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ANÁLISE DO ENREDO DE MACUNAÍMA: o herói sem nenhum caráter. Morfologia do conto maravilhoso (propp). Literatura comparada. Estrutura da narrativa.

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ANÁLISE DO ENREDO DE MACUNAÍMA: o herói sem nenhum caráter 
 
 
 
 
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ANÁLISE DO ENREDO DE MACUNAÍMA: o herói sem nenhum caráter 
 
 
RESUMO 
O presente artigo tem como objetivo apresentar uma breve análise do enredo da obra 
Macunaíma. Para isso, é necessário que se faça um preâmbulo acerca do contexto da obra, pois 
esse é um dos pontos principais para entendê-la. Falar-se-á sobre o modernismo: o que 
propunha e quais as características das obras produzidas nesse período; o que é o mito e qual a 
sua importância; a obra de Koch-Grunberg; e o que é o maravilhoso. 
Palavras-chave: Análise. Enredo. Macunaíma. 
 
INTRODUÇÃO 
 O modernismo, no Brasil, foi um movimento que provocou transformações 
importantíssimas na arte brasileira, e foi no ano de 1922, com a Semana da Arte Moderna, em 
São Paulo, que essa estética se concretizou, abrangendo intelectuais da pintura, da escultura, da 
música e da literatura. Os artistas, motivados pelas vanguardas europeias Francesas e Italianas, 
propunham uma estética inovadora até então nunca vista no Brasil. De início, a vanguarda 
Futurista foi a primeira a ser incorporada no Brasil devido a exaltação do progresso, ou seja, 
valorizava o que era moderno. Isso significa dizer que o Brasil apresentava, naquele momento, 
a busca pelo “novo”, e isso se dava pelo desenvolvimento das industrias, dos centros urbanos e 
da tecnologia: 
[...] a Semana é a consubstanciação de uma série de tendências que se vinham 
constituindo gradativamente e que se transformam numa tomada de posição coletiva 
de artista diante do público. Conscientes do que não queriam, lançam-se esses “novos” 
à procura de caminhos. Claro que os movimentos estrangeiros de renovação, 
dominantes naquela época, forneciam os mapas. De novo a Europa nos mandava a sua 
contribuição, mas pela primeira vez com influencia muito menor, sem o caráter de 
coisa a ser imitada” (PROENÇA FILHO, 1995, p.335) 
 
Porém, por mais que os movimentos estrangeiros dessem os “mapas”, como cita 
Proença Filho, no modernismo a tentativa era tornar a arte mais nacional possível, ou seja, com 
menos influências externas. O espírito de nacionalidade e originalidade cresciam dentro dos 
artistas, os quais tinham como interesse compreender a nação brasileira. Esse país, que 
apresentava um vasto território com diversas peculiaridades, tais como tradições e costumes, 
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os quais deveriam ser explorados. Assim, o modernismo trouxe uma liberdade de expressão, ou 
seja, tratava de temas mais universais e do cotidiano. 
Outro fator importante que cabe explicitar é a noção de anti-herói, pois na literatura 
moderna o herói sofre um processo de deseroicização. De acordo com Mesquita (1986, p. 25-
26): “Anti-herói será aquele protagonista que, por diferentes razões, não recupera uma ordem 
perdida, uma perda, um dano sofrido [...] ou porque conhece as regras do jogo duro do mundo 
e, longe de querer modificá-las, julga que a saída é jogar o jogo. ” Essas características serão 
vistas mais adiante com o “herói sem nenhum caráter”, que joga o referido “jogo duro do 
mundo”. 
Dadas as explicações sobre o modernismo, vale discorrer um pouco sobre uma das 
principais figuras desse movimento. O escritor Mário Raul de Moraes Andrade nasceu no dia 
9 de outubro de 1893, em São Paulo, e morreu no dia 25 de fevereiro de 1945, com cinquenta 
e um anos de idade. Desde muito cedo Mário de Andrade apresentava intimidade com o mundo 
artístico e literário. Ele foi poeta, romancista, musicólogo, historiador, crítico de arte, fotógrafo 
e o maior propulsor do Modernismo brasileiro. 
O autor, juntamente com um grupo paulista, pensava nessa sociedade urbana e industrial 
que se instaurava no Brasil. Buscavam compreender o país diante dessa nova realidade, tanto a 
nível cultural quanto a nível social. O livro Paulicéia Desvairada (1922), de Mário de Andrade, 
foi a primeira obra modernista publicada no Brasil que evidenciava essa experiência de 
modernidade, ou seja, uma sociedade saindo do ambiente agrário e transformando-se em um 
ambiente urbano. Ao viajar para a Amazônia, e também para regiões próximas, Mário de 
Andrade percebeu a diversidade cultural presente nessa região. Viajou também para a região 
Nordeste e percebeu tal diversidade presente nos contos nordestinos, repentes populares, festas 
populares, poesias cantadas, músicas brasileiras, dentre outros elementos que compõem a 
identidade nacional. Foi com toda essa experiência vivida que o Autor escreveu o livro 
Macunaíma. 
 Outro ponto a ser abordado concerne ao contexto relacionado à produção da obra. 
Primeiro tratar-se-á de Makunaima, para depois, enfim, tratar-se de Macunaíma. Para adentrar-
se à breve explicação sobre os mitos em torno de Makunaima, é necessário fazer um preâmbulo 
para esclarecer o que são as narrativas míticas e qual a sua importância. Posteriormente, antes 
de partir para a análise da obra literária Macunaíma, apresentar-se-á as noções de fantástico e 
maravilhoso, conforme as explicações de Todorov (2004) em Introdução à Literatura 
Fantástica. 
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 Para os povos tradicionais, como os indígenas, por exemplo, as narrativas míticas orais 
desempenham um papel muito importante. De acordo com Fernandes (2015), a narrativa mítica 
tem o papel de explicar as origens e, ainda, a cosmogonia de um determinado lugar ou 
sociedade. O mito tem um caráter sagrado, é como um elemento de fé que deve ser seguido. 
 Cabe esclarecer a diferença que Eliade (1972) faz entre os mitos de origem e os mitos 
cosmogônicos. Segundo o autor, toda história mítica de origem pressupõe e prolonga uma 
cosmogonia, pois sendo a cosmogonia a criação do mundo, ela serve de modelo exemplar para 
outras criações, mas: 
Isso não quer dizer que o mito de origem imite ou copie o modelo cosmogônico, pois 
não se trata de uma reflexão concertada e sistemática. Mas todo divo aparecimento — 
um animal, uma planta, uma instituição — implica a existência de um Mundo. Mesmo 
quando se procura explicar como, a partir de um estado diferente de coisas, se chegou 
à situação atual (de como, por exemplo, o Céu se apartou da Terra, ou de como o 
homem se tornou mortal), o "Mundo" já existia, embora sua estrutura fosse diferente, 
embora ainda não fosse o nosso Mundo. (ELIADE, 1972, p. 20). 
Tudo o que vem depois da criação do mundo é mito de origem, ou seja, o mito 
cosmogônico serve de base para os mitos que surgirem posteriormente. Digamos, para se falar 
do surgimento dos animais é necessário que o mundo já tenha existido, pois estes animais não 
surgirão se não for em um espaço já criado previamente. É importante compreender estas 
noções, pois conforme se observa em Barreto (2014, p.29), a maioria dos mitos em torno de 
Makunaima são de origem, como no trecho: “[...] Makunaima, tentando reverter o que 
aconteceu, cria novos homens, porém eles derretem já que foram feitos de cera, em seguida cria 
homens de barro que ao serem expostos ao sol adquirem vida. ”. Aqui, vê-se que os feitos de 
Makunaima resultaram na origem de novos homens. As narrativas míticas têm esse papel de 
explicar a origem de determinados acontecimentos e, segundo Barthes (2011), elas estão 
presentes em todas as sociedades, de todos os tempos. 
 Dados os esclarecimentos sobre as narrativas míticas, ver-se-á, brevemente, o que dizem 
as histórias míticas em torno de Makunaima. Para isso, recorreu-se à dissertação de mestrado 
de Mêrivania Rocha Barreto (2014), cujo título é Makunaima/Macunaíma 
Theodor Koch-Grünberg e Mário de Andrade, entre fatos e ficções, por ser um trabalho de 
pesquisa que contêm dados detalhados sobre este objeto de estudo. 
 De acordo com a autora, as histórias em torno de Makunaima são mais estimadas entre 
os povos nativos da América do Sul e são contadas, principalmente, por indígenas que vivem 
próximos ao Monte Roraima. Estas narrativas foram coletadas pelo etnólogo alemãoTheodor 
Koch-Grunberg em uma de suas expedições realizada no período de 1911 a 1913. O resultado 
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de sua expedição foi publicado na obra Vom Roroima zum Orinoco (Do Roraima ao Orinoco), 
dividida em cinco volumes. 
 Conforme Barreto (2014), Makunaima, na maioria das histórias em que é o personagem, 
é tido como um herói cultural dos índios Taurepáng, Arekuna, Makuxi, Wapichana e Ingariko. 
De acordo com (KOCH-GRUNBERG, 2002, p.34 apud BARRETO, 2014, p.26), “Makunaima 
é, como todos os heróis tribais, o grande transformador. Transforma pessoas e animais em 
pedras [...]. Ele fez [...] todos os animais de caça, bem como os peixes. Após o incêndio 
universal que destrói a humanidade, cria novos homens”. Mas ele não aparece sempre como o 
herói, em algumas histórias ele revela-se como um vilão. Por exemplo, na narrativa sobre a 
árvore Wazaká, na qual ele derruba a árvore, provocando assim uma grande enchente que acaba 
com todos os seres vivos. 
 Por se tratar de narrativas orais, há diferentes versões de como seja Makunaima, ora é 
tido como herói e ora é tido como vilão; mas, ainda sim, permanece vivo na memória dos 
narradores, os quais passam as suas histórias de geração em geração. Segundo Barreto (2014), 
Koch-Grunberg se confunde em relação aos termos “mito, lenda e conto”, e não dá uma 
definição exata para o que sejam as histórias que coletou. Dessa forma, a autora prefere usar 
em seu trabalho a denominação “narrativas em torno de Makunaima”. 
 Ainda que não haja um termo definido nem por Koch-Grunberg, nem por Barreto 
(2014), entende-se, neste trabalho, que estas histórias são de fato mitos, haja vista que são 
impregnadas de elementos de fé, pois a Makunaima é dado o poder de petrificação, o que ajuda 
o povo no que diz respeito à alimentação; ele cria o homem a partir do barro, dentre outros 
feitos e criações. A ele são relacionadas a origem de determinados acontecimentos e situações. 
É possível observar isso em alguns trechos coletados, por meio de entrevistas, de narradores 
que vivem em torno do Monte Roraima. Estas entrevistas fazem parte do documentário Nas 
trilhas de Makunaima1. Veja-se a sinopse: 
O documentário conta a história de um mito indígena do Estado de Roraima, 
extremo norte do país, e sua relação com uma montanha sagrada. A partir de 
narrativas de índios Ingarikó, Taurepang e Macuxi, o filme mostra as diversas faces 
de Makunaima – um ancestral guerreiro dos índios de origem ‘Karib’, concebido 
por algumas etnias como um Deus da natureza. (52 minutos. Ano de produção: 
2007). 
 
 Qual a relação do mito de Makunaima com a obra produzida pelo escritor, folclorista e 
figura de grande importância do modernismo brasileiro: Mário de Andrade? Conforme aponta 
Barreto (2014, p. 34), “o tema do folclore foi de grande importância para a ideia de 
 
1 Disponível em: <https://vimeo.com/69919258>. 
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nacionalização proposta por Mário de Andrade para a arte brasileira, sobretudo para a literatura 
entrar, de fato, na modernidade”. Em busca de uma arte mais nacional, Mário de Andrade cria, 
após sua viagem pelo Norte do Brasil, a obra Macunaíma: O herói sem nenhum caráter. 
O autor teve como base as histórias coletadas por Koch-Grunberg, mas também se 
utilizou de informações coletadas por ele próprio durante sua visita ao Norte. Por aproveitar 
grande parte da obra do alemão, Mário de Andrade foi acusado de plágio. Não negou a 
acusação. Sobre isso, Barreto (2014, p.51) explica: 
Quando Mário afirma ‘eu copiei o Brasil’, não é simplesmente a cópia pura, no sentido 
de plagiar, como muitos o acusaram, mas cópia no sentido de devoração dos 
elementos pertencentes à cultura brasileira, de reescrita, deglutição e transformação 
em algo novo que é o livro Macunaíma. (Grifo do autor) 
 
Ou seja, o que o autor fez foi um processo antropofágico, ele aproveitou os elementos 
que lhe possibilitaram inovar o universo artístico no qual vivia. O autor inclui os mitos 
indígenas em sua produção justamente para dar este caráter mais nacional, que era a proposta 
feita pelos modernistas. 
Apesar de as histórias contidas em Macunaíma terem como base as narrativas coletadas 
 ainda que modificadas  na região Norte, Mário de Andrade também insere no enredo a sua 
realidade, a realidade do Sudeste do Brasil: máquinas, carros, revólveres, etc., enfim, um mundo 
tecnizado. Assim, as realidades brasileiras misturam-se. Não só se fala do Norte e do Sudeste 
brasileiro, mas também de todas as regiões. Macunaíma se desloca de um canto a outro do 
Brasil num piscar de olhos. 
Outro ponto a ser abordado concerne às noções de fantástico e maravilhoso. Segundo 
Todorov (2004), o fantástico nada mais é do que o tempo da vacilação que o personagem ou o 
leitor tem acerca dos acontecimentos dentro da história. Conforme a afirmativa: “Há um 
fenômeno estranho que pode ser explicado de duas maneiras, por tipos de causas naturais e 
sobrenaturais. A possibilidade de vacilar entre ambas cria o efeito fantástico” (p.16). Os 
fenômenos podem ser explicados, como se observa, de duas formas. Se forem explicados de 
maneira racional, encaixam-se no que o autor denomina como “estranho”. Se, pelo contrário, 
não houver explicações lógicas para os acontecimentos, eles se encaixam, então, na 
denominação “maravilhoso”. A obra Macunaíma, objeto de estudo deste trabalho, pertence ao 
maravilhoso, conforme se verá mais adiante. 
 
 
 
 
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ANÁLISE DO ENREDO 
 
 A fim de corroborar a afirmativa quanto ao pertencimento da obra ao maravilhoso, cabe 
destacar o trecho: “Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. ” 
(ANDRADE, 1992, p. 11). Aqui, vê-se o poder de transformação de Macunaíma, que tem como 
finalidade brincar com Sofará. As transformações acontecem num piscar de olhos e num ritmo 
acelerado, o que pode causar uma certa confusão ao leitor desatento. Ao ler-se tais 
acontecimentos, o leitor pode vacilar entre duas possibilidades: a de dar uma explicação 
racional ou uma explicação ilógica. O tempo dessa vacilação é que cria o efeito fantástico. 
 No seguinte trecho, vê-se o ato da transgressão, tão presente nos contos maravilhosos: 
“[...] e por causa de Maanape ter matado um boto pra comerem, o sapo cunauru chamado 
Maraguigana pai do boto fitou enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. ” 
(ANDRADE, 1992, p. 13). Como é sabido, o boto é um ser mitomórfico muito presente nas 
narrativas míticas orais da região Norte. De acordo com as histórias acerca de tal ser, o 
indivíduo que o mata é punido de alguma forma pela natureza. Neste caso, foi o sapo cunauru 
que puniu Maanape e seu irmão. A citada enchente tem relação com a história coletada por 
Koch-Grunberg, a qual fala sobre a derrubada da árvore Wazaká. Como consequência de tal 
feito, ocorre uma grande enchente e depois um incêndio que destrói todos os seres vivos. 
Outro feito que também faz com que o herói seja punido é quando ele mata uma viada 
parida: 
Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco e quando estava 
chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida. 
[...]Essa eu caço! ele fez. E perseguiu a viada [...]O herói cantou vitória. Chegou perto 
da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do 
Anhanga.... Não era viada não, era a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara 
e estava morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus dó mato. 
(ANDRADE, 1992, p. 17) 
 
Tais acontecimentos são tidos como uma transgressão ao sagrado e, ao se cometer tal violação, 
os culpados são punidos pelas leis da natureza. Mário de Andrade incorporou em sua obra essas 
crenças tão arraigadas aos povos tradicionais da região Norte, e que se encontram nas histórias 
coletadas pelo etnólogo alemão. 
 As transformações do herói são de caráter onírico, não fazemsentido no mundo real, 
não têm natureza objetiva, mas sim surreal: “Então ele virou na formiga quenquém e mordeu 
Iriqui pra fazer festa nela. Mas a moça atirou a quenquém longe. Então Macunaíma virou num 
pé de urucum. ” (ANDRADE, 1992, p. 17). Mesquita (1986, p.30) fala sobre a complexidade 
da construção da narrativa moderna, na qual é manifestada a “revivescência do mítico, [...] do 
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elemento mágico, do onírico e do maravilhoso”. Tais elementos são encontrados em 
Macunaíma. 
Conforme visto em Mesquita (1986), o herói, após o período do Romantismo, passa por 
um movimento de deseroicização que se destaca ainda mais na literatura contemporânea. Veja-
se este trecho: “O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria. Fez lança de flecha 
tridente enquanto Macunaíma puxava da pageú. Foi um pega tremendo e por debaixo da copada 
reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. ” 
(ANDRADE, 1992, p. 19). Este é o momento em que Macunaíma encontra com Ci e ambos 
entram em uma luta corporal. Ele, claro, conta com a ajuda dos irmãos para sair vencedor. Note-
se o lado anti-herói. Enquanto nas histórias tradicionais  nas quais se tem um personagem que 
entra em cena para restabelecer o equilíbrio reparando o dano que é sofrido pela princesa  o 
herói é um benfeitor que arriscar sua vida em função do outro, aqui, isso não acontece; pelo 
contrário, tem-se uma cena de violentação. 
 Outro ponto a ser mencionado concerne à maneira como a formação do povo brasileiro 
é colocada na história: Macunaíma nasce índio, depois vira negro e por fim transforma-se em 
branco. As três raças que, mescladas, fizeram hoje o que se chama de povo brasileiro. É dessa 
forma que o Brasil é visto pelo personagem: 
Logo o tuiuiú se transformou na máquina aeroplano, Macunaíma escanchou no aturiá 
vazio e ergueram vôo. Voaram sobre o chapadão mineiro de Urucuia, fizeram o 
circuito de Itapecerica e bateram pro Nordeste. [...] Depois que pulando a serra do 
Tombador no Mato Grosso deixaram pra esquerda as cochilhas de SantAna do 
Livramento, o tuiuiu-aeroplano e Macunaíma subiram até o Telhado do Mundo, 
mataram a sede nas águas novas do Vilcanota e na última etapa voando sobre 
Amargosa na Bahia, sobre o Gurupá e sobre o Gurupi com sua cidade encantada, 
enfim toparam de novo com o mocambo ilustre do igarapé Tietê. (ANDRADE, 1992, 
p. 86) 
 
O herói sobrevoa o país num pássaro chamado tuiuiú. Com isso, Macunaíma pode então 
observar como as regiões do Brasil são diferentes, e são essas diferenças que constituem o Brasil 
do jeito que ele é. Dessa forma, Mário de Andrade quis mostrar que o povo brasileiro não é 
completamente índio, nem completamente negro e nem completamente branco. O brasileiro é 
uma mistura dessas três raças, um povo em formação. 
 Além das interpretações feitas até aqui, vale expor, neste trabalho, a abordagem 
realizada por Haroldo de Campos em Morfologia do Macunaíma (1973). Nesta obra, o autor dá 
enfoque à forma, com base no trabalho de Vladimir Propp: Morfologia do conto maravilhoso. 
Campos (1973) faz uma análise minuciosa acerca dos elementos de Macunaíma. Não cabe aqui 
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mostrar todos os pontos detalhados pelo autor, mas sim apresentá-los de um modo geral. A 
análise é dividida da seguinte forma: 
Situação inicial2: 
Parte-se de uma situação inicial, na qual aparecem os membros da família. Introduz-se 
o herói e conta-se um pouco de sua história. Descreve-se uma situação de calmaria: 
‘No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto 
e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande 
escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia, tapanhumas pariu uma criança 
feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. ’ (CAMPOS, 1973, p. 105) 
Vale ressaltar algumas das formas presentes na situação inicial, de acordo com o autor: 
“determinação espácio-temporal”: é onde o personagem nasce e se desenvolve; “composição 
da família”: é a apresentação de sua mãe e de seus irmãos: Maanape e Jiguê; e a “forma de 
nascimento miraculosa”: Macunaíma não tem pai, é filho do medo da noite. 
A parte preparatória: proibições/ infrações: 
Ocorre quando o herói abate uma viada parida. Após abatê-la, a viada transforma-se na 
mãe de Macunaíma: ele matou a própria mãe. A partir daí ele e seus irmãos vão embora em 
busca de outras formas de ganhar a vida. 
O dano e o antagonista: 
“Aqui começa o ‘grande sintagma’ que constitui o movimento principal da narração. ” 
(CAMPOS, 1973, p.141) O dano ocorre quando Macunaíma foge da cabeça de Capei e perde a 
muiraquitã. A pedra é encontrada por um pescador que a vende para Venceslau Pietro Pietra 
que, logo após a aquisição, fica rico. Ele torna-se, então, o antagonista do herói, o qual faz de 
tudo para tentar recuperar a pedra perdida. 
Os doadores e o meio mágico: 
O autor afirma que em Macunaíma há apenas um esboço dessa função. Os executores 
desta função de doação são os Ingleses, conforme o trecho: “No outro dia Macunaíma acordou 
com escarlatina e levou todo o tempo da febre imaginando que carecia da máquina garrucha 
pra matar Venceslau Pietro Pietra. Nem bem sarou foi na casa dos Ingleses pedir uma Smith-
wesson” (CAMPOS, 1973, p. 166-167) O meio mágico se dá pela forma como o herói consegue 
 
2 Os grifos em negrito são nossos. 
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o objeto: “Os Ingleses sacudiram sacudiram a árvore e caiu uma garrucha temporã. ” 
(CAMPOS, 1973, p. 167) 
A luta com o antagonista: reparação do dano: 
“ ‘O grande sintagma’ fundamental da gesta andradiana, como já vimos, culmina no 
confronto entre Macunaíma e Piaimã. Esse confronto, em sua atualização, definitiva, é 
procrastinado sabiamente através dos capítulos” (CAMPOS, 1973, p. 171). São várias tentativas 
fracassadas de matar o gigante, mas no capítulo XIV o herói finalmente consegue matá-lo e, 
assim, recupera a pedra perdida. 
O segundo movimento: 
“Com a morte de Piaimã e a recuperação da ‘muiraquitã’ termina o que poderemos 
chamar, à maneira de Propp, o primeiro ‘movimento’ do Macunaíma. Para que a narrativa 
prossiga, é preciso ocorrer um novo ‘dano’. (CAMPOS, 1973, p.227) Após o equilíbrio, o 
segundo dano ocorre quando Jiguê torna-se antagonista. Sucede-se da seguinte forma: a 
princesa andava tendo relações com Jiguê. “ A princesa, então, passa funcionalmente, a fazer o 
papel de ‘parceira’ da sombra de Jiguê, na empresa de liquidar o herói: ‘A sombra era 
envenenada por causa da lepra e a princesa queria matar Macunaíma’. ” (CAMPOS, 1973, p. 
231) 
Dado o fracasso de Jiguê, o segundo movimento requer, para a sua continuação, a 
utilização de outro antagonista. Isso acontece no capítulo de Vei, a Sol. Ela dá uma surra de 
calor no herói, que se joga na água: 
As piranhas atacam o herói e o mutilam: ‘Quando deu tento das perdas teve ódio de 
Vei. (...) As piranhas tinham comido também o beiço dele e a muiraquitã! ’ [...] 
Perdida irremediavelmente a muiraquitã de Ci, talismã existencial do herói, este não 
acha mais graça na terra [...] e resolve ir ‘pro céu viver com a marvada’. (CAMPOS, 
1973, p. 235-236) 
 
Chega, então, o fim para o herói, que vira a ursa maior. Assim, Haroldo de Campos elencou a 
“tabulação Proppiana” e analisou o enredo de Macunaíma conforme a proposta do autor, pois 
a rapsódia trata-se, também, de um conto maravilhoso. 
 
 
 
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CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 O trabalho apresentado teve como objetivo apresentar uma análise sucinta da obra 
Macunaíma, mas antes da análise propriamente dita, discorreu-se sobre algumas questões 
importantes para entendê-la, tais como: o movimento modernista e as características das obras 
produzidas nesse período; a definição de mito e a sua importância; a obra de Koch-Grunberg; 
e, ainda, a noção de fantástico e maravilhoso. A análise foi divididade duas formas: uma mais 
interpretativa e outra com enfoque na forma, com base no trabalho de Haroldo de Campos: 
Morfologia do Macunaíma (1973). 
 
REFERÊNCIAS 
 
ANDRADE, Mário de. 1893-1945. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo 
Horizonte: Villa Rica Editoras Reunidas Ltda, 1992. 
 
BARRETO, Mêrivania Rocha. Universidade Federal do Pará: Makunaima/Macunaíma 
Theodor Koch-Grünberg e Mário de Andrade, entre fatos e ficções. 2014. 83 f. Dissertação 
(Mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia) – Universidade Federal do Pará, Bragança, 
2014. 
 
BARTHES, Roland. Introdução à análise estrutural da narrativa. In: Análise estrutural da 
narrativa. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2011, p. 19 
 
CAMPOS, Haroldo de. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973. 
 
ELIADE, Mircea. Estrutura dos mitos. In: Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 
1972, p. 20-22. 
 
FERNANDES, José Guilherme dos Santos. A literatura oral na Amazônia paraense: estrutura, 
forma e modelos culturais. In: Contação de histórias: tradição, poéticas e interfaces: 
organização de Fábio Henrique Nunes Medeiros e Taiza Mara Rauen Moraes. São Paulo: 
Edições Sesc São Paulo, 2015, p. 96-112. 
 
MESQUITA, Samira Nahid de. O enredo. São Paulo: Ática, 1986, p. 20-40 
 
Nas Trilhas de Makunaima. Direção: Thiago Briglia. Brasil: 2007, 52 min. 
Disponível em: < http://vimeo.com/69919258> Acesso em: 20 nov. 2017 
 
TODOROV, Tzvetan. Definição do fantástico. In: Introdução à Literatura Fantástica. São 
Paulo: Editora Perspectiva, 2004, p.15-23

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