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Etnocídio e genocídio - Igreja e Estado no filme A Missão

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE (UFF)
ICHF – Instituto de ciências humanas e filosofia
Graduação em Ciências Sociais
Etnocídio e genocídio - Igreja e Estado no filme A missão[footnoteRef:1] [1: Avaliação de Antropologia I, Ciências Sociais 2016.2] 
Rafael Valladão Rocha[footnoteRef:2] [2: Graduando em Ciências Sociais, licenciatura.] 
1. Apresentação e breve sinopse do filme
A Missão, filme de 1986 dirigido por Roland Joffé, nos apresenta a Guerra guaranítica, travada em territórios brasileiros, paraguaios, argentinos e uruguaios, entre nativos guaranis e tropas portuguesas e espanholas. O longa-metragem aborda os conflitos entre as coroas ibéricas e as aspirações religiosas da Companhia de Jesus, as relações turbulentas entre os interesses econômicos das metrópoles e os interesses e direitos dos indígenas.
Durante o século XVIII, missões jesuítas enviadas ao sul do continente conseguiram se estabelecer entre os nativos de maneira pacífica. Padres e sacerdotes da Companhia de Jesus mantinham com os guaranis uma relação harmoniosa, e formavam aldeamentos solidários onde os indígenas eram catequisados e ensinados a tocar instrumentos musicais, a entoar cânticos religiosos. A formação dos aldeamentos correspondia às intenções dos jesuítas de criar uma sociedade organizada e pacifista, como terrenos utópicos distribuídos na realidade pecaminosa e mundana. Formaram-se logo sete povoamentos no território que hoje corresponde ao atual estado do Rio Grande do Sul. Ficaram conhecidos como Sete povos das missões os aldeamentos jesuítas.
Deu-se o nome de Guerra Guaranítica ao conjunto de violentos confrontos entre guaranis e tropas ibéricas, quando, em 1750, assinou-se o Tratado de Madrid. O tratado previa a divisão do novo continente entre Portugal e Espanha, e separava abruptamente os guaranis de suas terras natais e do convívio com os jesuítas. No filme, os guaranis desenvolveram forte empatia pelos padres da ordem jesuíta espanhola, de modo que o rompimento de suas relações seria desastroso para a coesão social dos aldeamentos.[footnoteRef:3] [3: DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. Martins Fontes, São Paulo, 1999.] 
O Tratado de Madrid acertava que as áreas ocupadas pelos aldeamentos indígenas passariam a pertencer a Portugal. Como a ordem jesuíta espanhola se mantinha ao lado dos nativos e protestava contra as decisões acertadas no tratado, a coroa portuguesa passou a ver a Companhia de Jesus com maus olhos e a pressionar o clero espanhol para que retirasse os jesuítas de atuação e permitisse a posse dos territórios pela Coroa Portuguesa. 
Estava determinado no Tratado que caberia à Espanha todo o continente americano situado após o Rio Uruguai, que hoje marca a divisa entre os estados brasileiros de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Ora, as legislações espanholas previam a integração dos indígenas à nação, desde que convertidos ao cristianismo. Porém, as leis portuguesas permitiam a escravização dos nativos, de modo que a permanência nos aldeamentos significaria morte e escravidão para os guaranis.
Relutantes, os padres, em especial Gabriel, transmitem aos guaranis a ordem superior para que abandonem as aldeias e se retirem para os novos territórios espanhóis, na margem oposta do Rio Uruguai. Ao tomar conhecimento das ordens para que deixem sua terra natal, os guaranis se recusam a abandonar os aldeamentos. Então, Rodrigo Mendoza, ex-mercenário convertido à ordem jesuíta, renuncia a seus votos de obediência e abdica do hábito religioso. Mendoza une-se aos guaranis em sua resistência às coroas ibéricas, que formam batalhões de combate decididos a lutar pelas suas terras.
Deste momento em diante, uma série de confrontos violentos e batalhas sanguinolentas terão início. Joffé nos presenteia com cenas emblemáticas do conflito cultural entre europeus e nativos, enquanto Ennio Morricone nos acompanha com uma trilha sonora que oscila entre temas belicosos e outros, mais singelos e suaves. Interessa-nos aqui a compreensão deste conflito a partir dos conceitos de etnocentrismo, etnocídio e genocídio, que tomaremos emprestado de Pierre Clastres, Claude Lévi-Strauss, e outros. 
1. 1 – Pontos preliminares
Para fins de melhor interpretação do momento histórico que inspira A Missão, devemos lembrar que o Tratado de Madrid rompeu abruptamente com a permanência dos jesuítas na região das Sete Missões, e que isto se deu por negociações realizadas estritamente nas metrópoles ibéricas. O papel dos estados na solução do conflito entre espanhóis e portugueses importa também no desencadeamento dos conflitos das guerras guaraníticas e das relações distanciadas entre o Estado e seus subordinados. Esta relação será revista mais à frente. Leiamos o que nos diz Rainer Sousa, a respeito dos impasses quanto à demarcação dos territórios luso-espanhóis e consequências das medidas adotadas.
O problema mais delicado acontecia na região Sul, onde espanhóis exploravam regiões com colonização predominantemente lusitana e vice-versa. Para definir esse imbróglio, os estadistas resolveram abrir mão de uma parcela de seus territórios em prol de uma solução mais razoável. Com isso, foi adicionada uma cláusula ao tratado em que Portugal abria mão da Colônia de Sacramento e a Espanha entregava a região dos Sete Povos das Missões.[footnoteRef:4] [4: SOUSA, Rainer Gonçalves. "Tratado de Madri"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/tratado-madri.htm>. Acesso em 15 de outubro de 2016.] 
Primeiramente, a desobediência constante aos limites e fronteiras traçados no Tratado de Tordesilhas trouxeram dores de cabeça às coroas luso-espanholas, que despacharam, no horizonte da península ibérica, ordens para que se resolvesse o impasse e fossem nomeadas as terras e seus donos legítimos. O Tratado de Madrid nasce, portanto, como uma relação diplomática de solução para um conflito travado entre as coroas sobre os territórios sul-americanos. Insistimos nesta distância, porque o comportamento adotado por Espanha, ao entregar as áreas compreendidas pelas sete missões jesuíticas aos lusos, como moeda de troca facilmente manipulável, nos diz muito da consideração que se tinha pelos indígenas. Como sujeitos apátridas e sem direitos legítimos sobre a terra em que se achavam livres até então, as populações autóctones deveriam se conformar e se resignar às mudanças queridas pelos europeus, senhores absolutos das terras do Novo Mundo. Quando a Espanha entrega a região das Sete Missões à coroa portuguesa, está permitindo que seu donatário usufrua como quiser das novas terras, e que aprisione e escravize os índios, se assim entender. Entregues ao domínio português, na iminência de serem escravizados e exilados de seus aldeamentos, os guaranis reagiriam com revolta à distribuição arbitrária de suas terras pelos senhores colonos luso-espanhóis. Da reação dos guaranis resultaria a guerra guaranítica e seus numerosos e sanguinários conflitos.
2. Etnocentrismo, cultura diversidade da condição humana
Podemos classificar o etnocentrismo como um comportamento de recusa à diversidade de culturas humanas, acompanhada da reafirmação arrogante da própria cultura, ou de seus próprios elementos culturais, como os únicos e verdadeiros modos de conduta no mundo e de representação da vida e seus mistérios. A intolerância imanente ao sujeito etnocêntrico se diferencia em graus de intensidade que podem resultar em atitudes distintas diante à diversidade cultural, mas baseadas no mesmo fundamento, isto é, a repulsa à diversidade, o recuo temeroso diante da pluralidade, o distanciamento de tudo quanto lhe seja estranho. Falemos rapidamente da divisão em graus de intensidade do fenômeno etnocêntrico.
Citemos alguns exemplos. O etnocentrismo está presente na atitude cotidiana de associar música popular a níveis menores de arte; cortes e penteados de cabelos crespos a “cabelo duro”; religiões de matriz africana a expressões demoníacas – para citar apenas alguns exemplos correntes na sociedade brasileira. Porém, essas atitudes cotidianas,embora oriundas da recusa à diversidade, não constituem ataques drásticos e diretos à diversidade. Porque a essas ações trágicas, que vitimam os indivíduos não enquadrados no modelo cultural querido pelo etnocêntrico, chamamos etnocídio – que veremos mais à frente. 
2.1 – Etnocentrismo
A humanidade é plural, uma qualidade perene da condição humana é o pluralismo de interpretações da realidade, as múltiplas óticas de observação do mundo e seus mistérios produzem visões específicas sobre o que é o ser humano e o que ele mesmo representa – para o universo, realidade impositiva, e para si mesmo, companhia inseparável. Ora, não é possível conceber que uma humanidade plural e indócil a padrões uniformes produza, no interior de sua complexidade, culturas comuns ou homogêneas. A formação de uma cultura, produto da interpretação do mundo e do homem em si, se faz sempre em sociedade, no corpo coletivo que engloba e condiciona o indivíduo. A ação dos homens entre si é, segundo Hannah Arendt[footnoteRef:5], a consequência mesma da pluralidade distintiva da condição humana. [5: ARENDT, Hannah. A condição humana. Forense universitária. 2007.] 
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade, ao fato de que homens e não o Homem, vivem na terra e habitam o mundo. (...) A pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer outra pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. (ARENDT, 2007, págs. 15 e 16).
O que há de comum a toda cultura humana é a própria diversidade. Devemos partir, portanto, do pressuposto que a condição humana é marcada pela diversidade cultural – fruto da diversidade de interpretações do mundo e do indivíduo por si mesmo. De certa maneira, a negação da diversidade humana é a negação da própria humanidade, como a negação da imensidão dos céus é a negação do próprio céu. Recusar com veemência o convívio com a diversidade é, portanto, recusar conviver humanamente, o que é um passo perigoso em direção à negação da humanidade na diferença, e à permissão da aniquilação dos diferentes, esses excluídos da dignidade humana.
Allan G. Johnson[footnoteRef:6], sociólogo norte-americano, traça um paralelo bastante ilustrativo entre o etnocentrismo e o egocentrismo, entre as dimensões coletiva e individual de uma mesma intolerância acompanhada pela reafirmação dos próprios valores: [6: JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia. Zahar, 2008, Rio de Janeiro.] 
O etnocentrismo pode ser considerado a contrapartida sociológica do fenômeno psicológico do egocentrismo. A diferença é que, em vez de indivíduos se definirem como o centro do universo, em relação ao qual tudo mais deve sua existência e significação, uma cultura inteira é colocada nessa posição elevada. Tal como o egocentrismo, o etnocentrismo é como um prisma, através do qual tudo é percebido e interpretado em relação a um único arcabouço cultural, com exclusão de todas as demais possibilidades. (JOHNSON, 2008, p. 101)
O encontro entre as populações autóctones da América do Sul e os europeus luso-espanhóis foi profundamente marcado pelo etnocentrismo, e seus desenlaces trágicos se deveram, em grande medida, ao paroxismo da atitude etnocêntrica – a imposição brutal da cultura europeia e cristã como regra e consequente aniquilação da cultura local. Não por outra razão senão a convicção de que a cultura ocidental deveria predominar em todo mundo, missionários cristãos e colonos foram enviados à exaustão ao Novo Mundo para que o afeiçoassem ao gosto europeu e o retirassem do atraso e da devassidão de seus costumes e hábitos pagãos. A soberania religiosa e política era possivelmente a maior ambição das coroas ibéricas. Era necessário que o paganismo fosse extirpado das terras dominadas politicamente, e era necessário que as terras sob nova jurisdição fossem cristianizadas. Este dualismo estabelece o poderio europeu em duas dimensões essenciais – política e religião. A imposição dos padrões ocidentais de política, religião e economia obedece a uma única força – o etnocentrismo.
As missões jesuíticas, retratadas em A Missão, em cenas como as aulas de catequese dadas aos indígenas, ou na construção de templos católicos, representam a imposição etnocêntrica na esfera religiosa. O etnocentrismo aqui é legitimado por fatores religiosos, incluindo uma infatigável missão evangelizadora. A paixão religiosa atribui legitimidade a várias práticas de imposição cultural que, no filme, terminarão por uma endoculturação pacífica e amistosa dos guaranis. Daí em diante, vemos pequenos índios entoando cânticos cristãos em latim, corais de canto gregoriano formados por diferentes vozes, femininas, masculinas, adultas e infantis. Observe-se que a permanência estável dos jesuítas só foi possível graças à relativamente fácil assimilação da cultura ocidental e da moral judaico-cristã pelos guaranis. O estabelecimento de uma comunidade cultural permitiria a convivência entre jesuítas e guaranis, cristãos e pagãos, e, posteriormente, a sublevação autoritária daqueles sobre estes.
No filme de Joffé, podemos perceber que a relação entre nativos e europeus só foi branda e amistosa na medida em que houve um gradual consentimento dos indígenas em apreender e absorver a cultura ocidental. Porém, é evidente que este encontro ameno e amigável se restringe, por definição, aos enredos costurados no imaginário do artista, à fantasia desoladoramente irreal da ficção.
Uma cena nos mostra o etnocentrismo do lado português. Don Cabeza, mercador luso rico em desprezo pelos indígenas, ao tentar convencer Altamirano[footnoteRef:7] a aprovar a posse dos portugueses sobre os guaranis e seus territórios, lista suas abominações sobre os nativos. Diz que eles “desprezam a propriedade e o lucro”, diz que os guaranis são “preguiçosos que desconhecem a dignidade do trabalho”. Conforme Clastres, o etnocentrismo é “essa vocação de avaliar as diferenças pelo padrão da própria cultura”, e outra coisa não é o desprezo pela forma de trabalho coletivo dos guaranis. [7: Emissário do papado. Personagem interpretado por Ray MacAnally] 
Um detalhe no fenômeno do etnocentrismo escapa aos olhares apressados. Pensa-se com frequência que o etnocentrismo é uma conduta exclusiva das sociedades ocidentais, e que não há sociedades etnocêntricas fora do chamado imperialismo ocidental. Ora, é preciso lembrar que o etnocentrismo é um fenômeno psicológico que cobra a primazia da cultura a que pertence o indivíduo sobre os demais. O conteúdo do etnocentrismo é um produto coletivo – isto é, a cultura –, mas que engloba o indivíduo em sua estrita individualidade. Logo, haverá etnocentrismo aonde houver sociedade e cultura constituída. Dizer-se que apenas os europeus são etnocêntricos é um contrassenso.
Os europeus consideraram selvagens os nativos, sem perceberem os traços em que se assemelhavam grandemente. Julgavam-se superiores a indivíduos diferentes em cor e cultura, mas iguais em dignidade e – veja só – etnocentrismo. Ora, o engrandecimento da própria cultura em detrimento das outras é traço marcante mesmo nos nativos sul-americanos, apesar de sua selvageria. É o que nos faz ver Lévi-Strauss.
Esta atitude do pensamento (o etnocentrismo), em nome da qual se expulsam os "selvagens" (ou todos aqueles que escolhemos considerar como tais) para fora da humanidade, é justamente a atitude mais marcante e a mais distintiva destes mesmos selvagens. (...) A humanidade acaba nas fronteiras da tribo, do grupo linguístico, por vezes mesmo, da aldeia; a tal ponto que um grande número de populações ditas primitivas se designam por um nome que significa os "homens" (ou por vezes - digamos com mais discrição -, os "bons", os "excelentes", os "perfeitos"), implicando assim que as outras tribos, grupos ou aldeias não participem das virtudes - ou mesmo da natureza - humanas, mas são, quando muito, compostos por "maus", "perversos", "macacosterrestres"; ou "ovos de piolho". (LÉVI-STRAUSS, Raça e história).
Em A Missão, os guaranis não dão mostras expressivas de etnocentrismo. Há uma cena, no entanto, onde Joffé nos sugere o etnocentrismo entranhado mesmo nos indígenas que pretende retratar com candura. Quando Pe. Gabriel sobe as cachoeiras para averiguar a morte de seu colega jesuíta, ele logo percebe que está perigosamente próximo de um grupo de guaranis. Temeroso e sabendo que não teria como fugir, Gabriel retira do alforje sua flauta de estimação, de onde extrai melodias suaves, quase soníferas. Os primeiros guaranis surgem de arco em flecha, o rosto avermelhado de tinta e cólera. Ao ouvirem, porém, a música de Gabriel, provinda daquele instrumento estranho, os guaranis abaixam os arcos e o escutam atentamente. Porém Pe. Gabriel não poderia encantá-los como Orfeu, e escapar tão facilmente. Logo, um guarani-chefe se aproxima vociferando palavras ininteligíveis. Mas Gabriel percebeu que a conversa não seria muito agradável. O guarani toma de suas mãos a flauta e a quebra nos próprios joelhos. E sai altivamente. Pe. Gabriel, amedrontado, havia caído nas graças dos outros guaranis, embora tivesse irritado o chefe deles.
É possível que esta tenha sido a única cena de visível etnocentrismo por parte dos nativos, no filme de Joffé. Por que outra razão a flauta, instrumento musical estranho aos guaranis, teria sido rompida ao meio no joelho de um deles? A explicação imediata é a recusa ao estranho, à melodia nunca ouvida.
2. 2 – Hierarquização cultural e etnocentrismo
O etnocentrismo pressupõe uma hierarquização das culturas, como reação organizativa do choque produzido pela diversidade. Para que minha cultura seja exaltada e prevaleça, outras devem restar, enfraquecidas e infames. A exuberância da multiplicidade cultural observada na humanidade – e, mais próxima, no outro – impacta o homem, sobretudo o homem certo da superioridade de sua própria cultura – como era o caso do europeu no contexto da expansão marítima e das primeiras descobertas da alteridade. Os diferentes juízos feitos sobre a cultura guarani, no filme de Joffé, produziram diferentes perspectivas sobre a existência e a essência dos indígenas. Uns os considerarão homens atrasados, carentes de Deus e da civilização; outros os verão como animais desalmados e isentos de dignidade.
Claude Lévi-Strauss[footnoteRef:8] critica um produto pseudocientífico do etnocentrismo do século XIX, o falso evolucionismo, tese que proclama uma linha evolutiva que compreende as culturas humanas, tendo a cultura ocidental no topo como uma referência indiscutível do desenvolvimento humano. Lévi-Strauss propõe uma explicação para seu nascimento, e salienta que esta tese atende à necessidade do homem de explicar o descobrimento da diversidade cultural, que o retirou do pedestal humanista cultivado desde há muito. [8: LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História.] 
Preso entre a dupla tentação de condenar experiências que o chocam afetivamente e de negar as diferenças que ele não compreende intelectualmente, o homem moderno entregou-se a toda espécie de especulações filosóficas e sociológicas para estabelecer vãos compromissos entre estes pólos contraditórios, e para aperceber a diversidade das culturas, procurando suprimir nesta o que ela contém, para ele, de escandaloso e de chocante. Mas, por mais diferentes e por vezes bizarras que possam ser, todas estas especulações se reduzem a uma única e mesma receita, que o termo de falso evolucionismo é, sem dúvida, mais adequado para caracterizar. (LÉVI-STRAUSS, Raça e história)
Logo após, o autor mostrará as evidentes diferenças entre o postulado do evolucionismo biológico de Darwin e a hierarquia cultural proposta por, entre outros pensadores, Augusto Comte. Após apontar as distinções entre a hipótese científica da biologia darwiniana e a fabulação eurocêntrica do falso evolucionismo, Lévi-Strauss aponta a superficialidade dos evolucionistas sociais em comparação ao rigor metodológico dos biologistas darwinianos.
Anterior ao evolucionismo biológico, teoria científica, o evolucionismo social não é, a maior parte das vezes, senão a maquilagem falsamente científica de um velho problema filosófico para o qual não existe qualquer certeza de que a observação e a indução possam um dia fornecer a chave. (LÉVI-STRAUSS, Raça e História).
De qual problema filosófico ele fala? Admitamos que seja o da aceitação da alteridade, ou melhor, do convívio entre os ideais que construímos e apreciamos mentalmente e a realidade costurada de fatos que não se agradam a nosso gosto refinado e pudico. Em A Missão veremos os colonos espanhóis frequentemente analisando os guaranis como espécies em desenvolvimento, como na cena em que um pequeno guarani é apresentado às autoridades seculares e religiosas, entre elas Altamirano, emissário do Papa. 
Neste momento, o menino canta algum hino cristão em latim, o que surpreende Altamirano e agrada aos jesuítas espanhóis. A afinação e a harmonia da voz do guarani poderiam soar aos ouvidos dos padres como um reflexo da boa aprendizagem do menino, e aos ouvidos de Altamirano a prova de que os indígenas podem evoluir, a nível tal que até mesmo sejam capazes de cantar a Deus[footnoteRef:9]. [9: Abordaremos esta mesma cena mais à frente.] 
Mais de perto, observamos que a hierarquização cultural e o postulado do falso evolucionismo, isto é, a capacidade de o indivíduo selvagem progredir e desenvolver-se até alcançar a plenitude da civilização, são os fundamentos do etnocídio, conceito que analisaremos a seguir.
3. Genocídio e etnocídio
O conceito de Etnocídio[footnoteRef:10] foi largamente desenvolvido pelo etnógrafo e antropólogo político francês Pierre Clastres (1934 – 1977). Etnocídio guarda afinidades semânticas com o termo genocídio, porém designa outra dimensão da mesma brutalidade – os massacres perpetrados pelas potências coloniais sobre as populações nativas no Novo Mundo. [10: CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. Cosac Naify, 2004.] 
3.1. Genocídio ontem, hoje e sempre
Seguindo o percurso indicado por Clastres, devemos definir primeiramente o que seja genocídio para pensarmos, então, o que seria etnocídio. As fronteiras entre os dois termos são tênues e se definem pelos diversos modos de conduta adotados diante da alteridade, da diversidade cultural entre os povos autóctones e os europeus. A palavra genocídio surge na história recente para designar uma realidade cruel – o extermínio sistemático de povos e etnias em diversos momentos históricos. Exemplo que salta aos olhos, o holocausto judaico, emblema nefasto dos horrores da segunda guerra mundial, se caracterizou por uma aniquilação programada e meticulosa de um gênero humano específico. Era preciso, na mentalidade nazista, exterminar os judeus – considerados inimigos ao avanço e à glória da raça ariana. Note-se como um gênero humano específico é tomado como obstáculo ao progresso de outro gênero humano, este autodeclarado superior e consagrado à dominação sobre as raças menores.
As guerras costumam reservar para si a produção de genocídios, e as armas são geralmente artífices das barbáries genocidas. Em guerras declaradas ou conflitos encobertos, o genocídio se manifesta como o assassínio de um gênero humano, determinado por diversos fatores que o elegem como alvo último da violência e da destruição. Cá no Brasil, muito se fala a respeito do genocídio de pobres e negros nas favelas e periferias de todo o país, e se escuta nos telejornais diários o aumento no número de mortos por grupos islâmicos radicais que tomam em armas para combater o ocidente e seus filhos.[footnoteRef:11] Em ambos os casos, percebe-se um extermínio contra alvos pré-determinados, gêneros humanos selecionados criteriosamente. Clastres observa, na seleção de alvos dos genocidas, as raízes racistas que explicam a eleição de judeus como vítimas das atrocidades nazistas, e aponta que o termo genocídio “se refere à primeira manifestação, devidamente registrada pela lei, dessa criminalidade: o extermínio sistemáticodos judeus europeus pelos nazistas alemães”. Clastres indica que o racismo sustenta e conduz toda prática genocida: [11: Ao tentar aterrorizar cristãos, EI tenta fomentar “guerra” ao Ocidente. DW. 27/02/2015.] 
O delito juridicamente definido como genocídio tem sua raiz, portanto no racismo, é o produto lógico e, no limite, necessário dele: um racismo que se desenvolve livremente, como foi o caso na Alemanha nazista, só pode conduzir ao genocídio.(CLASTRES, 2004, p. 55)
Porém, como aponta Clastres, os primeiros genocídios não foram catalogados em anais jurídicos ou reconhecidos publicamente como expressões bárbaras de violência, mas praticados no isolamento dos novos territórios descobertos, no silêncio da floresta amazônica, na consagração da raça europeia, destinada a constituir domínio absoluto sobre os indígenas. Um discurso ufanista e patriótico que enaltecesse o humanismo do povo cristão europeu, certamente, justificaria todo massacre que fosse necessário empreender pelo bem da civilização, da expansão do gênero superior. É notória a semelhança entre o discurso nazista, e seu racismo destrutivo e narcísico, e o discurso da expansão colonial. O mesmo etnocentrismo selvagem e inexorável parece mover os horrores da expansão colonial e da barbárie do holocausto judaico. Embora evidentemente distintos em seus meios de ação, e inegavelmente separados temporal e tecnologicamente, o colonialismo e o nazismo guardam afinidades indiscutíveis. Separados historicamente e próximos em seu expansionismo devastador, ambos nos evidenciam a alarmante atemporalidade do etnocentrismo e seus efeitos predatórios. As hecatombes dos colonizadores das américas e da Alemanha do terceiro Reich têm correspondências no passado, como a dominação do Império Romano sobre os povos africanos e asiáticos, entre outros inumeráveis episódios históricos onde o etnocentrismo permitiu o avanço da crueldade e fomentou os genocídios. Ora, se o passado da raça humana está manchado de sangue e de horrores oriundos do etnocentrismo e do racismo, uma lógica simples nos indica que o futuro também não está livre da aparição de outros genocídios, e o presente nos tem comprovado a insistência do etnocentrismo como um fenômeno atemporal e destrutivo. A crise dos refugiados e a crescente xenofobia, alimentada por temores com a população muçulmana, são exemplos contemporâneos. Lévi-Strauss ilustra o caráter psicológico permanente do etnocentrismo com precisão[footnoteRef:12] [12: LÉVI-STRAUSS, Claude. idem.] 
A atitude mais antiga e que repousa, sem dúvida, sobre fundamentos psicológicos sólidos, pois que tende a reaparecer em cada um de nós quando somos colocados numa situação inesperada, consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais, morais, religiosas, sociais e estéticas mais afastadas daquelas com que nos identificamos. (LÉVI-STRAUSS, Raça e História).
3.2. Etnocídio e dominação cultural
Feita esta digressão, devemos retomar o que nos diz Clastres quanto à formação da ideia de etnocídio, baseada na observação dos genocídios de indígenas perpetrados na América do Sul.
Ora, foi principalmente a partir de sua experiência americana que os etnólogos (...) viram-se levados a formular o conceito de etnocídio. É primeiramente à realidade indígena da América do Sul que se refere essa ideia. Dispomos aí, portanto, de um terreno favorável, se é possível dizer, à pesquisa da distinção entre genocídio e etnocídio, já que as últimas populações indígenas do continente são simultaneamente vítimas desses dois tipos de criminalidade. (CLASTRES, 2004, p. 55)
Pierre Clastres aponta a familiaridade entre os termos genocídio e etnocídio, e logo veremos por que os indígenas sul-americanos foram vítimas de massacres simultâneos. Aqui entramos na esfera de A Missão, nosso objeto de estudo principal. Mas, afinal, o que diferencia a carnificina nazista da matança de índios em solo americano? Que há de próprio na dominação e na destruição? A rigor, a destruição pressupõe a eliminação pura e simplesmente de alvos pré-determinados, enquanto a dominação – entendida aqui em termos de truculência e espoliação, e não no sentido weberiano – entende que há um benefício na manutenção da soberania de uns sobre outros, de dominadores sobre dominados, ou, mais precisamente, de colonizadores sobre colonizados. Chegamos ao cerne da distinção entre etnocidas e genocidas – este prioriza o extermínio, e aquele, o predomínio. Vejamos mais de perto.
É necessário repetir que o etnocídio é um derivado engajado do etnocentrismo, e se articula como sua expressão máxima, na medida em que pretende aniquilar a cultura que considera inferior e substituí-la por seus próprios elementos culturais, entendidos não como um entre outros modos diversos de cultura, mas como o único verdadeiro, o único que deve existir e prevalecer. Igualmente, genocídio tem raízes no etnocentrismo, mas se expressa de outra maneira, mais próxima de uma catarse a que sucumbem todas as tentativas de convivência com a alteridade, de onde emerge o extermínio como um ponto final numa discussão desagradável.
Se o termo genocídio remete à ideia de "raça" e à vontade de extermínio de uma minoria racial, o termo etnocídio aponta não para a destruição física dos homens (caso em que se permaneceria na situação genocida), mas para a destruição de sua cultura. O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem essa destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito. Em ambos os casos, trata-se sempre da morte, mas de uma morte diferente: a supressão física e imediata não é a opressão cultural com efeitos longamente adiados, segundo a capacidade de resistência da minoria oprimida. (CLASTRES, 2004, p. 56).
Ora, se a pretensão etnocida é estabelecer o predomínio de uma cultura, e seus elementos como prodígio de superioridade, é necessário que se extermine as expressões culturais divergentes que concorram pela assimilação dos indivíduos de um dado grupo social. Seguindo este raciocínio, as potências coloniais se incumbem da tarefa de eliminar o paganismo reinante no Novo Mundo, e suas expressões indiretas como os costumes e hábitos cotidianos dos povos indígenas, e introduzir a religião cristã e seus hábitos e costumes que deverão ser absorvidos à força pelos índios. Há uma tentativa de substituir culturas que resulta precisamente no colapso entre o que é e o que deverá ser, de maneira que uma ruptura tão súbita não poderia ser realizada sem uma destruição maciça do que havia antes, isto é, o que havia antes da oportuna vinda dos cristãos europeus. A chegada dos colonizadores é entendida, nessa ótica, não como uma invasão, mas como uma correção obsequiosa da degeneração anterior.
Em A Missão, podemos ver cenas que retratam este rompimento abrupto entre o antes e o depois, entre certo e errado, quando os índios passam a cantar hinos religiosos em voz lírica e devidamente afinada, ou, em cena mais icônica, os indígenas formam grupos de trabalho para levantarem uma capela cristã, com direito a cruz feita de madeira e barro. A confecção de uma cruz com elementos habitualmente associados à vida camponesa e simples, madeira e barro, constitui uma cena emblemática onde a cruz cristã, relíquia simbólica dos europeus, é feita à base de elementos selváticos por mãos rudes e rústicas. Joffé constrói cenas onde é expressivo o contraste entre a cultura habitual dos indígenas e a pretensa cultura reformadora dos colonizadores.
Há também um etnocídio na modificação radical do modo de trabalho dos nativos. Vistos inicialmente como desleixados, preguiçosos e ociosos, por não ajuntarem bens e acumularem excedentes à moda das metrópoles em plena efervescência capitalista, os indígenas são forçados a trabalhar na construção de capelas e na confecção de instrumentos musicais, outros são enviados à metrópole espanhola como exemplares da nova espécie encontrada, onde passarão a trabalhar como serviçais das autoridadesda nobreza e do clero. Exemplo disto, em A Missão, são os indígenas que servem como mordomos e carregadores no palácio do emissário do papa, vossa eminência Altamirano. Nesta cena, quando os índios domésticos adentram ao salão principal para entregar caixas e baús, Altamirano conversa com um dos representantes do estado, e, com expressão de admiração pela compleição física dos serviçais enviados do Novo Mundo, diz que é “difícil saber o que estão pensando”. É possível pensarmos o mesmo quando nos referimos a cães, gatos e outros animais domésticos. Que o mistério sobre o que pensam os índios se equipare à interrogação sobre o que pensam os bichos de estimação não constitui mera coincidência, e é reflexo de um dado estado de curiosidade mesclado à estranheza com criaturas que consideramos inteiramente diferenciadas de nós mesmos.
Aliás, em outros momentos no longa-metragem se comparam os índios a animais, porém trataremos disto mais à frente. Em todos os casos em que os índios são tratados como criaturas desprovidas de vontade de trabalhar e acumular bens; sempre que vemos os guaranis submetidos a tarefas com a justificativa de que estão aprendendo a trabalhar, estamos diante de uma mutilação brutal dos costumes e hábitos desenvolvidos durante séculos e consolidados pela tradição guarani. É neste sentido que o etnocídio se manifesta como tentativa de salvar os índios, como um método de purificação cultural que não é senão a expressão mais agressiva e arrogante do etnocentrismo.
4. Humanos ou não? Os guaranis entre a humanidade e animalidade
Podemos ver, no encontro entre os europeus e os nativos sul-americanos, um comportamento marcado pelo dualismo do bom/mau selvagem. Esta classificação binária e contraditória será importante na avaliação do comportamento de colonos e jesuítas, não apenas na trama de A Missão, como também na investigação da realidade desde os primeiros conflitos entre nativos e estrangeiros, cristãos e pagãos, civis e selvagens, civilização e barbárie.
Havia dúvidas quanto à humanidade dos guaranis que, atreladas à curiosidade e espanto sobre seus costumes e práticas habituais, criou uma concepção de indígena que compreende dois padrões – índio mau e desumano; índio bom e humano. Em A Missão, cada tipologia foi adotada por uma das instituições centrais na trama – a igreja e o Estado. 
4.1. Estado e Igreja: duas concepções ontológicas em uma cena
Uma cena do filme nos chama atenção por mostrar com clareza as fronteiras entre as diferentes concepções ontológicas adotadas sobre os guaranis – os homens do Estado os consideram animais, criaturas desumanas e sem valor; os homens da Igreja, ao contrário, os consideram homens, humanos com valor potencial. Trata-se da cena – abordada rapidamente mais acima – em que o emissário do papa, Altamirano, vai visitar ao território das sete missões, para ver de perto as instalações dos aldeamentos e conhecer os famigerados guaranis.
Quando um menino guarani canta para a apreciação de representantes e mercadores da coroa portuguesa, assistido de perto pelos jesuítas espanhóis, Don Cabeza, português que desempenha no filme a função de carrasco dos nativos, se levanta da plateia e acusa os padres espanhóis de acobertarem animais consigo. Um diálogo interessante se inicia. Altamirano objeta que nenhum animal poderia cantar tão harmoniosamente como aquele pequeno guarani. Don Cabeza responde, porém, que papagaios e outras aves também cantam.
Ora, o mesmo Don Cabeza irá posteriormente acossar o emissário Altamirano para que ele abra o caminho para a coroa portuguesa se apossar o quanto antes da área tomada pelas sete missões. Don Cabeza representa, na disposição semântica dos personagens, a vontade implacável do Estado português, que não se constrangerá em massacrar quantos índios for preciso para obter lucro e estabelecer domínio sobre a região. Altamirano, porém, representa a Igreja levemente pesarosa em permitir a chacina de guaranis, ou seja, pesarosa em entregá-los nas mãos dos portugueses. Cabeza dirá que “esses animais acobertados por esses padres não podem ficar no caminho”.
Talvez tenha sido intenção de Roland Joffé personificar, em Altamirano e em Don Cabeza, a insaciável ganância do Estado português e a complacência secular da Igreja espanhola. Duas qualidades contraditórias e ilustrativas das duas forças em permanente oposição no filme A Missão – a filantropia etnocida e ingênua dos jesuítas, e a ganância genocida e maligna dos portugueses.
4.2. Igreja, etnocídio e humanização dos nativos
Na visão do clero, os guaranis eram humanos dotados de inteligência e emoções, sentimentos nobres e hábitos singelos, porém pagãos e selvagens. Os guaranis eram, portanto, homens perfectíveis, que deveriam evoluir até que se tornassem homens com plenitude, verdadeiros cristãos civilizados. Ou seja, para os jesuítas espanhóis que protagonizam A Missão, os nativos são vistos como indivíduos aos quais falta uma religião e modos adequados. É evidente que a condição primordial de homem em questão é a religião cristã. Só uma confissão de fé católica determinaria o espírito do nativo e indicaria se ele herdará o paraíso ou sofrerá a danação eterna. 
Empenhados em cristianizar os guaranis – e humanizá-los plenamente –, os jesuítas arrolados por Joffé se orientam no sentido de expandir o evangelho, e deixam que aos monarcas luso-espanhóis importe a conquista política do Novo Mundo. Há uma separação nítida entre o que ambiciona a Companhia de Jesus e o que aspiram as coroas ibéricas, muito embora a própria função dos jesuítas fosse, em tese, domesticar por meio da religião um povo que seria dominado posteriormente.
Como vimos anteriormente, o princípio mesmo do etnocídio é a reconfiguração de um povo pela sua cultura, uma substituição de elementos culturais considerados inferiores por outros, tomados como verdadeiros e superiores. Ainda na definição de genocídio e de etnocídio, Clastres identifica, nas duas práticas, “duas formas perversas de otimismo e pessimismo”, sugerindo que há no etnocida um empenho em edificar outro sistema cultural sobre as ruínas da cultura primeira, inferior e devidamente destruída. Ora, se o projeto de cristianização dos guaranis se destina à edificação de uma cultura sobre outra, não pode haver senão etnocídio. Por trás da simpática sintonia entre jesuítas e guaranis criada por Joffé, pulsa a pretensão etnocida e inexoravelmente destruidora de toda uma nação, constituída por sua cultura e costumes como os corpos humanos constituídos de sangue e coração. Não por outra razão, Clastres identifica na igreja um poderoso agente etnocida.
Quem são, por outro lado, os praticantes do etnocídio? Quem se opõe à alma dos povos? Em primeiro lugar aparecem, na América do Sul mas também em muitas outras regiões, os missionários. Propagadores militantes da fé cristã, eles se esforçam por substituir as crenças bárbaras dos pagãos pela religião do Ocidente. (CLASTRES, 2004, p. 57).
Se o etnocídio é legitimado por ideias e sentimentos etnocêntricos, e o etnocentrismo não é outra coisa senão o estabelecimento de uma hierarquia cultural onde se insinua como superior a cultura própria do indivíduo, então a missão dos jesuítas está marcada pela sujeição de criaturas inferiores à excelência da religião cristã.
A atitude evangelizadora implica duas certezas: primeiro, que a diferença — o paganismo — é inaceitável e deve ser recusada; a seguir, que o mal dessa má diferença pode ser atenuado ou mesmo abolido. É nisto que a atitude etnocida é sobretudo otimista: o Outro, mau no ponto de partida, é suposto perfectível, reconhecem-lhe os meios de se alçar, por identificação, à perfeição que o cristianismo representa. (CLASTRES, 2004, p. 57).
Para a Igreja de A Missão, os guaranis são humanos perfectíveis, criaturas que deverão percorrer uma linha evolutiva até tornarem-se bons civis cristãos, e assim abandonando em definitivo a posição de maus selvagens e pagãos. Por esta crença na capacidade de aprimoramento da condição humana dos guaranis, os jesuítas se situam comoos agentes principais do etnocídio empreendido sobre os nativos sul-americanos. Clastres continua.
Eliminar a força da crença pagã é destruir a substância mesma da sociedade. Aliás, é esse o resultado visado: conduzir o indígena, pelo caminho da verdadeira fé, da selvageria à civilização. O etnocídio é praticado para o bem do selvagem. (CLASTRES, 2004, p.57).
4.3. Estado, genocídio e desumanização dos selvagens
Comprometidos em acertar suas contas particulares, as coroas ibéricas consentiram em trocar suas posses. Territórios espanhóis foram doados aos portugueses, para por fim nos conflitos na demarcação de áreas luso-espanholas. Uma das moedas de troca foi a área das Sete Missões, que abrigava os aldeamentos jesuítas e a pequena comunidade de guaranis e europeus, de caras pálidas e peles vermelhas.
Como vimos, Don Cabeza, ícone da usura portuguesa, mais de uma vez rebaixou os índios a meros animais, desprovidos de dignidade humana. Não por outra razão, todos os índios trazidos a território luso eram escravizados e submetidos a trabalhos e torturas que só se aplicam a animais sem valor doméstico ou de estimação. Não é coincidência que Joffé tenha acentuado a escravidão de indígenas como atributo da coroa portuguesa. Há nisto uma tentativa de salientar a benevolência relativa dos espanhóis e a absoluta malignidade dos portugueses – o que corrobora nossa tese de haver duas concepções ontológicas quanto ao que concerne a humanidade e a capacidade de salvação dos índios guaranis.
Em A Missão, é notório o clima de hostilidade entre os jesuítas espanhóis e mercadores e outros representantes do Estado português. Estes viam aqueles como obstáculo à conquista de novos territórios e ao crescimento de suas riquezas. Há cenas onde a rispidez das relações entre ambas as classes se acentua – como quando Mendoza é forçado a pedir perdão a Don Cabeza, por tê-lo respondido quando este acusou os jesuítas de acobertar animais consigo. Devemos crer que, na realidade, não tenha sido diferente, como bem aponta Rainer Sousa[footnoteRef:13]. [13: SOUSA, Rainer Gonçalves. "Escravidão Indígena"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/escravidao-indigena.htm>. Acesso em 18 de outubro de 2016.] 
Apesar de sua influência e autoridade, muitos padres foram explicitamente afrontados pela ganância de colonos que saiam pelo território em busca de índios. Na maioria das vezes, a escravidão indígena servia como alternativa à falta e o alto custo de uma peça trazida da África. Preferencialmente, os colonos atacavam as populações indígenas ligadas às missões jesuíticas, pois estes já se mostravam habituados à rotina e aos valores da cultura ocidental. (SOUSA, Brasil Escola, 2016).
A relação turbulenta entre colonos e mercadores portugueses e clérigos e missionários espanhóis parece traduzir a oposição dialética entre as duas concepções ontológicas a que aludimos mais acima. Parece haver, nos desencontros entre uns e outros, a marca de um antagonismo secular – os defensores do bom selvagem e os que defendem, ao contrário, o bom civilizado.
5. Os papéis de Igreja e do Estado
As potências coloniais comumente se constituem de dois elementos primordiais, braços do mesmo dominador, a Igreja e o Estado. Até os últimos anos da modernidade, seria impossível pensar um Estado que mantivesse o controle sobre sua população sem o apoio de alguma instituição religiosa. A manutenção da ordem social passava pelo domínio político, mas também pela domesticação da população por meio da religião. É claro que o sentimento religioso, em si, não é necessariamente um meio de amansar as massas para impedi-las de se rebelarem. É evidente que a religião abriga em si sentidos e significados muito mais abrangentes que o uso a ela conferido pelas potências coloniais dos séculos de expansão marítima. Porém, é inegável que o cristianismo serviu como fundamento e justificação da colonização, de maneira que as missões jesuíticas cumpriam a função de inaugurar um domínio religioso comum no território que posteriormente seria dominado política e socialmente. A preocupação das coroas de Espanha e Portugal era, evidentemente, estabelecer a fé cristã como arcabouço religioso, de modo que o imaginário dos sul-americanos fosse cultivado e preparado para receber a vinda dos europeus com aplausos de gratidão. Mas, como já dissemos, dificilmente um Estado estabelece domínio sobre um povo sem contar com o apoio da Igreja ou de outra instituição religiosa com status de autoridade na sociedade. Por isso o imperialismo dos reinos ibéricos se alinhou ao projeto evangelizador da Igreja Católica.
Durante o século XX, é verdade que houve casos expressivos onde o poderio do Estado suprimiu a importância da religião, mas foram Estados totalitários que tentaram substituir a religião pelo culto ao Estado. A União Soviética vetara o culto a Jeová, Alá, Jesus Cristo menos por entendê-los como ópio do povo, e mais para instaurar um novo culto, conveniente ao Estado, aos líderes messiânicos do povo – Lênin e Stálin. Em todo caso, parece haver uma substância de culto necessária à composição do poder político e domínio social dos grandes Estados, que será preenchida pela aclamação religiosa a um ou mais deuses, ou a um ou mais homens. A China maoísta estabelecia, na censura ao cristianismo, um espaço livre para o maoísmo; o ditador Kin Jong-Un proíbe a religião por entendê-la como invasão ocidental à cápsula norte-coreana, mas institui o culto a sua própria imagem – pela segurança nacional, e jamais por narcisismo, essa patologia imunda do ocidente. Clastres nos acompanhará no exame da relação entre Estado e etnocídio.
5.1 O etnocídio imanente ao Estado
Que é o Estado? Em síntese, uma instituição superior de controle e manutenção de determinada sociedade e seus elementos particulares, incluindo sua cultura. O Estado é, por definição, a estância última a que chegamos na análise dos meios de administração do corpo coletivo que constitui a sociedade. Um Estado constituído é uma máquina implacável de dominação política e social – um agente etnocida por excelência, portanto. Não entraremos em discussão quanto aos meios por que se forma um dado poderio estatal, nos limitaremos a analisar o potencial etnocida dos Estados.
Adotaremos uma concepção de Estado bastante simplista, mas será uma opção didática que pouco pretende definir essencialmente esta estância política em si. Nosso modelo exemplar de estado é um Estado comprometido em expandir-se política e socialmente, na medida em que sua escalada megalômana traduz as ambições e os interesses de seus diretores e condutores – no cenário da expansão marítima, as nobrezas tradicionais e a burguesia ascendente. Interesses de cunho mercantil e tradicionalista compõem, portanto, os ideais almejados pelos representantes do Estado – que, segundo Weber, detém o monopólio da violência.
Após defini-lo nos moldes weberianos, poderíamos salientar uma característica importante do Estado, pegando emprestado o que aponta Johnson.
Numa perspectiva de conflito, no entanto, o Estado opera também no interesse dos vários grupos dominantes, como as classes econômicas e grupos raciais e étnicos. (JOHNSON, 2008, p.91)
O Estado quer estabelecer-se como dominante de novos territórios, mas a custo de quê? É possível observarmos uma matriz comum nas potências coloniais – a fortificação da máquina estatal. As coroas ibéricas sentiam – presumivelmente – orgulho em serem proprietárias de boa parte do Novo Mundo, e a glorificação de seus nomes passaria necessariamente pelo estabelecimento de sua cultura em seus novos domínios. Não seria possível um Estado dominador sem uma cultura dominante – como já analisamos antes. Por outro lado, não seria possível estabelecer uma cultura dominante sem a mobilização do aparelho repressivo do Estado. Como se vê, a edificação de uma nova cultura passa pela construção de um novo Estado. Portanto, não é concebível um estado que não recorra ao etnocídio como meio de se impor à sociedade. Isto porque o Estado é um,e apenas um. A bandeira pátria não pode estar colorida senão com as cores e insígnias de um Estado único, que reúna em sua completude os elementos culturais dominantes. Não por acaso, as cores da bandeira brasileira representam as casas reais de nossos ilustres imperadores. Fomos ensinados na infância que o verde-louro representava a riqueza e a exuberância da fauna nacional. Esse aprendizado é reflexo de um processo duradouro de endoculturação, onde absorvemos desde sempre os elementos culturais dominantes – isto é, as cores das famílias reais a que devíamos reverência e respeito.
Concordamos com Clastres, quanto à imanência da prática etnocida no estado. Após dizer que o etnocídio “resulta na dissolução do múltiplo no Um”, isto é, da diversidade na uniformidade, Clastres continua.
O que significa agora o Estado? (...) O Estado se quer e se proclama o centro da sociedade, o todo do corpo social, o mestre absoluto dos diversos órgãos desse corpo. Descobre-se assim, no núcleo mesmo da substância do Estado, a força atuante do Um, a vocação de recusa do múltiplo, o temor e o horror da diferença. (...) a prática etnocida e a máquina estatal funcionam da mesma maneira e produzem os mesmos efeitos: sob as espécies da civilização ocidental ou do Estado, revelam-se sempre a vontade de redução da diferença e da alteridade, o sentido e o gosto do idêntico e do Um. (CLASTRES, 2004, págs. 59 e 60).
Segue-se que o Estado necessita concentrar em si os elementos centrais que nortearão a sociedade, incluindo a cultura. Há uma teia complexa de relações entre o poder constituído na figura do Estado e o corpo coletivo refletido na cultura. É necessária uma relação de submissão deste àquele, para que o poder estatal evolua e cumpra suas metas.
A cada desenvolvimento do poder central corresponde um desdobramento acrescido do mundo cultural. A cultura francesa é uma cultura nacional, uma cultura do francês. A extensão da autoridade do Estado traduz-se no expansionismo da língua do Estado, o francês. A nação pode se dizer constituída, o Estado pode proclamar-se detentor exclusivo do poder, quando as pessoas sobre as quais se exerce a autoridade do Estado falam a mesma língua que ele. Esse processo de integração passa evidentemente pela supressão das diferenças. (CLASTRES, 2004, p. 60).
A supressão das diferenças que permite a estabilização do Estado é o produto final do etnocídio, e conclui-se, por conseguinte, que o etnocídio constitui o próprio modus operandi da formação e da execução do estado. Falando da centralização da república jacobina, Clastres lembra das consequências da consumação prática de um estado forte e centralista, na França revolucionária do século XVIII. Os jacobinos instituíram a escola pública e leiga para todos, de onde emergiu um conhecimento formal composto por uma linguagem única. Os que não se enquadravam no modelo ensinado, isto é, os que não entendiam o saber formal e a linguagem específica querida pelo Estado francês, foram excluídos da consideração social.
Com isso sucumbiu o que subsistia de existência autônoma no mundo provincial e rural. A francização estava completa, o etnocídio consumado: línguas tradicionais enxotadas enquanto dialetos de indivíduos atrasados, vida aldeã rebaixada à condição de espetáculo folclórico destinado ao consumo de turistas etc. (CLASTRES, 2004, p.61).
Em A Missão, os estados português, e parte do espanhol, consideravam os indígenas como bestas, animais desprovidos de importância. Conforme já dissemos, a tríplice classificação dos guaranis como animais selvagens e maus se relaciona com a mentalidade mercantil dos portugueses. Os interesses estritamente capitalistas de Portugal moveram os portugueses no sentido de escravizar os indígenas e espoliar suas riquezas.
Convém refletir sobre a vocação dos estados ocidentais em protagonizar prodígios de etnocídio e destruição em massa. Como já vimos, o etnocentrismo é fenômeno comum às sociedades, em geral. Segue-se que o etnocídio está presente mesmo em estados não-ocidentais, como o governo dos Incas[footnoteRef:14]. Mas parece haver uma escala que compreende níveis de intensidade na prática etnocida, e na atuação mesma de diversos Estados em se expandirem como entes dominantes. Nesta escala, o potencial etnocida é medido pelos recursos tecnológicos e suas respectivas capacidades destrutivas, e pelos interesses por que se orientam as sociedades. Portanto, um Estado, etnocida por definição, atinge mais ou menos alcance em sua prática etnocida, conforme o aparelhamento de que dispõe e os interesses por que se organizam. Nesta fórmula, Clastres indicará por que os estados ocidentais são notadamente primores de etnocidas – pelo regime capitalista e seu trajeto interminável em direção à satisfação de seus desejos. [14: CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. Cosac Naify. 2004, p. 62.] 
É exatamente por isso que ela (sociedade ocidental) pode conduzir ao genocídio e que se pode falar do mundo ocidental, de fato, como absolutamente etnocida. Mas de onde provém isso? O que a civilização ocidental contém que a torna infinitamente mais etnocida que qualquer outra forma de sociedade? É seu regime de produção econômica, espaço justamente do ilimitado, espaço sem lugares por ser recuo constante do limite, espaço infinito da fuga permanente para diante. O que diferencia o Ocidente é o capitalismo, enquanto impossibilidade de permanecer no aquém de uma fronteira, enquanto passagem para além de toda fronteira; é o capitalismo como sistema de produção para o qual nada é impossível, exceto não ser para si mesmo seu próprio fim: seja ele, aliás, liberal, privado, como na Europa ocidental, ou planificado, de Estado, como na Europa oriental. A sociedade industrial, a mais formidável máquina de produzir, é por isso mesmo a mais terrível máquina de destruir. Raças, sociedades, indivíduos; espaço, natureza, mares, florestas, subsolo: tudo é útil, tudo deve ser utilizado, tudo deve ser produtivo; de uma produtividade levada a seu regime máximo de intensidade. (CLASTRES, 2004, p. 62).
Em A Missão podemos ver claramente a sujeição de toda a composição da paisagem ao interesse capitalista de produzir, vender e consumir. A própria assinatura do Tratado de Madrid obedece às máximas capitalistas, e circula na esfera da diplomacia mercantil – aquela que encerra em seus negócios e acordos toda uma complexidade de trabalho e produção. A entrega da região das Sete Missões, como vimos, ocasionou as guerras guaraníticas e sepultaram inumeráveis nativos e europeus. É desse conflito surgido em cima de uma mesa de negociações, da supressão imperiosa dos obstáculos ao lucro e ao progresso do Estado, é desse espetáculo grotesco que sujeita vidas e culturas ao peso da moeda que fala Clastres, e que ilustra Roland Joffé em A Missão.
Clastres prossegue e nos sugere por que a sociedade comunitária dos guaranis tanto incomodou os europeus, sobretudo os portugueses – caricaturados como mercenários emblemáticos da ganância capitalista.
Eis por que nenhum descanso podia ser dado às sociedades que abandonavam o mundo à sua tranquila improdutividade originária; eis por que era intolerável, aos olhos do Ocidente, o desperdício representado pela não exploração econômica de imensos recursos. A escolha deixada a essas sociedades era um dilema: ou ceder à produção ou desaparecer; ou o etnocídio ou o genocídio. (CLASTRES, 2004, p. 63).
Concluímos que o etnocídio, como prática de substituição etnocêntrica de uma cultura por outra, é a ação estatal por excelência. Toda a trama tecida por Joffé nos demonstra esta capacidade etnocida e destrutiva de que é dotado o Estado ocidental, munido do gigantismo de seus recursos tecnológicos e políticos, do repertório de invectivas chanceladas pela autoridade dos governantes, das classes dominantes interessadas na exploração de riquezas como um fetichismo sádico e mórbido.
5.2. O etnocídio nas missões jesuíticas
Tendo ficado claro o papel domesticador desempenhado pelos jesuítas em A Missão, convém refletirmos um pouco a respeitoda perspectiva que os próprios missionários tiveram de si, no filme de Joffé e na realidade, em geral. Uma sensação de cumprimento do dever evangelizador parece inspirar os padres de A Missão, e insuflado de coragem e determinação os primeiros religiosos enviados ao Brasil, em particular.
Falemos primeiro do que se observa no filme. Os jesuítas foram enviados ao sul do continente recém-descoberto para dar prosseguimento ao processo de colonização – pela via religiosa que compreende aquela substância de culto de que falamos anteriormente. A necessidade de se edificar uma capela, logo ao início do contato dos jesuítas com os guaranis, expressa bem a purificação religiosa feita sobre o novo território. O enredo, com enfoque nas atitudes de Pe. Gabriel e Rodrigo Mendoza, nos evidencia a paixão pelo evangelho cristão e todas as agruras suportadas em sua decorrência. Em A Missão, todos são cristãos, mas apenas os protagonistas são religiosos. A observância meticulosa das leis bíblicas e dos dogmas e das liturgias católicas está representada na figura de Padre Gabriel. Fica representada, por outro lado, em Rodrigo Mendoza, a faculdade regenerativa da fé cristã. Ambos desempenham funções específicas na cenografia montada por Joffé, e encarnam a fé cristã nas raízes do indivíduo, e a mesma fé descendo pouco a pouco às profundezas do ser humano. 
Apaixonados pela fé cristã e empenhados em evangelizar os guaranis por vias pacíficas e caridosas, os jesuítas não deixam de ser etnocidas. A boa-vontade que os estimula a manter vínculos afetivos e relações amistosas com os guaranis não vale, a rigor, todo o etnocídio com que contribuem. Ao fim do filme, um espetáculo dramático se encena, e a capela construída pelos próprios guaranis é derrubada em suas bases, incendiada pelas flechas dardejantes dos portugueses que vinham dar fim aos aldeamentos jesuíticos. O romantismo de Joffé não esconde que, antes mesmo da queda em chamas da capela, antes de Padre Gabriel tombar ao chão, levando consigo a cruz de Cristo, morto com um tiro no peito esquerdo, antes da derrocada dos jesuítas, houve outra queda, mais trágica quanto mais irreversível – o sepultamento da cultura guarani, a morte do espírito de um povo, nas palavras de Clastres.[footnoteRef:15] A Missão nos oferta com missionários altruístas e filantropos que reconhecem em sua prática etnocida a glorificação de seu deus e a salvação definitiva de um povo perdido no paganismo e na selvageria. Todos etnocidas involuntários, talvez. [15: “Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito.” – CLASTRES, Pierre. 2004, p. 56] 
Quando deixamos a seara da ficção, percebemos que a realidade brasileira também foi marcada pela oposição entre o etnocídio ingênuo dos jesuítas e a ganância etnocida dos membros do Estado. No Brasil, o antagonismo entre jesuítas e bandeirantes rendeu diversos conflitos que se traduziam, talvez, pela oposição entre as duas concepções ontológicas sobre os indígenas. Estes viam os índios como humanos bons e perfectíveis; aqueles, como animais selvagens e maus.
Sobre os aldeamentos jesuíticos no Brasil, vejamos como era a relação de mútua troca entre nativos e europeus[footnoteRef:16]. [16: SOUSA, Rainer Gonçalves. "Jesuítas x Bandeirantes"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/jesuitas-x-bandeirantes.htm>. Acesso em 18 de outubro de 2016.] 
Em sua trajetória, as missões jesuíticas encamparam uma grande população de indígenas que ganhava educação religiosa em troca de uma rotina de serviços voltados à manutenção desses próprios locais. Com o passar do tempo, algumas dessas propriedades clericais passaram a integrar a economia interna da colônia com o desenvolvimento da agropecuária e de outras atividades de extrativismo. Dessa forma, conciliavam uma dupla função religiosa e econômica. (SOUSA, Brasil Escola).
Aconteceu, entretanto, de haver falta de escravos africanos nas regiões do litoral brasileiro. Insatisfeitos com a carência de trabalhadores negros, os colonos se viram auxiliados pelos bandeirantes, que entravam mata adentro à procura de nativos para apresá-los e enviar aos colonos do litoral. De fato, as caçadas aos indígenas rendeu aos bandeirantes lucro. Porém, com a resistência dos nativos e com as crescentes dificuldades de capturá-los, os bandeiras se decidiram por apresar os nativos abrigados nos aldeamentos dos jesuítas. Como assinala Rainer Sousa, a relação entre jesuítas e bandeirantes tornou-se turbulenta e sacudiu a administração da metrópole.
Com isso, a rivalidade entre bandeirantes e jesuítas marcou uma das mais acirradas disputas entre os séculos XVII e XVIII. Vez após outra, ambos os lados recorriam à Coroa Portuguesa para resolver essa rotineira contenda. Por um lado, os colonizadores reclamavam da falta de suporte da própria administração colonial. Por outro, os jesuítas apelavam para a influência da Igreja junto ao Estado para denunciarem as terríveis agressões dos bandeirantes. (SOUSA, Brasil Escola).
Cumpre lembrar que, após tantos atritos, o Marquês de Pombal determinou a saída imediata dos jesuítas das terras brasileiras, e o fim da escravidão indígena. Pelo visto, ao fim e ao cabo, prevaleceu o poderio estatal que, em amor ao engrandecimento do próprio patrimônio, supera em larga escala o amor dos jesuítas pelo evangelho. Em todo caso, podemos perceber que o etnocídio é o vínculo mais preciso e nítido entre os braços do Estado e as cruzes da Igreja.
6. Conclusão
A Missão pretende narrar os conflitos travados durante a guerra guaranítica, ocorrida na área que hoje compreende o atual estado brasileiro do Rio Grande do Sul e parte do norte uruguaio. Como se sabe, os conflitos resultarem em massacre sobre os guaranis e sua cultura. Sepultaram-se na guerra guaranítica um povo e uma cultura guaranis – “o corpo e o espírito”, nos termos de Clastres. Saíram vitoriosos da guerra os europeus, as armas, a ganância, a barbárie. 
Um episódio dramático não poderia ser retratado nas telas senão com dramaticidade e romantismo. O primeiro convém à formulação artística da história que se pretende narrar; o segundo convém ao alívio da consciência europeia que precisava ver no cinema a purificação ética dos jesuítas, ao menos. Não por outra razão, o filme é tecido em trilha sonora heroica para saudar os missionários da Igreja, além de ribombos bélicos para assinalar a chegada das tropas portuguesas. 
A adoção do teor musical é seletiva, porque interessa à produção do filme selecionar quem será tomado como vilão e quem será tomado como mocinho. No filme de Joffé, o mocinho é a figura de padre Gabriel e seus companheiros, a todo instante retratados como heróis abnegados em favor da religião – coisa bem mais nobre que a mesquinharia dos portugueses. Fica-se tentado a acreditar na complacência de Morricone com tudo o que sucedeu aos nativos sul-americanos. Fato é que sua trilha sonora tanto mostra uma preciosa composição artística, quanto oculta uma hecatombe dissonante de guaranis.
O filme marca com clareza os limites de atuação e associação entre a Igreja e o Estado – duas instituições sociais marcantes em todo o processo de colonização do Novo Mundo. Viu-se que às duas instituições correspondem concepções diferentes do que é realmente valioso na expansão colonial – a destruição genocida ou a dominação etnocida. Porém, é possível perceber que as ações do estado e da igreja se diferenciam axiológica e idealmente, mas constroem juntos a destruição e a dominação, os mesmos fenômenos de etnocídio e de genocídio. Ou seja, suas práticas se orientam por significados distintos, e entretanto apontam no mesmo sentido – o estabelecimento de cultura e estado superiores aos que se encontravam antes.
Com base no texto Sobre o etnocídio, de Pierre Clastres, fizemos uma breve análise dos papéis do estado e da igreja, da política econômica e da religião, durante o processo civilizatório dos guaranis. Clastres observa que o regime capitalista, de cunho liberal ou estatal, tem como máximaa produção e o consumo ininterruptos, aonde houver como e o que produzir, e existir quem e o que consumir. Pudemos articular uma investigação breve no sentido de entender a peculiaridade dos estados ocidentais, dotados de governo e capitalismo, que os diferencia dos governos de sociedades primitivas. Conclui-se que o etnocentrismo é um fenômeno psicológico com ressonâncias sociológicas, e que pode ser alimentado pelos interesses econômicos dominantes nas sociedades. Talvez por isso, guaranis e outros indígenas teriam se perguntado qual a origem e a diferença entre eles e os homens brancos, e calculado a extensão de sua superioridade. Porém, nem guaranis, nem Incas, por mais desenvolvidos que estivessem tecnológica e socialmente, teriam se lançado ao mar à procura de novos territórios onde plantarem suas bandeiras e afixarem seus nomes, seus costumes e sua cultura.
Discutindo com Lévi-Strauss e Allan G. Johnson, refletimos sobre o etnocentrismo. Foi notável como toda a expansão marítima se deu por premissas etnocêntricas, e como em todos os momentos das grandes navegações e dos contatos entre europeus e nativos cultivou-se a certeza da superioridade de um povo sobre outro. Devido esta certeza, e só por meio dela, foi possível aos brancos civilizados se permitir a assassinar em massa os selvagens, notadamente inferiores e destinados à servidão ou à sepultura.
Finalmente, vimos que a filantropia clerical desenhada por Roland Joffé não se isenta de contribuir aos genocídios e aos numerosos etnocídios sobre as tribos guaranis. Durante todo o filme é enviado ao espectador a mensagem da inocência dos padres jesuítas na colonização. Atribuímos a esta construção da inocência da Igreja a intenção de aliviar o peso das imagens europeias durante a idade média e a modernidade. A Missão é um grande conforto estético na cabeça pesarosa da Europa colonizadora.
Bibliografia
1. CLASTRES, Pierre. Arqueologia da violência. Cosac Naify. 2004, Rio de Janeiro.
2. LÉVI-STRAUSS, Claude. Raça e História. Disponível no endereço eletrônico – https://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/965742/mod_resource/content/1/Ra%C3%A7a-e-Hist%C3%B3ria-L%C3%A9vi-Strauss.pdf
3. SOUSA, Rainer Gonçalves. "Tratado de Madri"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/tratado-madri.htm>. Acesso em 15 de outubro de 2016.
4. __________. "Escravidão Indígena"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/escravidao-indigena.htm>. Acesso em 18 de outubro de 2016.
5. __________. "Jesuítas x Bandeirantes"; Brasil Escola. Disponível em <http://brasilescola.uol.com.br/historiab/jesuitas-x-bandeirantes.htm>. Acesso em 18 de outubro de 2016.
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6. ARENDT, Hannah. A condição humana. Forense universitária. 2007.
7. JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia. Zahar, 2008, Rio de Janeiro.
8. Deutsche Welle. “Ao tentar aterrorizar cristãos, EI tenta fomentar guerra ao Ocidente”. Acessado em 18 de outubro de 2016. Disponível em http://www.dw.com/pt-br/ao-aterrorizar-crist%C3%A3os-ei-tenta-fomentar-guerra-ao-ocidente/a-18284995

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