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PARA ALÉM DOS TRILHOS: A REPRESENTAÇÃO DA FERROVIA EM SERGIPE (1915-1918) Autor: Bruno de Abreu Oliveira 1 Orientador: Prof. Dr. Claudefranklin Monteiro Santos (DHI/UFS) RESUMO A proposta desse trabalho é dissertar sobre a implantação da malha ferroviárias do Estado de Sergipe, durante o início do XX, relacionando as perspectivas políticas, econômicas e culturais que levaram às discussões sobre o simbolismo das linhas ferroviárias no imaginário sergipano. O presente estudo objetiva conhecer os discursos e o contexto histórico no processo de implantação das malhas ferroviárias e, também, entender como esses aspectos se relacionavam com o ideário progressista e desenvolvimentista corporificado em nosso objeto, as ferrovias sergipanas. As ferrovias é tema de análise de diversas pesquisas em diferentes campos científicos. Sob a visão da historiografia as linhas férreas sergipanas transpuseram diversas barreiras até conseguir, de fato, ser concretizada. Esta pesquisa visa expor o imaginário de modernização, dos representantes do grande poder político sergipano, como legitimador para os benefícios exigidos, no caso a construção da ferrovia. Mais uma vez, pretende-se contribuir nos estudos historiográficos acerca das ferrovias em Sergipe. Palavras-chave: Sergipe; Ferrovias; Trem; Progresso; Modernização. INTRODUÇÃO O fim do século XIX e início do XX colocaram a economia nacional frente ao desenvolvimento das superpotências europeias. Com isso, o Brasil, que havia poucos anos da saída do modo de produção escravista, precisava tornar-se um país atrelado ao sistema de produção mundial. Contudo, primeiro seria necessário desenvolver internamente. Um grande empecilho ao progresso brasileiro era a falta de meios de transportes eficientes que permitissem a ligação tanto com o mercado internacional, quanto com o nacional. Para atender a demanda de uma inteiração do mercado produtor brasileiro tomou-se como alternativa mais viável o sistema das ferrovias. Por isso, ainda no fim do século XIX, Sergipe vislumbra a construção da malha ferroviária capaz de beneficiar a si próprio e, também, a região Nordeste. O ideal seria um projeto ferroviário que cortasse o Estado de norte a sul e leste a oeste. Todavia as tentativas de aprovação do ―sonho sergipano‖ tornaram- 1 Mestrando acadêmico (PROHIS/UFS) e Graduado em História (UFS). brunoabreuufs@gmail.com. mailto:brunoabreuufs@gmail.com 2 se infrutíferas, há uma série de estudos historiográficos que apontam essas tentativas fracassadas. Fracassos e mais fracassos, esse foi o resultado das tentativas de implantação ferroviária em Sergipe, no século XIX. Entretanto, o que irá interessar nesse trabalho é a ferrovia de fato e, para isso, o início do século XX será o marco temporal a ser trabalhado. Esse recorte temporal ater-se-á entre os anos 1915 e 1918. O primeiro marca a inauguração do sistema ferroviário nas terras sergipanas. Já o segundo seria um ano em que a ferrovia encontrava-se consolidada e conhecida por boa parte da sociedade da época. Tomando conhecimento de que a implantação da rede ferroviária influenciou em vários outros fatores que extrapolam a função pragmática, é objetivado nesse artigo traçar análises para uma melhor compreensão sobre o que a ferrovia representou, inicialmente, para o povo sergipano. É necessário ver como a chegada do trem foi recebida pelos sergipanos, a fim de entender os outros aspectos que a ferrovia traz consigo. Para analisar todos esses aspectos que vão além da praticidade das ferrovias será imprescindível adentrar nos aportes teóricos e conceituais de alguns autores estudados durante a disciplina ―Cultura, Sociedade e Poder‖, do Programa de Pós-Graduação em História (PROHIS) da Universidade Federal de Sergipe (UFS). No que se refere ao referencial teórico, que irá permear todo o artigo, será adotado Roger Chartier. Desse faremos uso do conceito ―Representação‖ e também o de ―Prática‖, no sentido de emprego da ―utensilagem mental‖ da época naquele local. Porém, para poder abordar todas as questões, também será necessário o uso de alguns conceitos de outros autores. Todavia, nesse caso, será de forma mais superficial e em pontos específicos. Por exemplo: a questão do progresso e da tendência civilizadora (de Nobert Elias), o intercâmbio cultural (de Braudel) entre as diferentes classes em um mesmo campo, os conceitos de cultura e subcultura (presente na obra de Márcia Abreu) ou ainda ao falar do poder simbólico imprimido pelas ferrovias (utilizando Pierre Bourdieu), dentre outros. O desenvolvimento do objeto se debruça através de fontes como as Mensagens de Presidentes de Estado e, juntamente a essas, textos jornalísticos que circulavam em Sergipe durante o processo de engatinhar das ferrovias no solo sergipano. Assim, faremos uso do processo metodológico de revisão bibliográfica acerca da temática e de leitura de documentos pertencentes ao período em evidência. Sobre o processo de revisão bibliográfica é importante ressaltar alguns estudos que versam sobre as ferrovias em Sergipe. O primeiro é um capítulo do livro Sergipe 3 Fundamentos de uma economia dependente, de Maria da Glória Santana de Almeida, que seria um trabalho inaugural a tocar no tema ferrovias em Sergipe, mesmo que seja bastante superficial. Outro trabalho que merece destaque, por ser pioneiro em trazer a ferrovia de forma específica, é a monografia de Dayse Lima de Menezes. Este traça os primeiros passos para a chegada dos trilhos em solo sergipano. A estrutura desse artigo será distribuída em dois tópicos. O primeiro irá permear os discursos de progresso acerca do pontapé inicial das ferrovias em Sergipe, observando a questão da representação desse ideal nos momentos das inaugurações dos trechos de linhas férreas. Em um segundo momento, vamos analisar a ferrovia na prática e o que, de fato, ela estava se tornando no imaginário dos sergipanos. Para isso será necessário o uso de fontes como jornais da época e o conteúdo presente nas Mensagens de Governo. Dessa forma, o trabalho visa contribuir para a disciplina ―Sociedade, Cultura e Poder‖, mas, principalmente, para as pesquisas acerca do tema ―Ferrovia‖. A INAUGURAÇÃO DO PROGRESSO O alvorecer do século XX traz consigo uma variedade de inovações para Sergipe, onde os discursos progressistas permeavam a sociedade da época. Houve uma forte tendência civilizadora que influenciava desde os costumes e práticas cotidianas até nos modelos arquitetônicos. Segundo o sociólogo Norbert Elias, essa tendência evolutiva nada mais seria do que um ―problema da inevitabilidade da evolução social‖. Assim, podemos entender que esse ideal progressista estava envolto na mentalidade dos indivíduos que viviam nesse determinado contexto histórico. Toda essa ―sede‖ pelo progresso tornou-se visível no movimento de modernização da capital sergipana, Aracaju. Aliás, essa modernização espalhou-se em todo o Estado, através de novas obras com arquitetura arrojada para a época. No entanto, Aracaju em especial, passou por intensos processos de saneamento, embelezamento e de políticas higienistas. O ideal republicano estava se afirmando e precisava ir a várias esferas sociais para ter o ar progressista enaltecido em contraposição ao ―atraso‖ do ideário imperial. Essas circunstâncias corroboraram para o surgimento da chamada ―Belle Époque‖ sergipana. Na qual se pretendia difundir novas noções de civilidade e urbanísticas inspiradas nas grandes cidades europeias, contrapondo o regime antecessor e vangloriar o espírito republicano. O momento era galgado no processo de ruptura com o antigo regime e de 4 autoafirmação da República nascente. É nesse ar de modernização que as ferrovias foram implantadas em Sergipe. A ferrovia anunciava e realizava o novo, aomesmo tempo em que nele inseria o velho e tradicional. Era como se descosturasse a trama das velhas relações sem destruí-las inteiramente, recosturando-as no sistema de significados e funções do primado do capital e de sua reprodução ampliada. Não atuava apenas no âmbito da economia, mas também no do reajustamento e refuncionalização das relações sociais, dos valores, das concepções. Juntava e separava as classes sociais, os passageiros da primeira classe e os passageiros da segunda classe. Reestamentalizava o novo transporte de massa ao pôr em circulação os moderníssimos, luxuosos, caros e segregadores trens a diesel, o Cometa, o Estrela e o Planeta, nos anos 20. A nova ordem – a ordem das separações que se juntavam sem se dissolver – legitimava as diferenças, os que tinham estilo e os que não o tinham (MARTINS, 2004, p. 12). Outro fator que se tornou decisivo para a aprovação da ferrovia em Sergipe foram as mudanças no desenvolvimento econômico do Estado. Este, até então, possuía uma economia de base rural muito ligada ao consumo interno e criação de gado, em relação as zonas do interior sergipano. Já no litoral a produção açucareira era o carro chefe, porém ainda estava muito ligada ao sistema canavieiro baiano. É claro que a adoção de Aracaju como capital e saída portuária ajudou a um equilíbrio no escoamento das produções sergipanas, contudo, internamente, Sergipe não possuía boas vias de acesso para a exportação de seus produtos e ainda continuava refém da Bahia para poder escoar as suas produções. Essa situação ainda piora a partir das implantações das primeiras fábricas, sobretudo em Estância e Aracaju, onde o ramo têxtil obteve um domínio hegemônico. Todavia, as dificuldades já iniciam desde a comunicação com os centros produtores de insumos, sobretudo o algodão. A outra grande dificuldade é a escoação do produto final propriamente dito. Sergipe estava ilhado em meio ao desenvolvimento, pois não havia estradas de rodagens, linhas férreas ou quaisquer outros meios. A partir de tudo isso, a implantação de vias férreas tornou-se, na visão da época, imprescindível para o desenvolvimento econômico. Expandindo-se como o sistema mais moderno e rápido de comunicação terrestre, a via férrea podia representar alternativa válida para tornar os centros econômicos de maior importância mais eficientemente comunicantes com o porto de exportação. Como zonas algodoeiras do Norte (Propriá-Aquidabã) e do Centro (Itabaiana-N. S. das Dores) e a zona agrícola mais interior (Simão Dias-Itabaianinha), produtora de café e cereais, não dispunham de facilidades para o escoamento de sua produção, as primeiras propostas de construção de linhas férreas pensaram em tomar a direção de Propriá e Simão Dias (ALMEIDA, 1984, p. 238). 5 Apenas em 1907 é que se iniciaram as obras da construção da malha Ferroviária em Sergipe. Os primeiros trechos ferroviários começam a ser inaugurados em 1913, cerca de 10 anos após a criação do Decreto n° 1.126/1903 2 , que assegurou a construção de vias férreas sergipanas. A chegada desse mundo ferroviário tinha consigo uma espécie de imaginário da modernidade e, no caso de Sergipe, também representou uma ideia de progresso tão difundida pelo republicanismo. O processo de edificação das ferrovias em solo sergipano foi subdividido em três etapas: em um primeiro momento a linha férrea partiria do local no qual, hoje, se encontra Esplanada, município baiano, à capital sergipana; a segunda etapa saía de Aracaju em direção de Rosário do Catete; e o último trecho partiria desta e seguia em direção ao extremo Norte do Estado, o município de Propriá. O primeiro trecho foi concluído em 04 de abril e inaugurado em 26 de maio de 1913. A ferrovia sergipana, inicialmente, era dirigida pela empresa franco-belga Compagnie des Chemins de Fer de l’Est Brésilien. Durante a cerimonia de inauguração, uma comitiva baiana visitou várias estações sendo recepcionados pela população sergipana. É importante ressaltar que esses eventos eram frequentados, principalmente, pelos políticos e grandes personalidades da sociedade sergipana. A população pertencente às classes baixas ficava apenas admirando ou fazendo um coro de aplausos para a ―chegada da modernização‖. Esse será um aspecto primordial para compreender as ferrovias como um campo de relações sociais. Ainda sobre essa primeira inauguração, os jornais da época noticiavam detalhando, inclusive, o nome de todos os componentes da comitiva e seus respectivos cargos. Foi dado um grande destaque a presença do representante do Presidente da Bahia e a recepção por parte do Presidente do Estado de Sergipe, Antônio José Siqueira de Menezes. Mesmo com uma visão superficial é notória a confirmação de uma exclusividade de presença de pessoas mais abastardas ou que ocupassem cargos de relevância. Enquanto no discurso a ferrovia era um progresso para todos, na prática isso não acontecia. Podemos perceber, no evento de inauguração do primeiro trecho ferroviário, uma aplicação dos conceitos de cultura e subcultura, difundido por Márcia Abreu, com algumas ressalvas. Veja bem, enquanto na obra a Cultura Letrada os conceitos são aplicados nas questões relacionadas ao mundo das letras, aqui nos apropriamos para aplica-los nas relações sociais. A ideia modernizadora parte dos indivíduos da cultura dominante e parte, quase como um processo de osmose, para ser absorvido pela subcultura. 2 https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1126-15-dezembro-1903-584978- publicacaooriginal-107861-pl.html https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1126-15-dezembro-1903-584978-publicacaooriginal-107861-pl.html https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1900-1909/decreto-1126-15-dezembro-1903-584978-publicacaooriginal-107861-pl.html 6 No ano seguinte, 1914, é inaugurado o segundo trecho em 22 de março. Esse trecho abarcava as estações de: Cotinguiba (na cidade de Nossa Senhora do Socorro); Laranjeiras; Riachuelo; Caitetu; Maruim e Rosário do Catete, segundo informações do Guia Geral das Estradas de Ferro. Esta segunda inauguração não teve a mesma ―pompa‖ da primeira. Por esse mesmo motivo, não é possível achar fontes que apresentem detalhadamente o nome de cada componente da comitiva. Todavia os grupos que estiveram representados se norteiam, mais uma vez, de políticos, autoridades, funcionários públicos e senhoras da alta sociedade sergipana. O trem servia a determinados estamentos sociais, e tais grupos estavam ligados a cultura dominante. Por último, há a inauguração do derradeiro trecho, em 05 de agosto de 1915, que compreendia de Rosário do Catete a Propriá. Passava pelas localidades da atual cidade de Carmópolis, Japaratuba, Murta, Capela, Muribeca, Batinga e tinha como fim de linha o município de Propriá. Mais uma vez os membros da alta sociedade compunham a comitiva, além de jornalistas que ali estavam para cobrir o acontecimento e de componentes de banda marcial. O jornal ―O Estado de Sergipe‖, em seu editorial, publica em 05 de agosto de 1915 faz a seguinte declaração: Da estação desta capital partirá hoje, às 10 horas, o trem inaugural conduzindo o Sr. Dr. Monteiro Almeida, Secretário do estado, que vai representando a Chemmis e da fiscalização e pessoas outras que vão inaugurar os dois últimos trechos da Timbó- Propriá, já entregues ao governo Federal. Na Capella será a comitiva recebia com festas, pernoitando ali o trem, donde sairá pela manhã de 6 com destino a Propriá, onde preparavam-se estrondosas festas pelo motivo tão auspiciosa da abertura do tráfego deste trecho ferroviário. O regresso a esta capital será feito dia 7. O Alferes do corpo de policia Agrippino Muniz Barreto, seu ajudante de ordens Dr. Monteiro Alencar. Dr. Manoel Porfirio de Brito irá representando ―O Estadode Sergipe‖. [...] A inauguração do último trecho Rosário/Propriá, a convite chega a Propriá dia 06.08 às 14 horas e meia. Com delirante entusiasmo popular foi recebida à comitiva‖. A cerimônia inaugural, deu- se acompanhado de duas filarmônica locais, e no salão especial da estação, lavrou-se o ato inauguração oficial do último trecho Timbó-Propriá (O Estado de Sergipe, 1915, p. 01-02). Os discursos calorosos por parte de membros representativos do quadro político, não pouparam palavras vitoriosas quanto a grandiosa realização para o Estado, que seria o ―sonho‖ de todos os sergipanos, possuir um a Estrada de Ferro. Mesmo que somente a partir desse momento as ferrovias estivessem funcionando em sua totalidade, ela já havia se tornado presente, há 02 anos, no cotidiano sergipano. 7 O ideal progressista continuava forte. Junto ao trem era chegado o desenvolvimento e esse era o principal ponto nos discursos da classe política da época. Depois de anos de tentativas o ―sonho sergipano‖ estava concretizado. É possível perceber no discurso proferido pelo Presidente de Estado, Manoel Oliveira Valadão 3 , o saudosismo diante da personificação do progresso, afinal era isso que a ferrovia representava. Para finalizar essa etapa, vejamos: Entre os dias de maior júbilo de minha vida, contarei este — 5 de Agosto de 1915 — em que, a testa do governo do Estado, tive a grata satisfação de ver partir desta Capital, ao som de estrepitosas aclamações, o trem inaugural do último trecho da Estrada de Ferro do Timbó a Própria e do seu importante ramal da Murta a Capela. Na História de Sergipe, aquela data ficará, sendo uma das mais memoráveis e ao mesmo tempo um traço inextinguível do patriótico empenho com que os nossos representantes no Congresso Nacional, em 1903, se esforçaram pela conquista de tão grande melhoramento; e justo é que, como preito de homenagem a esses representantes, aqui fiquem registados os seus nomes: Senadores, Olímpio de Souza Campos, José Luiz Coelho e Campos e Martinho Cezar da Silveira Garcez; Deputados. José Rodrigues da Costa Dória, Joviniano Joaquim de Carvalho, Felisbelo Firmo de Oliveira Freire e, por último, o signatário da presente Mensagem, que, presando a verdade, afirma, como testemunho de sua consciência, que na consecução da Estrada de Ferro do Timbó a Própria, nós, os Sergipanos, muito e muito elevemos à pertinácia do falecido Senador Olímpio Campos, à solicitude do Deputado Rodrigues Dória e à cooperação do então Presidente do Estado, Dr. Jozino Menezes, que facilitou o adiantamento pelo Tesouro estadual da importância precise para os estudos do traçado. Dito isto, e por se tratar de um acontecimento extraordinário, de alto valor para o futuro de nosso estremecido torrão, fecharei esta parte dos informes [...] (VALADÃO, 1915, p. 22-23). DISCURSOS E PRÁTICAS POR TRÁS DOS TRILHOS Nunca pensei ver o Aracajú tão adiantado. Temos bondes, estrada de ferro, eletricidade, água encanada, sorveterias, bastantes boticas, bons jornaes, tudo enfim, que se possa dar o nome de uma penca de progresso. Em recreio não se falta, temos até um permanente! E diga que isso não são fumaças?! Fumaças sempre fumaças. Ora, ahí esta! (Jornal A Rua, p. 02, 1914). Mesmo não sendo feito, em sua maioria, por pessoas das classes menos abastardas os jornais acabam retratando discursos que simbolizavam um ponto de vista um pouco mais ligado ao olhar do povo e, até mesmo, corriqueira no dia a dia da sociedade comum da época. A inevitabilidade da evolução social, como diria Nobert Elias, estava aplicada ao contexto da chegada dos trens juntamente a todas as melhorias advindas com a pujança 3 Manuel Prisciliano de Oliveira Valadão nasceu no município de Vila Nova (SE) em 4 de janeiro de 1849 e acabou falecendo, em 10 de novembro de 1921. Por Sergipe foi deputado, senador e presidente de estado. Além disso, atuou na Guerra do Paraguai, motivo pelo qual recebeu diversas condecorações. Foi sócio benemérito do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGS) e recebeu um monumento em sua homenagem e a praça batizada com o seu nome. Fonte: (http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira- republica/VALADÃO,%20Manuel.pdf). http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/VALADÃO,%20Manuel.pdf http://cpdoc.fgv.br/sites/default/files/verbetes/primeira-republica/VALADÃO,%20Manuel.pdf 8 desenvolvimentista do século XX. A ferrovia era o maior símbolo de desenvolvimento e de tecnologia na época. E isso se torna mais forte ao levarmos em conta de que o principal meio de transporte ainda eram cavalos, carros de boi, etc. Aos poucos o público comum foi se familiarizando com o trem, ainda que essa relação fosse inserida no local destinado a segunda classe. Os passageiros foram se tornando diversificados, porém com a força da dialética entre cultura e subcultura impregnada no dia a dia. Como um bom exemplo o Historiador André Jesus nos apresenta o seguinte: ―as tarifas de passagens tinham preços diferenciados, consequentemente, os usos dos vagões pelos passageiros e os serviços dentro dos vagões dos trens também eram diferenciados‖. É possível perceber que, por mais acessível que parecesse ser, havia mecanismos capazes de garantir e legitimar esses espaços de diferenciação social. Dessa maneira, no campo da representação as ferrovias traziam a personificação do progresso e desenvolvimento, ou de qualquer outra coisa que queiram chamar. Mas, na prática, não era bem assim. Há o que podemos conceber, segundo preceitos conceituais do historiador Roger Chartier, como internalização simbólica das lutas pelo poder e dominação entre os grupos. Ou ainda, nesse caso, entre os indivíduos participantes desses grupos sociais. Uma vez que tocamos em Roger Chartier, vamos trazê-lo para conversar. Podemos pensar na aplicação do conceito de Representação para percebermos algo que não está tão aparente ou para analisar a exibição da presença de um objeto, em nosso caso a ferrovia. Essas representações são, quase sempre, produzidas e comandadas pelos interesses de grupos dominantes, ou que forjam àquelas. Ao mesmo tempo em que a chegada da ferrovia representou uma série de mudanças ligadas ao progresso social e desenvolvimento econômico, ela também significava a construção de um campo repleto de tensionamentos entre grupos sociais. Uma elite culturalmente dominante que ditava as regras de usos da ferrovia e um público comum que estava ali, em sua maioria, para servir. A imprensa da época, por exemplo, tratavam os acidentes ocorridos no processo de construção da ferrovia como um ―mal necessário‖. As vidas dos operários pareciam pouco importar. Segundo Jesus (2017, p.74), ―as mortes foram justificadas como um ‗sacrifício‘ em prol do progresso, nesse caso, da conclusão daquele trecho da estrada de ferro, para o ‗conforto‘ das pessoas que por ela trafegariam no futuro‖. Se de um lado a expectativa da chegada dos trilhos era a civilização, o progresso e o desenvolvimento. De outro, ela atuava na prática como um campo de conflito social e símbolo desigualdade social. 9 Os primeiros anos que sucedem a inauguração da ferrovia (1916-1917), integrantes do marco temporal deste artigo, mostram a questão de como se deu na prática o discurso progressista. É inegável que houve inúmeros avanços, principalmente no que tange a mobilidade, o escoamento de mercadorias, etc. Todavia, aqui nos interessa a percepção da idealização do progresso no imaginário sergipano. Vejamos os trechos a seguir, extraído da Mensagem do Presidente do Estado dirigida a assembleia dos deputados, que ajuda a ilustrar um pouco mais esse ponto: Dentre as causas que mais tem concorrido para a melhoria da nossa situação, devo assinalar a facilidade de transporte que nos proporcionam a Estradade Ferro de Timbó a Propriá, e, ultimamente, as Empresas de Navegação Lloyd Brasileira e Costeira, aumentando e regularizando as viagens de seus paquetes. A Estrada de Ferro, principalmente, é hoje um poderoso fator de nosso progresso—e bem haja àqueles que pugnaram por tão grande melhoramento para Sergipe (Valadão, 1916, p. 04). Com o aumento da população da nossa Capital, cuja cifra cresce Publica de dia para dia, mormente com a facilidade da comunicação ferroviária, mais palpitante se torna a necessidade de melhorarmos o serviço de Assistência Publica, de que já me ocupei na mensagem de 07 de Setembro do ano findo, serviço este já em parte criado, carecendo apenas de sistematização e mais amplos recursos que o tornem apto a preencher os fins a que é destinado. Espero que habiliteis o Governo a atender a essa necessidade‖ (Valadão, 1917, p. 48-49). Houve, de fato, inúmeros avanços sejam eles de demanda populacional ou de mercado. A ferrovia servia, não somente para o transporte da população, mas, também, nos deslocamento de mercadorias, matéria-prima, animais de carga ou corte, etc. Ao mesmo tempo os locais que estavam à margem da tiveram efeitos na valorização, na povoação e na urbanização. A vizinhança da ferrovia obteve um dinamismo em seu processo de construção. Se de um lado houve esse desenvolvimento acelerado nos arredores da linha férrea, de outro, locais antes utilizados para deslocamento passam por um processo de definhamento ou atrofiamento, diante de toda a força da ferrovia. A aplicação do progresso nesses primeiros anos após a conclusão da implantação da rede ferroviária pode ser sentida na pele. Para além do campo das representações contidas nos discursos e no imaginário da sociedade sergipana, na prática o progresso também se mostrava cruel, diríamos até, real. Essa percepção de evolução social é a mesma que traz consigo espaços de desigualdade social, que cria espaços de separação, etc. Todavia, o principal propósito que as ferrovias tinham que atender foi alcançado com sucesso. No caso de Sergipe, permitiu uma completa ligação interna (Norte-Sul) e com as divisas com os estados da Bahia e Alagoas. Também foi efetivada uma ligação em relação a saída portuária, uma vez que as mercadorias produzidas no interior começam a circular com 10 maior facilidade até o principal ponto de exportação. E, por último, há o fato de que o Estado passa a fazer parte de uma linha de encadeamento nacional, ao menos no que se refere a zona mais próxima ao litoral. Portanto, o trem era visto como fator de integração nacional. A partir da sua chegada, Sergipe sairia do isolamento e poderia participar, de fato, do cenário macroeconômico nacional. Ao tomar conhecimento dos discursos presentes em jornais e mensagens de governo, é possível perceber interesse do grande Poder de ―inventar‖ a chegada do trem como uma representação de modernidade para Sergipe. Esse discurso modernizador se alastra por todo Estado, principalmente nas regiões cortadas pela linha férrea. O trem, segundo as teses postuladas ao longo da história, filho da modernidade, vinculado ao progresso e a ideia de contínuo processo civilizador, passou a praticar os mesmos significados para o Estado de Sergipe. CONSIDERAÇÕES FINAIS A ferrovia que, outrora, permeava o dia a dia dos sergipanos hoje não passa de um amontoado patrimonial completamente abandonado. O tempo das ferrovias em Sergipe se foi Hoje nos trilhos da memória restam saudades daquilo que um dia representou a corporificação do progresso na terra dos caciques. As ferrovias compõe um rico objeto de análise em vários campos de estudo. Infelizmente, o desinteresse tanto público quanto privado destruíram as ferrovias sergipanas. Junto a criação das linhas férreas nasce um ideário de modernidade. Na questão prática se apresenta a circulação de bens, mercadorias, pessoas, etc. Em uma análise cultural a ferrovia se apresenta como representação de valores ligados ao progresso, mas também de afeição a um objeto que representava um promovedor de encontros e despedidas, dentre vários outros aspectos. A ideia nacional de que o progresso chegaria a partir das ferrovias também se aplicou em Sergipe, conforme o que foi exposto até aqui. ―O Brasil só começará a andar quando estiver cortado por estradas de ferro‖, trecho citado por Hardman, resume o ideário da época. Esse mesmo ideal foi concretizado em Sergipe e, por isso, o principal objetivo desse trabalho foi apresentar, mesmo que de maneira panorâmica, como esse ideário se manifestou nos momentos de implantação e dos primeiros anos de funcionamento das linhas férreas em solo sergipano. Assim, propusemos não uma 11 análise, mas um levantamento ou investigação historiográfica a partir dos recursos de fontes dos quais tivemos acesso. Por fim, gostaríamos de ressaltar mais uma vez que esse imaginário entranhado na mente dos sergipanos não condiz totalmente à realidade. Há a ―ferrovia representação‖ e a ―ferrovia prática‖. Onde, para arrematar com uma bela descrição, faremos uso do cientista social Francisco Foot Hardman: Do espaço da exhibitio urbana e cosmopolita para o espetáculo na selva: sucederão, a seguir, algumas imagens sobre ―o mínimo e o escondido‖ num desses cenários. Exibições do supérfluo e ferrovias da ruína: operários sonham com o ultraleve de Santos Dumont, viajam em navios negreiros a vapor, constroem trilhos e trens no fim da linha, são também consumidos em meio ao desmoronamento precoce da paisagem e, nesse passo, colecionam bilhetes de entrada para o avesso do céu (Hardman, 1988, p. 96). REFERÊNCIAS FONTES MENSAGENS DE GOVERNO VALADÃO, Manoel Prisciliano de Oliveira. Mensagem apresentada à Assembleia Legislativa de Sergipe [...] pelo Presidente do Estado Manoel Prisciliano de Oliveira Valadão. 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