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__________________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 75 Revista Contexto & Saúde Volume 17 Número 32 (2017) ISSN 2176-7114 http://dx.doi.org/10.21527/2176-7114.2017.32.75-84 REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA NUTRIÇÃO: DO FLORESCI MENTO DA PROFISSÃO AO CONTEXTO ATUAL DA FORMAÇÃO REFLECTIONS ON THE HISTORY OF NUTRITION: FROM THE INCEPTION OF NUTRITION PROFESSION, TO THE CURRENT CONTEXT Sônia Teresinha De Negri,1 Simone Coelho Amestoy,1 Rita Maria Heck1 1 Universidade Federal de Pelotas – UFPel/Pelotas, RS/Brasil. Autor correspondente: Sônia Teresinha De Negri e-mail: soniadenegri@gmail.com RESUMO Objetivou-se abordar aspectos históricos da Nutrição no Brasil, desde o florescimento da profissão de nutricionista até os desafios no contexto atual. É uma pesquisa de enfoque reflexivo, a partir da produção em obras clássicas e artigos científicos. Desde o início a Nutrição vinculou-se ao caráter biologista diante do binômio desnutrição-nutrição e saúde, com atuação em ambiente hospitalar. Aos poucos o nutricionista foi conquistando outros espaços sociais. Estimula-se a interlocução com outras ciências, contribuindo para a expansão da profissão. Os desafios são necessários, visando a formar profissionais com perfil generalista, humanista e crítico, contribuindo para a segurança alimentar e nutricional da população. Palavras-chave: História da nutrição. Nutricionista. Atuação profissional. Formação profissional. Submetido em: 5/11/2016 Aceito em: 13/3/2017 REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA NUTRIÇÃO: DO FLORESCIMENTO DA PROFISSÃO AO CONTEXTO ATUAL DA FORMAÇÃO __________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 76 ABSTRACT Our objective is to focus on the history of Nutrition in Brazil from the inception of nutrition profession, to the current context. This is a search to reflective thought, using literature available in the classical canon of nutrition and scientific articles. From the beginning, nutrition has been under the influence of biology only studying the binomial of malnutrition- nutrition and health, in a hospital setting. Gradually, the nutritionist began infiltrating other social spaces. The dialogue with other sciences will contribute to the expansion. Challenges are necessary to form professionals with generalist, humanist and critical profiles, who contribute to food security of the population. Keywords: History of nutrition. Nutritionist. Professional spaces. Formation professional. Sônia Teresinha de Negri - Simone Coelho Amestoy - Rita Maria Heck _________________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 77 INTRODUÇÃO A alimentação, essencial à manutenção da vida, era praticada na pré-história a partir de coleta e caça daquilo que estava ao alcance. Na evolução humana o cultivo e a domesticação de plantas e animais foram assumidos para a sobrevivência. A Hipócrates (400 a.C.) credita-se que a prática dietética seja remédio para os males na saúde. Da ciência do século 17 abstraem-se estudos sobre alimentação, dos efeitos no peso corporal e sobre a cura do escorbuto que acometia marinheiros. Pesquisas a partir do século 18, na era químico-analítica, favoreceram a novas descobertas relacionadas com alimentação e seus efeitos no organismo. Lavoisier é denominado “Pai da Nutrição”, por suas contribuições no campo da calorimetria e do metabolismo energético pelos alimentos (CHAVES, 1985). A origem da Nutrição, como ciência, está associada à disciplina “Higiene Alimentar”, integrante dos currículos de Medicina em meados do século 19 (VASCONCELOS; BATISTA FILHO, 2011) e, a partir do século 20 floresceram pesquisas sobre alimentos e nutrientes e seus efeitos no organismo humano. Na América Latina o médico Pedro Escudero, entre 1925 e 1945, foi expoente na propagação sobre princípios dietéticos e reflexos no estado de saúde humana. Naquela época médicos brasileiros realizaram estudos de dietética na Argentina e, em decorrência, instituíram as primeiras escolas de dietistas no Brasil (BOSI, 1988; SALOMON, 1976). No campo social e político, a fome e a desnutrição presentes em grande parte da população brasileira estimularam estudos e debates. Josué de Castro (1908-1973), médico, professor e sociólogo nascido no Nordeste brasileiro denunciou o espectro da fome como fato decorrente de questões econômicas e sociais. Foi presidente da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura- FAO, na década de 50. A vertente sociopolítica de suas interlocuções sobre o mapa da fome no Brasil gerou contrariedades aos interesses políticos da época da ditadura militar, tendo sido condenado ao exílio eterno (CENTRO J. de CASTRO, [201-]). Contemporâneo a ele, Nelson Chaves (1906-1982), também médico e professor, dedicou-se à questão nutricional. Estes dois grandes pensadores em muito influenciaram a introdução e o desenvolvimento da ciência da Nutrição no Brasil, pelas suas abordagens sobre a importância da alimentação adequada no estado nutricional da população. Nelson Chaves seguiu tendência pela vertente da biologia e J.de Castro voltou-se ao enfoque social como causa da fome e desnutrição, realizando as primeiras pesquisas com a classe operária (VASCONCELOS, 2002). Assim, ora os estudos sobre alimentação e nutrição estavam associados aos seus efeitos no organismo pelo sentido biológico e, por outra vertente, os problemas nutricionais da população eram compreendidos pelas carências de alimentos decorrentes de políticas sociais inadequadas, fruto das ações dos homens e não como um fenômeno natural. Para Polignano ([1985]), a tendência às explicações biológicas sobre o estado nutricional da população afastava as possibilidades de respostas no campo social. A profissão de nutricionista foi se estabelecendo em sociedade a partir da década de 40, em cursos de nutricionista-dietista, como inicialmente eram denominados e, com o passar de algumas décadas, formaram-se as associações profissionais pelo Brasil, contribuindo para as definições do campo de atuação dos profissionais e da estrutura curricular dos cursos de Nutrição (COSTA, 1999; BOSI, 1988). A partir de 1980 o surgimento de novas revistas científicas na área da alimentação e nutrição contribuiu para evolução da Nutrição como ciência (VASCONCELOS; BATISTA FILHO, 2011). Atualmente a profissão de nutricionista está regulamentada por meio de legislação e o perfil do profissional a ser formado nas Instituições de Ensino Superior está previsto na Diretriz Curricular do Ministério de Educação (BRASIL, 2001). O reconhecimento da epistemologia da Nutrição e a trajetória percorrida pela ciência, em REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA NUTRIÇÃO: DO FLORESCIMENTO DA PROFISSÃO AO CONTEXTO ATUAL DA FORMAÇÃO __________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 78 momentos histórico-sociais da humanidade, possibilita a compreensão sobre a estruturação da profissão de nutricionista no Brasil, cujo objeto de estudo está voltado à saúde humana, por intermédio da aproximação entre o homem e o alimento (YPIRANGA, 1991; BOOG; RODRIGUES; SILVA, 1989). Com o passar dos anos identificam-se mudanças no perfil do profissional nutricionista, o qual foi se moldando a partir da relevância de abordagem sobre as necessidades nutricionais da população. Além disso,o cenário investigativo aprimorou-se muito, mediante o desenvolvimento de pesquisas no campo da Nutrição, com vistas a averiguar os alimentos e o seu poder nutricional e com isso, trazer benefícios para as pessoas. Diante do exposto, a presente pesquisa visa a refletir a respeito da Nutrição no contexto brasileiro, englobando aspectos históricos desde o florescimento da profissão de nutricionista até o contexto atual da formação. MÉTODO Em termos metodológicos trata-se de uma pesquisa de enfoque reflexivo, realizada a partir de leituras de textos pertinentes ao tema, obtidas em fontes bibliográficas. Os assuntos que remetem à fase histórica foram extraídos de livros clássicos, de obras cuja autoria é de nutricionistas e também em anais de eventos científicos da categoria. As obras foram obtidas do acervo de uma das autoras e na biblioteca da Associação Gaúcha de Nutrição – Agan. Para a coleta de dados históricos complementares e aqueles mais recentes, disponíveis em artigos científicos, foi consultada a base de dados SciELO – Scientific Electronic Library Online – a partir das palavras-chave: “história da nutrição”, “atuação profissional AND nutricionista”; “formação profissional AND nutricionista”. A busca foi limitada a publicações brasileiras e sem limites cronológicos. Os artigos foram selecionados pelos títulos, seguindo-se a leitura dos respectivos resumos. Daqueles destacados, procedeu-se à leitura completa para a abstração de conceitos a serem incluídos no texto. Comentários e reflexões críticas foram influenciados pelas vivências de uma das autoras, nutricionista atuante há mais de três décadas. CARACTERIZAÇÃO DA NUTRIÇÃO E SEUS ASPECTOS HISTÓRIC OS Os primeiros cursos voltados à alimentação e nutrição surgiram a partir de iniciativas de médicos nutrólogos, ocorrendo a criação dos primeiros cursos nos anos de 1938-1939, em São Paulo (SALOMON, 1976). Formaram-se os primeiros dietistas em cursos de nível técnico e, aos poucos, foram sendo ampliados para cursos de Nutrição de nível superior, ainda nas décadas de 40 e 50, em outras regiões do Brasil, como Rio de Janeiro e Bahia. A formação e o campo de prática estavam pré-definidos pelos ideais da problemática alimentar da América Latina. No Brasil, a atuação prática do nutricionista-dietista acontecia na área clínica para assistência hospitalar sob influência da disciplina “Higiene Alimentar” nos cursos da saúde e, também se fez presente nos desdobramentos da ciência da Nutrição (COSTA, 1999; VASCONCELOS, 2002). Assim, os cursos reforçavam a perspectiva biológica referente às ações da alimentação sobre o organismo humano (BOSI, 1988). Os aspectos sociais e econômicos determinantes do estado nutricional da população e da fome, como denunciava J. de Castro, eram relegados ao segundo plano. O aparecimento do campo da Nutrição como disciplina, política social e/ou profissão está relacionado ao contexto histórico-político-econômico-social do nosso país, dos anos 30-40, primeiro governo de Getúlio Vargas, valorizando a alimentação como coadjuvante para mais produtividade e renda (VASCONCELOS; BATISTA FILHO, 2011; YPIRANGA, 1991). O objeto de trabalho dos nutricionistas estava se consolidando no âmbito da saúde humana, na abordagem sobre o homem e o alimento. Além dos hospitais, aos poucos os órgãos públicos de fornecimento de refeições a trabalhadores foram sendo administrados por nutricionistas, valorizando a alimentação oferecida às coletividades sadias, sob a ótica política e econômica da época (BOSI, 1996; VASCONCELOS, 2002). Sônia Teresinha de Negri - Simone Coelho Amestoy - Rita Maria Heck _________________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 79 Em âmbito mundial, o período inicial da formação de nutricionista coincidiu com momento da valorização do capital e de produtividade laboral, influenciando a profissionalização e a divisão técnica no âmbito trabalhista, repercutindo no campo da saúde. O modelo econômico dominante fomentava que saúde poderia ser mercadoria e, a profissão de nutricionista exercida inicialmente em ambiente hospitalar, voltada aos cuidados dietéticos dos enfermos, corroborava com esse modelo social (COSTA, 1999). O avanço de cursos de Nutrição e o estímulo ao maior número de profissionais eram justificados pela demanda na esfera governamental, no campo da alimentação e nutrição, como pela importância biossocioeconômica do nutricionista em hospitais, indústrias e comércio (MODESTO, 1980). Na evolução da profissão, os campos de nutrição clínica (dietoterapia) centrada no alimento como agente de tratamento, e o de nutrição básica e experimental para estudos com os alimentos, foram acompanhados da nutrição social, visando a estudos dietético-nutricionais da população. Essa última, segundo Vasconcelos (2002), originou a nutrição em saúde pública e o campo da alimentação institucionalizada ou alimentação coletiva, para a organização de alimentação a grupos de pessoas sadias e enfermas. A crescente presença de nutricionistas atuantes nos segmentos da sociedade, abordando sobre alimentação e a saúde humana, foram delineando a construção da identidade profissional. As associações profissionais surgiram na medida em que floresceu a profissão. As atuações somadas aos poucos estudos científicos disponíveis no campo da alimentação e nutrição, contribuíram para a afirmação da categoria em sociedade. A regulamentação da profissão também favoreceu o reconhecimento dos espaços sociais a serem ocupados pelo nutricionista, bem como do campo do saber científico que tangencia o conjunto de conhecimentos peculiares à ciência da Nutrição. CONTEXTOS DA FORMAÇÃO EM NUTRIÇÃO Os estudos iniciais em Nutrição voltaram-se ao binômio desnutrição/nutrição e a saúde humana, influenciando a participação profissional no setor saúde da sociedade. No campo da alimentação do trabalhador também emergiram espaços ao nutricionista, ao fornecimento de alimentação para coletividades (YPIRANGA, 1991). Os contextos social/político/econômico do Brasil em cada tempo da História precisam ser reconhecidos como influenciadores à disponibilidade alimentícia, às possibilidades de acesso, aos hábitos de consumo alimentar e ao estado geral de saúde da população. Cabe refletir sobre a bagagem cultural e científica que embasou a concepção do perfil profissional do nutricionista e sua formação, inicialmente delineado pelo seu campo de prática. O discurso científico positivista, sob a luz da Biologia, visava à recuperação da saúde por meio da alimentação e foi determinante aos estudos e condutas profissionais em Nutrição, contribuindo para a formação de identidade profissional nas primeiras décadas da profissão. Constituindo uma ciência que se organizou a partir de um lastro de disciplinas à luz da Biologia e Química Analítica, ficaram relegadas para segundo plano algumas questões como a econômica e a social. Fatos estes que influenciaram sobremaneira as atuações de nutricionistas e a identidade da profissão na sociedade, distanciando- se do que apregoava Josué de Castro. Na época do surgimento da Nutrição no Brasil havia conflitos políticos e sociais e a condenação de J. de Castro ao exílio contribuiu para o deslocamento das reflexões socioeconômicas sobre a fome, em direção à ótica dada pelo campo da Biologia, para estudo das causas e busca de soluções ao quadro de má-nutrição da população. REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA NUTRIÇÃO: DO FLORESCIMENTO DA PROFISSÃO AO CONTEXTO ATUAL DA FORMAÇÃO __________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 80 O resgate de aspectos históricos que contribuíram para o surgimento da Nutrição, e seu delineamento como exercício profissional,conduz ao pensamento reflexivo sobre o período de difusão de cursos universitários em Nutrição pelo país. Nos anos 70 e 80 os currículos dos cursos de Nutrição se assemelhavam e propunham extensa base de disciplinas do campo da Biologia, voltadas ao estudo de conteúdos preparatórios de profissionais atuantes na recuperação da saúde das pessoas por meio da alimentação (BOSI, 1988). Os estudos acadêmicos voltavam-se aos benefícios proporcionados pelos alimentos e nutrientes no estado nutricional humano e para a recuperação da saúde. As disciplinas do ciclo básico do curso, da esfera biológica, tornaram-se o lastro nas concepções dos cursos de Nutrição (AGUIAR, 1980). O ambiente hospitalar, reconhecido como campo de atuação do nutricionista, exigia estudos curriculares direcionados ao binômio saúde/doença e à recuperação do doente. Também influenciou na organização dos cursos o campo de atuação em alimentação para coletividades sadias, que buscava o alcance de um adequado estado nutricional do trabalhador para maior rendimento e produtividade na lógica do capitalismo da época (SALOMON, 1976). Os tempos de expansão de cursos de Nutrição no país, entre 1970 e 1990, coincidiram com o momento nacional em que a mensagem de J. Castro, voz contundente sobre o quadro da fome do povo brasileiro, estava relegada ao obscurecimento imposto pela dominância política na época. O médico e pesquisador Nelson Chaves era importante referência aos estudos acadêmicos em Nutrição, com suas pesquisas e livros publicados que se somavam às obras publicadas por nutricionistas americanos ligados a hospitais universitários. Desse modo, fortalecia a versão biologista no conhecimento e prática em Nutrição (BOSI, 1988; VASCONCELOS; BATISTA FILHO, 2011). Naquele período, em que iam se estabelecendo cursos superiores de Nutrição, as disciplinas no campo da saúde social ou saúde pública eram ofertadas no terço final do currículo e perfaziam menor carga horária, destacando no imaginário do estudante que se tratava de abordagem de menor importância sobre as questões alimentares e nutricionais. Na área de saúde pública o nutricionista atuava em Postos de Saúde, modelo vigente de atendimento em saúde e localizados centralmente nas cidades. Nestes ocorriam orientações à população para medidas higiênicas e a adequadas escolhas alimentares, sem o devido reconhecimento da realidade social e econômica. As ações repetiam o modo educacional pela verticalização da transmissão do conhecimento, haja vista o distanciamento do conteúdo das informações e as reais condições econômicas, sociais e educativas em que vivia a população-alvo. As mudanças no modelo de assistência em saúde no país, que deslocou para a periferia das cidades muitos dos locais de atendimento da população, possibilitaram ao nutricionista aproximar-se da realidade sócio-econômica vivenciada pela comunidade e, assim, as áreas de nutrição clínica e de saúde pública estreitaram seus laços. São as vertentes biologistas e sociais em possibilidade de comunhão, desafios ainda vívidos na profissão de nutricionista, repercutindo em novos caminhos e fortes desafios na formação. OS CAMINHOS DA FORMAÇÃO PROFISSIONAL As Diretrizes Curriculares Nacionais-DCN, para cursos superiores de Nutrição são balizadores do perfil do profissional nutricionista, das competências e habilidades a serem desempenhadas, visando à promoção, manutenção e recuperação da saúde humana, à luz dos princípios do Sistema Único de Saúde – SUS (BRASIL, 2001). A instituição dos pressupostos das DCN nos Projetos Pedagógicos de Curso- PPC, continua sendo desafiadora, mesmo após mais de uma década de sua publicação. O alerta dado é para que se promovam discussões e Sônia Teresinha de Negri - Simone Coelho Amestoy - Rita Maria Heck _________________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 81 reflexões nas esferas de ensino e das entidades de classes, a fim de aperfeiçoamento do processo de formação em Nutrição (SOARES; AGUIAR, 2010). Em estudo documental sobre o PPC de um curso de Nutrição de esfera pública foi observado que as competências “Liderança” e “Formação Permanente” sequer estavam mencionadas nas disciplinas da área da saúde coletiva (ALVES; MARTINEZ, 2016). As autoras destacam a importância do desenvolvimento de "Liderança” na formação, visto que para a prática profissional no atual modelo de atenção à saúde e ao trabalho em equipe multiprofissional exige-se a aptidão ao desempenho de atividades com responsabilidade, habilidade pessoal, comunicação e adequado gerenciamento. A “Formação Permanente” prevista nas DCN implica proporcionar ao estudante estímulos para aprendizagem continuada, tanto em sua formação quanto na sua prática e, juntamente com as demais, deve se fazer presente no PPC. Ainda as DCN apontam para quatro tópicos centrais de estudos na formação do nutricionista: Ciências Biológicas e da Saúde; Ciências Sociais, Humanas e Econômicas; Ciências da Alimentação e Nutrição e Ciências dos Alimentos. Como nos tempos iniciais da Nutrição, existe ênfase em disciplinas do campo das Ciências Biológicas cujos conteúdos perpassam todas as etapas dos cursos, seja de modo direto ou na transversalidade. Aos alunos dever- se-ia estimular estudos em que teoria e prática estejam francamente associadas, a fim de aprofundarem a compreensão sociocultural, econômica e política que afeta a alimentação, nutrição e saúde humana. É desafiadora a necessidade para que os cursos se organizem na articulação dos conteúdos básicos com as habilidades do nutricionista, nas abordagens das Ciências Humanas e Sociais. É preciso avançar e arriscar para mudanças nos currículos, levando o meio acadêmico ao campo de prática social desde seu início e, também, ofertando disciplinas voltadas à história, cultura e significados dos alimentos (FREITAS; MINAYO; FONTES, 2011). Em estudo sobre uma disciplina específica, “Desenvolvimento da comunidade”, foi reafirmado sobre a importância de o estudante observar in loco a realidade das famílias e a vida em comunidades carentes, reconhecendo no processo histórico-social os problemas alimentares e nutricionais vivenciados pelos indivíduos. As autoras também apontaram para as dificuldades que os cursos têm para organizar e manter os trabalhos de campo, o que pode ser um entrave na sensibilização dos estudantes às questões sociais que se aproximam da Nutrição (OLIVEIRA; SANTOS, 2014). As inquietações epistemológicas instigadoras sobre a formação em Nutrição para atuação no campo da saúde coletiva permanecem pulsantes no âmbito da gestão em saúde e na própria concepção identitária da profissão, em sociedade. A profissão de nutricionista está incluída nas categorias profissionais de menor participação na composição da força de trabalho na atenção básica em saúde, embora venha apresentando expansão importante como membro da equipe nas Unidades Básicas em Saúde (CARVALHO et al., 2016). Visto o reconhecimento pelos historiadores de que a profissão de nutricionista floresceu influenciada pela demanda de mercado, infere-se que, em havendo aumento de vagas no campo da saúde coletiva, ocorrerão benefícios para renovados estudos e motivações na categoria, para esta área da Nutrição. Trata-se de grande desafio aos PPCs promoverem o conhecimento afinado das necessidades da saúde da população, com os princípios basilares do Sistema Único de Saúde e às políticas de segurança alimentar e nutricional, o que ainda é tido como insipiente na formação do nutricionista (RODRIGUES; BOSI, 2014). REFLEXÕES SOBRE A HISTÓRIA DA NUTRIÇÃO: DO FLORESCIMENTO DA PROFISSÃO AO CONTEXTO ATUAL DA FORMAÇÃO __________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017– ISSN 2176-7114 – p. 82 O que se conhece no momento sobre os principais campos de atuação é de que os mais antigos desde o surgimento da profissão no Brasil - nutrição clínica e alimentação coletiva- estão ainda evidentes na realidade da profissão, sendo que o campo da saúde coletiva permanece em terceiro lugar como modo de empregabilidade do nutricionista (BOOG; RODRIGUES; SILVA, 1989; CONSELHO..., 2006). Do mesmo modo, calouros de cursos de Nutrição manifestam maior interesse pela atuação na área de nutrição clínica em hospitais, clínicas e consultórios, ao encontro da vertente tradicional da formação de nutricionistas (DE NEGRI; RAMOS; HAGEN, 2011). As expectativas dos calouros refletem o modelo elitizado em saúde, traduzindo-se em um imaginário que difere da realidade socioeconômica da grande massa da população. Aqui não se intenciona que o estudante afaste-se de suas motivações e interesses pela Nutrição, mas sim que possa haver estímulos à reavaliação e ao conhecimento amplo da realidade social, mediante desafios lançados pelos próprios cursos de Nutrição, ao proporcionarem campo de prática em sociedade a partir do momento inicial do curso. Espera-se que haja avanços futuros, pois na atuação do nutricionista ainda são acanhadas as ações decorrentes de reflexões sobre os determinantes sociais e econômicos que envolvem a distribuição de renda, a oferta e o acesso aos alimentos pela população, a ocupação do solo e sua produtividade. Freitas, Minayo e Fontes (2011) apontam para uma lacuna no reconhecimento e valorização dos significados atribuídos aos alimentos, como expressão da cultura e religião, dada a necessidade de abordagem interdisciplinar com as Ciências Humanas na formação do nutricionista. A inquietação da mente conduz o pensamento ao futuro da formação/atuação profissional em Nutrição: permanecerá a força do enfoque da Biologia ou serão absorvidas influências dadas pela esfera social e, ainda, qual o futuro da ciência da Nutrição? Considerando-se verdadeiro que a base biológica, influenciadora da linha de pensamento no campo da Nutrição, possa representar um obstáculo epistemológico ao reconhecimento do indivíduo no seu contexto, ocorre expectativa de que avanços no campo da Biologia/Nutrição associem-se ao enfoque político-social necessário para garantir a segurança alimentar e nutricional, que se circunscreve nos espaços que oferecem acesso e colocam em disponibilidade alimentos à população. Ora, para que serve a perpetuação do modelo biológico/higiênico/terapêutico que serviu de lastro para o desenvolvimento da ciência da Nutrição? Não estaria presente na identidade profissional de nutricionista uma concepção por demais enraizada, de que o objeto de trabalho do nutricionista se circunscreve de modo estrito aos ambientes da saúde? Ou estaria o mercado de trabalho influenciando no arcabouço teórico-prático da formação profissional? Importa que os caminhos levem a amplo diálogo e reflexão, promovidos pela comunidade científica juntamente com as associações da classe, que venham a suscitar modos de avanços em Nutrição, ao ritmo de diversas Ciências modernas. CONSIDERAÇÕES FINAIS Por meio desta pesquisa reflexiva e retomada de aspectos históricos da Nutrição no contexto brasileiro, englobando o florescimento da profissão de nutricionista, ampliou-se a compreensão das influências que serviram de lastro ao seu desenvolvimento até o momento do contexto atual da formação. Os desafios sociais relativos às necessidades alimentares e nutricionais da população requerem permanente análise sobre as bases da formação do nutricionista e estudos sobre a realidade profissional, contribuindo para aproximação entre a realidade da sociedade e os estudos acadêmicos. Nos caminhos seguidos pela ciência da Nutrição no Brasil ocorre reconhecimento de que as raízes nas Ciências Biológicas são marcas fortes na formação e identidade do nutricionista, bem como em suas motivações para a Sônia Teresinha de Negri - Simone Coelho Amestoy - Rita Maria Heck _________________________________________________________________________________________________ Editora Unijuí – Revista Contexto & Saúde, vol. 17, n. 32, 2017 – ISSN 2176-7114 – p. 83 formação continuada e para o exercício profissional. Reconhece-se a importância para que ocorra ampliação da interlocução com as demais Ciências, contribuindo para a formação do nutricionista, a fim de revisitar outros saberes e lugares intervenientes à promoção do bem-estar e da saúde. O princípio legal do direito humano à alimentação necessita ser exercido com eficiência na sociedade, na promoção da saúde humana, e a Nutrição tem de ocupar seu espaço diante das questões sociais, econômicas e políticas associadas à alimentação. Assim, além dos desafios da Nutrição em acompanhar os avanços científicos no campo da Biologia, outros contextos do conhecimento necessitam estar, cada vez mais, presentes na formação profissional, preparando o perfil generalista, humanista e crítico como é ensejado. Almeja-se que os currículos de cursos de Nutrição sejam revisitados sempre que os agentes envolvidos percebam a necessidade de atualização ou haja estímulo externo. Que os novos currículos incluam, de modo mais intenso e integrado aos conteúdos tradicionais, as disciplinas do campo das Ciências Sociais e Humanas, como inspiração para renovados modos de abordar alimentos, alimentação para o homem em sociedade. REFERÊNCIAS AGUIAR, Fernando J. C. 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