Buscar

O HOMEM EM CONFLITO E A REIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES NA OBRA SÃO BERNARDO

Prévia do material em texto

O HOMEM EM CONFLITO E A REIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES NA OBRA SÃO 
BERNARDO 
 
RESUMO 
O presente artigo tem como objetivo fazer uma análise acerca da posição do narrador 
na obra São Bernardo, de Graciliano Ramos, evidenciando como o narrador-
protagonista utiliza as estratégias de reificação (ou coisificação) nas suas relações 
com os indivíduos que o cercam e como a obra, na sua tessitura, critica um Brasil 
agrário, rural e paternalista. 
Palavras-chave: Homem. Reificação. Agrário. Rural. Paternalista. 
 
INTRODUÇÃO 
O romance contemporâneo (século XX), contrário ao romance tradicional 
(XVIII-XIX), é marcado pela incompletude, pela reprodução “infiel” da realidade e por 
um indivíduo incapaz, que não tem controle sobre suas ações. Se o narrador clássico 
era completo e autêntico, com o narrador moderno não será da mesma forma, pois 
este é caracterizado por sua fragmentação e impotência. “[...] Adorno [...] chama a 
atenção para o conceito do monólogo interior, comum nos romances do século XX. 
Nessa técnica o mundo é narrado a partir da interioridade do indivíduo. ” 
(GONÇALVES, 2011, p.458) O monólogo interior caracteriza-se pelo diálogo mental 
que o personagem e/ou narrador tem consigo mesmo, mas sem perder a consciência 
dos fatos. A noção de romance moderno aqui esboçada é evidenciada na obra São 
Bernardo, de Graciliano Ramos, por meio de Paulo Honório: herói que luta por si e por 
suas representações. Antes de falar sobre a posição do narrador na obra, atentemos 
para o significado de Honório que “tem origem no latim Honoriu, nome formado pela 
junção da palavra honor, que quer dizer ‘honra, reputação’ com o sufixo io, e significa 
‘homem honrado, homem de reputação’. ” 1 
 
1 Fonte: Dicionário de nomes próprios. 
 Disponível em: <https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/honorio/> Acesso em: 19 jan. 2017 
POSIÇÃO DO NARRADOR 
 A obra São Bernardo é narrada em primeira pessoa por Paulo Honório, 
narrador protagonista. “O NARRADOR, personagem central, não tem acesso ao 
estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que 
exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos. “ (LEITE, 1985, 
p.43) Honório não tem acesso aos pensamentos das demais personagens, mas a 
partir de suas observações tenta imaginar o que se passa na mente delas “[...] Ignoro 
essas coisas, naturalmente, mas desejaria saber o que Madalena pensava a respeito 
delas. [...] Qual seria a opinião de Madalena? “ (RAMOS, 1995, p.132, grifo meu) Paulo 
Honório fica muito inquieto por não conseguir decifrar e controlar a mulher, o que é a 
causa de todo o conflito. 
As vozes das personagens aparecem em discurso direto, mas nem sempre, 
visto que o narrador seleciona apenas o que julga importante para a narrativa 
Essa conversa, é claro, não saiu de cabo a rabo como está no papel. Houve 
suspensões, repetições, mal-entendidos, incongruências [...] Reproduzo o 
que julgo interessante [...] Suprimi diversas passagens, modifiquei outras [...] 
É o processo que adoto; extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o 
resto é bagaço. (RAMOS, 1995, p.77) 
 
No trecho acima, Paulo conversa com D. Glória sobre as vantagens de se 
trabalhar em São Bernardo e faz exaltações ao lugar, momento em que não utiliza 
mais o discurso direto para falar de D. Glória, mas fala por ela e suprime boa parte da 
conversa, deixando em evidência apenas a sua posição, como uma forma de 
convencer o leitor sobre a veracidade daquilo que está sendo narrado. A supressão 
do discurso direto foi utilizada como estratégia para que o seu ponto de vista se 
sobressaísse, assim, mostra-se ao leitor apenas uma versão da história, o que não 
significa que seja predominante, visto que ele se utiliza do discurso direto em outros 
momentos para ratificar o que está sendo narrado e “criar um efeito de proximidade 
entre o leitor e a história narrada” (JUNIOR, 2009, p.42), característica da cena. 
 Paulo Honório mostra-se autoritário e sempre em busca de reconhecimento, 
visto que passou por muitas dificuldades antes de ser um homem de “posses”. 
Paternalista, homem muito ligado ao meio agrário e rural, são elementos que estão 
postos na narrativa e que, de forma sutil ou intensa, caracterizam-se como crítica 
social. 
 Logo no primeiro capítulo o narrador afirma que “Antes de iniciar este livro, 
imaginei construí-lo pela divisão do trabalho [...] Eu traçaria o plano, introduziria na 
história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome 
na capa. “ (p.5, grifo meu). Pela divisão do trabalho, os demais colaboradores ficariam 
com o “trabalho pesado”, enquanto Honório imporia a ordem tratando os outros como 
meros objetos: “Eu [...] entusiasmado com o assunto, esquecia constantemente da 
natureza do Gondim e chegava a considerá-lo uma espécie de folha de papel. “ (p.6, 
grifo meu). 
 Ainda que Paulo Honório demonstre alguma afetividade pelas pessoas que o 
cercam, o que predomina é a coisificação das personagens, evidenciada em toda a 
narrativa, como no trecho em que trata Casimiro como um cão de guarda: “Casimiro 
Lopes, que não bebia água na ribeira do Navio, acompanhou-me. Gosto dele. É 
corajoso, laça, rasteja, tem faro de cão e fidelidade de cão. “ (p.14, grifo meu) A 
reificação ou coisificação transforma as qualidades do homem em maquinaria social, 
é o envolvimento que faz com que o homem não perceba o mundo ao se redor. 
Segundo Adorno (2003), “a própria alienação torna-se um meio estético para o 
romance. “ (p.58). É a valorização da experiência individual que aparece como 
afirmação do romance. 
 O narrador continua, utiliza as estratégias de coisificação para se referir à velha 
Margarida: “[...] peça ao vigário que escreva ao padre Soares sobre a remessa da 
negra [...] É conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para não estragar 
na viagem. “ (p.48, grifo meu). 
À Madalena: “[...] Professorinhas de primeiras letras a escola normal fabricava às 
dúzias. Uma propriedade como S. Bernardo era diferente. “ (p.116, grifo meu). 
Ao Padilha: “[...] Coitado! Tão miúdo, tão chato, parecia um percevejo. “ (p.49, grifo 
meu). 
Ao Marciano: “[...] Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E 
Marciano não é propriamente um homem. “ (p. 110, grifo meu) 
Aos amigos, que conversavam no alpendre: “ Os outros continuavam a zumbir. Sebo! 
Uns insetos. “ (p.124, grifo meu). E, por fim, chega à conclusão de que todos que o 
serviram durante anos eram bichos 
Bichos. As criaturas que me serviram durante anos eram bichos. Havia bichos 
domésticos, como o Padilha, bichos do mato, como Casimiro Lopes, e muitos 
bichos para o serviço do campo, bois mansos. Os currais que se escoram 
uns aos outros, lá embaixo, tinham lâmpadas elétricas. E os bezerrinhos mais 
taludos soletravam a cartilha e aprendiam de cor os mandamentos da lei de 
Deus. (RAMOS, 1995, p.185) 
As personagens são marcadas pelo narrador como meros objetos a serem 
transportados, fabricados, diminuídos, açoitados, danificados e animalizados: bichos 
que trabalham em todos os espaços de seu domínio; “bezerrinhos” em formação que 
só iriam aprender os mandamentos de Deus, para que não fugissem do cabresto. 
 Honório não vive só em conflito com o mundo externo, com o mundo interno o 
conflito mostra-se bastante intenso. Vê-se aqui o mundo externo como São Bernardo, 
pois como o próprio narrador afirma: “[...] para mim S. Bernardo era o lugar mais 
importante do mundo. “ (p.74, grifo meu). Era o único mundo ao qual pretendia viver, 
pois ignorava tudo o que não dizia respeito àquele lugar. 
As aflições de Paulo Honório são características do monólogo interior: quando 
a personagem dialoga consigo mesmo sem perder o controle sobre sua consciência, 
como no trecho: “Às vezes o bom senso me puxava as orelhas: — Baixa o fogo, 
sendeiro.Isso não tem pé nem cabeça. “ (p.152, grifo meu) Paulo Honório reflete sobre 
sua situação, deixando o pensamento do seu personagem conduzir aquele trecho da 
narrativa, sem perder a ordem dos fatos. No entanto, em outros trechos o monólogo 
interior intensifica-se, dando espaço ao fluxo de consciência: “Emoções indefiníveis 
me agitam — inquietação terrível, desejo doido de voltar. Tagarelar novamente com 
Madalena, como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é 
desespero, raiva, um peso enorme no coração. “ (p.101, grifo meu). As emoções de 
Honório narrador enlaçam-se com as emoções de Honório Personagem, o passado 
mistura-se com o presente e há uma perturbação em torno dos fatos narrados. 
A busca de Paulo Honório pelo reconhecimento e por manter a sua reputação 
também é causa de muito conflito, visto que vai usar de sua autoridade e brutalidade 
para nutrir isso. Ele objetifica as pessoas para não deixar o trabalho esmorecer e, 
deste modo, fazer com que todos vejam que ele é um homem honrado, ainda que 
suas ações não tenham sido boas. Tais ações, boas ou não, o ajudaram a conquistar 
São Bernardo e o fizeram crescer por meio do trabalho, como no fragmento: “[...] 
Vejam isto! Estão dormindo? Acordem. As casas, a igreja, a estrada, o açude, as 
pastagens, tudo é novo. Pensam que isto nasceu assim sem mais nem menos? “ 
(p.123, grifo meu). Em seus pensamentos ele grita e não entende como os outros não 
percebem suas benfeitorias. 
Após a morte de Madalena e abandonado pelas pessoas que o cercavam, 
Paulo Honório sente a necessidade de escrever, como afirma Antonio Candido (2006) 
Paulo Honório sente uma necessidade nova - escrever – e dela surge uma 
nova construção: o livro onde conta a sua derrota. Por meio dele obtém uma 
visão ordenada das coisas e de si, pois no momento em que se conhece pela 
narrativa destrói-se enquanto homem de propriedade, mas constrói com o 
testemunho da sua dor a obra que redime. E a inteligência se elabora nos 
destroços da vontade. (CANDIDO, 2006, p.43) 
 
A necessidade nova que Paulo Honório sente surge a partir do momento em 
que ele se vê sem outras direções a seguir: não há mais a necessidade de açoitar os 
trabalhadores, pois com a revolução sua fazenda entrou em decadência, e não 
necessita mais controlar Madalena, pois está morta. O narrador sente-se derrotado, 
visto que Madalena foi a única pessoa que ele não conseguiu controlar, apesar de 
objetificá-la em vários momentos, mas isso enquanto narrador, pois o personagem 
não tinha domínio sobre a mulher, o que causou sua “destruição enquanto homem de 
propriedade”. 
 
CRÍTICA A UM BRASIL AGRÁRIO, RURAL E PATERNALISTA 
 Publicado em 1934, São Bernardo surge em um momento de crise política, 
social e econômica. Evidencia-se na obra uma crítica à ignorância do povo em um 
Brasil agrário, de miséria e paternalista. Paulo Honório representa o homem detentor 
da terra, que tem como única finalidade lucrar, ainda que de forma desumana e 
ilegítima. O personagem diz: “O meu fito na vida foi apossar-me das terras de S. 
Bernardo, construir esta casa, plantar algodão, plantar mamona, levantar a serraria e 
o descaroçador, introduzir nestas brenhas a pomicultura e a avicultura. “ (p.9, grifo 
meu). Sua finalidade era crescer na vida por meio do cultivo nas terras de São 
Bernardo. Esquecendo o lado humano, trata os seus empregados como bichos 
destinados somente a produzir, realidade de muitos trabalhadores do meio agrário. 
Honório fala sobre seu triunfo enquanto homem de negócios: “Para levar os meus 
produtos ao mercado, comecei uma estrada de rodagem. Azevedo Gondim compôs 
sobre elas dois artigos, chamou-me patriota, citou Ford e Delmiro Gouveia. “ (p.40, 
grifo meu) Paulo via suas ações como benéficas para o governo e como melhorias 
para os arredores da fazenda. Cita Ford e Delmiro Gouveia, pois Ford foi o idealizador 
das linhas de montagem utilizadas na produção em massa e Delmiro Gouveia foi um 
dos pioneiros da industrialização do país, patamares aos quais Honório pretendia 
chegar, utilizando-se de mão-de-obra barata. 
 A falta de sensibilidade dos grandes proprietários de terras também é mostrada 
na obra, assim como o abandono e a indiferença em relação aos trabalhadores do 
meio rural: “Essa gente quase nunca morre direito. Uns são levados pela cobra, outros 
pela cachaça, outros matam-se [...] Na pedreira perdi um [...] Para diminuir a 
mortalidade e aumentar a produção, proibi a aguardente. (p.38, grifo meu) Neste 
trecho do capítulo oito, nota-se o total descaso com os trabalhadores. A ausência da 
sensibilidade humana é substituída pela preocupação com o aumento da produção: a 
alienação do homem. 
Outro fator está relacionado ao menosprezo pela educação dos empregados 
do meio rural, pois a instrução da mão-de-obra barata não é conveniente para os 
detentores do poder, como afirma Honório: “Escola! Que me importava que os outros 
soubessem ler ou fossem analfabetos? - Esses homens de governo têm um parafuso 
frouxo. Metam pessoal letrado na apanha da mamona. Hão de ver a colheita. “ (p.42, 
grifo meu). Um trabalhador letrado seria muito mais difícil de se controlar: o 
pensamento crítico e o conhecimento acerca das coisas do mundo desconstruiriam a 
maquinaria social na qual o empregado rural foi transformado, como Casimiro Lopes, 
que só serve ao trabalho braçal: “[...] Casimiro Lopes é que não tinha opinião. Quem 
me dera ser como Casimiro Lopes! “ (p.151, grifo meu). Para Honório, esse é o perfil 
do bom empregado: sem instrução, sem opinião e sem pensamentos revolucionários. 
 O último ponto a ser mencionado concerne ao autoritarismo e ao paternalismo, 
que se evidenciam de forma intensa na obra 
[...] Não me preocupo com amores [...], e sempre me pareceu que mulher é 
um bicho esquisito, difícil de governar [...] Não me sentia, pois, inclinado para 
nenhuma: o que sentia era o desejo de preparar um herdeiro para as terras 
de S. Bernardo. (RAMOS, 1995, p.57) 
A figura da mulher aparece como um mero objeto reprodutor, somente para dar 
herdeiros e para satisfazer o desejo do personagem. Surge então Madalena, que lhe 
dá um herdeiro, mas Honório não se contenta com isso, seu desejo maior é controlar 
a mulher, que não aceita viver sob as ordens de um homem paternalista e autoritário. 
Paulo Honório sente-se desconfortável ao pensar que Madalena não tem religião: 
“Qual seria a religião de Madalena? Talvez nenhuma. Nunca me havia tratado disso. 
[...] Tenho portanto um pouco de religião, embora julgue que, em parte, ela é 
dispensável num homem. Mas mulher sem religião é horrível. “ (p.133, grifo meu). A 
religião é colocada como um “freio”, visto que ela rege e controla as ações do 
indivíduo, acentua-se mais quando se trata da mulher, que é vista como algo frágil e 
fácil de ser conduzido ao pecado. Mulher sem religião é horrível, pois o paternalismo 
se vê derrotado por não conseguir dominá-la. 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
No romance contemporâneo o narrador é caracterizado por sua fragmentação 
e impotência, traços marcantes no personagem Paulo Honório, na obra São Bernardo. 
Honório reifica todas as pessoas que o cercam, tratando-as como simples objetos 
passíveis de serem transportados, comprados e até animalizados. A busca pelo 
reconhecimento e pela ascensão econômica e social, fizeram de Paulo Honório um 
herói de si mesmo, característico do romance, mas um malfeitor das relações 
humanas. Assim, foi possível perceber como o narrador se posiciona na obra, como 
ele utiliza as estratégias de reificação e como a crítica social aparece na tessitura da 
narrativa. 
 
REFERÊNCIAS 
ADORNO, Theodor W. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas 
de literatura I. Tradução e apresentação de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas 
cidades/ Editora 34, 2003, p.54-63 
CANDIDO, Antonio. Ficção e confissão. In: Ficção e confissão: ensaios sobreGraciliano Ramos. 3ª ed. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2006, p. 32-46 
GONÇALVES, Lívia Bueloni. Do narrador cartesiano ao narrador impotente: as 
primeiras mudanças entre as narrativas dos séculos XIX e XX. In: Revista contexto 
– Revista Semestral do programa de Pós-graduação em Letras – UFFS, nº 19, vol. 1, 
2011. Disponível em: <http://www.periodicos.ufes.br/contexto/article/view/6577> 
JÚNIOR, Arnaldo Franco. Operadores de leitura da narrativa. In: BONNICI, Thomas; 
ZOLIN, Lúcia Osana (orgs.). Teoria Literária: abordagens históricas e tendências. 
3ª ed. Maringá: Eduem, 2009, p. 33-58 
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo (ou A polêmica em torno da ilusão) 
[capítulos 1 e 2]. São Paulo: Ática, 1985, p.25-70 
RAMOS, Graciliano, 1892-1953. São Bernardo: posfácio de João Luiz Lafetá. 
Ilustrações de Darel. 63ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1995.

Continue navegando