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Análise processual da minissérie Olhos que Condenam (Netflix) e a Implementação plea bargain no sistema processual penal brasileiro Bruna Saraiva da Rocha 1 Este estudo tem como objetivo o estudo dos diferentes instrumentos jurídicos utilizados no processo penal da minissérie “Olhos que Condenam” da plataforma de streaming Netflix, entre os apresentados estão a delação premiada e o acordo de persecução penal e o plea bargain , assim como uma análise a implementação deste no Brasil. Além disso, pretende-se apresentar uma análise crítica das possibilidades que poderiam ter sido utilizadas no caso concreto da série documental, juntamente com uma possível defesa sob a visão processual penal brasileira. DA DELAÇÃO PREMIADA A delação premiada é conceituada como uma técnica de investigação utilizada de forma que o acusado presta informações relevantes às autoridades em troca de um benefício (um prêmio), podendo ser oferecida ao acusado tanto pelo Delegado de Polícia durante a fase investigativa, inquérito policial, quanto pelo Promotor de Justiça na fase judicial. Os benefícios mais interessantes aos “delatores” seriam: a alteração do regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade para um menos rigoroso, a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou até mesmo o perdão judicial a depender do caso (o crime e a colaboração feita). Uma característica da delação premiada é que ela não depende de uma confissão judicial, como a plea bargain , e sim de uma dos resultados que as informações prestadas pelo acusado obtiveram, ou seja, depende da efetividade da colaboração. 1 Bacharela em Direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP). 2 “Colaboração premiada” seria o nome mais preciso a ser utilizado, uma vez que nem sempre a troca por um benefício exigirá uma delação, podendo ser em relação a identificação das pessoas relacionadas com o crime, os delitos praticados, a estrutura e funcionamento da organização criminosa, a prevenção de novas infrações penais, a eventual localização da vítima ou até a recuperação total ou parcial do produto resultante dos crimes, conforme o art. 4º da Lei n. 12.850 /2013: Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I - a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II - a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III - a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV - a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V - a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. Na colaboração premiada, o juiz não participa das negociações, este apenas homologa o acordo realizado entre as partes, verificando sua regularidade, legalidade e voluntariedade, contudo é este quem analisa a eficiência ou não da colaboração na sentença. Dessa maneira, percebe-se diferenças nítidas entre a plea bargain e a delação premiada, enquanto essa foca na confissão judicial, esta abrange para os efeitos das informações prestadas; enquanto em uma o juiz aparece apenas sob um papel passivo, em outro o juiz tem influência ao analisar a efetividade da colaboração em sede de sentença; além, enquanto em uma o acusado tem pleno conhecimento de que benefícios ganhará com a confissão, em outra existe uma dúvida que só pode ser sanada depois da análise da relevância das informações prestadas. http://www.jusbrasil.com.br/topicos/26893103/artigo-4-da-lei-n-12850-de-02-de-agosto-de-2013 http://www.jusbrasil.com.br/topicos/26893103/artigo-4-da-lei-n-12850-de-02-de-agosto-de-2013 http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/1035673/lei-12850-13 http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/1035673/lei-12850-13 3 DO ACORDO DE NÃO PERSECUÇÃO PENAL O acordo de não persecução penal trata de acordos feitos entre o Ministério Público e o acusado para que não seja ajuizada a ação penal contra o autor do delito. Este acordo está previsto no art. 28-A do CPP após aprovação da legislação penal “pacote anticrime”. Entretanto, diferentemente dos acordos antes mencionados, este exige diversos requisitos a serem obrigatoriamente seguidos. a) Primeiramente, o caso deve ser passível de arquivamento; b) A pena mínima cominada deve ser inferior a 4 anos; c) O crime não ter sido cometido mediante violência ou grave ameaça; d) O investigado confessar ser autor do crime; e) O dano causado inferior a 20 salários mínimos; f) O investigado não corra em nenhuma hipóteses previstas no art. 76, § 2º, da Lei 9.099/95/95 (Lei dos Juizados Especiais) § 2º Não se admitirá a proposta se ficar comprovado: I - ter sido o autor da infração condenado, pela prática de crime, à pena privativa de liberdade, por sentença definitiva; II - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, pela aplicação de pena restritiva ou multa, nos termos deste artigo; III - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida. g) Ser o acusado réu primário. 4 Respeitados os requisitos para a propositura do acordo o réu deverá cumprir uma série de condições impostas a ele, previstas em lei de maneira cumulativa ou alternativa, sendo as possibilidades: I – reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo; (Redação dada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018) II – renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; (Redação dada pela Resoluçãon° 183, de 24 de janeiro de 2018) III – prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público; (Redação dada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018) IV – pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; (Redação dada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018) V – cumprir outra condição estipulada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal aparentemente praticada. (Redação dada pela Resolução n° 183, de 24 de janeiro de 2018). Além disso, um diferencial é que o aguardo para o cumprimento do acordo pode acarretar a prescrição da pretensão punitiva estatal. DA PLEA BARGAIN Por fim, a plea bargain , substancialmente, é um instituto de origem no sistema common law (sistema de decisões apresentadas por tribunais e não por meio do legislativo ou executivo, como por exemplo os Estados Unidos). Baseia-se em uma negociação entre a acusação, o representante do Ministério Público, e o acusado, o réu do caso concreto. Neste acordo, o acusado deve se declara culpado das 5 acusações, todas ou algumas, em troca de uma atenuação na quantidade de acusações ou na gravidade destas, uma redução da pena recomendada ou até mesmo deixar de ser acusado formalmente pelo Ministério público. Existem 4 tipos plea bargain, sendo estes: a) Charge bargaining : uma negociação em que é acordado a redução da acusação mais grave original para uma menos grave em troca de uma confissão judicial do réu; b) Count bargaining : uma negociação acerca da quantidade de acusações que podem ser algumas retiradas em troca de uma confissão judicial; c) Fact bargaining : uma negociação sobre os fatos. Uma característica do plea bargain é que trata-se de uma negociação feita exclusivamente entre as partes, ou seja, entre o Ministério Público e o acusado. O juiz apenas estabelece se o acordo realizado é de interesse da justiça e se conserva determinados direitos legais do acusado, exercendo um papel mais passivo. Além, nas negociações desta espécie o acusado sabe exatamente o que esperar realizado o acordo, ao oferecer sua confissão, tem conhecimento como será beneficiado e dos direitos, inclusive constitucionais, que está abrindo mão como: a) Direito a um julgamento realizado pelo tribunal do júri; b) Direito a um advogado; c) Direito de conhecer e se defender das acusações e provas formuladas contra ele; d) Direito da não autoincriminação. 6 A plea bargain , utilizada nos EUA, é alvo opiniões divergentes quanto a sua eficácia e sua responsabilidade coma verdadeira justiça. Os pontos positivos da plea bargain , seriam a garantia da condenação – o que evita altos custos estatais com a realização de julgamentos juntamente com a diminuição de quantia de casos no sistema judiciário -, além de evitar um constrangimento para o réu ao assar por um julgamento, não precisar arcar com todas as inúmeras despesas do processo e claro uma pena considerada mais leve para o delito cometido, além do esvaziamento das prisões. Sendo seguidos os procedimentos formais e garantida a espontaneidade do réu (não havendo coerção), muitos doutrinadores acreditam defendem este instrumento da justiça norte-americana. Entretanto, existem os pontos ruins, como citado anteriormente, o acusado ao aceitar o acordo abre mão de vários direitos e garantias fundamentais estabelecidas constitucionalmente, principalmente quanto ao direito a um julgamento realizado pelo tribunal do júri; o direito de conhecer e se defender das acusações e provas formuladas contra ele (ampla defesa e contraditório) e ao direito da não autoincriminação. Além, os doutrinadores que defendem sua não utilização, apresentam a possibilidade de um acusado por pressão, medo ou coerção aceitar um acordo por um crime que não cometeu ou se cometeu, um mais grave do que cometido. Apresentados os pontos positivos e negativos do objeto em questão ainda existiriam mais pontos contra sua utilização no Brasil, visto que os ordenamentos jurídicos desses dois países tem diferenças significativas quanto ao tema. Primeiramente, no Brasil, o cargo de promotor é assumido mediante concurso público, não havendo pressão popular sobre estes. Já nos Estados Unidos, os promotores são eleitos através do voto popular, o que garante um maior controle da sociedade em relação aos atos praticados. Aqui, dar um poder tão grande a pessoas que não precisam se preocupar com a vontade do povo brasileiro seria irresponsável. 7 Além, o Ministério Público, já é detentor de um enorme poder no Brasil, sendo ele formulador e executor de políticas criminais, caso o plea bargain fosse implementado no Brasil, esse tornar-se-ia um órgão com poderes quase ilimitados dentro da política e do judiciário. Assim, o funcionamento do sistema judiciário brasileiro teria que se modificar significativamente para que pudesse seria implementado tal instrumento de justiça, havendo ainda discrepâncias. Contudo, mesmo que fossem realizadas todas as mudanças necessárias, o Brasil tem um diferencial enorme quanto comparado com os Estados Unidos, a desconfiança do povo quanto a impunidade de muitos políticos, a quantidade de corrupção encrustada em todas as áreas do país, logo toda a sociedade desconfiança de todas as decisões, ainda mais em um sistema em que o povo não tem controle sobre. DA FORMALIZAÇÃO DE ACORDO COM ÓRGÃO ACUSADOR NA SÉRIE DOCUMENTAL Devido a questão racial e socioeconômica do caso seria interessante aceitar um acordo com o órgão acusador. O historiador francês François Durpaire, especialista em Estados Unidos, divulgou emseu estudo que "há o fator do racismo da polícia: isso está enraizado na história americana. Para o mesmo tipo de delito ou abordagem policial, se a pessoa é negra, maior é o risco que a situação saia de controle”. Assim, existe uma desigualdade, enfrentada pelas comunidades negras, na relação com a polícia e inclusive com a Justiça. Além da questão racial, a considerada "classe baixa" tem menor acesso à justiça e bons advogados, dessa forma sua defesa fica prejudicada. Um estudo da Proceedings of the National Academy of Sciences afirmou que pelo menos 4,1% dos condenados à morte nos EUA são inocentes, ou seja, de 1 a cada 25 pessoas 8 condenadas são inocentes. Contudo, não é preciso um estudo aprofundado na época para saber como funcionava. Desde 1989, mais de 2 mil inocentes foram condenados, roubando um total de 20 mil anos de pessoas inocentes. Das pessoas inocentadas, 81% foram condenadas por tribunais do júri, sendo 47% destes, negros e 11%, hispano-descendentes. Para haver a certeza da condenação, a promotoria, com únicos e exclusivos motivos políticos muitas vezes, apresenta um acordo razoável. A retirada de certas acusações ou uma menor penalidade quanto ao crime mais grave não é aceito pelos réus por ser uma boa oportunidade, mas sim pelo medo de ser pior continuar com o julgamento. Contudo, não é preciso um estudo aprofundado na época para saber como funcionava. A sociedade que viveu nesta época sabia da injustiça que acontecia, apenas não havia estudo e discussão sobre. Com a enorme quantidade de questões sociais a favor da condenação dos réus seria uma opção a ser melhor avaliada dependendo dos benefícios do acordo. Infelizmente, na minissérie não é apresentado o conteúdo do acordo oferecido pela promotoria, não podendo ser tomada uma decisão concreta sem saber o interior do acordo. DA POSSÍVEL DEFESA SOB A LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Na posição de advogada de defesa seguiria a mesma linha de defesa utilizada pelos defensores dos réus. Mesmo com a questão racial, socioeconômica e a expectativa de grande parte da sociedade em ver estupradores condenados usufruiria dos argumentos lógicos para o convencimento do júri. 9 Primeiramente, faria uma análise dos jurados. O júri era formado por 4 pessoas negras/mulatas, 2 asiáticas e 4 brancas, entre elas 9 homens e 3 mulheres. Pessoas negras tendem, motivadamente, a não acreditar na justiça americana e principalmente duvidam muitas vezes do trabalho da polícia. Mulheres geralmente são mais racionais em tribunais do júri, contudo, este crime poderia dividi-las emocionalmente, pois trata-se de um crime cometido contra uma pessoa do gênero feminino, entretanto os réus são consideradas crianças podendo instituir um instinto materno nelas. Os homens tendem a utilizar de forma mais comum a existência ou inexistência de provas (materialidade e autoria) para criar suas opiniões. Uma vez que na época, nos EUA, era obrigatório a unanimidade do veredicto, pode-se dizer que poderia se de uma “luta no tribunal” justa, sem uma condenação certa e já formada. A melhor linha de defesa seria: (i) demonstrar a ausência de autoria; (ii) desmascarar a duvidosa investigação realizada e, por fim (iii) infiltrar outro suspeito. Ao analisar o caso, percebe-se que há materialidade, contudo não há provas que demonstrem a autoria. Os peritos e laudos técnicos alegaram que mediante as informações obtidas não era possível colocar os réus no local do crime, pela falta de sangue nas roupas dos réus (visto que a vítima perdeu muito sangue), ou terra/lama, ainda havendo sêmen no local que não bate com nenhum dos suspeitos. Além disso, os rastros no local demonstraram a atividade de uma única pessoa, não um grupo. A vítima não foi capaz de reconhecer seu agressor. As testemunhas não reconheceram os réus, a primeira apenas descreveu “vários negros” e a segunda informou não ser nenhum deles seus agressores. Assim, comprovada racionalmente a inocência dos réus. Posteriormente, é de extrema importância demonstrar que a investigação foi feita “do final para o início”, ou seja, escolheram os suspeitos e ligaram as histórias até fazer sentido, sendo o correto analisar os fatos, ligarem e encontrarem os possíveis suspeitos. Por meio das declarações contraditórias dos policiais, da inexistência de racionalidade ao “escolherem” exatamente aqueles jovens. Além, para ativar o lado emocional, além de demonstrar a ilegal, dever-se-ia expor muito bem a falta dos pais nos longos e cruéis interrogatórios realizados contra crianças, além de promessas falsas e vazias da polícia. Por fim, um especialista deveria ser 10 intimado para relatar a linguagem corporal dos réus em suas declarações gravadas, uma vez comprovado que a linguagem corporal expressa mais a verdade do que as palavras, o que demonstraria a coerção sofrida, e ainda policiais para descrever pormenorizadamente os cruéis interrogatórios; transformando réus em vítimas. Logo, abriria um espaço para a dúvida quanto ao trabalho realizado nas investigações como um total. Por fim, seria interessante, não apenas demonstrar a inocência dos réus, mas contar a história do real culpado. O tribunal do júri é conhecido por ser na realidade um palco, onde ganha quem conta a melhor história e de que maneira. Além de demonstrada a inocência dos réus e da investigação duvidosa, é preciso entregar uma história bem elaborada para os jurados. Por meio de provas e utilizando o emocional dos jurados: “um homem (que deixou sêmen no local), agindo sozinho (devido às marcas no chão), cometeu o esse terrível crime contra uma mulher, e ainda, de maneira covarde está colocando a culpa nestas crianças aqui presentes.” Logo, por meio de provas que demonstravam a inocência dos réus, criada uma dúvida quanto a investigação e dada uma história bem contada para os jurados, o mais provável seria os réus serem considerados inocentes, mesmo com as questões raciais, socioeconômicas e até mesmo políticas. A luz do ordenamentojurídico brasileiro, o juiz deveria declarar a impronunciar os acusados por falta de existência de indícios suficientes de autoria ou participação, conforme o art. 413 CPP, ou absolvê-los sumariamente por não ter sido provado serem eles os autores ou partícipes do fato, conforme art. 415 do CPP. .
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