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Copyright © 2018 by Paco Editorial Direitos desta edição reservados à Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a permissão da editora e/ou autor. Revisão: Taíne Barriveira Capa: Carlos Henrique Campello Projeto Gráfico: Matheus Alexandro Edição em Versão Impressa: 2018 Edição em Versão Digital: 2018 Comitê Editorial para Publicações de Direito: Prof. Dr. Leonardo Da Rocha De Souza; Prof. Dr. Luciano Vaz Ferreira; Prof. Dr. Marcio Rodrigo Delfim; Profa. Dra. Kelly Cardoso Da Silva e Profa. Dra. Terezinha Damian Antônio Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Campello, André Barreto Manual jurídico da escravidão : Império do Brasil / André Barreto Campello. - 1. ed. - Jundiaí, [SP] : Paco, 2018. Recurso digital Formato: ePub Requisitos do sistema: Multiplataforma ISBN 978-85-4621-208-8 1. Direito - História. I. Título. CDD: 34(09) Conselho Editorial Profa. Dra. Andrea Domingues (UNIVAS/MG) (Lattes) Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi (FATEC-SP) (Lattes) Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna (UNESP/ASSIS/SP) (Lattes) Prof. Dr. Carlos Bauer (UNINOVE/SP) (Lattes) Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha (UFRGS/RS) (Lattes) Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa (FURG/RS) (Lattes) Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes (UNISO/SP) (Lattes) Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira (UNICAMP/SP) (Lattes) Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins (UNICENTRO-PR) (Lattes) Prof. Dr. Romualdo Dias (UNESP/RIO CLARO/SP) (Lattes) Profa. Dra. Thelma Lessa (UFSCAR/SP) (Lattes) Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt (UNIPAMPA/RS) (Lattes) Prof. Dr. Eraldo Leme Batista (UNIOESTE-PR) (Lattes) Prof. Dr. Antonio Carlos Giuliani (UNIMEP- Piracicaba-SP) (Lattes) http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4771296D1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=S219507 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=N133032 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4784829U9 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4703614A6 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4700965H9 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=P468677 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4707925D1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4704828P6 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4780765Z3 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4763549E2 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4737948P1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4759425A1 http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4730996E0 Paco Editorial Av. Carlos Salles Bloch, 658 Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Salas 11, 12 e 21 Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100 Telefones: 55 11 4521.6315 atendimento@editorialpaco.com.br www.pacoeditorial.com.br mailto:atendimento@editorialpaco.com.br%0D?subject=Livro%20Teoria%20da%20Hist%C3%B3ria%20-%20Paco%20Editorial http://www.editorialpaco.com.br Aos meus amores, fonte da minha inspiração, que dão brilho ao meu passado e iluminam o meu futuro, Márcia, Márcia Stella e Lucas Emmanuel. Aos meus pais Carlos Francisco e Maria Sinhá que, pela educação e pelos ensinamentos, demonstraram que o trabalho é a força transformadora da existência humana. Aos irmãos Carlos Henrique e Marcia Luiza, amigos para toda a minha vida. SUMÁRIO Prefácio Prólogo Introdução Escravidão: eliminando equívocos Justificativa e objetivos Reanimando um direito morto Construindo o Manual Jurídico da Escravidão Capítulo 1. A Escravidão como herança Origens da Escravidão na América Portuguesa. Compreendendo a dimensão da escravidão na sociedade brasileira Capítulo 2. A Constituição de 1824 e a Escravidão: uma Constituição nascida de um trauma 1. A Ascenção da Constituinte de 1823 2. A queda da Assembleia Constituinte 3. O nascimento da Constituição de 1824 4. A implícita referência à escravidão na Constituição de 1824 5. O escravo e a cidadania brasileira 6. A liberdade e o direito à alforria Capítulo 3. Tráfico e escravidão: dois aspectos de uma sombria realidade 1. A evolução dos tratados internacionais, a legislação lusitana e a questão do tráfico de escravos 2. A independência do Brasil e o Tráfico de Escravos 3. Tráfico de escravos e os tratados internacionais firmados pelo Império do Brasil 4. Interlúdio: a Abdicação de D. Pedro 5. A Lei de 7 de novembro de 1831, a lei para inglês ver: a ilegalidade da escravidão 6. O Bill Aberdeen e o impasse Diplomático 7. A Lei Eusébio de Queirós e o fim do tráfico internacional de escravos 8. O Tráfico interprovincial de escravos Capítulo 4. Estatuto Civil do Escravo 1. Natureza Jurídica do escravo 2. O status do escravo na legislação brasileira: persona e res 3. Escravo e Patrimônio 4. A Alforria e as Cartas de Liberdade 5. A ingratidão: precariedade da liberdade concedida 6. Lei do Ventre-Livre: direito à alforria:indenização assegurada ao senhor 7. Ações de Liberdade 8. O escravo: família e herança 9. O Escravo como agente e objeto de relações do direito civil Capítulo 5. O Escravo e o Direito penal material e processual 1. O escravo como inimigo: um problema de segurança pública 2. O Direito Penal do Inimigo 3. O grande medo: o espectro da revolta escrava 4. O Direito Penal e Processual penal aplicado ao escravo 4.1 A Lei Penal e o escravo 4.2 Das penas aplicadas aos escravos 4.2.1 A pena de açoitação 4.2.2 A pena de morte 4.2.3 O debate acerca da comutação da pena de morte ou de açoitação na pena de galés 5. A pena de morte e a Lei nº 04, de 10 de junho de 1855 Capítulo 6. A Administração da Opressão: o controle de escravos no Império do Brasil 1. A escravidão e a descentralização da violência 2. Impossibilidade de se criar uma estrutura administrativa centralizada para controlar o elemento servil 3. As Personagens da Opressão 3.1 O Capitão do Mato 3.2 O Feitor 3.3 O Carrasco Capítulo 7. O caminho para a Abolição 1. A Abolição como uma conquista 2. Os Fundos emancipatórios e o sistema de matrícula dos escravos 3. O desmoronamento do sistema escravista 4. A Lei Áurea Conclusão. “Vós que aqui entrais, abandonai toda a esperança.” Referências PREFÁCIO Gostaria de dizer que me senti extremamente honrado com o convite feito pelo colega André Campello para prefaciar o seu livro. Quero deixar claro que tinha conhecimento que o André Campello era um pesquisador meticuloso. Como exemplo, posso citar o seu Manual do Contribuinte, publicado pelo Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional – Sinprofaz, já em segunda edição, o qual demandou uma pesquisa acurada e uma linguagem clara, pois é obra voltada não para o profissional do Direito, mas sim para o contribuinte. No que se refere especificamente ao Manual Jurídico da Escravidão, posso afirmar com toda certeza que é obra na qual foi realizada uma pesquisa profunda sobre o tema da escravidão, procurando esclarecer pontos sempre e talvez propositalmente obscuros da História do Brasil sobre o tema. Como exemplo de alguns pontos da história que foram devidamente esclarecidas pelo autor, podemos citar a Lei de 7 de novembro de 1831, que teria finalizado o tráfico internacional de escravos. Como o Manual deixa evidente, isso infelizmente não é verdade. Conhecido esse diploma legal como a “Lei para Inglês Ver”, eis que surgiu como resposta à exigência da Inglaterra de que se encerrasse o tráfico negreiro. Todavia, o tráfico internacional ainda perdurou por muito tempo, tendo sido contrabandeados para o Brasilentre os anos de 1830 e 1852, um número estimado de 646.315 africanos. Dadas as explicações do Manual, vemos que, de fato, somente com o advento da Lei nº 581, de 04 de setembro de 1850, conhecida como Lei Euzébio de Queiroz, o odioso tráfico teve o seu fim. Outra falácia desmentida no Manual é de que a partir da Lei do Ventre-Livre não nasceriam mais escravos no Brasil: continuaram a nascer crianças filhas de escravas, que permaneceram como escravos por toda a sua existência. Da mesma forma, a Lei dos Sexagenários não alforriou de forma automática todos os escravos que alcançavam a idade de sessenta anos. O parágrafo 10o, do art. 3o, da Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885, previa que como forma de indenização ao senhor de escravos, o cativo deveria trabalhar por mais três anos antes de se tornar liberto. O livro também apresenta um minucioso estudo sobre a legislação que amparou o regime escravagista, como as Ordenações e a Constituição de 1824. Um ponto também abordado é sobre quem, na realidade, mais lucrava com a escravidão. Muitos responderiam que seria o senhor de escravos que afinal os utilizava na agricultura. Na verdade, a escravidão era extremamente lucrativa para aquele personagem mais abjeto da sua cadeia produtiva, se é que podemos nos expressar desta forma, que era a figura do traficante de escravos. O sétimo capítulo nos traz uma análise sobre a atuação de personagens constantemente citados nos romances de época do Brasil quando tratam do tema da escravidão: o capitão do mato, o feitor e o carrasco. Vale ressaltar que ao contrário do que acontece nas sociedades mais avançadas, no qual o monopólio da força ficava a cargo do Estado, na sociedade escravocrata, tal fato não ocorria. O Estado, para procurar coibir insurreições dos escravos, permitia que agentes públicos, semipúblicos ou privados exercessem a violência. Tal arranjo não poderia nunca dar certo. O que existia costumeiramente era o emprego excessivo da violência por parte desses agentes paraestatais. Por último, não se pode deixar de citar que o autor demonstra com todas as letras o horror que era a escravidão no Brasil. Horror para uma sociedade que não sabia viver sem a presença da servidão e, principalmente, um terror indescritível para aqueles que sofreram na própria pele a privação da liberdade, pelo simples fato de serem negros. Infelizmente, a nódoa da escravidão que se espalhou sobre este país por 388 anos, ainda não se extinguiu. Medidas como as cotas nas universidades públicas são paliativos que ainda não conseguiram resgatar a dívida que a sociedade brasileira tem para com os milhões de indivíduos escravizados e seus descentes. Conclui-se que o Manual Jurídico da Escravidão é uma obra séria, escrita em linguagem fácil, que poderá ser utilizado tanto pelo estudante, quanto pelo pesquisador da escravidão no Brasil, qualquer que seja a sua perspectiva, independente da área acadêmica a qual pertença. Rio de Janeiro, 08 de janeiro de 2018 Sérgio Luís de Souza Carneiro Procurador da Fazenda Nacional Mestre em Direito Apaixonado estudioso da História PRÓLOGO Há 130 anos, a então Regente do Império do Brasil, a princesa Isabel, declarou extinta a escravidão no Brasil. Entretanto, essa nebulosa mácula que aflige nossa história ainda está longe de ser dissipada. Ao leitor apresenta-se, então, o Manual Jurídico da Escravidão: uma obra que permite ter o primeiro contato com os institutos que conferiam fundamento à estrutura de opressão dos negros durante o Império do Brasil. A escravidão não era apenas uma relação de força de um indivíduo (ou grupo social) sobre outro, mas um fenômeno social legitimado, pois se amparava no ordenamento jurídico brasileiro em vigor durante o século XIX. Ela representava o verdadeiro alicerce jurídico da sociedade brasileira, pois todas as relações sociais estavam contaminadas pela sua nódoa. Nesse sentido, o Manual busca enfrentar questões, sob o ponto de vista jurídico, apresentando a servidão negra como ela realmente era encarada pela sociedade brasileira do século XIX: O escravo era uma coisa ou uma pessoa? Ele poderia ser processado criminalmente? Seria possível o cativo adquirir patrimônio ou constituir uma família? E a sua herança? O senhor poderia, legalmente, aplicar castigos aos seus escravos? Poderia o proprietário aplicar uma penalidade de morte? O escravo poderia processar o seu senhor? O escravo era cidadão do Império? Se ele não era um cidadão, o Brasil estaria a escravizar estrangeiros? Existia no Brasil o crime de redução à condição análoga de escravos? A sociedade brasileira tinha “medo” dos escravos? Os escravos aceitavam passivamente o seu cativeiro? Como era a legislação que buscava conter o medo de uma insurreição escrava como a do Haiti? Afinal, quando se iniciou a escravidão no Brasil? A Constituição do Império recepcionou a escravidão? Qual a legislação que regulamentava o assunto? Existia um Código Negro no país? Como poderia um escravo postular judicialmente a sua liberdade? Qual a ação e como era o seu processamento? O escravo poderia constituir um representante? Um escravo depois de alforriado poderia ser reescravizado? O que foi a lei para inglês ver? Por que a maioria dos escravos do Brasil, na década de 1870, estavam sendo mantidos ilegalmente nas senzalas? Por que foi tão complicado acabar com o tráfico de escravos? Portugal aboliu a escravidão no século XVIII? Como se organizavam as estruturas administrativas da opressão? O Estado interferia em tudo? O carrasco era um cargo público? Feitores poderiam ser escravos? Os capitães do mato poderiam ser agentes públicos? Como foi a marcha para a Abolição da escravidão? A Lei Áurea realmente “libertou” os escravos? Qual o efetivo alcance das Leis do Ventre Livre e do Sexagenário? Transcorrido mais de século desde o advento da Lei Áurea, a sociedade brasileira ainda busca uma forma para cicatrizar as feridas deixadas por mais de trezentos anos de escravismo. O Manual Jurídico da Escravidão pretende trazer ao leitor a dinâmica jurídica do sistema, permitindo compreender o que foi a escravidão no Império do Brasil, para que se possa também entender a realidade de exclusão que nos rodeia. Dante Alighieri, o poeta de Florença, na sua tenebrosa viagem aos confins do Inferno, somente de lá saiu quando alcançou a redenção ao conhecer a verdadeira natureza do mal. O conhecimento o libertou. Esse é o propósito do Manual Jurídico da Escravidão. Portanto, leitor, estamos ingressando no coração das trevas e lhe convidamos a trafegar em outro mundo, em um país totalmente diferente do nosso, mas estranhamente familiar, no qual esse fruto da maldade humana era elemento constitutivo da paisagem. INTRODUÇÃO Muito já se escreveu, pesquisou, filmou e encenou sobre a escravidão negra no Brasil, mas, por incrível que pareça, o tema ainda é conhecido muito superficialmente. Para suprir essa lacuna, apresenta-se ao leitor o Manual Jurídico da Escravidão: uma obra que propõe o primeiro contato com os institutos que conferiam fundamento à estrutura de opressão dos negros durante o Império do Brasil. Pretende-se revelar que o cativeiro não era apenas uma relação de força de um indivíduo (ou grupo social) sobre outro, mas um fenômeno social legitimado, pois se amparava no ordenamento jurídico brasileiro em vigor durante o século XIX. Se o contrato de trabalho, previsto na atual Consolidação da Lei do Trabalho1, pode ser compreendido como o fundamento jurídico das relações econômicas da sociedade brasileira, moldando-a; a escravidão ganha uma dimensãomuito maior2. De fato, deve-se ter em mente que a escravidão representava o verdadeiro alicerce jurídico da sociedade brasileira, pois todas as relações sociais estavam por ela contaminadas3. Os poderes e deveres que uma das partes possuía nesse horrível tipo de relação eram muito mais profundos, alcançando até os mais básicos aspectos da vida dos escravos, submetidos ao exercício do poder senhorial4. Em síntese, o que se apresenta é a uma obra que permite estudar a escravidão sob a perspectiva do direito posto e vigente no século XIX. O Manual Jurídico da Escravidão pretende permitir a compreensão do estranho, sombrio, sangrento e infame universo de um instituto jurídico que estava em vigor no Brasil até 13 de maio de 1888 e cuja sinistra sombra ainda espreita a sociedade brasileiro no século XXI5. Escravidão: eliminando equívocos Estudar o instituto jurídico6 da escravidão negra, em um primeiro momento, pode parecer uma atividade estranha, pois ele é geralmente retratado, pelos meios massivos de comunicação, como uma relação de aplicação da força, com ou sem crueldade. Isto é, a escravidão, para muitos, é vista como um fenômeno de pura submissão de um ser humano ao poder senhorial – no caso da experiência brasileira no século XIX, do negro africano7 –, transformado em uma “coisa”, em um “objeto”. Nesse sentido, a escravidão é enxergada apenas como um fenômeno fático (percebido apenas vagamente sob nuances sociológicas ou econômicas), que existia no Brasil do século XIX, e foi simplesmente extinto por meio da Lei nº 3.353, de 13 de maio de 1888, promulgada pela Princesa Isabel, conhecida como a “Redentora”. Trata-se de uma visão absolutamente equivocada. Não é possível resumir assim a questão, pois a escravidão era amparada por uma legislação que inclusive a constitucionalizava, de forma oblíqua8. Igualmente distorcida é a perspectiva de que a escravidão era passivamente aceita pelos escravos9, urbanos ou rurais, e que tais relações se assentavam em um ambiente de cordialidade entre senhores e servos, sempre de forma paternalista ou de franca e respeitosa camaradagem. Longe disso, a escravidão era uma relação social que, por meio de sua violência (potencial ou efetiva, mas sempre presente), brutalizava toda a sociedade, tornando-a quase insensível a um problema que atingia milhões de indivíduos que viviam no cativeiro, muitas vezes ilicitamente. Por fim, também incorreta é a visão de que não havia um direito positivo que possibilitasse a construção de fundamentos jurídicos para a relação de propriedade sobre outro ser humano. Nunca houve, de fato, um Código Negro no Brasil10, como em vigor em outras localidades da América11, isto é, um diploma jurídico único que viesse a regulamentar o sistema de trabalho escravo, o tráfico, os órgãos administrativos, bem como os castigos, estabelecendo sanções e multas pelo seu descumprimento12. Entretanto, isso não significa que não existia um arcabouço jurídico que viesse a regulamentar as complexas situações decorrentes das relações humanas presentes na exploração da mão de obra escrava, bem como seus conflitos13. Em última análise, a escravidão era uma relação de poder que, para se legitimar, encontrava seus alicerces no Direito positivo. Ao se estudar as relações de trabalho que se baseavam no emprego do elemento servil, nota-se que, para as autoridades públicas e para os proprietários, havia um receio constante de que a classe oprimida viesse a insurgir-se contra aqueles que possuíam os meios de produção e contra o Poder público14. No caso da escravidão, o receio era intensificado porque a violência estava umbilicalmente ligada à sua prática, logo, a questão da segurança pública e o temor de rebeliões sempre acompanharam a sua história. Justificativa e objetivos Quando estudante, nos bancos da Faculdade de Direito do Recife, um dos nossos professores nos falou que todo docente que, na sua primeira aula, viesse a discorrer sobre a justificativa da disciplina que iria ministrar, na verdade, implicitamente dizia que o conteúdo não possuía nenhuma importância. Evidente que se tratava de uma brincadeira para chamar a atenção dos alunos, entretanto, o Manual Jurídico da Escravidão poderia iniciar da mesma forma, pois o estudo da Escravidão guarda consigo uma relevância manifesta, sendo assunto imprescindível para compreender a história do nosso país15. Não obstante o tema escolhido, essa obra, entretanto, tem uma proposta um pouco diferente: não almeja falar apenas sobre a escravidão. Com o Manual, pretende-se estudar a escravidão sob a perspectiva jurídica, apresentando o tema de forma sistematizada. O leitor poderia, então, indagar: qual a razão para estudar um complexo de normas jurídicas que buscavam regular uma odiosa relação humana baseada na força do homem sobre o homem? Por mais estranho que possa parecer, a escravidão não era apenas uma relação de força. O direito brasileiro legitimava e também buscava assegurar que o sistema escravista continuasse a ser a relação jurídica base do sistema produtivo do século XIX. Portanto, tal relação humana possuía seus alicerces em um ordenamento jurídico que permitia que milhões de homens e mulheres fossem privados dos seus mais básicos direitos: a própria vida, bem como a sua dignidade e liberdade. Tal pretensão, por si só já justificaria a elaboração de uma obra acerca da escravidão no Brasil. Entretanto, como dito, o Manual Jurídico da Escravidão tem uma finalidade diferente. Para se escrever sobre a escravidão, de forma completa, exigiria-se a elaboração de um verdadeiro tratado sobre o assunto, com vários tomos, não apenas pela bibliografia existente16, mas sobretudo pelo período de tempo e a complexidade do assunto17. Entretanto, nosso objetivo é fornecer as primeiras linhas para que o leitor possa compreender a escravidão negra sob a perspectiva jurídica. O Manual Jurídico da Escravidão é uma obra de História do Direito que apresenta ao leitor, de forma simples e sistematizada, mas não superficial, a estrutura do instituto jurídico da Escravidão. A sua preocupação é realizar uma exposição compreensível, a ponto de que o leitor possa visualizar não apenas as relações de poder entre o escravo e o senhor, mas também como o direito brasileiro, durante o Império do Brasil, regulamentava tal relação jurídica. Para tanto, serão evidenciados, além dos mencionados alicerces jurídicos, a sua dinâmica, a fim de que seja possível conhecer o regime jurídico da escravidão, bem como a natureza jurídica do escravo, tanto no âmbito civil quanto no penal18. Não se prescindirá de estudar os principais fatos históricos, que muitas vezes servem de fonte do direito19, mas o foco será o ordenamento jurídico brasileiro positivado durante o Império do Brasil. Por essa razão, um estudo sistêmico do Direito brasileiro do período não se fará apenas com vagas referência às normas: elas serão transcritas para que o leitor possa tirar suas próprias conclusões. Similarmente, serão apresentadas, quando possível, as perspectivas dadas pelos doutrinadores da época acerca dos institutos jurídicos então vigentes, além de atos administrativos de interpretação oficial da legislação imperial. Por meio da presente obra, portanto, o leitor contemporâneo poderá facilmente compreender não apenas como era a regulação jurídica da escravidão, mas também vislumbrar a evolução do instituto. Reanimando um direito morto Evidente que o maior risco em um estudo de história do direito é incorrerem anacronismo20, ou seja, observar e interpretar as normas jurídicas com uma mentalidade diferente daquela em que tais institutos vigoraram. Por outro lado, o fascínio de se realizar um estudo sobre história do direito reside no fato de que ao se retomar a legislação de um ordenamento jurídico que não mais vigora, em verdade, o pesquisador se depara com a alma de uma sociedade que não mais existe. Seu trabalho é como reanimar, com um sopro, um ser que não mais vive, observando como ele reage e se movimenta, quais são seus objetivos, suas visões de mundo, seus traumas. Com o estudo das formas jurídicas, busca-se enxergar o cotidiano e compreender como uma sociedade tutela seus principais valores e como pretende defender e efetivar os direitos assegurados, cristalizados nas suas normas jurídicas. Sem dúvidas esse ato de reconstrução da dinâmica jurídica é uma atividade artificial, já que os integrantes daquela sociedade, sobre a qual incidiam aquele ordenamento estudado, não se encontram presentes. Portanto, para o estudo desse direito deve-se buscar a doutrina, a opinio iuris, de contemporâneos que pudessem nos explicar a dinâmica daquele sistema. De outro modo, o direito não pode ser compreendido como um fenômeno isolado no tempo e no espaço. Não pode ser vislumbrado como um amontoado de normas que não estão relacionadas com os valores, as visões de mundo e as expectativas de um grupo social (que o cria e é por ele governado), em determinado momento da sua história21. A percepção desse fenômeno fica mais evidente quando se estuda o direito contemporâneo, pois, de certo modo, vive-se sob a égide dessas normas e se consegue compreender os institutos e o seu alcance, sendo possível vislumbrar como as normas se relacionam para construir um sistema jurídico. Os indivíduos que integram a nossa sociedade, por exemplo, sejam ou não operadores do Direito, percebem as normas jurídicas, isto é, há uma mínima compreensão dos principais limites impostos pelo ordenamento a suas condutas, inferindo também os direitos que lhe são assegurados. Em outras palavras, por se viver sob o império do direito, é possível senti-lo; consegue-se perceber a sua dinâmica. Para o operador do Direito, ao se ler as grandes obras jurídicas, ao conversar com os demais colegas, ao trocar informações na faculdade, ao se defrontar com a jurisprudência dos Tribunais ou ao se atualizar com as informações colhidas na internet, fica manifesta a vivacidade do ordenamento jurídico que está em vigor. Entretanto, quanto mais se recua no tempo, ao se estudar o direito do passado, algo começa a desaparecer: a percepção de “vida” das normas começa a se esvair. Não se detecta, com mais facilidade como as normas se organizavam, como era construído o sistema jurídico, qual era o seu alcance e a sua aplicação. Para exemplificar: por constar nos livros dos grandes autores clássicos, como Aníbal Bruno22, compreende-se como era aplicado o Código Penal23, quando dos primeiros anos da sua origem, em 194024. Ainda se é possível perceber a sua essência e a sua conexão com o direito penal atual25, pois, além desse diploma legal ainda vigorar26, houve a constante aplicação, sem rupturas, desde a sua criação, com a evolução da interpretação das suas normas, tomando por base as inúmeras constituições vigentes, em cada um dos períodos históricos27. Em outras palavras, um leitor que viesse a desejar fazer a leitura do Código Penal, na sua redação original, não estranharia o seu conteúdo, pois se trata de diploma legal que ainda guarda pontos de contato com o pensamento jurídico contemporâneo e com a própria sociedade brasileira, em alguns de seus aspectos, apesar de tal Código ser datado da década de 1940. Voltando mais no tempo, ao ingressar no turbulento século XIX, o leitor passa a enxergar um tumultuado período histórico, no qual o Império do Brasil se envolveu em diversos conflitos externos (guerra da Cisplatina e Guerra do Paraguai), e passou por sérios riscos de fragmentação, de norte a sul da Nação, com a Confederação do Equador, a Balaiada no Maranhão, a Cabanagem no Grão-Pará e a Guerra dos Farrapos, apenas para citar alguns exemplos. É possível que, para o leitor, as leis de tal período até se assemelhem à legislação de civilizações desaparecidas, como o Código de Hamurabi, da Babilônia28, em face do seu exotismo (e da estranha forma de se apresentar), não guardando, aparentemente, nenhum contato com o nosso direito atual29. De fato, ao se estudar o direito brasileiro desse período histórico, o leitor se defronta com obstáculos que devem ser transpostos. O primeiro deles é que alguns dos parâmetros interpretativos contemporâneos não se conectam às estruturas do Brasil imperial, isto é, a doutrina jurídica não cria pontos de enlace imediatos entre o direito brasileiro atual e o que estava em vigor no século XIX. O segundo empecilho reside no fato de que estudar o direito vigente no Império do Brasil é se deparar com normas jurídicas que foram criadas para reger uma sociedade que possui significativas diferenças econômicas e culturais em relação ao Brasil contemporâneo. Portanto, as bases para compreensão não podem se fundamentar em valores vigentes atualmente, pois as categorias lógico-jurídicas que regiam o direito brasileiro no Império do Brasil são demasiadamente distintas das que vigoram – a começar pela inexistência de um Código Civil, pela manutenção do odioso instituto jurídico da escravidão como alicerce do trabalho produtivo e pelo fato de que o Império era um Estado unitário sui generis30. Adverte-se também que, assim como no estudo do direito romano31, não se pode vislumbrar o Império do Brasil como um conjunto monolítico de normas, inalteradas no tempo. Estudar o direito do Império do Brasil desperta o interesse por conhecer a evolução das perspectivas da sociedade brasileira, a qual tentava, após a independência, construir uma nação continental, sendo possível perceber o nascer de algumas das estruturas do Brasil contemporâneo. Construindo o Manual Jurídico da Escravidão No estudo realizado, tenta-se sistematizar o conhecimento à luz de algumas das categorias lógicas contemporâneas para que o leitor possa compreender o direito vigente naquele período32. Assim como nas obras de direito romano33, faz-se uma tentativa de se apresentar, didaticamente, aos operadores jurídicos como era a estrutura e a aplicação do direito em uma sociedade que existiu há quase dois séculos. Evidente que não se busca cair no erro do anacronismo, mas apenas utilizar as ferramentas dadas pela moderna ciência do estudo do Direito para entender a realidade passada, segundo os valores da sociedade brasileira do século XIX. Tal método é necessário, pois, evidentemente, não seria possível apenas estudar o direito do passado com os olhos dos homens daquele período, afinal tanto o leitor dessa obra quanto o seu autor, integram a sociedade brasileira do início do século XXI, ou seja, pertencem a outro contexto histórico34. Por essa razão, ao longo do Manual Jurídico da Escravidão, buscou-se estudar o Direito imperial do Brasil à luz das interpretações dos doutrinadores do século XIX. As suas visões e os seus ensinamentos acerca do ordenamento jurídico serviram de ponto de partida para nossas reflexões. Não nos furtamos de tentar adequar os institutos com a tecnologia linguística do direto contemporâneo, sobretudo a fim de decifrar as disposições legais estabelecidas, além de também adaptarmos a linguagem utilizada naqueleperíodo histórico às regras ortográficas atuais. Dito isso, a obra se inicia, no seu capítulo primeiro, com a análise e o estudo da recepção da escravidão pela legislação imperial, analisando as razões que justificaram a manutenção desse maligno instituto no Brasil. Passa-se, a seguir, no capítulo segundo, a um estudo do traumático nascimento da Constituição de 1824, surgida das cinzas da Assembleia Constituinte de 1823, bem como das normas constitucionais que conferiam fundamento para a existência da escravidão no Brasil. O estudo do tráfico de escravos está no âmago do Manual Jurídico da Escravidão, no terceiro capítulo. Nele, podemos vislumbrar a tendência da legislação internacional de abolir o abjeto transporte interoceânico de seres humanos, e respectiva evolução da legislação brasileira, levando à promulgação da Lei Euzébio de Queirós, de 1850. É no quarto capítulo em que se analisa o estatuto civil do escravo e a possibilidade da prática de atos da vida civil, desde antes do advento da Lei do Ventre Livre, em 1871. A aplicação da lei penal sobre os cativos é estudada no capítulo quinto, no qual se busca demonstrar que o elemento servil era visto como um problema de segurança pública, o que deu causa à construção de uma legislação para oprimir tal inimigo. Por isso, no capítulo sexto, foi elaborado um estudo acerca da administração da opressão sobre os escravos, a fim de controlá-los e manter o status quo (o abominável sistema escravista) íntegro, analisando as figuras do capitão do mato, do feitor e do carrasco. O caminho para Abolição da escravidão foi narrado no capítulo sétimo, com a análise do nascimento do movimento abolicionista, o advento das Leis do Ventre Livre (1871) e do Sexagenário (1885), dos problemas que decorreram da aplicação desses diplomas, do desmoronamento do sistema escravista e, por fim, do processo para surgimento da Lei Áurea. Esse é o plano do Manual Jurídico da Escravidão, que nada mais é que um ponto de partida para o leitor retirar o véu que encobre a verdade sobre a sociedade brasileira do século XIX, e o permita adentrar no inferno do mundo escravocrata. Portanto, leitor, aqui se ingressa no coração das trevas35: uma viagem ao sombrio universo da escravidão brasileira é um convite para trafegar em outro mundo, em um país totalmente diferente do nosso, mas estranhamente familiar, no qual esse fruto da maldade humana era um elemento da paisagem. Bem-vindo ao Brasil do século XIX. Notas 1. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. 2. “[…] ambiguidade singular em que vivia uma sociedade na qual os trabalhadores eram também mercadorias” (Florentino, Manolo; Goes, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-c.1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 17). 3. “[…] A propriedade escrava era altamente disseminada pelo tecido social, o que significa que camadas variadas da população se encontravam comprometidas com a escravidão, não importando a extensão de suas posses” (Florentino, Manolo; Goes, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-c.1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 45). 4. Silva Junior, Waldomiro Lourenço da. História. Direito e Escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 40. 5. “A escravidão teve, entre nós, uma duração de quase quatro séculos – quatro vezes mais, portanto, do que a experiência do trabalho livre” (Florentino, Manolo; Goes, José Roberto. A paz das senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c.1790-c.1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017, p. 35). 6. “As normas objetivas contêm um mandamento, ou uma diretriz, visando regular determinadas relações de fato. Mas, as normas não são criadas ao acaso, nem vivem dispersas isoladamente, nem são tampouco, apenas justapostas ou aglomeradas em quadros artificiais; ao contrário, um nexo as une e coordena em direção a um fim comum, transformando-as em um todo lógico. Ora, o conjunto de normas coordenadas em direção a um fim comum e as relações que elas visam regular, constituem o instituto jurídico” (Ráo, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 228). 7. A escravidão do índio já havia sido proibida no Brasil desde o advento da Lei de 1º de abril de 1680, ratificada pela Lei de 6 de junho de 1755, para o Grão-Pará e Maranhão, sendo ampliada para todo o restante da América lusitana em 1758 (Freitas, Décio. Escravidão de índios e negros no Brasil. Porto Alegre: EST/ICP, 1980, p. 15 e 17). 8. Moraes, Evaristo de. A Campanha Abolicionista: 1879-1888. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 372. 9. “Não se imagine que a categoria social abrangida sob o termo genérico de ‘escravos’ formasse um conjunto homogêneo. […] havia o violento desprezo dos crioulos pelos nativos da África, havia o sentimento de superioridade dos mulatos que, por terem sangue branco, se isolavam dos demais escravos, e havia ainda a hostilidade por vezes insopitável entre escravos de diferentes nações africana” (Freitas, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982, p. 31-32). 10. A escravidão do índio já havia sido proibida no Brasil desde o advento da Lei de 1º de abril de 1680, ratificada pela Lei de 6 de junho de 1755, para o Grão-Pará e Maranhão, sendo ampliada para todo o restante da América lusitana em 1758. 11. Como o Code Noir francês de 1685: “uma coletânea de regulamentos, compilados até o presente, concernentes ao governo, à administração da justiça, à polícia, à disciplina e ao comércio de negros nas colônias francesas” (Silva Júnior, Waldomiro Lourenço da. História, Direito e Escravidão. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2013, p. 155). 12. As razões para tanto podem ser estudadas na excelente análise em Silva Júnior, Waldomiro Lourenço da. História, Direito e Escravidão. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2013, p. 153-160. 13. Teixeira de Freitas nas suas Consolidações das Leis Civis omite as normas que regiam a escravidão, não porque elas não existissem no Brasil, mas porque representavam uma indignidade para o país, ou seja, não queria ser o autor indiretamente de um abominável Código Negro que viesse a consolidar tais odiosas regras: “Cumpre advertir que não há um só lugar do nosso texto, onde se trate de escravos. Temos, é verdade, a escravidão entre nós; mas esse mal é uma exceção que lamentamos, condenada a extinguir-se em época mais ou menos remota, façamos também uma exceção, um capítulo avulso na reforma das nossas Leis civis; não as maculemos com disposições vergonhosas, que não podem servir para a posteridade; fique o estado de liberdade sem o seu correlativo odioso. As leis concernentes à escravidão (que não são muitas) serão pois classificadas à parte e formarão o nosso Código negro” (Freitas, Augusto Teixeira de. Consolidação das Leis Civis. Brasília: Senado, 2003, p. XXXVIII). 14. Muito similar ao que ocorria com a preocupação dos capitalistas do século XIX em face do proletariado que trabalhava nas fábricas insalubres, por exemplo, em Manchester, na Inglaterra (Huberman, Leo. História da Riqueza do Homem. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986, p. 185-194). 15. Moura, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Ed. USP, 2004, p. 206. 16. Para observar a dimensão e o volume de obras e estudos acerca da escravidão, com diferentes abordagens, sugere-se, como ponto de partida, a leitura de Gaspar, Lúcia. O negro no Brasil: uma contribuiçãobibliográfica. Recife: Fudaj/Editora Massangana, 1994. 17. Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil, v. 1. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1867, p. 14. 18. “[…] a relevância do estudo do direito para a interpretação histórica de uma determinada sociedade pode ser ajuizada pela noção de que ele nomeia, qualifica e hierarquiza todo divórcio entre a ação do indivíduo e o princípio fundamental dessa sociedade” (Silva Júnior, Waldomiro Lourenço da. História, Direito e Escravidão. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2013, p. 15). 19. Para Savigny: “Fonte substancial do direito, pois, é a consciência comum do povo, que dá origem e legitimidade às normas lógicas que, dela, a razão extrai” (In: Ráo, Vicente. O direito e a vida dos direitos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 249). Para uma crítica acerca da ambiguidade e outros problemas decorrentes dessa expressão, ver Ferraz Junior, Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 192. “Por fontes do direito havemos de compreender os focos ejetores de regras jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para produzirem normas, numa organização escalonada, bom como a própria atividade desenvolvida por esses entes, tendo em vista a criação de normas. […] não basta a existência do órgão, devidamente constituído, tornando-se necessária sua atividade segundo as regras aqui previstas no ordenamento [devido processo legislativo]” (Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 79). 20. Utilizar a perspectiva ou os conceitos de uma época, para analisar os eventos de um outro período histórico. Vocábulo que surgiu na língua francesa, no século XVI, anachronisme, o qual derivou do idioma grego, anakhronismós, de anakhronizomai, “o ato de colocar algo fora do seu adequado tempo correspondente” (Viaro, Mário Eduardo. Por trás das palavras: Manual de etimologia do português. São Paulo: Globo, 2004, p. 244). 21. Ferreira, Luís Pinto. Teoria Geral do Estado, v. 1. São Paulo: Saraiva, 1975, p. 31. 22. Bruno, Aníbal. Direito Penal, parte geral: introdução, norma penal, fato punível. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003, t. I, p. 106. 23. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. 24. “Art. 361 – Este Código entrará em vigor no dia 1º de janeiro de 1942” (Código Penal de 1940). 25. Apesar da reforma da sua parte geral e de inúmeros dispositivos da parte especial. 26. Trata-se, de forma simplificada, da aptidão que uma determinada lei, ou diploma normativo, tem para produzir efeitos. Ou seja, a lei existe e pode viger, isto é, já pode ser executada. (Silva, de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 1485). 27. Constituições de 1937, de 1946, de 1967/69 e de 1988. 28. “Na Assíria, Pérsia e Babilônia houve um célebre rei Hamurabi que promulgou notável Código, […] considerado o mais antigo conhecido (XII Século antes de Cristo) com 282 parágrafos ou Leis, sendo uma compilação do Direito Público e Privado compreendendo matérias processual, penal, administrativa, civil e comercial […]” (Valladão, Haroldo. História do direito especialmente do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 37). 29. Em verdade, o direito colonial brasileiro, por exemplo, possuía uma estrutura muita diversa da nossa, que, para o nosso olhar, poderia se assimilar ao completo caos, como fala Caio Prado Júnior: “um amontoado que nos parecerá inteiramente desconexo, de determinações particulares e casuísticas, de regras que se acrescentam umas às outras sem obedecerem a plano algum de conjunto” (Silva Júnior, Waldomiro Lourenço da. História, Direito e Escravidão. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2013, p. 154). Eis um exemplo: “[…] o regimento de 17 de dezembro de 1548 – base do segundo sistema de administração colonial – vigorou por mais de um século, servindo a todos os sucessores de Thomé de Souza até 1677. Com o tempo esse regimento foi complementado por ordenações avulsas, como cartas régias, alvarás e provisões. Elas cresceram a tal ponto que em 1677 foi preciso consolidá-las num outro regimento que foi outorgado a Roque da Costa Barreto (23-1-1677)” (Valladão, Haroldo. História do direito especialmente do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 78). 30. Essa natureza unitária do Império é reafirmada por um dos grandes constitucionalistas de época: “A divisão do Império em províncias, qual existia ao tempo em que foi promulgada a nossa lei fundamental, assim como a atual, não é nem devia ser de ordem constitucional; não são Estados distintos, ou federados, sim circunscrições territoriais, unidade locais, ou parciais de uma si e mesma unidade geral. […] Por isso mesmo que o Império é um e único, que ele não é dividido em províncias senão no sentido a fim de distribuir convenientemente os órgãos da administração, de modo que em toda a extensão do país haja centros adequados e próximos para o serviço e bem-ser dos respectivos habitantes […]” (Bueno, José Antônio Pimenta. Marquês de São Vicente. Organização e introdução de Eduardo Kugelmas. São Paulo: Ed. 34, 2002, p. 88). O Ato Adicional de 1834, que reformou a Constituição de 1824, conferindo atribuições às Assembleias Provinciais, as quais foram revistas posteriormente pela Lei nº 105, de 12 de maio de 1840 (Bonavides, Paulo e Andrade, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2008, p. 123-126). 31. Alves, José Carlos Moreira. Direito Romano, v. 1. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 67-74. 32. “O problema basilar da historiografia jurídica se encontra na ordenação do material; isto é, na imposição de uma sequência inteligível, e de conexões significantes, a uma série de informações e de fatos que são conhecidos ou ‘levantados’ através de pesquisas” (Saldanha, Nelson. Historiografia jurídica e concepção histórica do direito. Estudos Universitários: Revista da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, n. 1/2, p. 60, jan./jun. 1975). 33. Cretella Junior, José. Curso de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 19-20. Este mesmo método é utilizado pelos autores quando se busca a compreensão do direito romano (Correia, Alexandre e Sciascia, Gaetano. Manual de direito romano. 5. ed. Rio de Janeiro: Sadegra/Livros cadernos Ltda, 1996, p. 32). 34. “Quando o estudioso moderno trata de normas ou de textos arcaicos, situa-os em articulações que refletem a arquitetônica do direito tal como é concebido e vivido em seu tempo: assim os assiriólogos ao separar normas administrativas das normas processuais dentro de códigos encontrados em tabletas” (Saldanha, Nelson. Historiografia jurídica e concepção histórica do direito. Estudos Universitários: Revista da Universidade Federal de Pernambuco, Recife, n. 1/2, p. 61, jan./jun. 1975). 35. Nas palavras de Rui Barbosa: “Se Dante Alighieri tivesse vivido no século XVIII, colocaria o vértice dos sofrimentos inexprimíveis, o círculo íntimo do seu Inferno no porão de uma embarcação negreira, num desses núcleos de suplícios infindos que apenas poderia descrever a poesia sinistra da loucura; numa dessas gemônias flutuantes, ninhos de abutres humanos que a mão da mais perversa das malfeitorias espargiu durante trezentos anos no Atlântico […]” (Lima, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência: o Império brasileiro (1821-1889). São Paulo: Melhoramentos, p. 405). Capítulo 1 A Escravidão como herança Origensda Escravidão na América Portuguesa. Compreendendo a dimensão da escravidão na sociedade brasileira Imagine-se voltar no tempo para o início do século XIX, na zona da mata da conflagrada Província de Pernambuco, assolada36 por duas revoltas em menos de uma década37. Sob o sol inclemente dos trópicos, estaria em uma viagem no lombo de um equino, saindo da capital da província, a Cidade do Recife38, no litoral, pouco depois das revoltas de 1824, para a Villa de Goyanna, mais ao norte, no interior, distando pouco mais de 60 quilômetros, armado e acompanhado de outros indivíduos (já que existia risco de roubos)39. Galopando pelas quentes e verdejantes paisagens bucólicas tropicais das paragens brasileiras, nas grandes fazendas, estavam os escravos40, na sua miserável labuta diária41. Talvez, em um momento de reflexão, você se perguntasse se isso sempre foi assim: a escravidão sempre existiu no mundo? Essa pergunta poderia ser respondida pela Bíblia cristã. Na época de Adão e Eva e dos seus primeiros descendentes, não havia escravidão. Entretanto, com base nos versículos de 5 a 9, do capítulo 6, da Carta de São Paulo aos Efésios42, já ouvira o padre admoestar os fiéis a tratar bem seus escravos, bem como sabia que o santo católico havia recomendado aos escravos que fossem bons para com os seus “donos”. Após tais primeiros pensamentos, o cidadão do Império do Brasil, nosso personagem, iria reformular a sua pergunta: quando a escravidão surgiu no Brasil? Possivelmente, ninguém saberia com precisão43. Para oferecer a resposta adequada deveria existir alguém que conhecesse bem a legislação lusitana, o que seria improvável no grupo de viajantes. Imaginando o espírito pouco letrado desses homens, possivelmente, com pouca polidez, alguém responderia em tom de brincadeira: “que ele deixasse de pensar besteira, pois isso sempre existiu!44 Ou será que ele queria ocupar o lugar desses negros?”. A resposta, apesar de bruta, toca no ponto correto: ao menos para a América lusitana, à luz da legislação da Metrópole, a escravidão sempre existiu45. E o Império do Brasil recebeu a escravidão como algo natural46. O cativeiro de milhões de africanos era apenas mais um dos elementos das vastas paisagens bucólicas que integravam o imenso território da Nação governada pelo Defensor Perpétuo do Brasil, D. Pedro I47. Naturalmente, o corpo legal da escravidão no Novo Mundo adquiriu características distintas daquelas de Portugal, mas se não se desprezava a legislação anterior48, não se criou um código específico para regulamentar tal relação49. Apesar de a legislação de D. Alfonso X, o Sábio50, manter a escravidão, recepcionando-a do Código de Justiniano (que a previa como uma forma de evitar a morte dos indivíduos capturados em guerras51), declarava a não naturalidade dessa relação, assegurando a manumissão (o direito à alforria). As posteriores Ordenações Afonsinas52 e Manuelinas também tratavam o cativo de forma similar53. Todavia, existia uma peculiaridade: o cativo a que se referiam tais legislações eram os mouros capturados nas guerras de Reconquista e na posterior expansão ultramarina, em terras controladas pelo Islã54, ou seja, era o infiel aprisionado, que poderia aceitar a fé cristã, e que também poderia ser alforriado55. O tratamento dispensado ao mouro submetido era o de servo56, a transição ocorreu posteriormente. As Ordenações Filipinas, de 160357 surgiram como o diploma legislativo mais próximo das realidades do Novo Mundo e da exploração mercantilista das riquezas naturais das colônias58. O vocábulo “servo” aparece totalmente substituído por “escravo”, relacionado apenas aos africanos59: “[…] escravo, a partir da colonização das terras ultramarinas, refere-se a uma realidade objetivamente distinta da que recobre o mouro cativo, servo ou “escravo” metropolitano”60. Nesse diploma legal, as normas sobre escravidão estavam agrupadas no Livro IV (direito civil substantivo) e no Livro V (direito penal e processual criminal) das Ordenações Filipinas, portanto: […] a legislação relacionada à escravidão, de subordinada ao campo da religião, passaria a ser integrada aos campos relativos ao comércio e ao direito penal. […] A transição do cativeiro mouro (de caráter passageiro, pertencente à esfera eclesiástica e com importância diminuta na reprodução da base material da sociedade portuguesa) para a escravidão negra (de caráter durável, pertencente às esferas comercial e penal, e basilar na sustentação da empresa colonial) enquanto objetos legislativos fica muito bem demonstrada.61 Dentro dessa visão mercantil da escravidão, o Título XVII, Livro IV, das Ordenações Filipinas, concedia ao escravo africano a natureza de coisa comercializável, reduzindo-o a um mero bem, que poderia ser transferido de um proprietário para outro, mediante o negócio jurídico da compra e venda62. A desumanização do escravo63 era tamanha que, nos parágrafos desse Título havia a regulamentação de eventuais vícios redibitórios no contrato de compra e venda do escravo, além de outros que pudessem vir a contaminar o referido negócio jurídico: Qualquer pessoa, que comprar algum escravo doente de tal enfermidade, que lhe tolha servir-se dele, o poderá enjeitar a quem lho vendeu, provando que já era doente em seu poder de tal enfermidade, com tanto que cite ao vendedor dentro de seis meses o dia, que o escravo lhe for entregue. […] Se o escravo tiver cometido algum delito, pelo qual, sendo-lhe provado, mereça pena de morte, e ainda não for livre por sentença, e o vendedor ao tempo da venda e não declarar, poderá o comprador enjeitá-lo dentro de seis meses, contados da maneira, que acima dissemos. E o mesmo será, se o escravo tivesse tentado matar-se por si mesmo com aborrecimento da vida, e sabendo-o o vendedor, o não declarasse.64 Como exposto, a exploração colonial transformou o mundo e gerou uma nova forma de regulamentar a escravidão, a qual passou a ser considerada pelas Metrópoles europeias como um dos elementos centrais para a colonização do Novo Mundo65. Portanto, seria estranho que, no ato da Independência, o Estado Imperial Brasileiro não recepcionasse toda a legislação colonial, juntamente com a relação jurídica que servia de base para a manutenção do seu sistema produtivo, a escravidão66. Por essa razão, ao se declarar a independência do Brasil, Sua Majestade Imperial recepcionou, também, toda a legislação colonial que mantinha em cativeiro, naquela época, aproximadamente 1.140.000 escravos, dentro de um universo de 3.690.000 de indivíduos no território da nova Nação, ou seja, aproximadamente 31% da população da Nação67. O Império não herdou apenas a estrutura econômico-social vigente durante a colônia, mas também a legislação metropolitana portuguesa, recepcionada pela Lei de 20 de outubro de 182368: Art. 1.º As Ordenações, Leis, Regimentos, Avaras, Decretos, e Resoluções promulgadas pelos Reis de Portugal, e pelas quais o Brasil se governava até o dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Majestade Fidelíssima, atual Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Corte; e todas as que foram promulgadas daquela data em diante pelo Senhor D. Pedro de Alcântara, como Regente do Brasil, em quanto reino, e como Imperador Constitucional dele, desde que se erigiu em Império, ficam em inteiro vigor na parte, em que não tiverem sido revogadas, para por elas se regularem os negócios do interior deste Império, enquanto se não organizar um novo Código, ou não forem especialmente alteradas. Nafalta de um Código69, os atos da vida civil deveriam ser regidos pelo Livro IV, das Ordenações Filipinas, que tratava especificamente desse tema, mas que não possuía ponto de contato com a sociedade brasileira do século XIX, pois esse diploma legislativo havia sido criado durante a União Ibérica70. A recepção71 dessa estrutura jurídica obsoleta foi objeto de comentários pelo Conselheiro Joaquim Ribas: O último [trabalho legislativo português], que ainda até hoje se acha em vigor, foi começado no reinado de Felipe II de Espanha e I de Portugal, e concluída no seguinte, sendo sancionado e publicado pelo Alv. de 11 de Janeiro de 1603. Em consequência, porém, da elevação da casa de Bragança ao trono de Portugal, entende-se necessário revalidar estas Ordenações, e para este fim expediu D. João IV a lei de 29 de janeiro de 1643, que revogou todas as legislações anteriores a ela, [salvo algumas exceções] […]. Dos cinco livros das Ordenações Filipinas quase que só o 4º é destinado à teoria do direito civil. Mas os seus preceitos, além de minimamente deficientes, e formulados sem ordem, não estão ao par das necessidades da sociedade atual e dos progressos da ciência jurídica.72 A nova Nação passou a ser regida por um documento legislativo que, na data da sua independência, já possuía mais de 200 anos de existência73. E o pior, tal diploma legal e a legislação superveniente mantinham a escravidão. O processo de Independência não buscou alterar os elementos naquilo que era fundamental: a escravidão como base das relações econômicas74. A escravidão sempre foi, ao menos para a América lusitana, um elemento natural na paisagem, como em uma pintura de Rugendas75: ela era o alicerce sobre o qual se erigia toda a construção da riqueza76 e financiamento para a manutenção da estrutura burocrática lusitana77. Junto com a imensidão do seu território, a ignominiosa escravidão serviu para a edificação da nova Nação. Apresentado o cenário em que o Império do Brasil nasceu, é necessário que seja estudado o golpe de Estado dado por D. Pedro I, que fragilizou sua figura pública, e do qual nasceu a Constituição de 1824. Notas 36. Além da Revolução pernambucana de 1817 e da Confederação do Equador de 1824, ainda houve em Recife, em 1º de junho e em dezembro de 1822, levantes populares, com participação militar. Em fevereiro de 1823, aconteceu a “Pedrosada”, que tentou instituir “uma ditadura populista efêmera” na Província. Tais movimentos foram rapidamente debelados, mas demonstravam que as insatisfações locais estavam em efervescência, prontas para explodir em 1824 (Azevedo, Jorge Duarte de. Portugal e Brasil: dos Afonsinos aos Bragança. Brasília: Senado Federal, 2008, p. 357-356). 37. Sugere-se a leitura da obra de Mello, Evaldo Cabral de. A outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. Rio de Janeiro: Editora 34, 2004, p. 235, no qual fica retratada a intranquilidade da região. 38. A antiga Vila de Santo Antônio do Recife. 39. Goulart, José Alípio. Da fuga ao suicídio: aspectos da rebeldia dos escravos no Brasil. Rio de Janeiro: Conquista, 1972, p. 77-108. 40. Cumpre, desde já, registrar que os escravos no Brasil não eram compreendidos como uma massa uniforme. Além das diferenças existentes decorrentes de cada uma das terras africanas de onde eles eram provenientes, havia uma classificação no que se refere ao nível de aculturamento. O escravo nascido na África era denominado de ladino; se no Brasil, chamava-se de crioulo (Luna, Luís. O Negro na Luta contra a Escravidão. Brasília: Editora Cátedra, 1976, p. 47). “Boçal significava, naquele tempo e em relação a escravos, que ele ainda não sabia falar a língua portuguesa” (Moraes, Evaristo de. A Campanha Abolicionista: 1879-1888. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986, p. 368). “Ladino” seria o negro africano catequizado e que já conhecia a língua portuguesa, bem como as regras básicas da sociedade brasileira (Mamigonian, Beatriz G. Africanos livres: a abolição do tráfico de escravos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, p. 17). 41. Freitas dá uma interpretação um pouco diferente a esses termos: “Chamavam-se ‘ladinos’ os escravos dotados de aptidão para certos misteres especializados. […] Ordinariamente, um escravo ladino valia por quatro boçais e, entre os ladinos, dava-se preferência aos já nascidos no Brasil, chamados de ‘crioulos’” (Freitas, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982, p. 32). Importante fazer breve anotação acerca da abolição da escravidão indígena: a lei de 1º de abril de 1680, extremamente ineficaz, criou uma falsa expectativa de liberdade para os cativos indígenas, razão pela qual houve muita pressão política para a sua revogação. Houve regulamentações que retiraram também a eficácia desse diploma legal, criando regimes de trabalho forçado para os índios. Pela Lei de 6 de junho de 1755, que alcançava apenas o Estado do Grão-Pará e Maranhão foi abolida a escravidão no seu território, a qual foi estendida para o restante da América lusitana por meio de Alvará de 1758. O resgate dos indígenas passou a ser feito também às custas da Fazenda real (Bandeira, Alípio; Miranda, Manoel da Costa. A situação do Índio perante a Legislação Antiga e Moderna in A Cidadania no Brasil: o índio e o escravo negro (Brasília, 1988, Ministério do Interior, p. 11-38). No que se refere aos índios, devemos registrar que, o Império do Brasil permaneceu em guerra contra algumas tribos até 1831, na atual região Sudeste: “[…] no Império, a lei de 27 de outubro de 1831 derrogou a Carta Régia de 13 de maio de 1808 que mandava fazer guerra aos Botucudos e obrigava os índios prisioneiros de S. Paulo e Minas Gerais a servirem durante 15 anos aos milicianos que os apreendessem. A mesma lei libertava todos os selvagens escravos e mandava aplicar-lhes as Ordenações Filipinas, L.1.º, Tit. 88 ou seja o Regimento dos Órfãos. Vieram depois o Decreto de 3 de junho de 1833 e o Decreto n. 143 de 15 de março de 1842, art. 4.º, n. 12, entregando aos Juízes de Órfãos a administração dos bens dos índios” (Campello, Francisco Barreto Rodrigues. A legislação fóssil do brasil e a menoridade dos selvagens. Revista Praedicatio, v. 2, p. 1, 2010). Para uma visão geral da escravidão indígena: Sampaio, Aluysio Mendonça. Senhores e Escravos: a escravidão indígena no Brasil. São Paulo: Carthago e Forte, 1994. 42. “Escravos, obedeçam, com medo e respeito àqueles que são seus nos aqui na terra. Façam isso com sinceridade, como se estivessem fazendo a Cristo. […] Donos de escravos, tratem os seus escravos com respeito e parem de ameaça-los com castigos. Lembrem que vocês e seus escravos pertencem ao mesmo Senhor, que está no céu, o qual trata a todos igualmente”. 43. O primeiro desembarque de negros escravos em Portugal, acredita-se que tenha ocorrido em 1442, transportados por um indivíduo chamado de Antônio Gonçalves. Eram 40 escravos transportados da África Ocidental. Para mais detalhes, ver Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social: africanos, v. III. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1867, p. 2. 44. “Em quase todas as regiões do Brasil a escravidão negra era o aspecto mais característico, tanto do panorama rural quanto do urbano. Os portugueses tinham sido os primeiros pioneiros da agricultura em grande escala (fazendas) no Novo Mundo e a escravidão era a pedra-de-toque da economia e da sociedade agrícola” (Bethell, Leslie. A abolição do tráfico de escravos no Brasil: a Grã-Bretanha, o Brasil e a questão do tráficode escravos. Rio de Janeiro: Expressão; São Paulo: Ed. da USP, 1976, p. 16). 45. Estrada, Osório Duque. A Abolição. Brasília: Edições do Senado Federal, 2005, p. 27. Em 1549, com Tomé de Sousa, vieram para a Bahia escravos importados da África, mas há notícias que já em 1542 já houve requisição de importação de negros para a Capitania de Pernambuco, por Duarte Coelho (Luna, Luís. O Negro na Luta contra a Escravidão. Brasília: Editora Cátedra, 1976, p. 35). 46. Lima, Manuel de Oliveira. O Movimento da Independência: o Império brasileiro (1821-1889). São Paulo: Melhoramentos, p. 404. 47. Título recebido e aceito por D. Pedro I em maio de 1822 (Vianna, Hélio. História do Brasil, v. 2. 6. ed. São Paulo: Melhoramentos, 1967, p. 64). 48. Silva Junior, Waldomiro Lourenço da. História. Direito e Escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 45. 49. Silva Junior, Waldomiro Lourenço da. História. Direito e Escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 35. O direito francês produziu um diploma jurídico específico para regulamentar a relação escravista, Le Code Noir, em duas versões, a de 1685 e a de 1724. 50. As Siete Partidas, consolidação de legislação organizada entre 1263 a 1265, por D. Afonso X, o Sábio (rei de Castela e Leão, entre 1221-1284), assim dispunha sobre “los siervos”, no seu título 21, Lei nº 1, explicando a origem da servidão, a razão da sua existência e os seus tipos: “Ley 1: Servidumbre, es postura, o establecimiento que hicieron antiguamente las gentes, por la cual los hombres, que eran naturalmente libres, se hacían siervos y se sometían a señorío de otro contra razón de naturaleza. Y siervo tomó este nombre de una palabra que es llamada en latín servare, que quiere tanto decir en romance como guardar: Y esta guarda fue establecida por los emperadores, pues antiguamente a todos cuantos cautivaban, matábanlos, mas los emperadores tuvieron por bien y mandaron que no los matasen, mas que los guardasen y se sirvieren de ellos. Y hay tres maneras de siervos: la primera es la de los que cautivan en tiempo de guerra siendo enemigos de la fe; la segunda es de los que nacen de las siervas; la tercera es cuando alguno que es libre se deja vender […]”. Por sua vez, no título 29, nas Leis nº 01 e 03, assim dispunha sobre os cativos infiéis, que passavam a servidão pelo seu estado de prisioneiros de guerra, mas que poderiam obter a sua liberdade: “Mas cautivos son llamados por derecho aquellos que caen en prisión de hombres de otra creencia; y estos lo matan después que los tienen presos por desprecio que tienen a su ley, o los atormentan con muy crudas penas, o se sirven de ellos como siervos metiéndolos a tales servicios que querrían antes la muerte que la vida; y sin todo esto no son señores de lo que tienen pagándolo a aquellos que les hacen todos estos males, o los venden cuando quieren. Por lo que por todas estas cuitas y por otras muchas que sufren, son llamados con derecho cautivos, porque esta es la mayor pena que los hombres pueden tener en este mundo. […] Ley 3: Sacar los hombres de cautiverio es cosa que place mucho a Dios porque es obra de piedad y de merced, y está bien en este mundo a los que lo hacen. […]” (Disponível em: <https://goo.gl/TR04c>. Acesso em: 6 dez. 2017). Para mais detalhes, ver Drescher, Seymour. Abolição: uma história da escravidão e do antiescravismo. Tradução de Antônio Penalves Rocha. São Paulo: Unesp, 2011, p. 15-16. 51. Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil, v. 1. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1867, p. 191. 52. “Ordenações Afonsinas. O primeiro monumento legislativo foi o Código Afonsino ou as Ordenações Afonsinas, promulgadas por D. Afonso, em 1446, a primeira grande codificação moderna […]”, consolidando a legislação anterior e sistematizando-a em livros, além de criar um “famigerado” livro de com previsão de penas cruéis (Livro V) para o caso de infrações penais (Valladão, Haroldo. História do direito especialmente do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 70). 53. Silva Junior, Waldomiro Lourenço da. História. Direito e Escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 37, 53 e 54. As Ordenações Manuelinas foram “[…] organizadas pelo célebre jurista português Antonio Gouvea, que estudou e lecionou na França, Toulouse, Grenoble e Valença, mantinha o sistema das Ordenações Afonsinas, mas apareceu mais condensado, e representou uma primeira vitória do romanismo e, sobretudo, do fortalecimento do poder absoluto, desaparecendo antigas liberdades. […] As Ordenações Manuelinas [1511-1603] vigoraram no Brasil logo após a descoberta” (Valladão, Haroldo. História do direito especialmente do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 70-71). 54. Registre-se que esse aprisionamento era considerado um ato de misericórdia para com os capturados, os quais poderiam se converter também ao cristianismo (Gerson, Brasil. A escravidão no império. Rio de Janeiro: Pallas, 1975, p. 1-2). Nas palavras de Joaquim Nabuco: “[…] os portugueses puderam fazer de seus inimigos os seus primeiros cativos. Mas esse cativeiro foi sempre muito temperado; havia uma necessidade a que ele tinha de ceder, a necessidade da permuta dos cativos mouros de Portugal pelos cativos portugueses do Marrocos” (Nabuco, Joaquim. A escravidão. Recife: Fundaj/Editora Massangana, 1988, p. 111). 55. Pretendia-se também que o capturado fosse objeto do benefício do resgate, seja por meio de pagamento ou de troca de prisioneiros, o que os livraria da morte certa (Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico-jurídico-social: africanos, v. III. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1867, p. 2). 56. Ord. Af. L. 2.º tit. 99 e seguintes; Ord. Fil. L. 4.º tit. 11 § 4.º, tit. 83 § 4.º, tit. 85, tit. 88 § 16. – O Alv. do 1.º de junho de 1641, porém, proibiu ter escravos mouros; o que prova que eles existiam e eram tolerados até essa época. 57. Valladão, Haroldo. História do direito especialmente do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 77. 58. “Código produzido em fins do século XVI, em Portugal, como reforma às Ordenações Manuelinas, ele já teria nascido, em 1603, ultrapassado. […] as Ordenações são a reunião, em um corpo legislativo, de dispositivos manuelinos subsequentes, sem a reformulação das normas. Algumas, que já haviam caído em desuso, permaneciam no código, no começo do século XVII. Imaginem só esse mesmo código sendo usado em meados do século XIX, numa sociedade completamente diferente!” (Grinberg, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 87). 59. Silva Junior, Waldomiro Lourenço da. História. Direito e Escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 54. 60. Lara Ribeiro apud Silva Junior, Waldomiro Lourenço da. História. Direito e Escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 55. “É digno de nota que essa compilação legislativa não se ocupava apenas de escravos negros ou mouros, porém, igualmente, de escravos brancos, situação bastante familiar no Portugal do século XVI, sobretudo nos mosteiros e conventos” (Freitas, Décio. Palmares: a guerra dos escravos. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1982, p. 28-29). 61. Silva Junior, Waldomiro Lourenço da. História.Direito e Escravidão: a legislação escravista no Antigo Regime Ibero-Americano. São Paulo: Annablume, 2013, p. 55. 62. Segundo a doutrina de direito civil, os negócios jurídicos são os “[…] atos jurídicos strictu sensu em que é elemento essencial a vontade […] Quanto ao negócios jurídicos, em todos eles é essencial o elemento volitivo; daí ser sempre exigida capacidade e a ausência de vícios de vontade. Nos suportes fáticos, há, necessariamente e em primeira plana, o elemento volitivo, porém há também outros elementos” (Miranda, Pontes de. Tratado de Direito Privado, v. 2. Campinas: Bookseller, 2000, p. 468-469). Ou seja, são os atos jurídicos nos quais a manifestação de vontade das partes pode delinear os seus principais contornos, como em um contrato de compra e venda, no qual o preço, prazo, objeto, forma de pagamento etc. são definidos pelas próprias partes. 63. Nas palavras de Perdigão Malheiro: “Desde que o homem é reduzido à condição de coisa, sujeito ao poder de um outro, é havido por morto, privado de todos os direitos, e não tem representação alguma, como já havia decido o Direito Romano” (Malheiro, Agostinho Marques Perdigão. A escravidão no Brasil, v. 1. Rio de Janeiro: Typografia Nacional, 1867, p. 16). Em sentido contrário, ver Nabuco, Joaquim. A escravidão. Recife, Fundaj/Editora Massangana, 1988. 64. Freitas, Décio. Escravidão de índios e negros no Brasil. Porto Alegre: EST/ICP, 1980, p. 26. 65. Luna, Luís. O Negro na Luta contra a Escravidão. Brasília: Editora Cátedra, 1976, p. 89. 66. “A economia do Império, como antes a da Colônia, baseava-se na exploração do trabalho escravo. […] Tudo girava em torno do braço escravo, do sustento barato, não exigindo outra conservação além de alguns côvados da fazenda ordinária e parcas rações de carne seca e farinha de mandioca” (Luna, Luís. O Negro na Luta contra a Escravidão. Brasília: Editora Cátedra, 1976, p. 89). 67. Moura, Clóvis. Dicionário da escravidão negra no Brasil. São Paulo: Ed. USP, 2004, p. 318 e Costa, Emília Viotti da. A Abolição. São Paulo: Global, 2001, p. 25. 68. Valladão, Haroldo. História do direito especialmente do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 108 e Grinberg, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade: as ações de liberdade da Corte de Apelação do Rio de Janeiro no século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994, p. 95. 69. A Constituição de 1824, no seu inciso XVIII, do art. 179, estabelecia que o Estado brasileiro deveria criar um código civil e criminal para o país, baseados na justiça e equidade. Entretanto, o Império do Brasil nunca chegou a codificar o seu direito civil, apesar de várias tentativas com base nos anteprojetos de Nabuco de Araújo e Teixeira de Freitas. Esse último chegou a elaborar uma Consolidação das Leis Civis, que serviria de ponto de partida para o futuro código civil, a qual passou a ter força de lei, após aprovação do Imperador, por meio do Aviso de 24 de dezembro de 1858. Por sua vez, o código criminal do império foi promulgado com o advento da Lei de 16 de dezembro de 1830. A Lei de 29 de novembro de 1832 instituiu o Código Criminal do Império (Valladão, Haroldo. História do direito especialmente do direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 128-130). Nosso Código Comercial foi instituído pela Lei nº 556, de 25 de junho de 1850, e, em seguida, passou a vigorar o Regulamento nº 737, de 25 de novembro de 1850, que fixava o processo comercial. A Consolidação da lei processual elaborada por Antônio Joaquim Ribas tornou-se obrigatória pela Resolução de 28 de dezembro de 1876 (Paula, Jônatas Luiz Moreira de. História do Direito Processual Brasileiro: das origens lusas à escola crítica do processo. Barueri, Manole, p. 239). 70. De 1580 a 1640. Com o “desaparecimento” do impetuoso e jovem El-Rei D. Sebastião – o Desejado (nascido em 20 de janeiro de 1554, no dia do santo que lhe daria nome) –, com 24 anos de idade, na batalha de Alcácer Quibir (“grande fortaleza”), em 4 de agosto de 1578, as coroas ibéricas se uniram (após a Guerra de Sucessão Portuguesa), passando o Rei Filipe II da Espanha a ser também o soberano do império lusitano, inclusive das possessões ultramarinas (Godoy, Marco Honório de. Dom Sebastião no Brasil: fatos da cultura e da comunicação em tempo/espaço. São Paulo: Perspectiva: Fapesp, 2005, p. 24-56). 71. O fenômeno da recepção das leis pode ser assim conceituado: “É certo que o poder constituinte originário dá início à ordem jurídica. Isso, porém, significa que todos os diplomas infraconstitucionais perdem vigor com o advento de uma nova Constituição? Uma resposta positiva inviabilizaria a ordem jurídica. Por isso se entende que aquelas normas anteriores à Constituição, que são com elas compatíveis no seu conteúdo, continuam em vigor. Diz-se que, nesse caso, opera o fenômeno da recepção, que corresponde a uma revalidação das normas que não desafiam, materialmente, a nova Constituição” (Mendes, Gilmar Ferreira e Branco, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 123). Em outras palavras: “[…] Recepção. Ou princípio da continuidade da legislação ordinária, segundo o qual a nova Constituição revoga a ordem constitucional anterior, mas aceita ou “recebe” as normas anteriores que com ela não sejam incompatíveis quanto ao objeto ou conteúdo, ainda que a forma dos atos legislativos anteriores sofra alteração no seu modo de elaboração” (Silva, de Plácido e. Vocabulário Jurídico. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Gláucia Carvalho. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2006, p. 1161). Evidentemente, não poderia o nascente Império do Brasil rejeitar toda a legislação portuguesa anterior, a qual regia todos os aspectos da vida dos indivíduos até a data da independência. Seria implantado um caos no país, uma verdadeira “terra sem lei”. Por essa razão, o imperador, por meio da Lei de 20 de outubro de 1823, determinou que a legislação anterior fosse recepcionada. 72. Ribas, Conselheiro Joaquim. Direito Civil Brasileiro. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1982, p. 76. 73. O direito romano era aplicável, mas apenas de forma excepcional, de forma subsidiária, por força de “Lei da Boa Razão” (§ 10º da Lei de 18 de agosto de 1769), sem que pudesse alterar o “espírito” da lei nacional: “Do primeiro período deste § parece deduzir-se que as regras de interpretar as Leis, extraídas dos Textos de Direito Romano, são ineptas para a interpretação das Leis Pátrias. Mas não é isto o que a Lei quis dizer: dos Corpos de Direito Romano podem extrair-se regras gerais da interpretação das Leis, dos contratos, e últimas vontades, tão conformes à boa razão, como as que [Hugo] Grócio, e os mais cultores do Direito Natural têm ensinado nos tempos modernos. […] foi por isso que a nossa Lei repreendendo este erro, determinou que as Leis Pátrias nunca fossem ampliadas, ou limitadas pelas Leis Romanas; só se estas ampliações, ou limitações necessariamente se deduzissem do espirito das mesmas Leis Pátrias, significado ou pelas próprias palavras delas, ou pela identidade de razão, e força de compreensão” (Telles, José Homem Côrrea. Comentários à Lei da Boa Razão em data de 18 de agosto de 1769. Lisboa: Typographia de Maria da Madre de Deus, 1865, p. 67-68). Nesse sentido: “Visando evitar os abusos decorrentes da praxe, a Lei da Boa Razão determinou que as restrições se deduzissem do espírito das mesmas Leis Pátrias, ou significado pelas próprias palavras delas, ou pela identidade de razão, e força de compreensão […]” (Pousada, Estevan Lo Ré. Preservação
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