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EDNEI DE SANTANA PEREIRA IMAGENS À MARGEM: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972) Salvador 2014 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I- SALVADOR PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS EDNEI DE SANTANA PEREIRA IMAGENS À MARGEM: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972) Dissertação apresentada como requisito para obtenção do grau de mestre em estudos de linguagens pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens - PPGEL sob a orientação da Profª Drª Lícia Soares de Souza. Salvador 2014 EDNEI DE SANTANA PEREIRA IMAGENS À MARGEM: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972) Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagem da Universidade do Estado da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de mestre em Estudos de Linguagens, em ___ de março de 2014. Banca Examinadora __________________________________________________ Profª. Drª. Marize Berta de Souza Doutora em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia ___________________________________________________ Profª. Drª Sayonara Amaral de Oliveira Doutora em Letras, Universidade Federal da Bahia Universidade do Estado da Bahia __________________________________________________ Profª. Drª Lícia Soares de Souza Doutora em Semiologia, Université Du Quebec Universidade do Estado da Bahia “Eu me desperto Nessa cor que me conheço Que é só o perto E na sala de espera a televisão óculos escuros da minha noite me fala das cores de dia o jornal meu guia espacial e os mínimos detalhes e o noticiário me deixa em contato com os olhos do astronauta eu ando certo muito certo perto “. Se eu quiser, eu compro flores (Moraes Moreira, Galvão) A Kayodê, aquele que traz felicidade, o único motivo de eu ter insistido. AGRADECIMENTOS Nasci em 1969 no meio dos acontecimentos que relato neste trabalho. Por esse motivo improvável, talvez, é que o acaso tenha conspirado para que eu apresentasse personagens de uma história tão singular como a que será vista aqui. O meu trajeto tem sido escrito de forma tortuosa, do mesmo modo como foi o dos que construíram esse momento da cultura da Bahia. Entretanto, como eles, é melhor reclamar pouco, agir mais e curtir os bons frutos que esta experiência tem me trazido, pois nós somos o resultado de um conjunto de imprevistos e condições históricas; não de erros, nem de acertos. Os caras que transformaram a Bahia em um ambiente de muita curtição e rebeldia, revertendo procela em brisa, decompondo precariedade em arte, chicote em serpentina, têm aqui a minha (ir)reverência. Reverencio também aqueles que participaram de alguma forma desse meu percurso. O agradecimento é uma forma de reconhecimento, afinal a ausência desse último constitui-se na base dos conflitos interpessoais e sociais, segundo Axel Honneth. Agradeço primeiramente a quem me colocou neste mundo naquele período: Neusa e Elísio – gente forte e sábia do Recôncavo – que souberam me dar régua, compasso e me fazer valorizar a vida acima de tudo. Agradeço também aos meus irmãos Marcos, Neuma e Márcio por sempre darem uma mãozinha e pelo carinho. Ao meu irmão Jair Batista por sempre me lembrar qual é o sentido da palavra amizade. A Tainá pela paciência e sacrifícios. E aos amigos João Sátiro por me fazer entender os motivos da demora, Gisele Oliveira pelos diálogos e puxões de orelha e Thiara de Filippo por sempre acreditar que era possível. Faço um agradecimento especial ao colega e amigo Jorge Augusto que me colocou para cima quando eu estava no chão (nunca vou esquecer, meu velho!!). Agradeço à Selene Rúbia por ter me devolvido a este itinerário. Sou grato aos professores Washington Drummond pelo incentivo e Messias Bandeira pela disponibilidade (valeu, man!). Um agradecimento especial à Professora Lícia Soares pelo acolhimento, pela leveza e pela compreensão – pessoa que eu gostaria de ter convivido mais tempo durante o curso. Um abraço fraterno ao professor Umbelino Brasil a quem eu sou grato pelas lições de cinema, pelas correções e sugestões e principalmente pela inspiração – sem ele, o cinema não seria parte de meus estudos. Agradeço pela confiança e orientações ao tempo em que peço desculpas pela frustração aos professores Linda Rubim, Paulo Miguez e Maria do Socorro Carvalho esta última minha referência em estudos sobre Cinema Brasileiro e Cinema Baiano. Agradeço aos camaradas da APS-BA que me movem diariamente a lutar pelo o que exige a maioria da população, com ética, radicalidade e ternura. O lema daquela Organização me manteve na trilha: ousando lutar, se vence. Ao pessoal do COP e em particular à Ednaldo Andrade por toda a ajuda e compreensão, bem como ao pessoal da UFBA, Nita, Socorro, Liliane Sandra e ao Professor Luiz Rogério Bastos Leal, pelo aprendizado nesse último ano de intenso e gratificante trabalho. Agradeço ao PPGEL especialmente às professoras Verbena, Sayonara e Rosa Blanco e ao professor Sílvio Roberto pelos conselhos e ótimas aulas. Agradeço também aos colegas da Linha 1 do Programa pela convivência. Sou grato também aos loucos e anjos André Luiz Oliveira e José Umberto Dias pelos papos e principalmente pela obras. Finalmente agradeço também a Sérgio Maciel e ao professor Renato da Silveira pelas entrevistas. Dedico em memória esse trabalho a Álvaro Guimarães a quem não tive tempo de trocar umas ideias. RESUMO O presente trabalho analisa e relaciona a contracultura e o Cinema Marginal ocorridos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972. Desta forma, busca-se identificar aspectos dessa contracultura assimilada pela juventude local através do cinema. Para tanto, serão estudados o contexto da contracultura e do Cinema Marginal no Brasil; o percurso da formação de uma movimentação de jovens interessados em fazer cinema na Bahia e sua relação com o ideário contracultural; além das obras. Nesse sentido, os três filmes de longa-metragem de ficção produzidos naquele período e existentes - “Meteorango Kid, o herói intergaláctico”, “Caveira my friend” e O Anjo Negro” - serão estudados mais detidamente como ducumentos histórico- culturais para o desvelamento dessa contracultura baiana, suas nuances e especificidades. Para empreender as discussões propostas, o presente estudo dialoga com o conceito de cinema e história formulado por Marc Ferro, as considerações e análise sobre o Cinema Marginal Brasileiro feitas por Ismail Xavier e Fernão Ramos, entre outros autores. Palavras-chave: Cinema. História. Contracultura. Cinema Marginal. Tropicalismo. Cultura Marginal. Cultura Baiana. ABSTRACT This work analyzes and relates the counterculture and the “Cinema Marginal” occurred in Bahia between 1968 and 1972. Thus, we seek to identify aspects of the counterculture assimilated by local youth through films. Therefore, the context of the counterculture and the Marginal Cinema in Brazil will be studied , the route of forming a movement of young people interested in film making in Bahia and its relationship with countercultural ideals, also the films. In this sense , the three feature-length fiction film produced in that period and existing - " Meteorango Kid , herói intergaláctico" , " Caveira my friend" and “O anjo negro " - will be studied more closely asa historical - cultural documents for unveiling the counterculture occurred in Bahia, its nuances and specificities. To undertake the proposed discussions, this study speaks to the concept of film and history formulated by Marc Ferro, the analysis made by Ismail Xavier and Jonathan Ramos on Brazilian Cinema Marginal, and other concepts and authors. Keywords: Cinema. History. Counterculture. Marginal Cinema. Tropicalism. Marginal Culture. Bahian Culture. “Historicizar sempre...” Fredric Jameson . P436 Pereira, Ednei de Santana Imagens a Margem: Cinema Marginal e contracultura na Bahia (1968-1972)/ Ednei de Santana Pereira, Salvador. 2014.114f.:il Orientadora: Profª Drª Lícia Soares de Souza. Dissertação de Mestrado- Universidade do Estado da Bahia- Departamento de Ciências Humanas – Campus I Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – PPGEL. 1.Cinema Marginal 2. Cinema - Brasil 3.Cinema-Bahia Título CDD 791.430981 CDD SUMÁRIO Introdução 14 1. Cinema Marginal: contracultura brasileira no cinema 26 1.1. Tropicália/Tropicalismo, Cinema Novo e Cinema Marginal: alegorias e inteseções 29 1.2. Cinema Brasileiro: uma cinematografia marginal? 36 1.3. Cinema Marginal: o filho rebelde 40 1.4. Cinema Novo versus Cinema Marginal: continuidade e ruptura 45 2. A contracultura na Bahia e a formação do “Surto” de Cinema Marginal 49 2.1. O contexto cultural de Salvador entre 1968 e 1972 50 2.2. Contracultura expressa em cartas: o espaço do leitor do jornal Verbo Encantado 53 2.3. A formação de novos cineastas e os primeiros experimentos 58 2.4. Senna, construção e morte de um filme 59 2.5. O negro a cores: Akpalô, um psicodélico filme baiano 63 3. A contracultura baiana: os filmes de longa-metragem de ficção do “Surto” 67 3.1. Herói marginal intergalático: Meteorango Kid e a contracultura à baiana 68 3.2. Caveira, my friend: contracultura e banditismo social 82 3.3. Saindo das margens: cultura negra como contracultura em O Anjo Negro 92 Considerações Finais 101 Bibliografia 105 Filmografia 110 “From the east to the west Oh, the stream is long Yes, my dream is wrong From the birth to the death” The empty boat (Caetano Veloso) 14 INTRODUÇÃO A década de 50 do século XX foi um período que trouxe novos ares à velha província da Bahia. Naquela época, embalada pelo discurso modernizador de Juscelino Kubitschek, Salvador começou a vivenciar um período de transformações sociais, econômicas e culturais. Essa lógica de desenvolvimento atingiu um determinado segmento da sociedade baiana que, dentre outras aspirações, desejava construir um grande teatro, fomentar um mercado de artes plásticas e, até mesmo, criar um pólo cinematográfico na região. Foi um tempo em que se inauguraram bares, restaurantes e boates requintadas; foram modernizados os antigos meios de comunicação e surgiram as primeiras agências de publicidade e a primeira emissora de televisão, marcando o início de um desenvolvimento cultural em moldes industrial na cidade1. A vida da cidade de Salvador deslocou-se do Centro Antigo em direção ao Campo Grande, onde, em 1958, foi instalado o Teatro Castro Alves – TCA, sendo o primeiro com arquitetura funcional construído no Brasil (salão de concerto, anfiteatro, sala do coro, espaço para exposições). Em 1960, foi inaugurado o Museu de Arte Moderna da Bahia – MAMB com sede provisória no foyer do TCA e tendo como objetivo a promoção de estudos e difusão do conhecimento das artes contemporâneas em geral, particularmente das artes plásticas, através de exposições, cursos, concertos e projeções2. No âmbito da imprensa, em setembro de 1958, foi lançado o Jornal da Bahia que seria organizado em bases industriais. O grupo de comunicação Diários e Emissoras Associados teve uma participação decisiva na estruturação do mercado de bens simbólicos na Bahia, sendo responsável pela instalação da primeira emissora de televisão baiana, a TV Itapoá, e de dois jornais diários, o Estado da Bahia e o já citado Diário de Notícias, além de dirigir a rádio mais antiga e de maior potência, a Rádio Sociedade. Neste clima, surgiram também as primeiras agências de publicidade baianas a partir das novas necessidades criadas por um mercado em franco processo de modernização3. Fundada em 1946 com a integração de tradicionais estabelecimentos de ensino superior do estado, a então Universidade da Bahia4 constituiu-se em um fator importante do movimento de 1 Cf. LUDWIG, Selma Costa. Mudanças na vida cultural de Salvador 1950-1970. Salvador, 1982. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais). Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia. 2 Cf. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Cultura, política e mídia na Bahia contemporânea. Revista Comunicação & Política, n.s., v.X, n.1, p.093-155, 2001. 3 Cf. Idem. 4 Durante esse processo de federalização das diversas instituições e cursos de ensino superior do Estado que durou de 1946 à 1961, a Universidade da Bahia passou a se chamar Universidade Federal da Bahia em 1950. 15 renovação da vida cultural baiana, tanto no campo técnico-científico quanto no das artes. Foram instalados cursos vinculados ao novo perfil do mercado profissional baiano, ao mesmo tempo em que surgiram as novas faculdades voltadas para as artes que revelariam diversos talentos. Assim, foram inauguradas, em meados dos anos 50, as Escolas de Teatro e de Dança e os Seminários de Música – que mais tarde ganhariam o “status” de unidade de ensino –, sendo, no âmbito da universidade brasileira, pioneiras em suas áreas5. É a partir desse cenário cultural multifacetado que se iniciaram debates e tomadas iniciativas para tentar consolidar também o cinema como atividade cultural de expressão na cidade. Em 1950 foi criado por Walter da Silveira – advogado trabalhista do sindicato dos exibidores que se tornaria o crítico de cinema de maior referência em Salvador, sendo autor de diversas críticas e artigos publicados nos principais jornais em circulação no estado –, o Clube de Cinema da Bahia, que objetivava projetar filmes de “valor artístico”, organizar uma biblioteca especializada e construir uma filmoteca, além de promover cursos e debates, tendo sempre o cinema como tema. Em 1961, a entidade passou a exibir películas no Museu de Arte da Bahia incentivada por Lina Bo Bardi. Oclube reunia artistas, intelectuais e jornalistas, o que dinamizou e expandiu o movimento cineclubista pelo estado, contribuindo para a solidificação de uma platéia de cinema especializada e formando uma geração de críticos como Hamilton Correia (Diários de Notícias, Jamil Bagdad (A Tarde), Orlando Senna (O Estado da Bahia) e Glauber Rocha (Jornal da Bahia). Em 1957 foi fundado o Centro de Estudos Cinematográficos da Bahia com o objetivo de desenvolver estudos sobre cinema em Salvador, almejando ser o embrião de uma Escola de Cinema na Universidade da Bahia, o que, apesar dos diversos acenos do reitor Edgard Santos, nunca aconteceu. Em 1959, Glauber Rocha transitou entre a atividade de crítico e a de realizador com a produção do seu primeiro filme, o curta-metragem O Pátio. Nesse mesmo ano, Luís Paulino dos Santos realizou o também curta Um Dia na Rampa e Roberto Pires filma Redenção, o primeiro longa-metragem baiano de ficção, isto é, concebido, produzido, dirigido, montado e interpretado por baianos6. Deu-se início, então, ao denominado Ciclo Baiano de Cinema que proporcionou à Bahia, num curto período de cinco anos (1959-1964), ser palco de diversas produções cinematográficas. Após o citado filme de Roberto Pires, foram produzidos diversos longas-metragens de ficção como Bahia de Todos os Santos de Trigueirinho Neto e Mandacaru Vermelho de Nelson Pereira dos Santos, ambos em 1960; A Grande Feira, de Roberto Pires e Barravento, de Glauber Rocha e 5 Cf. Idem. 6 Cf. CARVALHO, Maria do Socorro Silva. A nova onda baiana: cinema na Bahia (1958-1962). Salvador: EDUFBA, 2003. 16 Luis Paulino dos Santos, de 1961, Tocaia no Asfalto, de Roberto Pires, e O Pagador de Promessa, de Anselmo Duarte em 1962, Sol Sobre a Lama, de Alex Vianny em 1963, O caipora, de Oscar Santana e O Grito da Terra, de Olney São Paulo em 1964. Essas obras estabeleceram um marco na cultura baiana ao abordar os seus dois principais elementos: a tradição sertaneja e a de matriz africana, além de tratar de aspectos sociais e culturais inerentes à vida soteropolitana7. Esses filmes, atualmente, estão associados ao nascimento do Cinema Novo no que diz respeito não apenas a ter sido o ambiente que fomentou os primeiros passos do seu diretor mais emblemático, Glauber Rocha, mas também ao serem observados os primeiros rascunhos das propostas do grupo, como a estética da fome e o desenvolvimento de uma cinematografia que buscava intervir e transformar a sociedade brasileira. Porém, com o golpe militar de 1964, interrompeu-se o Ciclo Baiano de Cinema e o processo de transformações no âmbito da cultura no Estado da Bahia passou por um momento de transição, sendo reorganizado à margem dos formatos tradicionais. Os antecedentes da cultura da Bahia revelam a um só tempo um misto de atraso verificado nas quatro primeiras décadas do século XX, um boom modernizador entre os anos 50 e meados de 60 e uma nova estagnação até a eclosão do carnaval como evento midiático e como ressignifacação dos modelos culturais a partir da afirmação do universo cultural de origem africana em meados da década de 1970. O cinema produzido na Bahia, objeto deste estudo, insere-se nesse contexto apesar de suas nuances e peculiaridades. Desta forma, partindo de uma perspectiva mais ampla, a opção por obras cinematográficas como tema desta pesquisa reflete em grande medida a primazia do visual na cultura contemporânea, tal o impacto de significação dos recursos imagéticos, como o movimento, a visibilidade e a simultaneidade de tempos e espaços8. Considerando-se que as formas de percepção humana são historicamente condicionadas também pelos fatos técnicos de sua época9, é possível concluir que os processos de reprodução e difusão das novas tecnologias nos dias atuais – repletos de imagens que se entrecruzam no cotidiano das pessoas – vêm transformando não apenas as formas de apreender o mundo, como também as de representá-lo. Desta forma, a compreensão de um determinado contexto histórico e sócio-cultural também perpassa pela análise 7 Cf. Idem. 8 JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Tradução: João Roberto Martins Filho. Rio de Janeiro: Graal, 1995. 9 BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica”. Tradução: Carlos Nelson Coutinho. In: LIMA, Luiz Costa Lima (Org.). Teoria da Cultura de Massa. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.p. 209-242. 17 de filmes que podem ser pensados como documentos de discussão de uma época e encarados como objetos da cultura que encenam o passado e expressam o presente10. Tendo como horizonte essas questões e o cinema como fio condutor, esta pesquisa visa abordar um período – os quatro primeiros anos do regime militar sob a égide do Ato Institucional nº 5, decretado em 1968 – da história cultural brasileira, marcado pela censura de filmes, peças, músicas e outras expressões artísticas, além da perseguição a artistas e intelectuais, em meio a transformações na esfera econômica, como a internacionalização do capital, e na esfera da cultura, como o desenvolvimento de um forte mercado de bens culturais. Em contraposição a esse quadro, essa época também é marcada por formas alternativas e de resistência da produção cultural brasileira – inspiradas por eventos como o maio de 1968 na França, os protestos contra a Guerra do Vietnã, e a guerrilha armada contra a ditadura no Brasil, bem como por visões de mundo que questionavam os paradigmas das culturas dominantes – como o Tropicalismo e o Cinema Marginal. Este último exemplo será o eixo utilizado para se entender esse momento da cultura no Brasil, uma vez que se caracteriza como uma etapa do cinema brasileiro em que as formas de representação foram levadas ao limite e a relação com o público e o mercado foram colocadas em xeque. Tendo como marco o longa-metragem A Margem, de Ozualdo Candeias, o Cinema Marginal, denominação de um conjunto de filmes produzidos entre 1968 e 1973, ao mesmo tempo em que adotava procedimentos narrativos que não se adequavam aos padrões da indústria cinematográfica, aproveitava desta os seus produtos considerados descartáveis, ou produzidos em série, como os filmes pornográficos, os de terror e os de ficção científica, além de referências a peças publicitárias e histórias em quadrinhos11. Irreverentes, esses filmes combinavam humor e experimentalismo, narrativa fragmentada e auto-reflexiva, estruturados a partir do espírito contracultural em voga no período que, na sua assimilação para a então realidade brasileira, assumia um caráter de resistência e protesto ao estado de opressão e cerceamento da liberdade estabelecido pela ditadura. Em relação a esse espírito, essas produções efetuaram um diálogo com outras manifestações culturais em voga naqueles anos – o flower-power, o rock, o movimento hippie, a Pop Art e, no caso mais específico do Brasil, a Tropicália – que se notabilizaram por terem contribuído para o questionamento da distinção entre a “alta cultura” e a chamada “cultura de massa” 12. 10 Cf. CAPELATO, Maria Helena et al. História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2007. 11 Cf. RAMOS, Fernão. Cinema marginal (1968/1973): a representação em seu limite. São Paulo: Brasiliense, 1987. 12 Cf. Idem. 18 Desta forma, faz-se necessário efetuar um recorte espacial, uma vez que o Cinema Marginal legou uma vasta produção de filmes com temáticas similares, porém refletindo aspectos variados em razão dos seus contextos de realização, pois foram realizadas películas em vários estados brasileiros no período, com traços narrativos e esquemas de produção singulares que podem ser reunidos sob essa designação. Sendo assim, e como forma de contribuir para a expansão do conhecimento sobre a história cultural baiana,mais detidamente, sobre o período em questão, repleto de lacunas e carente de estudos mais específicos, essa pesquisa tomará como corpus os filmes produzidos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972 que, pelo caráter sazonal da produção cinematográfica baiana, podem ser agrupados a partir da idéia de um “surto” 13 e pelas circunstâncias adversas em que foi concretizada essa produção, a partir das condições apresentadas para os seus realizadores – a inexistência de financiamento ou política estatal para o cinema, os poucos recursos advindos de iniciativas pessoais dos realizadores, amigos e família e a quase nenhuma possibilidade de distribuição e exibição –, assim como as suas ideias em sintonia com a política contracultural, também verificada nas propostas apresentadas pelos cineastas desse movimento em outras partes do país, como de cunho marginal, ou marginalizados em relação a uma cultura hegemônica14. O período foi delimitado entre os anos de 1968 e 1972, uma vez que nele se concentra a grande parte da produção cinematográfica com as características apresentadas. A escolha do ano de 1968 deve-se ao fato de que nele é possível detectar os primeiros movimentos em direção a uma retomada da produção de filmes na Bahia, bem como é quando são realizados no país os primeiros filmes considerados como da estética marginal, como Jardim de Guerra, de Júlio Bressane, e O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, coincidindo com momentos históricos no mundo e no Brasil como os protestos na França e a decretação do AI-5. No caso da Bahia, poderia ser considerado problemático definir o final do surto em 1972, uma vez que filmes no formato Super-8 foram realizados dentro do espírito de um cinema marginal durante toda a década de 1970 e mesmo até o final da década de 1980, como atesta o lançamento de O Superoutro, de Edgar Navarro, o que em si já revela a importância daquelas obras, contudo esta escolha faz-se necessária pela impossibilidade temporal de investigar um período mais vasto, cobrindo esses desdobramentos tomados pelas movimentações do final dos anos de 1960 e início de 1970. 13 Para definir aquele curto período de produções cinematográfica o Professor André Setaro utiliza, em diversos momentos de sua produção crítica, ironicamente o termo “Surto” que define o surgimento inesperado de diversos filmes em um período curto e de interrupção abrupta. Durante esse trabalho, será apropriado este term, uma vez que o termo Ciclo envolve uma produção maior, em um período mais extenso, além de caracterizar um conjunto de filmes que deixam marcas mais abrangentes na cinematografia brasileira. 14 Cf. Idem. 19 O objetivo geral desta pesquisa é efetuar um estudo sobre o surto de cinema ocorrido na Bahia entre os anos de 1968 e 1972, através da análise das obras cinematográficas que o constituem e da identificação de aspectos do contexto histórico-cultural em que foram produzidas. Tomando-se essa meta como base, será possível estabelecer outros objetivos mais específicos – levando-se em conta a abrangência e os limites temporais desta investigação – como o de identificar, a partir desse momento da produção cinematográfica baiana, aspectos das práticas e movimentações na esfera cultural na cidade de Salvador – local onde os filmes foram produzidos e, em sua grande maioria, ambientados – durante a sua duração. Nesse âmbito, destacar as formas culturais que estão à margem daquelas hegemônicas, especialmente no campo das artes, se constitui premente, no sentido de articular o caráter marginal verificado nos filmes – no sentido não apenas das temáticas que imperam em suas narrativas como também nas suas próprias condições de produção e veiculação – aos dos outros movimentos e formas de expressão daquele período na cidade. Ainda nesse âmbito, identificar a teia de acontecimentos que proporcionaram o surgimento desse surto, seus protagonistas e estratégias de viabilização das produções constituem-se como eixo da articulação entre os filmes e o contexto histórico-cultural a ser verificado. Interessa também a esse estudo identificar elementos da dimensão cinematográfica das obras, seus estilos, filiações, temas encenados e outros aspectos técnicos e de linguagem que constituem e/ ou as unem. Nessa esfera, torna-se importante analisar as representações empreendidas pelas películas, à luz do contexto histórico-cultural do período em Salvador. Desta forma, os objetivos desta pesquisa são traçados a partir de uma via de mão dupla: a compreensão dessas obras em face do contexto histórico-cultural soteropolitano e o que essas obras revelam desse mesmo contexto. Para alcançar esses objetivos serão utilizados pressupostos teóricos que darão suporte a conceitos como cultura, contracultura, cinema marginal e relações entre cinema e história. Usado de modo amplo pela tradição dos estudos antropológicos, o termo “cultura” designa um modo de vida global de um povo ou de um grupo social. Porém diversos significados desse termo foram se desenvolvendo em usos mais gerais, desde um alto grau de desenvolvimento cognitivo de indivíduo – uma “pessoa de cultura” –, passando pelos processos que levaram a esse desenvolvimento – “interesses e atividades culturais”, até os meios desse processo, ou seja, as artes e o trabalho intelectual15. Nesse sentido, o conceito de cultura articulado nesse projeto diz respeito a produtos humanos que expressam a individualidade de uma coletividade, enfatizando as 15 Cf. WILLIAMS, Raymond. Cultura. Tradução: Lólio Lourenço de Oliveira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. 20 suas diferenças (regionais ou nacionais) e a identidade particular de grupos16. É a partir dessa dimensão da cultura que o presente estudo buscará a historicização dos eventos – no plano cultural – ocorridos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972. Para tanto, este trabalho utiliza-se da ideia de contexto, que será aqui tomado no sentido de tudo que cerca determinado elemento ou, no presente caso, no seu sentido estrito, aquilo que faz sobressair o quadro espaço-temporal e a situação social local através de trocas comunicativas, seus participantes, o tipo de atividade e a regra que as regem17. Desta forma, ao se referir ao contexto histórico em que determinado conjunto de bens culturais foram produzidos, essa pesquisa buscará trazer à tona os eventos que constituíram a produção no campo das artes articuladas à sua realidade social e à ação de seus realizadores. Os bens culturais em questão são os filmes produzidos na Bahia num período em que questões como a contracultura e a repressão empreendida pelo regime militar se imbricam e estabelecem o caráter marginal dessas obras. Sendo assim, é importante verificar a emergência de uma cultura marginal, ou à margem de uma cultura oficial, ou daquela de mercado que naquele período no Brasil tomavam o rumo da industrialização. A cultura marginal é a voz do Outro, a contracorrente de um sistema que produz bens de cultura em série, realizada por quem reivindica ou é colocado fora da roda desse sistema. Considera-se marginal tanto a historiografia produzida por esse Outro, como também o sujeito que a produz. Desta forma, a sua cultura destaca uma reconfiguração cosmopolita a partir do subalterno ou de um “cosmopolitismo do pobre” 18. A cultura marginal, periférica e subalterna procura assim se afastar de uma imagem “oficial” de identidade nacional, descolar-se completamente do registro burocrático da história e tenta delinear o ponto de vista de um grupo ou minoria. Nesse âmbito, contracultura em muitos aspectos torna-se sinônimo de cultura marginal se se tomar o conceito desta última como um conjunto de valores, crenças e atitudes de qualquer grupo de minorias que se oponha à cultura dominante, feita relativamentede forma articulada e reflexiva19. Em um plano mais abrangente, pode-se pensar em contraculturas através da história ou de movimentos e práticas culturais que se posicionaram contra algum paradigma hegemônico. Desta forma, em seus primórdios, o cristianismo foi uma contracultura em relação ao judaísmo e aos cultos romanos, bem como as vanguardas européias do começo do século XX foram 16Cf. ELIAS, Norbert. O processo civilizador: uma história dos costumes. Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. 17Cf. CHAROUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2004. 18 Cf. SANTIAGO, Silviano. “Poder e Alegria: a literatura brasileira pós-64”. In:_. Nas Malhas das Letras. São Paulo: Rocco, 2002. 19 Cf. EDGAR, Andrew; SEDGWICK, Peter (Orgs). Teoria Cultural de A a Z: conceitos chaves para entender o mundo contemporâneo. Tradução: Marcello Rollemberg. São Paulo: Contexto, 2003. 21 contraculturas em relação à arte acadêmica20. O termo ganha essa conotação nos anos de 1960 quando um contingente de jovens empreendeu lutas contra a tecnocracia, o capitalismo, a burocracia e, conseqüentemente, contra guerras e ditaduras. A afirmação dos jovens como atores sociais e como segmento consumidor lhes deu uma visibilidade que outrora inexistia. A rebeldia e os protestos contra a geração mais velha e contra o sistema cultural vigente – a sociedade industrial, produtivista e consumista – ganharam força na mídia e se espalharam por todo o Ocidente capitalista, contribuindo para a formação de uma cultura jovem que iniciou um itinerário na contramão da sociedade da época21. No caso brasileiro, o final da década de 1960 e o início da de 1970 constituíram-se como período propício para a disseminação do ideário contracultural no país. A derrocada do projeto nacional-popular que havia criado um clima de otimismo social e politização da cultura nos dez anos que antecederam o golpe militar de 1964 contribuiu para certo deslocamento de uma ativa participação de artistas e intelectuais na sociedade para uma postura marginal e de combate através de estratégias como o deboche e o riso contra o terror da repressão ditatorial22. Essas estratégias inspiradas nos movimentos contestatórios e nas manifestações contraculturais verificados na Europa e nos Estados Unidos continham elementos que se diferenciavam da tradição nacional-popular, causando reações adversas tanto aos conservadores partidários do regime quanto à parte da esquerda, pois se baseava na afirmação individual, na liberação do corpo, na celebração da diferença sexual e racial, e no humor iconoclástico em face da autoridade. O principal movimento nas artes que adotaria expressamente essas posturas foi o Tropicalismo, tendo na música o seu ponto mais nevrálgico ao estabelecer a conexão entre protesto político, contraposição a cânones, quebra de sistemas hierárquicos e diálogo com o mercado23. Nesse mesmo contexto, emerge, no final dos anos de 1960, um conjunto de filmes também influenciados pela contracultura a partir de narrativas fragmentadas, esquemas de bricolagem e a redenção do que era tido como menor, baixo, desprezado, imperfeito e lixo como parte de uma estratégia de subversão, conhecida como “estética do lixo” 24. O Cinema Marginal, como ficaram conhecidas essas obras, assim como boa parte da cinematografia latino-americana da época, também trilharam o caminho da inversão de sentido de tudo que era tido como negativo no discurso “colonialista”, intencionando transformar a fraqueza estratégica numa força tática. 20 Cf. GOFFMAN, Ken; JOY, Dan. Contracultura através dos tempos: do mito de prometeu à cultura digital. Tradução de Alexandre Martins. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007. 21 Cf. ROSZACK, Theodore. A contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil. Petrópolis: Vozes, 1972. 22 Cf. SANTIAGO. Silviano. Op.Cit. 23Cf. HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Impressões de Viagem, CPC, Vanguarda e Desbunde: 1960/1970. São Paulo: Brasiliense, 2004. 24 Cf. RAMOS, Fernão. Op. Cit. 22 Permeados por um humor corrosivo, os filmes do Cinema Marginal estabeleciam um diálogo intertextual com as fitas de gênero – o cinema “noir”, o faroeste, o musical –, o documentário, a chanchada e a ficção científica numa compilação de pastiches25. Radicalizando as propostas iniciais do Cinema Novo de uma “estética da fome”, o Cinema Marginal, porém, recusou esse tom pedagógico da tomada de consciência do “povo”, adotando uma linguagem agressiva causadora de tensão e afastamento do grande público26. Nesse sentido, a lógica marginal estabelecida pelos cineastas ultrapassava as suas próprias idéias estéticas, revelando-se também nos esquemas de produção e exibição, remando na contramão da formação do mercado de bens culturais que se consolidava no país. Para a compreensão e periodização do surgimento no Brasil desses novos traços formais na vida cultural que correspondem ao surgimento de um novo tipo de vida social e cultural e de uma nova ordem econômica, chamados também de capitalismo tardio, é preciso pensar de maneira diferente as etapas do capitalismo no mundo, a saber: o de mercado, o monopolista ou imperialista, e o atual, multinacional ou tardio27. Devido às suas especificidades, o caso brasileiro funciona com tempo e dinâmica diferentes, uma vez que devido a sua posição periférica em relação aos centros de decisões das economias hegemônicas, fazendo, assim, com que programássemos nossas próprias coordenadas culturais28. Dessa forma, a convivência entre desigualdades regionais, miséria e sofisticação tecnológica gera um descompasso que é o elemento formador da história cultural brasileira – marcada pela tentativa de harmonizar o nacional “atrasado” e o estrangeiro “adiantado” 29. Os governos militares das décadas de 60 e 70, mediante a força, trataram de introduzir, no país, esse novo estágio do capital internacional em que ao se expandir até setores da vida até então secundarizados pela lógica de mercado, como a cultura que passa a se adequar à sua circulação em moldes industriais. Nesse sentido, na abordagem do contexto cultural em questão é de fundamental importância verificar elementos dessa nova ordem econômica e cultural internacional que é, simultaneamente, instaurada e abalada, tanto pelas suas próprias contradições internas quanto pela resistência interna30. Outra dimensão explicitada por essa pesquisa é a histórica. Nessa esfera, tendo em vista ser o cinema o tema deste estudo, faz-se necessário adotar conceitos que efetivam a relação entre 25Cf. VIEIRA, João Luis. Lixo, Marginais e Chanchada. 2004. Disponível em <http://www.heco.com.br/marginal/01.php> Acesso em: 02 abr. 2007. 26 Cf. XAVIER, Ismail. O Cinema Marginal revisitado, ou o avesso dos anos 90. 2004. Disponível em <http://www.heco.com.br/marginal/01.php>. Acesso em: 02 abr. 2007. 27Cf. JAMESON. Fredric. Op. Cit. 28 Cf. ORTIZ, Renato. Op. Cit. 29 Cf. SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. 30 Cf. JAMESON, Fredric. A virada cultural. Tradução: Carolina Araújo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. http://www.heco.com.br/marginal/01.php http://www.heco.com.br/marginal/01.php 23 essa forma de arte e a história. Desta forma, localizam-se três possíveis campos que permeiam esse relacionamento: “a história do cinema”, campo da historiografia cinematográfica, “a história no cinema”, o cinema visto como fonte histórica, e “o cinema na história”, o cinema como agente da história. Dessas três vertentes nos interessa tomar elementos das duas primeiras. O campo da historiografia cinematográfica estará presente uma vez que será necessário um redimensionamento da bibliografiasobre o cinema baiano verificado entre 1968 e 1972, amparado pelo trabalho da crítica cinematográfica local – Walter da Silveira, André Setaro, José Umberto – fundamental para o estabelecimento de parâmetros historiográficos e preservação da memória dessas obras e dos acontecimentos que a cercaram, bem como para inseri-las dentro de um contexto mais totalizante da cinematografia da época. Nesse sentido, o estudo parte do âmbito sócio-cultural, pois um determinado conjunto de produções fílmicas cria representações de uma sociedade em um determinado momento histórico, podendo-se perceber desde intenções dos realizadores e das formas sócio-culturais por eles difundidas até as correntes culturais ou ideológicas que as películas se filiam31. Os filmes em questão também serão tomados como fontes históricas, ou seja, a obra cinematográfica traz informações a respeito de seu presente, mesmo os de ficção devido a sua natureza de maior divulgação e circulação, conseqüentemente exercendo um maior diálogo entre filme e sociedade. Desta forma, a obra cinematográfica, independente do gênero, trará imagens sobre algum aspecto da realidade não apenas pelo que se propõem a representar como da forma como foram elaborados32. As fontes primárias desta pesquisa serão os longas-metragens de ficção produzidos na Bahia entre os anos de 1968 e 1972. Sendo assim, preliminarmente podem ser citados como realizações desta natureza os filmes Meteorango Kid, o herói intergaláctico (André Luiz Oliveira, 1969), Caveira, my friend (Álvaro Guimarães, 1970), 69: A construção da morte (Orlando Senna, 1970), Akpalô (José Frazão e Deolindo Checcucci, 1971) e O Anjo Negro (José Umberto, 1972). Ressalta-se, porém, que os filmes Akpalô e 69: A construção da morte não possuem cópias disponíveis – existindo, ainda, fortes indícios do desaparecimento definitivo dessas obras. Desta forma, a análise fílmica ficará restrita às películas existentes. O método de análise estará ancorado em duas perspectivas que se complementam: o cinema como fonte histórica e a análise fílmica. O cinema como fonte histórica propõe a revelação do processo de construção subjetiva do contexto histórico no interior da narrativa fílmica a partir da análise da fonte emissora, bem como das condições de produção e recepção do 31 Cf. CARVALHO, Maria do Socorro Silva. Imagens de um tempo em movimento: cinema e cultura na Bahia nos anos J. K. (1956-1961). Salvador: EDUFBA, 1999. 32 Cf. FERRO, Marc. Cinema e história. Tradução: Flávia Nascimento. São Paulo: Paz e Terra, 1992. 24 filme. Nessa operação, efetua-se o esquadrinhamento do filme e o exame de como o seu sentido é produzido, refazendo, para tanto, o caminho trilhado pela narrativa, levando em conta as tensões – provenientes da associação de diversos tipos de signo – dessa prática discursiva. A partir daí, é possível “desvendar os projetos com os quais a obra dialoga sem perder de vista sua singularidade dentro de seu contexto” 33. Nesse sentido, o esquadrinhamento, ou propriamente a análise fílmica, seria o destacamento de elementos da construção dos filmes – planos, seqüências, movimentos, passagens de um plano a outro, diálogos, trilha sonora, etc. – não percebidos de modo imediato, para num segundo momento estabelecer-se relações entre esses elementos isolados, fazendo surgir um todo significante, tendo sempre como perspectiva a obra em si.34 Outras fontes secundárias desta pesquisa são constituídas dos principais veículos de comunicação impressa em circulação na cidade de Salvador entre 1968 e 1973, sendo eles os periódicos A Tarde, Jornal da Bahia, Diário de Notícias – com tiragens em todos os meses dos referidos anos –, e A Tribuna da Bahia – a partir de 1970. É importante observar que a consulta a esses periódicos terá o objetivo de alicerçar a construção de um pequeno panorama dos acontecimentos relativos ao contexto da cultura no estado naquele período, uma vez que este não é o objetivo central da pesquisa. Desta forma, serão consultados os exemplares dos finais de semana, dedicando-se uma atenção maior aos chamados “suplementos culturais”, em que as atividades do mundo das artes destacam-se. Ressaltam-se aqui os limites dessas fontes no sentido de que podem oferecer informações contaminadas por uma política de controle e censura em face do regime de exceção em voga. Por outro lado, é preciso também considerar que muitos dos atores sociais dos eventos aqui abordados tinham uma efetiva produção de artigos e críticas naqueles jornais, como é o caso de José Umberto – diretor de O anjo negro e um dos pontos de referência para as atividades cinematográficas da época – que escrevia críticas de cinema e artigos nas “Páginas Azuis” da Tribuna da Bahia, o que pode sugerir o aparecimento de informações importantes sobre os próprios filmes em questão. Ainda nesse âmbito dos limites da mídia impressa da época, serão consultados os exemplares do jornal Verbo Encantado. Inserido no âmbito da “imprensa alternativa”, essa publicação traça um painel da cultura da época especialmente em Salvador. Influenciados pelo ideário da contracultura, o jornal possui edições entre os anos de 1971 e 1972, tendo a frente nomes fundamentais do Ciclo de cinema em questão 33 MORETTIN, Eduardo. O cinema como fonte histórica na obra de Marc Ferro. In: CAPELATTO et al. História e Cinema. São Paulo: Alameda, 2005. 34 VANOYE, Francis, GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. Campinas: Papirus, 2002. . 25 como Álvaro Guimarães, Deolindo Checucci e José Umberto, sendo fonte indispensável para a identificação dos elementos do contexto cultural da época. Outras fontes secundárias desta pesquisa serão as informações trazidas pelos diretores, produtores, atores e pessoal técnico dos filmes, seja através de entrevistas realizadas em periódicos da época, seja em biografias ou autobiografias, compondo assim um painel não apenas sobre os detalhes da realização das obras como também do contexto cultural da época. Sendo assim, o primeiro capítulo deste trabalho abordará o Cinema Marginal como uma vertente do advento da contracultura no cinema brasileiro. Para tanto, é preciso em primeiro lugar compreender alguns aspectos de como a contracultura foi assimilada no Brasil e inter-relacionar os fenômenos culturais caracterizados pelo questionamento da cultura hegemônica da época, ou seja, o Tropicalismo, o Cinema Novo e o Cinema Marginal - foco desta pesquisa; em seguida, ainda neste capítulo serão levantados os elementos narrativos, as características estéticas e as tendências e grupos desse movimento cinematográfico – apesar de não haver consenso quanto ao termo, nem ter havido propriamente uma coesão de grupo. A partir das definições e contextualização sobre a contracultura no Brasil e o Cinema Marginal, o segundo capítulo introduzirá o chamado Surto de Cinema Marginal da Bahia no âmbito da assimilação da contracultura na Cidade da Bahia, ou seja, como esse momento do cinema baiano foi engendrado naquele contexto, como foram realizados os primeiros curtas e como foi o processo que resultou no desaparecimento de dois longas-metragens de ficção. Assim, buscando os aspectos desse contexto cultural nessas obras, o terceiro capítulo analisará os três filmes de longa-metragem de ficção existentes, sendo que em “Meteorango Kid, herói intergaláctico” será visto como a contracultura e o contexto cultural baiano é representado, em Caveira, my friend, será abordada a questão da marginalidade a partir do conceito de banditismo social – empreendendo-se para tanto abordagem um diálogo com “O Bandido da Luz Vermelha” de Rogério Sganzerla ; finalizando com a análise do filme “O anjo negro” no sentido de perceber como a cultura afro-baiana é representada como contracultura.26 1. CINEMA MARGINAL: CONTRACULTURA À BRASILEIRA NO CINEMA Theodor Roszak afirma que, apesar das lutas entre gerações serem uma constante na história humana, os acontecimentos de meados da década de 1960 até o início da de 1970, e em especial o ano de 1968, tinham um caráter específico. Denominados por ele de “contracultura”, todos os fenômenos daqueles anos - oposição à guerra de Vietnam, movimentos pelos direitos civis, o chamado “amor livre” e o uso de drogas psicodélicas na procura de uma “expansão da consciência”, entre outros -devem ser pensados não como fatos isolados, mas como gestos de uma dissensão radical e de grande inovação cultural35. Neste sentido, pode-se definir contracultura como a representação dada a um conjunto de manifestações de repúdio ao modo de vida predominante no Ocidente, por parte da juventude daqueles anos, das quais resultaram algumas transformações sócio-culturais, ainda que nem sempre as defendidas por seus teóricos e apologistas. Entre as suas manifestações mais visíveis, encontram-se a desvalorização do racionalismo, tendo com uma decorrência na época, as rebeliões nas universidades, contra ao sistema de ensino, e a construção de novos paradigmas, ou visões de mundo, baseadas em correntes culturais subterrâneas do Ocidente, em filosofias e religiões orientais e em certas vertentes da psicanálise e do marxismo; a recusa do estilo de vida consumista expresso em um estilo de vida desregrado e errante - sendo os hippies os principais exemplos deste modelo; e o hedonismo, caracterizado pela valorização do corpo e das emoções, sendo as suas principais manifestações a “revolução sexual” e o culto às drogas psicotrópicas, relacionadas especialmente ao rock in roll. Aquele período configura-se como um momento de transição para o surgimento de novos aspectos formais da cultura, de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica que aqui denominarei de sociedade de consumo pós-industrial ou de capitalismo multinacional36 – que no Brasil e em quase toda a América Latina imersos em modelos nacional-desenvolvimentistas necessitaram ser inseridos à força, via estados de exceção, a essa nova ordem do capital. Aquela foi uma época em que um contingente de jovens, a partir da percepção das contradições desse novo momento, tentou estabelecer paradigmas culturais em que a experimentação, a liberdade e a diversidade seriam as suas principais premissas e as principais vias para a elaboração de 35 Cf. ROSZACK, Theodore. Op.Cit. 36Para Fredric Jameson esse momento histórico-social que ele denomina de capitalismo tardio pode ser definido como o momento em que os últimos vestígios da natureza que sobreviveram ao capitalismo clássico são finalmente suprimidos: os anos de 1960 foram o período de transformação em que esta reestruturação sistêmica passou a se estabelecer em escala global. Cf. JAMESON, Fredric. Periodizando os anos 60. In: HOLANDA, Heloisa Buarque de. Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. 27 estratégias de resistência. Desta forma, o que se convencionou chamar de contracultura, antes de sua absorção às regras de mercado, ou, na designação de György Lukács, antes de sua reificação, refere-se a um momento cultural em que é identificada a emergência de novas identidades coletivas e de novos sujeitos da história (JAMESON, 1991): o movimento contracultural da década de 1960 proporciona o surgimento de novas categorias sociais e políticas que põem em xeque a tradicional noção de classe social e as formas clássicas de ação política, pondo novos atores sociais em movimentos como o feminista e o de afro-descendentes, contribuindo, assim, para o descentramento e alargamento do campo das identidades e ainda o incremento da polarização entre elas (HALL, 2002). A contracultura, ainda, está inserida em um momento de democratização da vida cotidiana e da cultura política na segunda metade do século XX, principalmente através dos meios de comunicação impressos e eletrônicos e por associações não tradicionais de jovens, de caráter urbano, com preocupações que vão das artes à ecologia, passando pela moda, até questões raciais e de gênero. Nesse sentido, essa nova contracultura surge e alimenta essas novas identidades coletivas, associadas à emergência de novos movimentos sociais e a uma nova dimensão do fazer político, sendo síntese, mas também produto e resultado dos anseios de um período comprometido em sedimentar uma nova visão de mundo. Além disso, ao politizar o cotidiano, fazendo emergir para a vida política questões como gênero, sexo, liberdades individuais, ambientais, de raça etc., ampliou e tornou mais complexo o universo da luta de classes. Naqueles anos contraculturais, pode ser identificada uma nova postura política, agora centrada nas diferenças e na consolidação de novos movimentos sociais, associados através da identidade social de seus militantes, e na valorização de outras culturas, outras éticas, etnicidades e religiosidades. Com a contracultura multiplicaram-se iniciativas comprometidas com uma nova visão de mundo, sensibilidade e comportamento. No caso brasileiro, o final da década de 60 e o início dos anos 70 do século XX constituíram-se como períodos ideais para a afirmação do projeto contracultural. A derrocada do ideário político fomentado pelas esquerdas nos dez anos que antecederam o golpe militar de 1964 contribuiu para a valorização de uma postura marginal em relação ao sistema social vigente. Passam a ser erigidas novas formas alternativas de se relacionarem com o mundo, especialmente nos setores mais jovens da população. Em decorrência do estado de exceção implantado no país a partir de 1964, grande parte das concepções que buscavam uma intervenção social mais efetiva a favor da maioria da população passa a adotar ações voltadas para o bem-estar individual e o prazer pessoal. Novas questões notadamente do plano da subjetividade são vislumbradas, como a 28 sexualidade, o uso de drogas etc, além de grupos sociais, outrora dispersos nas reivindicações do âmbito da classe, passam a priorizar exigências relativas às suas próprias demandas. A contracultura difunde-se nas diversas artes como no cinema, na poesia, na música, a partir da tentativa de não inserção nas estruturas socialmente voltadas para divulgação - mesmo destinada à absorção pelas estruturas da indústria cultural. Veiculada por parcelas da classe média, uma parte da ideologia contracultural desenvolveu-se no plano das artes à margem das expectativas do mercado, apresentando uma forma estética com características narrativas radicalmente opostas àquelas voltadas para a circulação do valor da mercadoria cultural. Nessa contracultura, uma produção alternativa encontra campo ideal para sua expansão, sendo, no caso brasileiro, a partir de dois aspectos cruciais: por um lado, a opção ideológica pela vida marginal e alternativa dentro da sociedade capitalista, por outro, uma formação social restrita, que resultou na exclusão de qualquer participação mais ativa na vida cotidiana. Ocasionando, desses dois aspectos, uma forma estética fechada na sua realização e divulgação que influenciou o afastamento de um público mais amplo. Seguindo uma corrente de realizações que privilegiavam a autoria, a experimentação e a contraposição a uma cultura hegemônica, em relação aos aspectos comerciais que giram em torno de um filme, o Cinema Marginal surgiu no final da década de 1960 na esteira dessas transformações radicais no plano da cultura perpetradas por uma camada da juventude brasileira, tornando-se também um foco de resistência ao recrudescimento do estado de exceção vivido pelo Brasil naqueles anos. O presente capítulo parte de uma via de mão dupla para se compreender esse movimento cinematográfico brasileiro em seu contexto mais amplo. Entende-seaqui enquanto marginal os filmes que, tanto no nível de seus esquemas de produção, distribuição e exibição quanto nos seus aspectos narrativos, técnicos etc, ocupam um lugar periférico no que concerne, respectivamente, ao seu valor no mercado cinematográfico e à sua relação com a maioria do espectador de cinema – arrematada pela tradição de uma narrativa clássica. O entendimento dessa dupla dimensão tornará possível definir o lugar ocupado por aqueles filmes na cinematografia brasileira no que tange às suas filiações, influências e pontos de rupturas, bem como servir de parâmetro para a análise dos filmes realizados na Bahia e que receberam a denominação de cinema marginal. Inicialmente, para se compreender aspectos dessa contracultura brasileira, serão feitas considerações sobre os três fenômenos culturais brasileiros que dialogam de alguma forma com o espírito contracultural: o Tropicalismo, o Cinema Novo e o Cinema Marginal, tendo como fio condutor o recurso da alegoria como estratégia de comunicação e linguagem comum a esses movimentos. Em seguida, tentaremos responder em linhas gerais à questão da marginalidade do 29 próprio cinema brasileiro a partir da análise de momentos de sua cinematografia, especialmente no que se refere aos três processos de viabilização de uma obra cinematográfica (produção, distribuição e exibição), para tanto tomaremos dois momentos dispares do cinema brasileiro: o Cinema Novo e os filmes do estúdio Vera Cruz. Abordaremos, logo após, a importância do Cinema Novo na formação dos cineastas marginais e os pontos de ruptura que originaram o movimento e prosseguiremos, ao tratar do surgimento do Cinema Marginal no que tange ao seu contexto histórico-cultural, seus pontos de aproximação e distância com o Cinema Novo, seus grupos, vertentes, características estéticas e narrativas dos filmes – ilustrando, como exemplos, filmes do surto marginal baiano e o de outros estados. 1.1. Tropicália/Tropicalismo, Cinema Novo e Cinema Marginal: alegoria e intersecções A música “Objeto Semi-Identificado” 37, uma das que compõe a trilha do filme “Meteorango Kid, herói intergaláctico” – uma das fontes desta pesquisa - indica alguns caminhos que o presente trabalho se propôs a trilhar. O experimentalismo tanto na letra quanto na música, a psicodelia, a fusão de ritmos e as diversas referências às diversas tipificações da cultura (as ditas alta, popular e de massa), incorporadas sem distinções nem hierarquias, apontam não apenas o que foi o projeto da tropicália, mas também o momento, verificado entre a segunda metade da década de 1960 e a primeira da década de 1970, de transformações sociais, históricas e econômicas no cenário cultural brasileiro. A letra, que expõe o gosto de comer moqueca, cultura e loucura com coentro e na qual Cultura e Civilização só interessam enquanto serve de alimento, remete-se e 37 “- Diga lá./- Digo eu./- Diga você./- E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis./E línguas como que de fogo tornaram-se invisíveis./ E se distribuíram e sobre cada um deles assentou-se uma./ E todos eles ficaram cheios de espírito santo e principiaram a falar em línguas diferentes./- Eu gosto mesmo é de comer com coentro./ Uma moqueca, uma salada, cultura, feijoada, lucidez, loucura./ Eu gosto mesmo é de ficar por dentro, como eu estive na barriga de Claudina, uma velha baiana cem por cento./- Tudo é número./ O amor é o conhecimento do número e nada é infinito./ Ou seja: será que ele cabe aqui no espaço beijo da fome? Não./ Ele é o que existe, mais o que falta./- O invasor me contou todos os lances de todos os lugares onde andou./ Com um sorriso nos lábios ele disse: "A eternidade é a mulher do homem./ Portanto, a eternidade é seu amor"./Compre, olhe, vire, mexa./ Talvez no embrulho você ache o que precisa./ Pare, ouça, ande, veja. Não custa nada./ Só lhe custa a vida./- Entre a palavra e o ato, desce a sombra./ O objeto identificado, o encoberto, o disco-voador, a semente astral./- A cultura, a civilização só me interessam enquanto sirvam de alimento, enquanto sarro, prato suculento, dica, pala, informação./- A loucura, os óculos, a pasta de dentes, a diferença entre o 3 e o 7. /Eu crio./A morte, o casamento do feitiço com o feiticeiro./ A morte é a única liberdade, a única herança deixada pelo Deus desconhecido, o encoberto, o objeto semi-identificado, o desobjeto, o Deus-objeto./- O número 8 é o infinito, o infinito em pé, o infinito vivo, como a minha consciência agora./- Cada diferença abolida pelo sangue que escorre das folhas da árvore da morte. Eu sou quem descria o mundo a cada nova descoberta./ Ou apenas este espetáculo é mais um capítulo da novela "Deus e o Diabo etc. etc. etc."/- O número 8 dividido é o infinito pela metade./ O meu objetivo agora é o meu infinito./ Ou seja: a metade do infinito, da qual metade sou eu, e outra metade é o além de mim.” GILBERTO GIL. Objeto Semi-Identificado. In: GILBERTO GIL(Cérebro Eletrônico)Rio de Janeiro: Philips, 1969. L. B, faixa 10.1 disco (5’16”): 33 1/3rpm, microssulco, estéreo. 30 imbrica-se imediatamente a um período anterior de transformações culturais que foi o do início do modernismo no Brasil, nos anos de 1920, em que artistas como Oswald de Andrade teorizaram e puseram em prática o movimento antropofágico que propunha a deglutição da cultura além das fronteiras brasileiras, especialmente a hegemônica – europeia e estadunidense - para regurgitá-la após ser mastigada e mesclada com a cultura local. A tropicália foi um pouco além, o bolo que se forma na boca “descria” o alimento original “abole” a diferença, no seu sentido excludente, e cria o novo objeto, o “Deus-Objeto”, encoberto, desconhecido e semi-identificado – novas identidades, não mais rígidas, emergem e se deslocam de acordo com as identificações do sujeito. A tropicália, movimento musical, e o tropicalismo, movimentações mais abrangentes no campo das artes, podem ser considerados experiências culturais contra-hegemônicas38, ou contraculturas, no sentido de contraposições e lutas culturais que emergem em um dado momento histórico. Esses grupos de artistas desconfiados dos discursos nacionalistas e populistas, sejam procedentes da esquerda ou da direita, procuravam compreender os embaraços do processo cultural brasileiro, ao mesmo tempo em que assimilavam informações dos movimentos culturais de juventude que ocorriam na Europa e nos Estados Unidos – o cinema de Jean-Luc Godard, os hippies, o rock experimental e psicodélico e a canção de protesto, tendo músicos como Bob Dylan, Frank Zappa e grupos como os Beatles e Rolling Stones como importantes referências. Segundo Heloisa Buarque de Hollanda, a postura cênica e existencial dos jovens baianos Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tom Zé, Rogério Duarte, Gal Costa dentre outros, com seus cabelos compridos, roupas coloridas, atitudes inesperadas e críticas de fundo político significavam um momento de crise. Para ela, ao recusar os padrões de boa conduta, os tropicalistas reagiam contra as formas de poder a partir da “ocupação dos canais de massa, a construção literária das letras, a técnica, o fragmentário, o alegórico, o moderno e a critica de comportamento” 39. Ademais, observa a crítica literária paulista, a opção por um olhar fragmentado e descontínuo do mundo e a atualização de uma linguagem que estivesse em sintonia com o seu tempo demonstra a incorporação de elementos fundamentais da modernidade que a autora afirma não ser uma novidade em si visto que nos modernistas de 1922 também podem ser notados. Esses elementos, 38 O sentido de contra-hegemônico aqui utilizado deriva da formulação, elaborada pelo filósofo italiano Antônio Gramsci, de hegemonia, ou seja, a compreensão de que o poder das classes dominantes sobre o proletariado e sobre todas asclasses dominadas dentro do modo de produção capitalista advém não apenas do domínio dos aparatos repressivos, mas fundamentalmente pela “hegemonia” cultural, através do controle do sistema educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação, buscando a manutenção dessas classes subalternizadas para que essas permaneçam naturalmente e convenientemente submissas, inibindo dessa forma suas pontencialidades revolucionárias. A contra-hegemonia se dá através de estratégias de contraposição fomentadas por setores da sociedade a esse controle, aplicadas nos âmbitos político, social e cultural (Cf. GRAMSCI, Antônio. Cadernos do Cárcere. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000). 39 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. Cit.p.64. 31 perceptíveis seja no ideal pessimista do herói moderno baudelairiano que assume diversas facetas e personalidades em um mundo de existências desordenadas devido à velocidade das transformações sociais proporcionado pelo processo de modernização, em que, porém, o surgimento da técnica revela-se a negação da imagem do mundo; seja na constatação otimista de Walter Benjamin de que essa perda da imagem do mundo faz com que este seja representado de forma alegórica, ou seja, a representação do outro, dos vários outros e não do todo, pois suas alusões são pluralistas, tendendo à diversidade40. Se na reflexão de Benjamin a alegoria é a chave para se compreender a modernidade, essa estética é, na opinião da autora, reativada a partir de meados da década de 1960 de forma marcante pelos tropicalistas “num momento em que a industrialização e a modernização do Brasil – que vinham sendo o pano de fundo dos debates desde o fim da década de 1950 – já estavam definitivamente colocados” 41. Todavia, este conceito sofrerá críticas, especialmente de setores do pensamento de esquerda daquele período que, como observou Roberto Schwartz, exerciam uma relativa hegemonia nos círculos culturais do país. Para Hollanda, no plano geral de ideias que influenciavam a crítica naquele período, György Lukács concluirá que a alegoria é um procedimento que nega a realidade imediata, detendo-se apenas à superficialidade de alguns de seus elementos. De fato, Lukács acreditava que o papel principal da arte é o de contribuir para a transformação da consciência do indivíduo, apresentando-lhe formas alternativas e profundamente críticas de confronto com a sociedade capitalista e seu modo de produção, sendo assim, partindo da análise de uma das, por ele consideradas, formas abstratas da realidade, no caso, a ornamentística ou a arte decorativa através da história, o pensador húngaro considerava que o alegórico se baseia. [...] en el hecho deque no existe, entre el modo esencial sensible y visible de los objetos representados y su sentido que descubre por composición El todo de la obra de arte, ninguna conexión fundada en la esencia misma de los objetos. Visto desde esa objetividad, toda interpretación alegórica es más o menos arbitraria, y a veces lo es totalmente.42 Ao criticar a estética alegórica e o fenômeno da Tropicália, Roberto Schwartz efetua uma análise da conjuntura política e cultural do Brasil de antes e depois do golpe militar de 1964. Schwartz, influenciado pelo pensamento de Luckács, vai definir o momento como de crise, 40 Ibidem.p.67. 41 Ibidem.p.68. 42 LUCKÁCS, György. :1966, p. 349 32 marcado pela combinação entre o moderno e o antigo, ou seja, pelas “manifestações mais avançadas entre a integração imperialista internacional e a ideologia burguesa mais antiga – e obsoleta – centrada no indivíduo, na unidade familiar e suas tradições”43 (SCHWARTZ: 1992 p. 73). Sendo assim, segundo ele, o golpe militar de 1964 foi o instrumento para a anexação da economia brasileira aos desígnios do capital internacional, impondo um modelo político e cultural conservador e anacrônico a serviço de um modelo modernizador que passa a ser implementado sob o julgo da força, da censura e da submissão – em contraste ao do projeto nacional desenvolvimentista cuja modernização perpassaria pelas relações de propriedade e poder e pela ideologia, cedendo às pressões de esferas da sociedade civil e das necessidades de desenvolvimento nacional. Interrompido o modelo de modernização da nação a partir de fórmulas locais advindas dos debates promovidos por setores da cultura, da academia e das organizações políticas e de trabalhadores, restava aos seus atores assimilar a nova realidade e desenvolver estratégias que retomassem as discussões e reivindicações nos termos, ou não, da nova conjuntura. Para o sociólogo, os tropicalistas assimilaram esse momento fazendo justamente a junção entre o moderno e o arcaico, tendo como resultado uma espécie de alegoria do Brasil. Segundo ele, a reserva de imagens e emoções próprias ao país patriarcal, rural e urbano, é exposta à forma ou técnica mais avançada ou na moda mundial – música eletrônica, montagem eisensteiniana, cores e montagem do pop, prosa de Finnegans Wake, cena ao mesmo tempo crua e alegórica, atacando fisicamente a platéia. É nesta diferença interna que está o brilho peculiar, a marca de registro da imagem tropicalista. O resultado da combinação é estridente como um segredo familiar trazido à rua, como uma traição de classe. É literalmente um disparate – é esta a primeira impressão – em cujo desacerto, porém, está figurando um abismo histórico real, a conjugação de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista (1992, p.74).44 Entretanto, por sua vez, Marcelo Ridenti sugere uma nova interpretação sobre a imbricação entre o binômio moderno versus arcaico, assim como urbano versus rural e estrangeiro versus local. Para o sociólogo paulista não se trata de resistir à indústria cultural e à ditadura encastelando-se romanticamente no passado, mas de mergulhar de cabeça nas novas estruturas para subvertê-las por dentro, incorporando desde as últimas conquistas das vanguardas [...] até as tradições mais arcaicas, enraizadas na alma dos brasileiros45 (RIDENTI: 2000, p. 284). 43 SCHWARZ, Roberto. Op.Cit.p.73. 44 SCHWARZ, Roberto. Op.Cit.p.74. 45RIDENTI. Marcelo. Em Busca do Povo Brasileiro: artista da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2000.p.269. 33 Isto significa uma ruptura com uma das vertentes do pensamento nacional-popular, especificamente com a relacionada com a do PCB, mas não com todos os aspectos da cultura política brasileira, pelo menos à tecida desde o final do século XIX. O projeto tropicalista, um dos frutos diferenciados da cultura política engendrada naqueles anos, buscava superar o “nacionalismo” ao mesmo tempo negando-o e incorporando-o, preservando, assim, discussões em torno da problemática da identidade brasileira e do subdesenvolvimento, elaborando uma crítica ao que Ridenti denomina de “romantismo racionalista e realista nacional-popular”, mantendo-se, porém, no âmbito da cultura política romântica da época46. Por sua vez, Heloísa Buarque de Hollanda - ao chamar a atenção para uma ausência de uma percepção mais ampla sobre o Movimento Tropicalista que desse conta de seus efeitos críticos especialmente no que concerne à linguagem e a subversão de valores e comportamento – critica o citado ensaio de Roberto Schwartz e sugere que as preocupações do Tropicalismo eram referentes ao “aqui e o agora”, pois o movimento pensava “na necessidade de revolucionar o corpo e o comportamento, rompendo com o tom grave e a falta de flexibilidade da prática política vigente” 47. E será exatamente por essa postura escrachada e o afrontamento à postura do bom comportamento, observa Hollanda, que Gilberto Gil e Caetano Veloso acabariam sendo exilados pelo regime militar. Por outro lado, ao analisar filmesdo Cinema Novo e do Cinema Marginal que adotaram a alegoria como recurso para experiências estéticas e crítica política, tendo como fonte de inspiração e interlocução também o movimento tropicalista, Ismail Xavier cita alguns elementos do contexto da cultura da época que esses movimentos refletiam. Primeiramente ele aponta uma mudança de direção na consciência dos artistas e dos críticos em relação à Indústria Cultural no Brasil devido à “urbanização, pelo desenvolvimento dos meios audiovisuais e pelo boom da propaganda. O mercado cultural e o da informação crescem em importância e se transformam em área privilegiada de interesse.” 48 Da mesma forma, Xavier observa que um determinado grupo social acaba se destacando nesse momento cultural e político vivido pelo país: “Na vida cotidiana, um dado plenamente visível é a proeminência dos jovens na vida política, na esfera do consumo e da propaganda, e na produção de cinema, teatro e música popular”49. 46 Ridenti dialoga com a taxonomia elaborada pelos sociólogos Michael Löwy e Robert Sayre no ensaio Romantismo e Política que defendem a permanência dos princípios do romantismo na cultura e na política a partir do final do século XIX até os nossos dias (Cf. LÖWY, Michael, SAYRE, Robert. Romantismo e Política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003). 47 HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Op. Cit.loc.Cit. 48 XAVIER, Ismail. Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. São Paulo: Cosac Naify, 2012.p.40. 49 Idem. 34 O teórico curitibano do cinema avalia ainda que essa “nova consciência” tem como expressão mais significativa a Tropicália o qual o Cinema Novo, no processo de assimilação da estética daquele movimento efetuou uma crítica ácida ao populismo anterior a 1964. Observa ainda que o Cinema Novo, mesmo sem recorrer ao advento da paródia, nem mesmo se valer de representações da sociedade de consumo como fizeram a Tropicália e o Cinema Marginal, “ressalta a dimensão grotesca de um momento histórico e permeia a discussão política com a exibição agressiva do kitsch , associando as ‘desmedidas nacionais’ e o descaminho da história”50, identificando, assim, o golpe militar como o momento do fracasso do projeto de reformas do pensamento nacional-popular, devido à distância mantida das classes populares, que permaneceram alienadas – como também a classe média. Ao analisar o filme Opinião Pública do diretor Arnaldo Jabor, Xavier resume as intenções dessa primeira fase do Cinema Novo e põe em evidência as diferenças de estratégias e de leitura da realidade social e cultural brasileira em relação à Tropicália e ao Cinema Marginal: O filme penetra nos estúdios de TV, nas boates e nos bares, nos ambientes de reunião de turma e na república de estudantes, na fila do alistamento militar [...] E exorcizando qualquer possível fascínio, uma fala over empostada – o “discurso verdadeiro” – avança a interpretação do que vemos, imprimindo ao documentário um tom de tese sociológica. Na fala do locutor, o cantor de rock, a cultura jovem, Chacrinha, o melodrama da TV, os emblemas da incipiente sociedade de consumo e as “superstições do povo” são sempre referidos como alienação política.51 No plano estético, a Tropicália não apenas foi a expressão clara e evidente dessa “nova consciência” de que fala Ismail Xavier. Na interrogação, no experimentalismo e na agressão, o tropicalismo de 68 se fez confluência de inspirações; enquanto experiência de montagem do diverso, esse movimento da contracultura brasileira trouxe múltiplas tradições para o centro da cultura de mercado. Abrangente em seu diálogo, afirmou uma poética muito peculiar que o auxiliou a cumprir esse papel de síntese, pois, no seu retorno a Oswald de Andrade, fez da intertextualidade o seu maior programa, completando, deste modo, o arco de reposições do Modernismo de 20 realizado no binômio 50/60. No entanto, a antropofagia do tropicalismo de 68 se insere nesse contexto completamente diverso de que estamos tratando, no qual uma indústria cultural vigorosa e presente tornara-se hábil em absorver “a subversão e o veneno da paródia”52. A 50 Ibidem.p.41. 51 Ibidem.p.42. 52 Ibidem, p. 20. 35 lógica intertextual tropicalista deveria, portanto, se reinventar a todo tempo para não perder sua força de contestação. É difícil hoje, no momento em que a citação é prática rotineira da mídia, recuperar o contexto em que se fez possível um programa intertextual com aquele sentimento de ruptura que lhe deu a Tropicália, tendo como focos, simultaneamente, a questão nacional e a questão de uma estética dos meios.53 O programa tropicalista, na medida em que opera insistentemente com os recursos da intertextualidade, da citação e da colagem, demonstra uma vocação metalingüística intrínseca. Tanto em suas composições musicais — sem dúvida as mais características do movimento — quanto nas artes visuais, o procedimento metalingüístico ocupa papel central. No seu jogo de contaminações — nacional/estrangeiro, alto/baixo, vanguarda/kitsch — o Tropicalismo pôs a nu o seu próprio mecanismo. Ou seja, chamou a atenção para o momento estrutural das composições, lembrando um tipo de efeito de estranhamento que ganha maior nitidez nas artes visuais e de mise-en-scène; as que, não por acaso, tiveram papel fundamental para o impacto das canções. Pela função que cumpriu no procedimento tropicalista, a citação se articulou a um outro protocolo de modernidade, igualmente programático e variado em suas acepções: a reflexividade, a exibição dos materiais e do próprio trabalho da representação. Essa “vocação metalingüística” do tropicalismo, quando encarada dentro do cinema, assume outra dimensão, muito particular, dada a forte relação da técnica cinematográfica com a fascinação. Sendo assim, pode-se afirmar que o Cinema Marginal é a expressão tropicalista em suas vestes cinematográficas. Tal afirmação não é definitiva, já que a confluência de inspirações deste novo cinema abarca ainda outras experiências, como a da Nouvelle Vague, notadamente as experiências conduzidas pelo já citado cineasta francês Jean-Luc Godard. São estes, pois, os vértices que se destacam na conjuntura daquele final da década de 1960 e que propiciam o surgimento dessa nova visão de cinema e aplicação da linguagem cinematográfica que é o Cinema Marginal: no plano político-ideológico, o soterramento das expectativas progressistas do início da década e o conseqüente abandono dos projetos de poder; no plano sócio-cultural, o pleno estabelecimento de uma sociedade de consumo de massa e o forte papel exercido por uma cada vez mais presente indústria cultural; no plano tecnológico, os avanços dos meios audiovisuais; e, por fim, no plano estético, o movimento da Tropicália, em sua retomada ao antropofagismo de Oswald de Andrade, e as experiências mais radicais da Nouvelle Vague francesa e do cinema de Godard. 53 Idem. 36 1.2. Cinema Brasileiro: uma cinematografia marginal? O tema da marginalidade do Cinema Brasileiro passa primeiramente por analisar a estrutura de produção de sua cinematografia, tomando-se como parâmetro o filme enquanto bem cultural e mercadoria. Segundo Fernão Ramos54, é possível considerar três etapas na realização do valor da “mercadoria cinematográfica”: a produção da mercadoria, ou seja, do filme, sua circulação no mercado através da distribuição e a efetiva realização de seu valor por meio da exibição. Essa cadeia que se constitui na chave para o entendimento da atividade cinematográfica revela, em sua parte final, a questão da aceitação do público. Para Ramos, tanto aqueles comprometidos com o lucro como fim de suas atividades como os que enfatizam a produção, privilegiando a criação artística,
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