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OS ESCRITOS DE JEAN DE LÉRY E JOSÉ DE ANCHIETA NOS DISCURSOS DA CONTEMPORANEIDADE RESUMO Este artigo visa fazer uma explanação acerca da literatura de viajantes e da literatura de religiosos, com enfoque em Jean de Léry e José de Anchieta, respectivamente. O objetivo é mostrar como os discursos nos escritos da época colonial ainda são muito presentes hoje em dia, seja em forma de pregações em cultos religiosos ou de intolerância religiosa. Fazendo uma comparação com tais relatos da época quinhentista e com os acontecimentos da contemporaneidade, é possível observar sobre quais alicerces o Brasil foi construído. Palavras-chave: Jean de Léry. José de Anchieta. Literatura de viajantes. Literatura de religiosos. INTRODUÇÃO Os relatos de viajantes e religiosos sobre o Brasil ou Novo mundo, como é mencionado nos relatos escritos, constituem um acervo de obras fundamentais para o estudo da literatura brasileira. O Quinhentismo, que corresponde ao ano de 1500, divide-se em: relato de viajantes ou literatura de viajantes e literatura de jesuítas ou literatura de religiosos. Dentre os vários viajantes que escreveram sobre o Brasil, cabe fazer uma explanação neste artigo sobre Jean de Léry, calvinista Francês nascido no ano de 1534, que veio para o Brasil a pedido de Villegaignon para tentar fundar a França Antártica, como ficou conhecida, no Rio de Janeiro. Seus relatos sobre o Brasil constam em seu livro “Viagem à terra do Brasil”, do qual será analisado o Capítulo XVI. E dentre as obras da literatura jesuítica, será analisado o Segundo ato da Festa de São Lourenço, do Padre José de Anchieta, nascido em 1534 em Tenerife, ilhas canárias. Como membro da Companhia de Jesus, seu principal objetivo era catequizar os indígenas, e ele cumpria essa missão por meio de alegorias, teatro etc. JEAN DE LÉRY Durante sua estada com os selvagens, LÉRY afirma que eles não possuíam um Deus ou não adoravam qualquer divindade. Relata também o que já havia sido dito por outros viajantes sobre os espíritos malignos que atacavam os índios: Muitas vezes, como pude presenciar, sentindo-se atormentados, exclamavam subitamente enraivecidos: “Defendei-nos de Ainhan que nos espanca”. E afirmavam que o viam realmente sob a forma de um quadrúpede, ou de uma ave ou de qualquer outra estranha figura.1 Diante disso, LÉRY tenta convencer os indígenas de que esses espíritos os atacam porque eles não creem em Deus, argumentando que quem adora a Deus não é atormentado pelos espíritos malignos. Esse discurso ainda hoje é bem presente em muitas igrejas que tentam convencer seus fiéis. Uma maneira de a igreja atrair e converter as pessoas é fazendo-as temer a Deus e temer ao Diabo, mas com o argumento de que Deus é mais forte do que qualquer espírito mau. Como afirma LÉRY: “Admiravam-se muito quando lhe dizíamos que não éramos atormentados pelo espírito maligno e isso que devíamos a Deus [...], pois, sendo ele mais forte do que Ainhan, lhe proibia fazer-nos mal.”2 LÉRY teve a oportunidade de participar das danças e das cauinagens dos indígenas. Assim ele descreve: Ao falar das danças por ocasião das cauinagens prometi descrever também suas outras espécies de danças. Unidos uns aos outros, mas de mãos soltas e fixos no lugar, formam roda, curvados para a frente e movendo apenas a perna e o pé direito; cada qual com a mão direita na cintura e o braço e a mão esquerda pendentes, suspendem um tanto o corpo e assim cantam e dançam. 3 Diferente dos demais viajantes e também religiosos, LÉRY descreve as danças e as cauinagens como uma cerimônia em forma de algazarra, confessando que logo no início sentiu-se assustado, mas depois ficou contemplando a música e as imagens que via diante de si. Percebe-se que a sua visão sobre o indígena era diferente ao compará-la com este trecho do Pe. José de Anchieta: 1 LÉRY, Jean de. Capítulo XVI Religião dos selvagens da América; erros em que são mantidos por certos trapaceiros chamados caraíbas; ignorância de Deus. In: Viagem à terra do Brasil. Biblioteca do exército, 1961. 2 Ibidem., 1961 3 Ibidem., 1961 [...] São aqui conceituados os moçaracas beberrões Quem bebe até esgotar-se o cauim, Esse é valente, Ansioso por lutar É bom dançar, adornar-se, tingir-se de vermelho, empenar o corpo, pintar as pernas, fazer-se negro, fumar, curandeirar...4 Anchieta usa como personagem o Diabo. O Diabo diz que é bom beber o cauim, dançar, tingir-se de vermelho, fumar etc., pois ele vive entre os índios. Esses rituais não agradam a Deus. Anchieta coloca o Diabo como o principal responsável pelas cerimônias e cauinagens. Nota-se a diferença entre os dois discursos. Apesar de os propósitos de LÉRY e Anchieta serem distintos, vale ressaltar essa diferença em relação às cerimônias dos indígenas, pois fica perceptível nos escritos que LÉRY via o índio como criaturas de Deus, apesar de eles não demostrarem qualquer conhecimento em relação a tal divindade. Assim, via os rituais como uma “algazarra” e não como manifestação do Diabo. Ele critica os europeus (caraíbas) que iam às aldeias e diziam para os indígenas encherem os maracás de alimentos e até cauim dizendo que ao soarem os espíritos comunicar-se-iam com eles E como os habitantes acreditam nisso não deixam de pôr farinha, carne e peixe ao lado dos maracás e nem esquecem o cauim. Em geral deixam assim os maracás no chão de durante quinze dias a três semanas, após o que lhes atribuem santidade e os trazem sempre nas mãos dizendo que ao 4ANCHIETA de José. apud BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo: companhia das letras, 1992. p71 soarem os espíritos lhes vêm falar [...]. E se aproveitávamos a oportunidade para adverti-los de seus erros e lhes dizíamos que os caraíbas não só os iludem, quando os faziam acreditar que os maracás comiam e bebiam, mas ainda os enganavam gabando-se de fazer crescer frutos e raízes; e se lhes afirmávamos que quem fazia tudo isso era o Deus em que acreditávamos e que pregávamos, era o mesmo que entre nós falar contra o papa [...]. Esses trapaceiros, em suma, nos aborreciam tanto quanto os falsos profetas de Jesabel que odiavam ao profeta Elias, denunciador de seus abusos; aliás, ocultavam-se de nós, evitando aparecer nas aldeias por onde andávamos ou nelas dormir. 5 Os “falsos profetas” enganavam os índios para conseguirem alimentos e cauim, mas LÉRY os advertiu sobre tais trapaceiragens. Ele era contra as falsas pregações e dizia que quem fazia os frutos crescerem era Deus e não os maracás dos caraíbas. Afirmava que os seus tupinambás não acreditavam e não cediam a esses falsos pregadores, já que ele estava por perto para evitar tais erros. Essa falsa pregação usando a palavra Deus ainda é muito presente na contemporaneidade, como se pode observar neste noticiário: [...] o bispo Rogério Formigoni, da Igreja Universal do Reino de Deus, pede que os fiéis doem seus carros como prova de fé. O culto foi realizado no suntuoso Templo de Salomão, em São Paulo. “Pega esse carro, essa moto, esse caminhão. Pega isso, coloca no altar, sacrifica, que, em breve, você vai ter dinheiro para comprar uma Lamborghini. Se não quiser a Lamborghini, vai ter dinheiro para comprar o que quiser”, prometeu o pastor. “Acabei de comprar, mas dá! Dá confiando, dá crendo, dá porque Deus está te chamando”, prosseguiu.6 O caso desse pastor teve grande repercussão no país, pois, para muitos, o fato de o pastor pedir para os fiéis darem os seus carros ou os seus bens materiais para receber algo maior em troca é uma ideia absurda. Como foi mostrado, isso já acontecia com os índios, ao encherem os maracás de alimentos e cauim acreditando que com isso os frutos e as raízes cresceriam. LÉRY não só relata o quese passa entre os índios, mas tenta convencê-los de que Deus é a salvação e não os europeus mentirosos. Por trás de sua convivência com os selvagens e de seus escritos, ele se mostra como um “enviado” de Deus para os libertarem de Anhangá e dos caraíbas 5 Ibidem., 1961 6 FÓRUM. Pastor pede doação de carro e sugere que fiéis voltem a pé. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/segundatela/2016/07/13/pastor-pede-doacao-de-carro-e-sugere-que- fieis-voltem-a-pe/> Acesso em: 19 julho 2016. Declarei-lhes ainda que por esse motivo não temíamos os tormentos de Anhangá (aygnon) nem nesta vida nem na outra e que se eles, selvagens, quisessem libertar-se dos erros em que os mantinham os caraíbas mentirosos e trapaceiros, gozariam das mesmas graças que nós.7 Seu objetivo, além de descrever os indígenas, era tentar “libertá-los”, pois ele acreditava que Deus havia feitos os homens como seres superiores para adorá-lo, então, fazer com que os indígenas glorificassem a Deus seria como admiti-los como cristãos em potencial passíveis de serem humanizados. LÉRY retrata os índios de uma maneira diferente da dos demais, parece haver uma compreensão em relação à cultura indígena, visto que em seus relatos ele não trata o índio como um animal, mas sim como um ser desconhecedor de Deus, com seus rituais, culturas e que pode ser convertido. JOSÉ DE ANCHIETA ANCHIETA fazia uso da alegoria para catequizar os indígenas. Sua visão em relação a eles era diferente da visão de Jean de Léry, já apontada aqui, principalmente porque Anchieta não via da mesma forma as cerimônias dos índios, com suas beberagens, danças, pinturas etc. GUAIXARÁ8 Esta virtude estrangeria Me irrita sobremaneira Quem a teria trazido com seus hábitos polidos estragando a terra inteira? Só eu permaneço nesta aldeia 7 Ibidem., 1961 8 Rei dos diabos como chefe guardião. Minha lei é a inspiração que lhe dou, daqui vou longe visitar outro torrão.9 Guaixará é o rei dos diabos que toma conta da aldeia com seus pecados, referindo- se aos pregadores como “virtudes estrangeiras” que querem estragar a aldeia com suas catequizações. ANCHIETA usa como personagem o diabo, o qual se diz dono da terra e apreciador da cauinagem e rituais. Mais adiante ele diz Boa medida é beber cauim até vomitar. Isto é jeito de gozar a vida, e se recomenda a quem queira aproveitar. A moçada beberrona trago bem conceituada. Valente é quem se embriaga e todo o cauim entorna, e à luta então se consagra.10 Guaixará aparece aqui como apreciador desses rituais que são repelidos por ANCHIETA, por isso o uso da alegoria, para mostrar como o diabo fica feliz ao ver tais práticas. Mais uma vez, cabe chamar a atenção para alguns discursos pregados hoje em dia por muitas igrejas, o discurso de que: quem não se converter ou não 9 ANCHIETA, José de. Segundo ato. In: Auto representado na Festa de São Lourenço. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro - Ministério da Educação e Cultura, 1973. 10 Ibidem., 1973 fizer morada na casa de Deus terá sua vida como morada do Diabo. As igrejas não aprovam a maneira como muitas pessoas se divertem: festas, bebidas, extravagâncias etc. A bebida alcoólica, chamada pelos índios de cauim e repelida por ANCHIETA, também é muito consumida hoje em dia, e isso significa, para certas religiões, afastamento de Deus, assim como diz ANCHIETA em seu poema. Neste trecho ele fala: Quem bom costume é bailar! Adornar-se, andar pintado, tingir pernas, empenado fumar e curandeirar, andar de negro pintado. Sabe-se que existem religiões em que esses rituais e essas práticas são comuns. Hoje, um dos grandes problemas a serem enfrentados é a intolerância religiosa e a falta de compreensão do outro. ANCHIETA mostra-se intolerante em muitos de seus escritos, e tudo para exaltar o catolicismo e tentar converter os selvagens usando o argumento da salvação. A tensão cultural entre os indígenas e os religiosos é apontada não só em ANCHIETA, mas em outros relatos de viajantes e religiosos. Para eles, os índios não possuíam nenhuma divindade para cultuar. Essa é a visão dos colonizadores, mas como saber se realmente os índios não possuíam, já que eles tinham suas próprias cerimônias? De acordo com BOSI (1936) Com o fim de converter o nativo Anchieta engenhou uma poesia e um teatro cujo correlato imaginário é um mundo maniqueísta cindido entre forças em perpétua luta: Tupã-Deus, com sua constelação familiar de anjos e santos, e Anhanga- Demônio, com sua corte de espíritos malévolos que se fazem presentes nas cerimônias tupis.11 Anhangá, como foi dito em Jean de Léry, eram os espíritos maus que atormentavam os índios, aqui denominados como demônios. Bosi confirma o que é 11 BOSI, Alfredo. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In: Dialética da colonização. São Paulo: companhia das letras, 1992. p67-68 dito no Segundo ato da Festa de São Lourenço, o Diabo representando os rituais dos indígenas. O discurso de ANCHIETA é construído em cima desse “mundo maniqueísta”, em que há Deus e o Diabo; o bem e o mal; as pregações religiosas e as cerimônias tupis; os cristãos e o selvagens. CONCLUSÃO Diante de uma breve análise sobre a obra de Jean de Léry, pode-se perceber a diferente maneira como ele relatou os índios, não como animais, mas como criaturas de Deus que desconheciam sua palavra. A dura crítica de Léry aos falsos religiosos é um ponto bem recorrente no capítulo aqui estudado, visto que muitos indígenas realmente acreditavam em tais pregações. Dentre os relatos de viajantes já estudados até aqui, nesse pareceu haver, de certo modo, maior compreensão das práticas culturais indígenas. Já em ANCHIETA pode-se perceber o contrário. O discurso da intolerância cultural fica bem visível no Segundo ato da Festa de São Lourenço, analisado neste artigo. Ainda assim, não se pode deixar de estudá-los, pois por meio de cada relato de viajante e de cada relato de jesuíta é possível conhecer um pouco mais sobre os primeiros habitantes do Brasil. Apesar de, como foi mencionado, ser uma visão do colonizador e não do colonizado. REFERÊNCIAS ANCHIETA, José de. Segundo ato. In: Auto representado na Festa de São Lourenço. Rio de Janeiro: Serviço Nacional de Teatro - Ministério da Educação e Cultura, 1973. Disponível em: < http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000145.pdf> Acesso em: 18 julho 2016. BOSI, Alfredo. Anchieta ou as flechas opostas do sagrado. In: Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das letras, 1992. p67-68 FÓRUM. Pastor pede doação de carro e sugere que fiéis voltem a pé. Disponível em: <http://www.revistaforum.com.br/segundatela/2016/07/13/pastor- pede-doacao-de-carro-e-sugere-que-fieis-voltem-a-pe/> Acesso em: 19 julho 2016. LÉRY, Jean de. Capítulo XVI Religião dos selvagens da América; erros em que são mantidos por certos trapaceiros chamados caraíbas; ignorância de Deus. In: Viagem à terra do Brasil. Biblioteca do exército, 1961. Disponível em: < http://www.ufscar.br/~igor/wp-content/uploads/lery.pdf> Acesso em: 18 julho 2016. MOISÉS, Massaud. Origens (1500-1601). In: História da literatura brasileira: das origens ao romantismo. São Paulo: Cultrix, 2001. p32-51, 55-57.
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