos de idade. Sua aversão à publicidade permitiu a distribuição de esculturas e pinturas por mãos particulares, mas não facilitou a sua presença em acervos pú- blicos. Sérgio Milliet, escritor, poeta, ensaísta e crítico de arte, escreveu recorren- temente sobre o amigo Ernesto de Fiori, cobrando um reconhecimento público amplo, ainda que tardio, de sua obra. Entretanto, apenas em 1974, quase trinta anos após a sua morte, é que de Fiori mereceu uma exposição mais expressiva, feita na Galeria Cosme Velho, em São Paulo, a qual reuniu um número signifi- cativo de suas pinturas. No ano seguinte, uma grande exposição é montada pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Em 1992, o Georg- -Kolbe-Museum de Berlim faz uma ampla retrospectiva das esculturas europeias de Ernesto de Fiori, com catálogo redigido por vários autores. Finalmente, em 1997, foi a vez da Pinacoteca do Estado de São Paulo organizar uma exposição de suas pinturas, esculturas e desenhos. Um traço singular de Ernesto de Fiori foi a sua dedicação aos esportes, mantida desde a infância. Sua atração pelo boxe motivou uma série de esculturas em sua fase europeia. Em São Paulo, dedicou-se a velejar, de forma bastante competi- tiva, na então represa de Santo Amaro, primeiro filiado ao Yacht Club Itaupu, depois ao Yacht Club Paulista. Esta proximidade com a represa explica a presença de várias telasem sua obra dedicadas ao registro das águas, das velas e das en- costas da Guarapiranga. Guache, década de 1940 Ernesto de Fiori, o segundo à esquerda, em foto no Yacht Itaupu (ex-Itália) (década de 1940) Óleo sobre tela, 40x 58 cm, 1944 142 143 vittOriO gObbis Assim como Ernesto de Fiori, Vittorio Gobbis nasceu na Itália em 1894 e migrou para o Brasil já adulto, em 1923. Filho de pintor de igrejas, frequentou academias em Ve- neza e Roma e, durante seu tempo italiano, foi pintor e também restaurador, atuando, nesta função, na céle- bre Galeria Borghese. É possível que tenha se transferido para o Brasil pelo desejo pessoal de mudança e aventura. Entretanto, por esta época, o ambiente europeu era in- certo: a Europa ainda não fizera a passagem das duras consequências da Primeira Guerra para o curto e estável período de 1924 a 1929, o qual antecedeu, por sua vez, o longo caminho da depressão econômica e da Segunda Guerra Mundial. Em São Paulo, a sua personalidade ativa e uma larga co- lônia italiana facilitaram o entrosamento com artistas e intelectuais. Gobbis participou intensamente da vida ar- tística da Capital desde o início da década de 1930: foi nome presente em associações novas e expôs suas obras em mais de uma mostra coletiva, inclusive no Rio de Ja- neiro. Sua primeira mostra individual em São Paulo data de 1933. A seguir, aproximou-se do Grupo Santa Helena - artistas que se reuniam no belíssimo Palacete Santa He- lena, na Praça da Sé, entre eles Francisco Rebolo, Mário Zanini, Fulvio Penacchi, Bonadei, Clóvis Graciano e Alfre- do Volpi, essenciais à consolidação da arte moderna em São Paulo. Em 1936, telas suas, juntamente com outras de Portinari, são selecionadas para uma mostra em Pit- tisburgh, nos Estados Unidos. Em 1941, organiza o Salão de Arte da Feira Nacional de Indústrias e expõe nas duas primeiras Bienais de Arte de São Paulo, em 1951 e 1953, respectivamente. Faleceu em 1968. Apesar da proximidade com os modernistas, Vittorio Gobbis não foi exatamente um inovador. Ao contrário, manteve o vínculo com idéias que se situavam entre a pintura italiana do século XIX e um modernismo conti- do. Em compensação, detinha acurado domínio técnico do seu ofício; sua capacidade de artesão certamente in- fluenciou artistas que levaram as suas próprias criações a quadras mais transformadoras. Óleo sobre tela, 38 x 52 cm, 1943 Raphael Galvez raPhael galvez Raphael Dazzani Galvez, nascido em São Paulo em 1907, foi pintor, desenhista, escultor e professor. Durante a dé- cada de 1930, trabalhou em marmorarias e em casas de fundição artística; em 1937, na passagem da função de artesão para a condição de artista, inscreveu-se como aluno regular da Escola de Belas Artes de São Paulo. À época, passou a frequentar o Sindicato de Artistas Plás- ticos, que funcionava no Palacete Santa Helena (o edi- fício, construído em 1922 na Praça da Sé, foi demolido em 1971; não sobreviveu às obras da linha norte-sul do Metrô). Durante a década seguinte, Galvez dedicou parte do seu tempo a representar, a seu modo, afetivo, paisa- gens de bairros da periferia da cidade, situados na zona norte que margeia o rio Tietê, e das quais são exempla- res as telas ‘Barcos e Dunas de Areia (bairro de Santa- na), de 1944, ‘Canindé’, ‘Paisagens com Cores Discretas (Freguesia do Ó)’ e ‘Casas (Bairro Casa Verde)’, de 1947, todas pertencentes ao acervo da Pinacoteca do Estado. Em oposição à periferia, reproduziu um enevoado e algo opressivo skyline da cidade industrial visto a partir da várzea do Bom Retiro (‘Progresso – Várzea do Bom Reti- ro’), de 1945, também do acervo da Pinacoteca. É datado desta época o trabalho que tem por motivo a represa do Guarapiranga, aqui reproduzido. Ao final da década, Galvez assume a função de profes- sor de escultura na Escola Livre de Artes Plásticas e, mais adiante, de escultura e desenho na Escola de Belas Artes de São Paulo. Sua pintura e seu trabalho de escultor tam- bém mudam, para maior uso de formas geométricas e para práticas construtivas, respectivamente. Não obstante, mantém a postura de apego a seu trabalho; raramente ad- mitia comercializar telas e esculturas, reduzindo o acesso e o conhecimento de sua obra. Em 1994, a Pinacoteca apresentou uma exposição ex- pressiva de sua pintura - ‘Raphael Galvez - A Cidade à Sombra dos 40’. Em 1999, um ano após a sua morte, são editadas duas publicações relacionadas à sua obra: ‘Ra- phael Galvez: 1907/1998’ (texto de Mayra Laudanna) e ‘Raphael Galvez: Pintor, Escultor, Desenhista’ (texto de Vera D’Horta). No mesmo ano, a Pinacoteca realizou uma ampla mostra de 330 peças representativas de seu traba- lho de pintor e escultor. Guache, 33 x 42 cm, 1953 Vittorio Gobbis 144 145 arcangelO ianelli Arcangelo Ianelli nasceu em São Paulo em 1922. Ainda adolescen- te, autodidata, iniciou, pelo desenho, sua longa carreira artística; aos 18 anos passou a estudar perspectiva na Associação Paulista de Belas Artes e, posteriormente, a frequentar aulas com Colette Pujol e o ateliê de Waldemar da Costa. Durante os anos 1950, integrou o Grupo Guanabara, formado por artistas em sua maioria de origem japonesa e italiana, reunidos no ateliê do pintor Tikashi Fukushima, então situado no Largo da Guanabara (atual Estação Paraíso do Me- trô). Entre 1951 e 1959, o Grupo promoveu cinco exposições coleti- vas. A quarta delas, em 1958, foi acompanhada pela publicação de catálogo e por palestras de críticos influentes, como Lourival Gomes Machado e Sérgio Milliet. Durante esta mesma década de 1950, Ianelli produziu uma série de quadros que compõem um diversificado registro da paisagem urba- na de São Paulo, paisagem que em boa parte não subsistiria ou se transformaria radicalmente. São os casos da fábrica da Cervejaria Brahma (na região do Paraíso), das edificações ao longo do córrego Saracura (canalizado, seu maior trecho sob o pavimento da avenida Nove de Julho) e de ruas da Vila Mariana. Seus cenários foram, en- tretanto, além de São Paulo. Dedicou-se, por exemplo, à pintura de paisagens rurais da região de São José dos Campos, onde costumava passar temporadas em casas de parentes. Também representou bar- cos, marinas e veleiros, nas águas de represas, no porto e nas praias de Santos e em Itanhaém. O estilo se altera: primeiro, da composição figurativa para uma aguada de aquarela; depois, nos anos finais da década, para o uso de tons mais baixos, mastros verticais, linhas retas e contornos bem definidos, um sinal de geometrização. Parte desta evolução pode ser observada nas telas aqui reproduzidas. A partir da década de 1960, a adoção da geometria avança mais. A produção de Ianelli se concentra no próprio estúdio: uma vez que a preocupação agora predominante reside nas cores e nas formas, ár- vores e casarios tornam-se mais incidentais e objetos transformam- -se por linhas quadradas, retangulares, mais distantes da figuração. Em 1965, Arcangelo Ianelli segue para a Europa, onde permaneceria por dois anos. O seu trabalho posterior caminha em direção à abs- tração geométrica, e é acompanhado pela atividade de escultor, com obras em mármore e em madeira. Em 2002, seus oitenta anos são comemorados com uma retrospecti- va organizada pela Pinacoteca do Estado de São Paulo. Ianelli fale- ceu em São Paulo em 2009. Óleo sobre madeira, 28 x 35 cm, 1949 Óleo sobre madeira, 38 x 55 cm, 1949 Arcangelo Ianelli em atividade (década de 1950) Óleo sobre tela, 73 x 91 cm, década de 1950 Óleo sobre tela, 38 x 55 cm, 1949 146 147 PelO final dOs anOs 1950, Ornella Heins Psillakis estudava enfermagem na Escola da Cruz Vermelha, à rua Moreira Guimarães, perto do aeroporto de Congonhas. Ao meio dia, retornava de carro para a sua casa, nas imediações da Estrada do Guarapiranga. Sua mãe Giuliana a esperava com o barco pronto. Navegavam pela represa, esquiavam. Após o almoço, Ornella retomava o carro e seguia novamente para a escola. Eram ainda outros tempos. No entanto, entre 1940 e 1960,
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