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FARMACOGNOSIA APLICADA João Fhilype Andrade Souto Maior Farmacoetnologia Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: � Descrever o papel das culturas ancestrais na descoberta de fármacos obtidos da natureza. � Traçar o perfil histórico da busca por medicamentos naturais. � Identificar medicamentos de origem etnológica na atual comerciali- zação de medicamentos. Introdução De acordo com evidências históricas, arqueológicas e culturais, ao longo de milhares de anos o homem buscou na natureza diversos recursos (ferramentas e tecnologias) para melhorar a sua qualidade de vida, curar doenças, amenizar sofrimentos e, claro, para melhor se adaptar e so- breviver neste mundo. As plantas estão entre esses recursos e sempre fizeram parte da evolução humana — muito provavelmente, foram os primeiros recursos terapêuticos utilizados por povos antigos. Hoje, algu- mas comunidades e grandes empresas farmacêuticas utilizam boa parte desse conhecimento tradicional, adquirido por meio de observações e experiências com plantas medicinais, como alternativa para a prevenção, o tratamento de doenças e a descoberta de novos medicamentos. Neste capítulo, você vai ler sobre o papel de povos antigos na uti- lização de plantas com finalidades terapêuticas. Também vai estudar a importância do conhecimento tradicional para a pesquisa e a produção de medicamentos mais eficazes, acessíveis e seguros para a população. 1 História do uso de plantas medicinais Desde há muito tempo, o homem faz uso de substâncias químicas derivadas dos mais variados recursos da natureza (plantas, animais e microrganismos) para atender às suas necessidades básicas de sobrevivência e qualidade de vida, incluindo a prevenção e o tratamento de diversas doenças. Com isso, ao longo dos anos, o homem conseguiu acumular informações preciosas sobre o ambiente ao seu redor. Esse conhecimento, de acordo com Monteiro (2017), em grande parte, foi adquirido por meio de observações e experiências cotidianas sobre fenômenos e características da natureza, principalmente em relação ao mundo vegetal, com destaque para as plantas medicinais. Plantas medicinais são espécies vegetais, cultivadas ou não, utilizadas com propósitos terapêuticos, podendo ser usadas logo após a sua colheita (plantas frescas) ou após processo de secagem e estabilização (plantas secas). Ainda, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), planta medicinal é qualquer vegetal que tenha, em um ou mais órgãos, substâncias que possam ser utilizadas para fins terapêuticos ou que sejam precursoras de fármacos semissintéticos (WHO, 1998). Pré-história Evidências e registros históricos mostram que muitos povos antigos têm referências próprias com relação ao uso de plantas medicinais. Muito antes de o homem pré-histórico desenvolver qualquer alfabeto ou escrita rudimentar, ele já utilizava algumas plantas como alimento e outras como remédios. De acordo com Monteiro (2017), é provável que muitos de seus experimentos com vegetais fossem bem-sucedidos, porém outros deviam produzir efeitos colaterais graves ou até mesmo fatalidades. Além dos seus experimentos empíricos, o aprendizado dos povos pré-histórico sobre as propriedades tera- pêuticas ou nocivas das plantas deve ter acontecido por meio de observações de fenômenos naturais, como o comportamento dos animais, por exemplo. Farmacoetnologia2 O autor afirma que durante esse período, muitos desses valiosos conhe- cimentos foram transmitidos de forma rudimentar (oral ou arte rupestre) para as gerações seguintes. Apenas com o surgimento da escrita é que tais conhecimentos passaram a ser compilados e registrados de forma mais eficaz. Também existem registros históricos e lendas antigas onde são atribuídos às plantas poderes mágicos ou divinos, já que algumas delas eram usadas em rituais religiosos ou de autoconhecimento. Antiguidade Referências históricas sobre o uso de plantas com fins terapêuticos estão pre- sentes em quase todas as civilizações antigas. Porém, as primeiras descrições dessa atividade foram registradas em escrita cuneiforme e datam de 2.600 a.C. Monteiro (2017) afirma que tais registros indicam que os mesopotâmicos já usavam óleo de cedro, alcaçuz, mirra (que você pode ver na Figura 1) e muitos outros derivados de plantas que ainda hoje são utilizados no tratamento de doenças, como gripes, resfriados e infecções bacterianas. Figura 1. Exemplos de plantas medicinais usadas na região da Mesopotâmia: (a) cedro; (b) alcaçuz; (c) mirra; (d) papoula. Fonte: Monteiro (2017, documento on-line). 3Farmacoetnologia Outra referência escrita sobre o uso de ervas medicinais é a obra chinesa Pen Ts’ao (“A grande fitoterapia”), de 2.800 a.C. Seu autor, Shen-Nong, é reconhecido como o fundador da medicina chinesa em 2800 a.C. (MON- TEIRO, 2017). Sabe-se que muitos dos conhecimentos tradicionais que os povos antigos (egípcios, gregos e romanos) acumularam durante séculos foram transmitidos, principalmente, aos árabes. Em antigos papiros do Egito fica evidente que muitos médicos utilizavam plantas e ervas como remédio, inclusive para rituais e preparação de múmias. O famoso papiro de Ebers, por exemplo, com cerca de 3.500 anos e cuja autoria é atribuída aos egípcios, é considerado um dos mais antigos e importantes tratados médicos, contendo, aproximadamente, 100 doenças e um grande número de produtos naturais, que ainda são usados normalmente — coentro, genciana, zimbro, sene e outros, como mostra a Figura 2. Figura 2. Exemplos de produtos naturais usados pelos egípcios e que ainda hoje são usados para fins terapêuticos: (a) funcho; (b) coentro; (c) sene. Fonte: Monteiro (2017, documento on-line). Para Monteiro (2017), o chamado papiro farmacológico de Ebers menciona cerca de 800 fórmulas milagrosas e remédios populares constituídos por extratos de plantas, metais (chumbo e cobre) e venenos de várias espécies de animais. Além disso, prescreve o uso terapêutico de óleos vegetais (alho, girassol, açafrão) e o uso de mel ou de cera de abelhas como veículo ou excipiente para os óleos usados, com o objetivo de melhorar a absorção do medicamento. Atualmente, o papiro se encontra na biblioteca da Universidade de Leipzig, Alemanha, e foi assim batizado em homenagem ao monge alemão Georg Ebers, que os adquiriu em 1873. Farmacoetnologia4 Monteiro (2017) cita que outros relatos do uso de plantas medicinais de- monstram que, além dos egípcios, civilizações antigas como os assírios e hebreus também cultivavam ou traziam de suas expedições diversas ervas para a preparação de seus medicamentos. Um dos sistemas medicinais mais antigos da humanidade, a medicina Ayurveda, foi criado na Índia. Os Vedas, poemas épicos de cerca de 1.500 a.C., descrevem ervas medicinais até hoje utilizadas, inclusive na culinária, entre elas as apresentadas na Figura 3. Na antiga Grécia, grande parte do que sabemos sobre plantas e ervas medicinais deve-se a Hipócrates (460–377 a.C.), que, em sua obra Corpus Hipocratium, descreve os conhecimentos médicos de seu tempo, indicando, para cada enfermidade, um remédio vegetal e um tratamento adequado. Figura 3. Exemplos de plantas medicinais mencionadas nos Vedas: (a) gengibre; (b) man- jericão; (c) alho; (d) cúrcuma; (e) aloe. Fonte: Monteiro (2017, documento on-line). No Ocidente temos Teofrasto (372–287 a.C.), que aparece como o único botânico da Antiguidade, cujos registros mencionam o uso de fitoterápicos. Ele listou cerca de 455 plantas medicinais, que constituíram o primeiro her- bário ocidental, utilizado até hoje, com detalhes de como preparar e usar cada produto. 5Farmacoetnologia Era cristã Nesse período histórico, merece destaque o grego Pedanius Dioscórides, médico militar que catalogou e ilustrou cerca de 600 plantas medicinais em sua obra De Materia Medica. A obra serviu como importante referência até o Renascimento; nela, Dioscórides descreve ouso de ópio como medicamento e como veneno, que inclusive fora utilizado por Nero para eliminar seus inimigos. Também relata o uso do salgueiro branco (Salix alba L.), fonte mais antiga do ácido acetilsalicílico, para dor (MONTEIRO, 2017). Outro médico e filósofo grego importante, Claudius Galeno (129–216 d.C.), foi o primeiro grande observador científico dos fenômenos biológicos. Galeno é considerado o “pai da farmácia”, responsável por desenvolver misturas complexas (“cura-tudo”), conhecidas até hoje como “misturas galênicas”. Além disso, de acordo com Monteiro (2017), pode-se dizer que Galeno deu início ao que conhecemos hoje como Vigilância Sanitária, ao estimular oficiais romanos na fiscalização de remédios para evitar fraudes ou desvios, já que muitas misturas continham até 100 ingredientes. Idade moderna Sem dúvida, uma personalidade importante e que contribuiu de forma sig- nificativa para o desenvolvimento da farmacologia e da medicina tradicional foi o médico — e também renomado alquimista, físico e astrólogo — suíço Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, mais popular- mente conhecido como Paracelso. Paracelso fundou as bases da medicina natural e foi o primeiro a observar a importante relação entre a dose e o efeito que determinada substância pode exercer no organismo, chegando à conclusão de que todas as substâncias são venenos e somente a dose correta diferencia o veneno do remédio (MONTEIRO, 2017). Idade contemporânea A partir do século XIX já é possível observar uma maior utilização de plantas medicinais e de fitoterápicos, principalmente graças ao progresso científico na área da química (fitoquímica), o que permitiu analisar, identificar e separar os princípios ativos das espécies vegetais. Nesse período, podemos citar o médico alemão Samuel Hahnemann (1755–1843) como uma figura importante, já que foi o responsável por desenvolver os conceitos da homeopatia. Farmacoetnologia6 De acordo com Monteiro (2017), trata-se de um método científico para o tra- tamento e a prevenção de doenças agudas e crônicas, em que a cura acontece pela administração de medicamentos diluídos (não agressivos) que fortalecem e estimulam o sistema imune do organismo a reagir. No início do século XX, a medicina alopática ainda tinha as plantas como principais matérias-primas. Entretanto, diferentemente da homeopatia, a alopatia é o ramo da medicina tradicional que utiliza medicamentos para produzir no organismo do paciente uma reação contrária aos sintomas que ele apresenta, a fim de diminuí-los ou neutralizá-los. Por exemplo, se o paciente tem febre, o médico receita um medicamento que faz baixar a temperatura (MONTEIRO, 2017). Medicamento fitoterápico, de acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), pode ser definido como o medicamento obtido exclusivamente de matérias- -primas ativas vegetais. Caracteriza-se pelo conhecimento de sua eficácia e riscos de uso, assim como pela reprodutibilidade e constância de sua qualidade. Sua eficácia e segurança é validada por levantamentos etnofarmacológicos de utilização, documen- tação tecnocientífica em publicações ou ensaios clínicos fase 3. Não é considerado medicamento fitoterápico aquele que incluir substâncias ativas isoladas de qualquer origem ou associações dessas com extratos vegetais em sua composição (ANVISA, 2014). Brasil Segundo Monteiro (2017), no Brasil, a história da utilização de plantas com fins terapêuticos apresenta influências marcantes de povos africanos, indígenas e imigrantes. A contribuição dos povos africanos, por exemplo, aconteceu por meio de plantas medicinais que eles trouxeram consigo de suas aldeias de origem que, eventualmente, também usavam em rituais religiosos. Sabe-se que os índios que aqui viviam e utilizavam a imensa variedade de plantas medicinais disponíveis nas florestas tinham um valioso patrimônio de informações da biodiversidade e técnicas de como melhor aproveitar tais recursos naturais. Ainda, o autor afirma que, em geral, os pajés das tribos transmitiam seus conhecimentos acerca das ervas e seus usos de forma oral ou por meio de rituais para as próximas gerações. 7Farmacoetnologia No século XVIII a cidade de São Paulo contava com a primeira farmácia oficial da cidade, Real Botica, cujos medicamentos eram, em sua grande maioria, plantas medicinais. Já no ano de 1926, foi publicada a primeira Far- macopeia Brasileira, com a descrição de 183 espécies de plantas medicinais do Brasil (MONTEIRO, 2017). 2 Origens da farmacoetnologia Como vimos, ao longo da história, o homem adquiriu e acumulou informações e conhecimentos sobre a natureza, principalmente por meio de observações e experiências sobre fenômenos e características do reino vegetal. Felizmente, grande parte dessas informações, obtidas por meio da utilização de plantas medicinais, foi transmitida ao longo dos tempos e de gerações, o que garantiu a preservação de importantes conhecimentos tradicionais sobre o tratamento e a cura de determinadas enfermidades. Algumas metodologias importantes utilizadas por pesquisadores atuais, oriundas de observações e experiências (empíricas) de alguns povos antigos em relação ao reino vegetal são as seguintes (MONTEIRO, 2017): � identificação de espécies e gêneros medicinais; � identificação das partes mais adequadas; � reconhecimento do habitat; � reconhecimento da época da colheita. Graças a essa relação do homem com o universo dos recursos naturais (plantas, animais e minerais) ao longo da história, foi possível desenvolver as bases da farmacoetnologia, ou etnofarmacologia, um importante ramo da etnobiologia, que se ocupa em estudar o complexo conjunto de relações entre plantas e animais utilizados como drogas por sociedades humanas, presentes ou passadas (ELISABETSKY, 2003). Em geral, estudos etnofarmacológicos abordam diferentes áreas do co- nhecimento como botânica, química, farmacologia, medicina e muitas outras (antropologia, arqueologia, história e linguística), que são fundamentais para utilizar e proteger a diversidade das plantas, como também para contribuir com a descoberta de novos produtos naturais dotados de agentes biológicos ativos de interesse terapêutico (MADEIRO, 2015). Farmacoetnologia8 Ismeire Realce Tudo indica que o termo etnofarmacologia foi usado pela primeira vez em 1967 por Efron e seus colaboradores em um livro intitulado Ethnopharmacologic Search for Psychoactive Drugs. Na América Latina, farmacoetnologia teve início no século XVI com os missionários jesuítas, que tinham grande interesse no uso de plantas com propriedades terapêuticas (ARTG 4). Essa também era uma prática bastante comum entre comerciantes, antropólogos e botânicos europeus, que registravam em seus diários de viagem dados referentes às culturas visitadas, aos costumes de seus habitantes e, principalmente, às diversas espécies de plantas e seu uso medicinal. No Brasil, entre os séculos XVII e XIX, pesquisadores europeus coletavam plantas e registravam seus usos medicinais por tribos indígenas (MONTEIRO, 2017). Recentemente, o Brasil voltou a valorizar sua flora como importante e valiosa fonte de novas moléculas com atividade biológica e de medicamentos fitoterápicos. De fato, em vários outros países do mundo, as plantas medicinais e os fitoterápicos deixaram de ser tratados apenas como terapia alternativa para problemas de saúde. De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), no início da década de 1990, em muitos países em desenvolvimento, como o Brasil, cerca de 80% da população dependiam do uso de plantas medicinais como única forma de acesso aos cuidados básicos de saúde (VEIGA JÚNIOR; PINTO; MACIEL, 2005). Por essa razão, o Brasil criou políticas públicas, como a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos e a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares, que garantem o acesso e promo- vem o uso de plantas medicinais e fitoterápicos no SistemaÚnico de Saúde (SUS), uma vez que também se constituem em alternativa viável à população mais carente ou que reside fora das zonas urbanas, com acesso restrito aos centros de atendimento hospitalares, obtenção de exames e medicamentos industrializados mais caros (NIEHUES et al., 2011). Além disso, nos últimos anos o consumo de plantas e fitoterápicos tem aumentado consideravelmente entre boa parte da população, que está cada vez mais preocupada com a própria saúde e bem informada sobre os riscos decorrentes do uso crônico de fármacos sintéticos, além dos seus elevados custos de aquisição. Vale lembrar que algumas plantas e fitoterápicos são considerados medicamentos isentos de prescrição médica (MIPs). 9Farmacoetnologia 3 Pesquisa e desenvolvimento de fármacos a partir de plantas A partir do final do século XIX, com o desenvolvimento da química orgânica, os produtos sintéticos foram aos poucos adquirindo primazia no tratamento farmacológico, desbancando as plantas medicinais e seus derivados como a base da terapêutica medicamentosa em meados do século XX. Isso, de certa forma, interferiu nos modelos de saúde tradicionais das comunidades brasileiras (MONTEIRO, 2017). Além disso, outros fatores colocam em risco todo o preciso conhecimento tradicional produzido por diversas comunidades locais do nosso país, como a perda da biodiversidade, o acelerado processo de mudança cultural e a maior facilidade de acesso aos serviços da medicina moderna. Nesse sentido, Nunes (2016) aponta que a riqueza dos conhecimentos tradicionais a respeito da biodiversidade vegetal precisa ser retomada e resguardada, não apenas para fomentar a descoberta de novas espécies vegetais a serem pesquisadas com finalidades terapêuticas, mas também como parte importante do patrimônio da humanidade. Ainda, segundo o autor, o resgate de tais conhecimentos tradicionais por meio de estudos é de fundamental importância para a descoberta de novos fár- macos, principalmente para o Brasil, que, além de ter uma grande diversidade cultural, tem uma vasta biodiversidade vegetal, o que resulta em considerável riqueza de conhecimentos, inclusive de sistemas tradicionais de manejo de recursos naturais renováveis. Para tanto, de acordo com Monteiro (2017), existem algumas abordagens para o estudo de plantas medicinais com potencial atividade biológica, entre os quais podemos destacar: � Abordagem randômica: estudo que compreende a coleta ao acaso (“sorte ou azar”) de plantas para triagens fitoquímicas e farmacológicas. � Abordagem quimiotaxonômica: também conhecida como abordagem filogenética, consiste na seleção de espécies de uma família ou gênero sobre as quais já exista algum conhecimento fitoquímico de pelo menos uma espécie do grupo. Farmacoetnologia10 Ismeire Realce � Abordagem etológica: estudos orientados para avaliar a utilização de metabólitos secundários por animais (primatas, por exemplo), ou qualquer outra substância não nutricional dos vegetais, com o objetivo de combater certas doenças ou controlá-las. � Abordagem etnodirigida: busca avaliar espécies vegetais previamente selecionadas com base em relatos de uma comunidade específica em determinadas circunstâncias de uso, destacando-se a busca pelo co- nhecimento construído sobre tais recursos naturais e a aplicação que fazem deles em seus sistemas de saúde e doença. Por meio de investigações etnobotânicas e/ou etnofarmacológicas é possível acessar informações importantes sobre uso popular, potenciais efeitos tera- pêuticos, correta identificação botânica e fatores ambientais que influenciam a biossíntese dos metabólitos secundários, como clima, tipo de solo e técnicas de manejo de determinada a espécie vegetal. Finalmente, o conjunto de todos esses dados pode garantir uma correta extração das moléculas bioativas de interesse farmacológico (KLEIN, 2009 e FILHO, 1998). Felizmente, nas últimas décadas esse inestimável conhecimento de co- munidades tradicionais do Brasil sobre determinadas espécies vegetais tem despertado o interesse de pesquisadores que buscam comprovar, por meio de estudos científicos, que tais “saberes tradicionais” têm fundamentos para suas aplicações — ou seja, têm eficácia terapêutica (MADEIRO, 2015). O uso tradicional de plantas pode servir como uma pré-triagem quanto à propriedade terapêutica. É muito mais provável encontrar atividade biológica de interesse terapêutico em plantas medicinais já usadas por alguma população específica do que em outras espécies vegetais escolhidas ao acaso, o que pos- sibilita obter grandes resultados em menor tempo e com menor custo durante a pesquisa e desenvolvimento de fármacos (FILHO, 1998; MONTEIRO, 2017). Entre os 120 princípios ativos disponíveis atualmente para a indústria farmacêutica para a produção de medicamentos, cerca de 75% foram descobertos e isolados a partir de informações do uso popular de plantas medicinais (FILHO, 1998). 11Farmacoetnologia Apesar das grandes vantagens obtidas com pesquisas etnofarmacológicas, mesmo em alguns casos em que se conhece o mecanismo de ação de determinado composto bioativo e se tem o ensaio in vitro apropriado para detectá-lo, a maior parte desses compostos que, eventualmente, interagem com determinada enzima ou receptor não é biodisponível. Em outros casos, mesmo quando o composto de interesse tem boa biodisponibilidade, acaba por demonstrar toxidade inesperada em humanos. Em resumo, de cada dez compostos descobertos, apenas quatro seguem para a fase de desenvolvimento, enquanto existe uma taxa de 50% de desistência devido à toxicidade/efeitos adversos, antes mesmo que uma Fase Clínica I possa ser finalizada (ELISABETSKY, 2003). Etapas e objetivos da pesquisa etnodirigida Como visto anteriormente, diferentes áreas do conhecimento estão envolvi- das na pesquisa e desenvolvimento de novos fármacos oriundos de plantas. Entre eles podemos destacar a fitoquímica, que isola, purifica e caracteriza os princípios ativos; a etnobotânica e a etnofarmacologia, que investigam os conhecimentos tradicionais de povos e etnias sobre o uso de plantas; e a farmacologia, que avalia os efeitos farmacológicos de extratos e de seus constituintes químicos (SIMÕES, 2017; NIEHUES et al., 2011). De modo geral, as principais etapas envolvidas no processo de pesquisa e desenvolvimento de fármacos podem ser resumidas da seguinte forma: 1. Investigação e descoberta de um composto com atividade terapêutica. 2. Testes in vitro para avaliar as propriedades biológicas das moléculas promissoras, investigando a farmacocinética e a farmacodinâmica em animais (estudo pré-clínico). 3. Realização de estudos clínicos em seres humanos em várias fases (estudo clínico). Farmacoetnologia12 A seguir estão os principais objetivos que se espera alcançar com a reali- zação de estudos etnofarmacológicos: 1. Bioprospectar e desenvolver a ciência farmacêutica. 2. Conservar e preservar a biodiversidade do país. 3. Promover o uso local das plantas em associação com fármacos con- vencionais e outras tecnologias biomédicas. 4. Utilizar o conhecimento das comunidades locais, respeitando seu direito de propriedade intelectual. Fármacos obtidos de plantas medicinais O Brasil comporta cerca de 20% de todas as espécies vegetais do planeta, dis- tribuídas entre os biomas mais diversos e complexos que se tem conhecimento (Amazônia, Caatinga, Cerrado e Pantanal). Por esse motivo, apresenta grande potencial para a pesquisa de novos fármacos úteis para o desenvolvimento de medicamentos de elevado valor econômico e social para a população, principalmente porque apenas 5% de sua diversificada flora (cerca de 55 mil espécies identificadas) foi investigada até o momento sob o ponto de vista químico ou farmacológico (SIMÕES, 2017; FILHO, 1998). Sem dúvida, as plantas são uma das melhores fontes naturais e renováveis de compostos bioativos (metabólitos secundário), cuja complexidade e enorme variabilidade química favorecema adaptação e a sobrevivência desses seres às mais distintas situações de estresse ambiental. De acordo Simões (2017), quanto mais variado e adverso for o bioma, mais inusitada e complexa será a adaptação de determinada espécie ao seu meio, que, em geral, pode ser constatada por suas características morfoanatômicas, bioquímicas e/ou genéticas. No entanto, devido à inviabilidade econômica ou ecológica para se realizar a coleta e/ou o cultivo em larga escala de tais plantas nativas para a obtenção de valiosos compostos bioativos, torna-se fundamental incentivar pesquisas etnodirigidas como a melhor estratégia para produzir medicamentos seguros, eficazes e em quantidades comerciais, a exemplo de vimblastina, taxol, atro- pina, quinino e vários outros (SIMÕES, 2017; FILHO, 1998). 13Farmacoetnologia Um fato histórico marcante no processo de desenvolvimento da indústria farmacêutica mundial foi a descoberta da salicina (a partir da espécie Salix alba), com a qual se realizou a primeira modificação estrutural química de sucesso, obtendo-se o ácido salicílico, em 1839. A partir do ácido salicílico, Felix Hoffman foi capaz de sintetizar o ácido acetilsalicílico, com o qual registrou a primeira patente na área de medicamentos, em 1897 (MONTEIRO, 2017). Acompanhe, no Quadro 1, alguns fármacos com importância terapêutica e que são obtidos, exclusivamente, a partir de matérias-primas vegetais. Fonte: Adaptado de Monteiro (2017). Fármaco Classe terapêutica Espécie vegetal Acido salicílico, salicina Analgésicos Salix alba Digoxina, digitoxina Cardiotônicos Digitalis purpurea, Digitalis lanata Atropina Anticolinérgico Atropa belladonna Morfina, codeína Analgésico, antitussígeno Papaver somniferum Cocaína Anestésico local Erythroxylum coca Pilocarpina Antiglaucomatoso Pilocarpus jaborandi Quinina Antimalárico Cinchona spp. Taxol (paclitaxel) Anticâncer Taxus brevifolia Tubocurarina Bloqueador neuromuscular Chondrodendron tomentosum Vimblastina, vincrisina Antitumorais Catharanthus roseus Quadro 1. Lista de alguns fármacos com importância terapêutica, obtidos exclusivamen- te a partir de matérias-primas vegetais Farmacoetnologia14 Atualmente, a pesquisa e o desenvolvimento de fármacos a partir de fontes vegetais, principalmente espécies vegetais, continuam a despertar grande interesse por parte de pesquisadores de vários países e, principalmente, da indústria médica e farmacêutica, como podemos constatar a partir dos dados a seguir (MONTEIRO, 2017): � A indústria de quimioterápicos, cujos medicamentos derivados de plantas chegam a 60%, movimenta cerca de 50 bilhões de dólares anualmente. � Aproximadamente 60% dos agentes antitumorais e antibióticos dispo- níveis no mercado são de origem natural. � Entre 2006 a 2016, cerca de 500 novos compostos químicos foram aprovados pelas instituições reguladoras de vários países. � Entre 1981 e 2010, foram produzidos 270 novos medicamentos a partir de 1.130 substâncias oriundas de fontes naturais. � Aproximadamente 30% dos medicamentos disponíveis no mercado derivam direta ou indiretamente de produtos naturais, principalmente das plantas. Por fim, por esses e outros motivos, devemos ressaltar a importância histórica do uso de plantas medicinais por diversos povos e comunidades tradicionais ao longo dos tempos, cujos valiosos conhecimentos serviram, e ainda servem, como peça-chave para a inovação e o desenvolvimento da ciência farmacêutica. ANVISA. Medicamentos fitoterápicos. 2014. Disponível em: http://portal.anvisa.gov.br/ resultado-de-busca?p_p_id=101&p_p_lifecycle=0&p_p_state=maximized&p_p_ mode=view&p_ p_col_ id=column-1&p_ p_col_count=1& _101_struts _ action=%2Fasset_publisher%2Fview_content&_101_assetEntryId=352238&_101_ type=content&_101_groupId=33836&_101_urlTitle=medicamentos-fitoterapicos&i nheritRedirect=true. Acesso em: 21 fev. 2020. CECHINEL FILHO, V.; YUNES, R. A. Estratégias para a obtenção de compostos farma- cologicamente ativos a partir de plantas medicinais: conceitos sobre modificação estrutural para otimização da atividade. Quím. Nova, v. 21, n. 1, p. 99–105, jan./fev. 1998. Disponível em: 21 fev. 2020. 15Farmacoetnologia ELISABETSKY, E. Etnofarmacologia. Ciênc. Cult., v. 55, nº. 3, p. 35–36, jul./set. 2003. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi d=S0009-67252003000300021. Acesso em: 21 fev. 2020. MADEIRO, A. A. S.; LIMA, C. R. de. Estudos etnofarmacológicos de plantas medicinais utilizadas no Brasil: uma revisão sistemática. Ciências Biológicas e da Saúde, v. 3, nº. 1, p. 69–76, nov. 2015. Disponível: https://periodicos.set.edu.br/index.php/fitsbiosaude/ article/view/2405/1501. Acesso em: 21 fev. 2020. MONTEIRO, S. da C.; BRANDELLI, C. L. C. (org.). Farmacobotânica: aspectos teóricos e aplicação. Porto Alegre: Artmed, 2017. (e-Book). NIEHUES, J. et al. Levantamento etnofarmacológico e identificação botânica de plantas medicinais em comunidades assistidas por um serviço de saúde. Arquivos Catarinenses de Medicina, v. 40, nº. 1, nov. 2011. Disponível em: http://www.acm.org.br/acm/revista/ pdf/artigos/844.pdf. Acesso em: 21 fev. 2020. SIMÕES, C. M. O. et al. (org.). Farmacognosia: do produto natural ao medicamento. Porto Alegre: Artmed, 2017. VEIGA JÚNIOR, V. F.; PINTO, A. C.; MACIEL, M. A. M. Plantas medicinais: cura segura? Quím. Nova, v. 28, nº. 3, p. 519–528, maio/jun. 2005. Disponível em: http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-40422005000300026&lng=pt&nrm=iso &tlng=pt. Acesso em: 21 fev. 2020. WHO. Regulatory situation of herbal medicines a worldwide review. 1998. Disponível em: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/63801/WHO_TRM_98.1.pdf?seque nce=1&isAllowed=y. Acesso em: 21 fev. 2020. Os links para sites da web fornecidos neste capítulo foram todos testados, e seu fun- cionamento foi comprovado no momento da publicação do material. No entanto, a rede é extremamente dinâmica; suas páginas estão constantemente mudando de local e conteúdo. Assim, os editores declaram não ter qualquer responsabilidade sobre qualidade, precisão ou integralidade das informações referidas em tais links. Farmacoetnologia16
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