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UMA TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização ' • Gustavo Binenbojm Professor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor e Mestre em Direito Público, UERJ. Master of Laws (LL.M.), Yale Law School (EUA). Professor dos cursos de pós-graduação da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ). Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ. Procurador do Estado, advogado e parecerista no Rio de Janeiro. UMA TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização 3ª Edição Revista e Atualizada RENOVAR Aio de Janeiro 2014 Todos os direitos reservados à LIVRARIA E EDITORA RENOVAR LTDA. MATRIZ: Rua da Assembléia, 10/2.421 - Centro - RJ CEP: 20011-901 -Tel.: (21) 2531-2205 - Fax: (21) 2531-2135 FILIAL RJ: Tels.: (21) 2589-1863 / 2580-8596 - Fax: (21) 2589-1962 www.editorarenovar.com.br SAC: 0800-221863 © 2014 by Livraria Editora Renovar Ltda. Conselho Editorial: Arnaldo Lopes Süssekind -Presidente (in memoriam) Antonio Celso Alves Pereira Caio Tácito (in memoriam) Carlos Alberto Menezes Direito (in memoriam) Celso de Albuquerque Mello (in memoriam) Gustavo Binenbojm Gustavo Tepedino Lauro Gama Luís Roberto Barroso Luiz Edson Fachin Luiz Emygdio F. da Rosa Jr. Manoel Vargas Nadia de Araujo Nelson Eizirik Ricardo Lobo Torres Ricardo Pereira Lira Sergio Campinho Capa: Sheila Neves Editoração Eletrônica: TopTextos Edições Gráficas Ltda. 1318 CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Binenbojm, Gustavo B242t Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democra cia e constitucionalização. - 3ª ed. revista e atualizada -Rio de Janeiro: Renovar, 2014. ISBN 978-85-7147-860-2 1. Direito administrativo - Brasil. I. Título. Proibida a reprodução (Lei 9.610/98) Impresso no Brasil Printed in Brazil CDD 346.810922 Para Letícia, em cujos olhos vive o amor. Para Laura e Beatriz, nosso amor em forma de gente. SUMÁRIO NOTA À 3ª EDIÇÃO ................... .................... .................................... XI NOTA À 2ª EDIÇÃO ........................................................................ XIII PREFÁCIO (Luís Roberto Barroso) ... . .. . . . .................... ...................... XIX APRESENTAÇÃO ......................... . . . . .............. . . . . . .... . . .......... ..... ........ ..... l PRIMEIRA PARTE: OBJETO DA INVESTIGAÇÃO. CAPÍTULO 1 -A CRISE DOS PARADIGMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO . .......... ............................... ........ . . . .................. 9 1.1. A outra história do direito administrativo : do pecado autoritário original à constituição de uma dogmática a serviço dos donos do poder . ......... ........... ...... . . . . ............... . . . . ......................... 9 1.2. A evolução contraditória do direito administrativo: a dogmática administrativista no divã ........ ........... . ..... ......... ........... . . . . ................ 1 7 1.3. Delimitando o objeto da investigação: a crise dos paradigmas do direito administrativo brasileiro . . . ...... ............ . . . ......... ................ 23 1.3 .1. A noção de paradigma adotada: um acordo semântico ............... 26 1.3.2. Da supremacia do interesse público ao dever de proporcionalidade: a crise da ideia de regime jurídico administrativo ..... ..... . .. . . ..... .............. . . . ........................... ................. 29 I.3.3. Da legalidade como vinculação positiva à lei ao princípio da juridicidade administrativa: a crise da lei administrativa .... . . . . . ...... 34 1.3.4. Da dicotomia ato vinculado versus ato discricionário à teoria dos graus de vinculação à juridicidade: a crise da discricionariedade administrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39 1.3.5. Do Executivo unitário à Administração Pública policêntrica: a crise da estrutura administrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .42 SEGUNDA PARTE: PREMISSAS TEÓRICAS. CAPÍTULO II - DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTOS ESTRUTURANTES DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. O NEOCONSTITUCIONALISMO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIV0 ..................................................................... 49 II. l . Direitos fundamentais e democracia como fundamentos de legitimidade e elementos estruturantes do Estado democrático de direito . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 II.2. A Constituição no centro do sistema jurídico: neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito . . . . . . . . . . . . . . . . 61 II.3. O papel decisivo dos marcos constitucionais dos direitos fundamentais e da democracia no delineamento dos novos paradigmas do direito administrativo: a constitucionalização do direito administrativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69 II.3.1. As dimensões subjetiva e objetiva dos direitos fundamentais e a Administração Pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 72 II.3.2. A democracia e a Administração Pública . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 TERCEIRA PARTE: A MUDANÇA DE PARADIGMAS PROPOSTA. CAPÍTULO III - DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO AO DEVER DE PROPORCIONALIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . 83 III. l. A dicotomia interesse público versus interesses privados ao longo da história . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . .. . . . . . . . . . . . . . ... . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83 III.2. O princípio da supremacia do interesse público, segundo a doutrina brasileira. Uso histórico do princípio como instrumento de exercício arbitrário da discricionariedade ............. 89 III.3. A desconstrução do princípio da supremacia do interesse público . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96 III.4. A posição intermediária de Luís Roberto Barroso . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . 103 III.5. A constitucionalização do Direito Administrativo e o dever de ponderação proporcional como fator de legitimação e princípio reitor da atividade administrativa. O Estado democrático de direito como Estado de ponderação .. . . ... . . . . . . . . ... . 105 III.6. Ponderação constitucional, legislativa, administrativa e judicial .. . 1 11 III. 7. A proporcionalidade e as normas instituidoras de privilégios para a Administração . . . . .. . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 III.8. A proporcionalidade e as normas restritivas de direitos individuais . .................................................................................... 121 CAPÍTULO IV -A CRISE DA LEI: DA LEGALIDADE COMO VINCULAÇÃO POSITIVA À LEI AO PRINCÍPIO DA JURIDICIDADE ADMINISTRATIVA . . . ... . . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 31 IV. l. O desprestígio do legislador e a crise da lei formal: um fenômeno universal . . . .. . . . ... . . .. . . . . . . . . . . ... . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . 1 3 1 IV.2. Os caminhos da legalidade administrativa: os sentidos da vinculação da Administração à juridicidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . 14 2 IV.3. A pluralidade de fontes do direito administrativo contemporâneo: constituição, lei, regulamento presidencial e regulamento setorial. A sistemática constitucional brasileira após a Emenda Constitucional nº 32/2001 .................................. 149 IV.3. 1 . A lei. Formas de manifestação da legalidade. Reservas de lei . . . . 153 IV.3.2. Os regulamentos. Suas espécies e a sistemática introduzida pela Emenda Constitucional n" 32/2001 ................ . .. .................. 1 59 IV.4. A atividade administrativa contra legem: ponderações entre legalidade, moralidade, proteção da confiança legítima e da boa-fé e eficiência. Convalidação, invalidação prospectiva e invalidação retroativa à luz do princípio da juridicidade administrativa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . ... ... . . .. . . . . . . . . . . . . 1 83 CAPÍTULO V -DA DICOTOMIA ATO VINCULADO VERSUS ATO DISCRICIONÁRIO À TEORIA DOS GRAUS DE VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 V. l. A discricionariedade administrativa como espaço de livre decisão externo ao direito . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . .. . .. . .. .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . ... . 207 V.2. A teoria dos elementos do ato administrativo: controle dos elementos vinculados do ato discricionário .................................. 213 V.3. A emergência da teoria dos princípios: o estreitamento (parcial ou total) do âmbito de discricionariedade por incidência dos princípios da Administração Pública . . . . . . . ... ........ ... 219 V.4. Conceitos jurídicos indeterminados, espaços de apreciação administrativa e princípios constitucionais ................................... 22 5 V.5. Discricionariedade administrativa, conceitos jurídicos indeterminados e controle judicial: critérios para uma teoria jurídico-funcionalmente adequada ....... . . . . . . . . ........... ..................... 2 40 CAPÍTULO VI -DO EXECUTIVO UNITÁRIO À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POLICÊNTRICA . . . . . . . . . . . . ...... 257 VI. l. A emergência das autoridades administrativas independentes: do Executivo unitário à Administração policêntrica .... . . ............... 2 5 7 VI.2. As características gerais das agências independentes: as dimensões de sua autonomia reforçada .... . . . . . ... . . . . ........................ 269 VI. 3. Contextualizando as agências independentes nos Estados Unidos e no Brasil: mão e contramão ............... . . . . . . . . . .. . . ...... ......... 280 VI.4. As tensões entre a regulação independente e o Estado democrático de direito ... . . ......... . . . . . . . .................. . . . . . . . . . . . . . .............. 288 VI. 4 . 1 . A sucessão democrática e as agências reguladoras independentes: registros históricos da experiência brasileira ....... 289 VI.4.2 Propostas de aprimoramento do arranjo institucional das agências reguladoras no Brasil ..... . . . . ...... . . . .. . . . . . ....... ........... . . . . . . . . . . . . 2 9 2 VI.4.2. 1 . Em relação ao princípio da legalidade: rejeição à tese da deslegalização .............. . . . . ........ . . . . . ............. . . ........... ................... . . .. 292 VI.4.2.2. Em relação ao sistema de freios e contrapesos: controles ancilares do Executivo e do Legislativo . . . .. . . . . . . .... . .... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 306 VI.4.2.3. Em relação ao dito déficit democrático: controle social e legitimação pelo procedimento .... . . . . . . . . . . ................. . . . . . . .. . ............. 31 O VI. 5. Agências independentes, direitos fundamentais e democracia . 31 7 CAPÍTULO VII -SÍNTESE CONCLUSIVA ... . .. . . . . . .................... 323 VII. l. Proposições objetivas ............................... .... . ................... . . ..... . . 323 VII.2. Encerramento ...... . . . . . . .......... . . . . . .............. . . . .. . . ................ . . . . . . .. . . . 335 NOTA À 3ª EDIÇÃO Submeto aos estudiosos e operadores do direito a 3ª edição de Uma Teoria do Direito Administrativo: direitos fundamentais, de mocracia e constitucionalização. Não se cuida de livro novo . Trata se da mesma obra, revista e atualizada, no entanto, à luz das inova ções legislativas, doutrinárias e jurisprudenciais dos últimos anos. Sou grato a todos quantos leram e puderam extrair algum proveito do livro; à Editora Renovar, na pessoa do querido Osmun do Lima, pela coragem de ter lançado, há quase uma década, a 1 ª edição deste trabalho; e, por último, mas não menos importante, aos jovens e brilhantes advogados Francisco Defanti e Renato To ledo, cuja devoção ao trabalho de pesquisa tornou possível a atua lização do texto. ltaipava (RJ), primavera de 20 1 3 . Gustavo Binenbojm NOTA À 2ª EDIÇÃO Sobre iconoclastas e seu destino No epílogo de What Should Legal Analysis Become, Roberto Mangabeira Unger se utiliza de uma parábola para perscrutar a relação dos juristas com o direito . A parábola remonta à aliança de Deus com Abraão, e seu conteúdo essencial : a ruptura com toda forma de idolatria, e a busca de um mundo de justiça e redenção. As grandes religiões monoteístas desenvolveram seus sistemas de crenças a partir de códigos de condutas, em honra ao compromisso original . As normas prescritas pela religião seriam, assim, como que a realização do pacto firmado com Deus. Ocorre que, sob diferen tes contextos e circunstâncias, a obediência cega aos códigos pode representar, ela própria, uma forma de idolatria. Adorar as nor mas, como se elas fossem atemporais, pode significar o descumpri mento da aliança na sua essência: um compromisso ético contínuo de superação das injustiças nunca integralmente realizado . Esta a única norma atemporal. Eis o ponto . Os iconoclastas de ontem podem ter-se tornado os idólatras de hoje . O direito não deve ser contemplado pelos juristas como uma revelação dos sábios do passado. No seu emaranhado de conceitos e categorias - produto acidentado de disputas de poder ou consensos imperfeitos - o fenômeno jurídico é apenas um pre cipitado histórico daquilo que seria, em termos contrafáticos, sua vocação ou inspiração original . Cabe-nos a tarefa constante de reavaliá-lo criticamente e imaginar novas formas de libertação e desenvolvimento. Esta a concepção com que foi pensado este livro, magistralmen te captada, para meu gáudio, pela pena ilustre de Carlos Ari Sund feld, na quarta capa da presente edição: "Mudam normas, mudam idéias, muda o mundo; e nosso direi to administrativo, muda? Para alguns, não pode mudar: eles crêem na atemporalidade do passado. Mas muitos não querem a teoria jurídica como religião; estou com eles. Ao conhecer este livro de Gustavo Binenbojm, brilhante professor da Facul dade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, levei-o a meus alunos: aqui há um olhar sincero sobre a expe riência jurídica contemporânea, aqui se questionam certezas e há idéias a debater. Um livro que vale. Gustavo contesta o valor, afirmado pela geração anterior de administrativistas, do princípio da supremacia do interesse pú blico sobre o privado. Ele está com a razão, a meu ver. Em caso de conflito entre interesses, o desafio prático é decidir qual deles deve prevalecer. Depois da decisão, é fácil dizer que o interesse pelo qual se optou é o interesse público, e o outro o privado . Só que nossa tarefa não é descrever as coisas depois de resolvidas; é ajudar na solução . De que adianta dizer: "o interesse público deve ser preferido", se o problema é justa mente saber qual dos interesses é o "público"? O tal princípio, além de inútil - por não ajudar na resposta - pode ser muito, muito perigoso, se combinado com a presunção autoritária de que vontade do Estado é sinônimo de interesse público.Essa presunção não é compatível com o regime constitucional, pois o respeito aos direitos individuais tem de ser compromisso do próprio Estado, mas anda solta por aí, assombrando - e Gusta vo faz o alerta de que, mesmo involuntariamente, o velho princípio da supremacia a mantém viva. O livro trata de outras questões teóricas : da legalidade admi nistrativa, da dicotomia vinculação x discricionariedade e da superação da Administração unitária. São temas fundamentais da agenda dos publicistas, que se tornaram mais complexos e sobre os quais as idéias mudaram muito nas últimas décadas . A contribuição de Gustavo Binenbojm para sua compreensão é relevante e precisa ser conhecida." Para minha surpresa e alegria, a primeira edição deste livro esgotou-se rapidamente, merecendo a honra da leitura, reflexão e crítica de grande parte do pensamento jurídico nacional . Entre alguns enxovalhas públicos furiosos - que mais me divertiram que aborreceram - e diversas manifestações generosas de adesão, penso que a obra tem se prestado à função para ,que foi concebida: a de funcionar como catalisadora do debate sobre as significativas transformações por que passa o direito público em geral, e o direito administrativo, em particular. Os ecos das propostas teóricas desenvolvidas no livro podem ser encontrados em trabalhos de diversos publicistas brasileiros. A doutrina encontra-se dividida entre aqueles que propugnam pela desconstrução1 do princípio da supremacia do interesse público e aqueles outros que advogam a necessidade de sua reconstrução.2 Em ambos os casos, todavia, os autores concordam em que, nos Estados constitucionais e democráticos, não há mais espaço para a defesa da prevalência a priori e descontextualizada dos interesses de caráter difuso ou coletivo sobre os direitos individuais. O con ceito de interesse público deixa de ser compreendido como um dado, definido a partir da lógica da autoridade estatal, passando a ser construído mediante juízos de ponderação formulados dialogi camente por legisladores, administradores e juízes. Também no que se refere a outros aspectos do trabalho, como a revisão da velha concepção de legalidade administrativa e o reen- V., dentre outros, Humberto Ávila, Repensando o "Princípio da Supremacia do Interesse Público sobre o Particular"; Daniel Sarmento, Interesses Públicos vs. Interesses Privados na Perspectiva da Teoria e da Filosofia Constitucional, Paulo Ricardo Schier, Ensaio sobre a Supremacia do Interesse Público sobre o Privado e o Regime Jurídico dos Direitos Fundamen tais; Alexandre Aragão, A "Supremacia do Interesse Público" no Advento do Estado de Direito e na Hennenêutica do Direito Público Contemporâneo, todos in Daniel Sarmento (organiza dor), Interesses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Suprema cia do Interesse Público, 2006. Também no sentido da inexistência do princípio, Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, 2005, p. 45/ 46; Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Novos Paradigmas do Direito Administrativo, 2008. 2 V. Luís Roberto Barroso, O Estado Contemporâneo, os Direitos Fundamentais e a Redefinição da Supremacia do Interesse Público, in Daniel Sarmento (organizador), Interes ses Públicos versus Interesses Privados: Desconstruindo o Princípio da Supremacia do Interes se Público, 2006; Alice Gonzalez Borges, Supremacia do Interesse Público: desconstrução ou reconstrução? in Revista de Direito do Estado (RDE) nº 3, jul./set. 2006, p. 137/153. quadramento da noção de discricionariedade, a literatura e a juris prudência pátrias têm manifestado reconhecimento. A atualização do texto contempla já diversas decisões das Cortes judiciárias, inclusive do Supremo Tribunal Federal, acolhendo entendimentos esposados na obra. Foram igualmente acrescentados e comentados os desenvolvimentos institucionais acerca da temática das agências reguladoras, submetidas a intensas críticas e alvo de projetos de reforma nos últimos anos. Desejo registrar minha gratidão àqueles que tornam minha vida possível . Ao editor e querido amigo, Osmundo Lima Araújo, pela sua seriedade e generosidade . Aos amigos Lauro Gama Junior, Flávio Carvalho Britto, André Cyrino e Alice Voronoff, minha família profissional, por me permitirem buscar o melhor de mim e deles mesmos. A Daniel Sarmento, Caio Mário da Silva Pereira Neto, Cláudio Pereira de S ouza Neto, Carlos Ari Sundfeld, Ana Paula de Barcellos, Alexandre Aragão e Patrícia Baptista, pela ami zade e interlocução prazerosa. Por fim, aos amores da minha vida, simplesmente por amá-las desde sempre e para sempre: Leticia, Laura e Beatriz. Rio de Janeiro, inverno de 2008 . Gustavo Binenbojm PREFÁCIO A caminho de um direito administrativo constitucional3 1 . Sobre o autor e seu orientador Este livro contém a última etapa formal da carreira acadêmica e docente de Gustavo Binenbojm. Nele se consubstancia a tese com a qual obteve o título merecido de doutor em direito público, com nota máxima, distinção e louvor. E isso o torna, automati camente, professor adjunto4. Aqui se completa, portanto, um rito de passagem, um daqueles momentos a partir dos quais a vida já não será mais a mesma. Daqui por diante, todos os caminhos serão próprios, sem orientadores, bancas e interferências externas . É, simultaneamente, um instante de libertação e de solidão na vida de um estudioso. Pessoalmente, celebro este momento com orgu lho e com nostalgia. Por mais de dez anos, Gustavo Binenbojm desenvolveu sua carreira acadêmica e profissional próximo a mim. Na graduação, foi meu aluno, monitor e estagiário . Após a formatura, tornou-se 3 O título deste prefácio se inspira no artigo de Maria Celina Bodin de Moraes, "A caminho de um direito civil constitucional", Revista de Direito Civil 65:23, 1991, que foi um dos marcos acadêmicos da constitucionalização do direito civil. 4 A titularidade, possível, previsível, não é um cargo de carreira e sujeita-se a circunstân cias diversas da burocracia universitária. advogado em meu escritório e foi meu orientando de mestrado e de doutorado. Ao longo desse período, foi aprovado no concurso para Procurador do Estado do Rio de Janeiro e foi admitido no programa de LL.M. da Faculdade de Direito da Universidade de Yale . De volta ao Brasil, reassumiu a cadeira de professor de direito administrativo, que conquistara por concurso, e defendeu a pre sente tese. Completado o ciclo, Gustavo segue agora seu rumo próprio. O sentimento de perda de um colaborador de tantos anos e de tanto talento só é atenuado por uma dessas magias do mundo acadêmico: a capacidade de um professor sentir-se realizado no sucesso de seus alunos . Quem não souber elaborar esta inevitabili dade da vida e não for bem resolvido em relação a ela, não encon trará felicidade no magistério. II . Sobre a tese Encantei-me pelo tema da tese desenvolvida por Gustavo des de quando li o seu projeto de doutoramento, com autoria ainda não identificada, apresentado à banca de seleção do Programa de Pós graduação em direito público da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ . Posteriormente, Gustavo publicou diversos frag mentos de seu trabalho, em revistas especializadas . A leitura das diferentes partes proporcionava uma visão geral do tema, com reflexões bem lançadas sobre as origens, tradições e mitos do direito administrativo, no Brasil e no mundo. Nada obstante isso, quando Gustavo me apresentou a versão integral da tese, para meus comentários finais, surpreendeu-me uma sensação difícil de definir . Reunido em uma peça única, o conjunto do trabalho pareceu-me totalmente singular, repleto de visões próprias e bem inspiradas . A sensação foi semelhante à que senti na primeira vez em que minha filha mais velha emitiu uma opinião, um juízo de valor, que não aprendera em casa, que não correspondia às nossas conversas e ao nosso "patrimônio comum" . Passado o susto e o sentimentode perda do controle, o momento seguinte foi de orgulho e de identificação. Há muitas passagens no presente livro que expressam, com mais proficiência do que eu seria capaz, idéias que compartilho com o autor. É lugar-comum dizer-se que alunos se tornam filhos espirituais dos professores aos quais se ligam. A imagem é gasta, mas é verda- <leira. É que, ao lado dos vínculos formais da orientação e dos laços intelectuais da discussão de idéias, desenvolve-se e aprofunda-se, também, uma relação de afeto e de cumplicidade, um elo trans cendente . Mas os filhos, biológicos ou espirituais, pertencem ao mundo, e não aos pais. Há uma fase na vida em que é possível compartilhar valores, ser exemplo ou dar motivação . Mas em al gum momento - doloroso momento - é preciso sair de cena, para converter-se em referência cada vez mais remota. Essa é a glória da paternidade e do magistério: deixar de ser protagonista e tornar-se um espectador engajado. Às vezes, um mero torcedor na arquiban cada. Gustavo Binenbojm escreveu um livro extraordinário. Há te mas que passam anos à espera de um autor. Mas quando ele apa rece e oferece a sua visão do assunto, ou a sua revisão, o óbvio que se encontrava encoberto passa a cintilar. E é de tal forma penetran te que a novidade se converte, em pouco tempo, em conhecimento convencional. Gustavo faz um diagnóstico preciso da crise de pa radigmas do direito administrativo e apresenta propostas bem ar ticuladas para sua superação. A originalidade do trabalho se encon tra, precisamente, na capacidade do autor de sistematizar a matéria versada, de arrumar um conjunto de ideias que fervilhavam disper sas, dando a elas um arranjo original. O livro explora, com sensibi lidade, rigor e leveza, a incidência do neoconstitucionalismo e da constitucionalização do Direito sobre o direito administrativo. O neoconstitucionalismo identifica uma série de transforma ções ocorridas no Estado e no direito constitucional, nas últimas décadas, que tem (i) como marco filosófico o pós-positivismo5; (ii) como marco histórico, a formação do Estado constitucional de direito, após a 2ª Guerra Mundial, e, no caso brasileiro, a redemo cratização institucionalizada pela Constituição de 1 988; e (iii) como marco teórico, o conjunto de novas percepções e de novas práticas, que incluem o reconhecimento de força normativa à 5 A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo jurídico abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação, que tem sido identificado pelo rótulo genérico de pós-positivismo. No conjunto de ideias ricas e heterogêneas que buscam abrigo nesse para digma em construção incluem-se o reconhecimento dos valores, a reaproximação entre o Direito e a Ética, a normatividade dos princípios, a reabilitação da razão prática e da argu mentação jurídica e a centralidade dos direitos fundamentais, edificados sobre o fundamento da dignidade humana. Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvol vimento de uma nova dogmática da interpretação constitucional, envolvendo novas categorias, como os princípios, as colisões de direitos fundamentais, a ponderação e a argumentação . A constitucionalização do Direito, por sua vez, está associada a um efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa, por todo o sistema jurídico . Os valores, fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Nesse ambiente, a Constituição passa a ser não apenas um sistema em si - com sua ordem, unidade e harmonia -, mas também um modo de olhar e interpretar todos os ramos do Direito . A constitucionalização do direito infraconstitucional não tem como sua principal marca a inclusão na Lei Maior de normas próprias de outros domínios, mas, sobretudo, a reinterpretação de seus institutos sob uma ótica constitucional6 . Para a constitucionalização do direito administrativo foi decisi va a incidência, com força normativa, dos princípios constitucio nais, não apenas os específicos desse domínio, mas igualmente os de caráter geral. Também aqui, a partir da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais, alterou-se a qualidade das relações entre Administração e administrado, com a superação ou reformulação de paradigmas tradicionais . Dentre eles, é possível destacar (i) a redefinição da idéia de supremacia do interesse público sobre o interesse privado, (ii) a vinculação do administra dor à Constituição e não apenas à lei ordinária e (iii) a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo. A esses três temas recorrentes no debate atual, Gustavo acres centa, com perspicácia, a superação do Executivo unitário pelo surgimento de uma Administração policêntrica, com ênfase no advento e expansão das autoridades administrativas inde pendentes, que passaram a ser estudadas no Brasil sob a designação de agências reguladoras . Aliás, sobre a subsistência ou não do prin cípio da supremacia do interesse público, talvez tenhamos uma divergência menor. O autor a expõe no corpo de seu trabalho . Não 6 Sobre o tema, v. Luís Roberto Barroso, Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito, in Revista de Direito Administrativo 240: 1, 2005. a tenho como especialmente relevante e não me parece próprio aproveitar esse espaço para a tréplica7• III . Encerramento Há alguns anos, quando Gustavo iniciava sua vida acadêmica, dei a ele um conselho difícil para mim. O direito constitucional, na UERJ, encontrava-se com a titularidade ocupada e as outras posi ções, quando abertos os concursos, teriam um congestionamento de pretendentes . Suas possibilidades de êxito nesses certames eram muito grandes. Mas, mesmo assim, lembrei a ele que o direi to administrativo brasileiro não tinha vivido o mesmo movimento de renovação pelo qual passara o direito constitucional após a Constituição de 1 988 . E que, portanto, aquele era um espaço que ele poderia ocupar e no qual viria a exercer liderança. Gustavo acolheu minha sugestão e passou a participar, com destaque, da construção de um direito administrativo constitucional. Com este livro notável, a profecia começa a se realizar. Cerca de dez anos atrás, os Professores Ricardo Lobo Torres, Paulo Braga Galvão e eu demos início ao Programa de Pós-gradua ção em Direito Público da UERJ. Tivemos a felicidade de contri buir para a criação de um ambiente acadêmico feito de pessoas que se admiram, se gostam e se ajudam. Com pouco dinheiro, uma dose de idealismo e critérios absolutamente republicanos de sele ção, congregamos jovens talentos vindos de todo o Brasil . A recom pensa tem sido imensa. Alguns dos grandes nomes da nova geração de juristas brasileiros passaram por aqui. Dentre eles, Daniel Sar mento, Ana Paula de Barcellos, Cláudio Pereira de Souza Neto, Jane Reis e Rogério Nascimento. Com o presente trabalho, Gustavo Binenbojm passa a figurar, com grande merecimento, no primeiro time do direito público no país . Ao identificar a crise dos paradigmas tradicionais do direito administrativo, atende a uma demanda por reflexão crítica que havia ficado represada nos últimos anos, em um domínio que custou a incorporar os efeitos da constitucionalização do Direito, da centralidade dos direitos fundamentais e da reaproximação en- 7 Meu ponto de vista se encontra no Prefácio do livro organizado por Daniel Sarmento, Interesse públicos vs. interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do inte resse público, 2005. tre o Direito e a Ética. O único problema de um livro como este é que ele deflagra o debate sobre temas relevantes e complexos, passando a impressão de que já não há mais nada a ser dito . O que é certo, no entanto, é queo direito administrativo jamais voltará a ser pensado como era até aqui. Rio de Janeiro, 1 O de março de 2006. Luís Roberto Barroso Ministro do Supremo Tribunal Federal; Professor Titular de Direito Constitucional da UERJ APRESENTAÇÃO Logo que concluí a leitura do Carnaval Tributário, de Alfredo Augusto Becker, 1 pensei comigo mesmo: o direito administrativo brasileiro precisa de um livro como este1 Entre uma ponta de inveja e outra de admiração (que Freud, afinal, diria serem faces da mes ma moeda) , recolhi-me à despretensão da minha juventude, mas guardei a intuição de que aquele seria um projeto digno de ser realizado: um livro à espera de um autor. É claro que o Carnaval traz apenas um emaranhado caótico de críticas e reflexões, numa espécie de autobiografia profissional do jurista gaúcho ( 1 989) , encontrando-se na Teoria Geral do Direito Tributário, cuja primeira edição data de 1 963, sua mais alentada proposta teórica . Nada obstante, o Carnaval Tributário repre sentou o libelo de uma geração contra as imposturas e inconsistên cias do nosso combalido direito fiscal. Anos depois, a vida me levaria a lecionar direito administrativo (sempre ao lado do direito constitucional) , o que acabou por rea cender em mim a chama por uma crítica estrutural ao arcabouço teórico da disciplina que se ensinava no Brasil. Do confronto da teoria com a prática da Administração Pública, como advogado pú blico e privado, dos debates travados com alunos e colegas de gera ção e, finalmente, após a experiência do estudo do direito público sob a tradição anglo-saxónica, em meu mestrado na Escola de Di reito da Universidade de Yale (EUA) , amadureci ideias e intui- Alfredo Augusto Becker, Carnaval Tributário, 1 989. ções, transformando-as no projeto que resultaria no presente tra balho. As ideias aqui desenvolvidas não se pretenderam afastadas do mainstream (a corrente dominante) do direito administrativo bra sileiro apenas por sê-lo . Muitas delas sequer são realmente origi nais em sua concepção, senão que foram utilizadas, com os devidos créditos, na tentativa de uma nova sistematização - esta sim -, que talvez possa exibir algum viés inovador . Tudo que aqui se en contra escrito responde apenas às perplexidades de um professor em busca da identidade de sua disciplina. A teoria do direito administrativo brasileiro sempre me pare ceu inconsistente, do ponto de vista lógico-conceitual, autoritária, do ponto de vista político-jurídico, e ineficiente, de um ponto de vista pragmático. Primeiro e, sobretudo, inconsistente. Como corroborar a versão da gênese do direito administrativo como fruto da sujeição da bu rocracia à lei e do advento do princípio da separação dos poderes, quando se sabe que os principais institutos da disciplina foram for j ados de maneira autônoma pelo Conselho de Estado francês (e não por decisão heterônoma do legislador) , órgão administrativo que congregava atribuições legislativas e judicantes, sob o controle do Poder Executivo? Não seria essa a própria antítese da ideia de um regime de separação de poderes? Como enquadrar um princípio de supremacia do interesse público sobre os interesses particulares em um ambiente reconstitucionalizado, no qual se proclama a cen tralidade, não do Estado ou da sociedade, mas do sistema de direi tos fundamentais? Como justificar a sobrevivência atávica de um conceito pré-constitucional de interesse público, diante da consti tucionalização dos interesses individuais e coletivos mais relevan tes? Como sustentar a existência de um princípio que, em sua es trutura semântica, pressupõe, não a ductibilidade, mas a prevalên cia a priori? Como ensinar que o princípio da legalidade adminis trativa se apresenta como uma vinculação positiva à lei, diante da preordenação constitucional da Administração Pública e dos cres centes espaços decisórios autônomos das autoridades administrati vas? Segundo, a tradição autoritária. Inobstante sua decantada ori gem garantística, ligada ao acontecimento liberal do Estado de di reito, é hoje reconhecida a raiz monárquica de boa parte dos insti tutos e categorias do direito administrativo. Trata-se de uma teoria 2 elaborada tendo em vista a preservação de uma lógica da autorida de, e não a construção de uma lógica cidadã. Assim se dá, por exemplo, com institutos como a discricionariedade administrativa (e sua subtração automática à apreciação dos órgãos de controle) , o poder de polícia (e o seu desenvolvimento teórico sem qualquer referência ao regime constitucional dos direitos fundamentais) e o serviço público (construído a partir de critérios que tinham em vis ta o interesse do Estado, personificador da sociedade, e não os in teresses constitucionalizados dos cidadãos) . A todas essas catego rias dava (ou pretendia dar) suporte teórico um conceito fluido e vago de interesse público, como pedra de toque de um regime jurí dico diferenciado do direito privado, que se justificava pela refe rência imediata àquilo que o Estado definia como móvel da socie dade e dos invidíduos. Terceiro, e por fim, ineficiente . Os esquemas tradicionais por meio dos quais se move o aparelho burocrático são ineficientes, em parte, devido ao baixo grau de racionalidade do regime jurídico administrativo . A ideia de um regime de prerrogativas e restrições, constitutivos da própria essência do regime administrativo, acabou por se tornar um critério per se, antes que um meio para a realiza ção de determinadas finalidades . Como definir o regime por sua forma, se esta só se justifica à vista de fins a serem promovidos? Por que o esquema de comando-e-controle subsiste como método bási co de atuação do Estado brasileiro? Seriam os custos com procedi mentos rígidos, demorados e ineficientes (licitações, por exemplo) nas mais de 5 . 7 00 administrações públicas existentes no Brasil jus tificáveis por razões de legitimidade? Seria esta a melhor maneira de conciliar legitimidade e eficiência? Por que a estrutura da Admi nistração deve ser unitária e diretamente responsiva às escolhas políticas do Chefe do Poder Executivo, quando outros interesses sociais podem recomendar um policentrismo organizacional, sob certas condições? Seriam os modelos burocráticos inglês e norte americano (que sempre reservaram um espaço decisório autônomo para autoridades independentes em determinados setores da Ad ministração) essencialmente antidemocráticos? Estas e outras perplexidades constituem a tônica do presente trabalho, servindo de fio condutor da narrativa e de elementos crí ticos a desafiar uma reconstrução teórica . Assim, na primeira parte da obra (Capítulo 1), procura-se realizar uma espécie de inventário histórico das ideias e práticas políticas que estruturaram a discipli- 3 na em sua versão européia continental, chegando-se à conclusão de que a crise de boa parte dos seus institutos é produto não apenas da passagem do tempo, mas de vícios de origem. Em seguida, identi ficam-se quatro grandes paradigmas do direito administrativo bra sileiro, em sua linhagem teórica mais tradicional, para caracterizar lhes a crise, ao que se segue a apresentação de propostas reconstru tivas. Como será dito oportunamente, o termo paradigma (tomado por empréstimo a Thomas Kuhn) é utilizado em um sentido fraco, apenas para designar um conjunto de dogmas que, durante longo período, permaneceram imunes à crítica doutrinária, funcionando qual premissas teóricas do antigo modelo. Na segunda parte (Capítulo II) , apresentam-se as premissas teóricas do trabalho. Ali, fica clara a visão de que o direito adminis trativo deve sempre encontrar no direito constitucional não apenas o seu alicerce principiológico, mas a própria lógica estruturante de seus institutos e organizações funcionais. Mostra-se que o sistema de direitos fundamentais e o princípio democrático cumprem um papel determinante tanto na estruturação e funcionamento do Es tado democráticode direito, como da própria Administração Pú blica. O neoconstitucionalismo e o fenômeno da constitucionaliza ção do direito - e do direito administrativo, inclusive - são ana lisados como processos transformativos do arcabouço teórico do direito administrativo. Na terceira parte (Capítulos III , IV, V e VI) , cada um dos ve lhos paradigmas do direito administrativo brasileiro passa, separa damente, por um processo de desconstrução, seguido de uma ten tativa de proposição de novas premissas teóricas para a disciplina. Assim, no Capítulo III , analisa-se a crise da ideia de regime jurídico administrativo, preconizando-se a passagem do paradigma da su premacia do interesse público ao paradigma do dever de proporcio nalidade. No Capítulo IV, estuda-se a crise da lei administrativa, vislumbrando-se a superação da legalidade como vinculação positi va à lei pelo princípio da juridicidade administrativa. No Capítulo V, a crise da discricionariedade administrativa é examinada, postu lando-se o abandono da velha dicotomia "ato vinculado versus ato discricionário" em prol de uma teoria de graus de vinculação à juri dicidade. Já no Capítulo VI, passa-se em revista a crise da estrutura administrativa, identificando-se a metamorfose da ideia de Execu tivo unitário em um modelo de Administração Pública policêntri- 4 ca. Por fim, no Capítulo VII, são apresentadas as conclusões gerais do trabalho . Fernando Sabino disse certa vez, numa entrevista, que seu des tino de escritor fora determinado por sua condição de leitor rebel de. Desde criança, a cada história cujo final não lhe agradava, pu nha-se a pensar - e daí a escrever - seus próprios epílogos . Assim, acreditava ele, contribuía para melhorar histórias escritas pelos maiores nomes da literatura universal. E assim se tornou escritor. Que a obra ora apresentada seja compreendida dessa maneira: como fruto da rebeldia de um leitor em relação a ideias, e não a pessoas; como produto de um desejo de melhorar o ensino e a prá tica da Administração Pública no Brasil, mas sem a pretensão de que a história aqui narrada seja a melhor. Pois que ela é apenas a melhor história que consegui contar. 5 PRIMEIRA PARTE OBJETO DA INVESTIGAÇÃO CAPÍTULO I A CRISE DOS PARADIGMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO 1.1. A outra história do direito administrativo: do pecado autori tário original à constituição de uma dogmática a serviço dos donos do poder. Narra a história oficial que o direito administrativo nasceu da subordinação do poder à lei e da correlativa definição de uma pauta de direitos individuais que passavam a vincular a Administração Pública.2 Essa noção garantística do direito administrativo, que se teria formado a partir do momento em que o poder aceita subme ter-se ao direito3 e, por via reflexa, aos direitos dos cidadãos, ali mentou o mito de uma origem milagrosa4 e a elaboração de catego- 2 V., por todos, Caio Tácito, Evolução Histórica do Direito Administrativo, in Temas de Direito Público, vol. 1, 1 997, p. 2. 3 Neste sentido, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 1 994, p. 1 48 . 4 Textualmente, esta é a expressão utilizada por Prosper Weil para explicar o surgimento do direito administrativo . V. O Direito Administrativo, 1 977, p. 7 /l O: "A própria existência de um direito administrativo é em alguma medida fruto de um milagre. O direito que rege a actividade dos particulares é imposto a estes de fora e o respeito pelos direitos e obrigações que ele comporta encon tra-se colocado sob a autoridade e a sanção de um poder exterior e superior: o do Estado. Mas causa admiração que o próprio Estado se considere ligado (vincula do) pelo direito. ( . . . ) Não esqueçamos, aliás, as lições da história: a conquista do Estado pelo direito é relativamente recente e não está ainda terminada por toda a parte. ( . . . ) Fruto de um milagre, o direito administrativo só subsiste, de resto, 9 rias jurídicas exorbitantes do direito comum, cuja justificativa teó rica seria a de melhor atender à consecução do interesse público. 5 A cada ano, repetimo-nos a nós mesmos e a nossos alunos a mesma fábula mistificadora: a de que a certidão de nascimento do direito administrativo foi a Loi de 28 do pluviose do ano VIII, edi tada em 1 800, organizando e limitando externamente a Administra ção Pública.6 Tal lei simbolizaria a superação da estrutura de poder do Antigo Regime, fundada não no direito, mas na vontade do so berano (quod regi placuit lex est) . A mesma lei que organiza a estru tura da burocracia estatal e define suas funções operaria como ins trumento de contenção do seu poder, agora subordinado à vontade heterônoma do Poder Legislativo. Dentro da lógica da separação dos poderes, ao Parlamento, como veículo de expressão da vontade geral, caberia o primado na elaboração das normas jurídicas, que não só limitariam como preordenariam a atuação dos órgãos administrativos . À Adminis tração restaria, assim, uma função meramente executiva, de cum primento mecânico da vontade já manifestada pelo legislador. Sur ge, destarte, a ideia da legalidade como vinculação positiva à lei: se aos particulares, em prestígio e valorização de sua autonomia públi ca e privada, é permitido fazer tudo aquilo que não lhes for vedado pela lei, à Administração Pública cabe agir tão-somente de acordo com o que lei prescreve ou faculta. Esta descrição romântica do fenômeno de surgimento do direito administrativo é acolhida por ninguém menos que Caio Tácito. Confira-se sua narrativa: "O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como ex pressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indivíduos como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde principia a vedação legal. O Executivo opera dentro dos limi tes traçados pelo Legislativo, sob a vigilância do Judiciário. "7 por um prodígio a cada dia renovado. ( . . . ) Para que o milagre se realize e se prolongue, devem ser preenchidas diversas condições que dependem da forma do Estado, do prestígio do direito e dos juízes, do espírito do tempo." s Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo, Curso de Direito Adminis- trativo, 1 999, p. 56/58 . 6 Guido Zanobini, Corso di Diritto Amministrativo, 1 947, vol. I, p. 3 3 . 7 Caio Tácito, Evolução Histórica do Direito Administrativo, in Temas de Direito Público, vol. I, 1 997, p. 2 . 1 0 Tal história seria esclarecedora, e até mesmo louvável, não fos se falsa. Descendo-se da superfície dos exemplos genéricos às pro fundezas dos detalhes, verifica-se que a história da origem e do desenvolvimento do direito administrativo é bem outra. E o diabo, como se sabe, está nos detalhes. A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária caracteriza erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de embotamento da realidade repetido por suces sivas gerações, constituindo aquilo que Paulo Otero denominou ilusão garantística da gênese. 8 O surgimento do direito administra tivo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do inte resse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras) , repre sentou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que a sua superação . A juridici zação embrionária da Administração Pública não logrou subordiná la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cida dãos. O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma do legislador. Antes, pelo contrário, a formu lação de novos princípios gerais e novas regras jurídicas pelo Con seil d'État, que tornaram viáveis soluçõesdiversas das que resulta riam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo a Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ati vista e insubmissa daquele órgão administrativo à vontade do Par lamento . 9 A conhecida origem pretoriana do direito administrati vo, como construção jurisprudencial (do Conselho de Estado) der rogatória do direito comum, traz em si esta contradição: a criação de um direito especial da Administração Pública resultou não da vontade geral, expressa pelo Legislativo, mas de decisão autovincu lativa do próprio Executivo. 10 8 V. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vin- culação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 27 1 . 9 Neste sentido, Pierre Delvolvé, Paradoxes du (ou paradoxes sur le) Príncipe de Séparation des Autorités Administrative et Judiciaire, in Mélanges René Cha pus - Droit Administratif, 1 992, p. 1 44 . 1 0 Vale lembrar que o sistema de contencioso administrativo francês sempre 1 1 Vale lembrar que o direito administrativo nasceu e se desenvol veu em um período marcado pela crença na completude das gran des codificações escritas, embora não exista, até hoje, uma única compilação geral de suas normas, caracterizadas, ao revés, por sua fragmentação e falta de organização sistemática. 1 1 Não à toa, à mín gua de uma sistematização escrita, o direito administrativo francês permaneceu, até período muito recente, um direito essencialmen te pretoriano, produto das construções jurisprudenciais do Conse lho de Estado . 1 2 Assim, como assinala Paulo Otero, "a idéia clássica de que a Revolução Francesa comportou a instauração do princípio da lega lidade administrativa, tornando o Executivo subordinado à vontade do Parlamento expressa através da lei, assenta num mito repetido por sucessivas gerações: a criação do direito administrativo pelo Conseil d 'État, passando a Administração Pública a pautar-se por normas diferentes daquelas que regulavam a actividade jurídico privada, não foi um produto da vontade da lei, antes se configura como uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob proposta do Conseil d 'État. " 1 3 Tal circunstância histórica subverte, a um só golpe, os dois pos tulados básicos do Estado de Direito em sua origem liberal: o prin cípio da legalidade e o princípio da separação de poderes. De fato, a atribuição da função de legislar sobre direito administrativo a um órgão da jurisdição administrativa, intestino ao Poder Executivo, não se coaduna com as noções clássicas de legalidade como submis são à vontade geral expressa na lei (Rousseau) e de partilha das funções estatais entre os poderes (Montesquieu) . Nenhum cunho garantístico dos direitos individuais se pode esperar de uma Admi nistração Pública que edita suas próprias normas jurídicas e julga soberanamente seus litígios com os administrados. reservou ao Poder Executivo a última palavra sobre a competência do Conselho de Estado, criando-se, por via indireta, uma forma suí generís de o Poder Execu tivo se substituir ao Poder Legislativo na criação do direito especial da Adminis tração Pública. Neste sentido, v. Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, Da Justiça Administrativa em Portugal - Sua Origem e Evolução, 1 994, p . 3 1 5/3 1 6. 1 1 Patrícia Baptista, Transformações do Direito Administrativo, 2003, p . 2 . 1 2 François Burdeau, Hístoire du Droít Admínistratíf, 1 995, p . 1 9. 1 3 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vincula ção Administrativa à Jurídicidade, 2003, p. 27 1 . 1 2 Chega-se, assim, à segunda contradição na gênese do direito administrativo: a criação da jurisdição administrativa. Contrarian do a noção intuitiva de que ninguém é bom juiz de si mesmo, a introdução do contencioso administrativo - e a consequente sub tração dos litígios jurídico-administrativos da alçada do Poder Judi ciário -, embora alicerçada formalmente na ideia de que "julgar a Administração ainda é administrar" (juger l 'administration c 'est encare administrer) , não teve qualquer conteúdo garantístico, mas antes se baseou na desconfiança dos revolucionários franceses con tra os tribunais judiciais, pretendendo impedir que o espírito de hostilidade existente nestes últimos contra a Revolução limitasse a ação das autoridades administrativas revolucionárias. 1 4 A invocação do princípio da separação de poderes foi um sim ples pretexto, mera figura de retórica, visando a atingir o objetivo de alargar a esfera de liberdade decisória da Administração, tornan do-a imune a qualquer controle judicial . 1 5 Aliás, o modelo de con tencioso em que a Administração julgaria a si própria não repre sentou qualquer inovação da Revolução Francesa, sendo, ao revés, uma continuidade daquele vigorante no Antigo Regime . 1 6 Tal como afirmado por Tocqueville, "nesta matéria encontraríamos a fórmu la; ao Antigo Regime pertence a idéia . " 1 7 A institucionalização de tal modelo, e sua surpreendente iden tidade com a estrutura de poder das monarquias absolutistas, reve la o quanto o direito administrativo, em seu nascedouro, era alheio a qualquer propósito garantístico. Ao contrário, seu intuito primei ro foi o de diminuir as garantias de que os cidadãos disporiam caso pudessem submeter o controle da atividade administrativa a um poder equidistante, independente e imparcial - o Poder Judiciá rio . Como corretamente assinala Vasco Manuel Dias Pereira da S ilva, "só, pouco a pouco, é que o Direito Administrativo vai dei xando de ser o direito dos privilégios especiais da Administração, 14 V., sobre o verdadeiro móvel da criação da jurisdição administrativa, André de Laubadere, Jean-Claude Venezia, Yves Gaudemet, Traité de Droit Adminis tratif, vol. 1, 1 990, p. 248. 1 5 No mesmo sentido, Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vinculação Administrativa à Jurídicidade, 2003, p. 275 . 1 6 Vasco Manuel Dias Pereira da Silva, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares - Esboço de uma teoria subjectívísta do recurso contencioso de anulação, 1 989, p. 27 . 1 7 Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, 1 989, p. 64. 1 3 para se tornar no direito regulador das relações jurídicas adminis trativas. Milagre, mesmo, é essa sua transformação de 'direito da Administração ' em Direito Administrativo. " 1 8 Em reforço ainda maior à ideia, releva destacar que, mesmo no âmbito do Conselho de Estado, desenvolveu-se uma ampla e inten sa jurisprudência sobre os limites da própria jurisdição administra tiva, seja excluindo-se certos atos da esfera de reexame - como os atos de governo e os atos de pura administração -, seja limitando se artificialmente o espectro de fundamentos do recurso conten cioso, ou ainda pelo desenvolvimento de uma estrita legitimidade processual ativa . 1 9 É já nesse período que se evidencia, como nítido propósito do contencioso administrativo, a criação de um direito processual administrativo, consagrando inúmeras regras de privilé gio em favor da Administração . O velho dogma absolutista da ver ticalidade das relações entre o soberano e seus súditos serviria para justificar, sob o manto da supremacia do interesse público sobre os interesses dos particulares, a quebra de isonomia. E nem se diga que este estatuto especial da Fazenda Pública se limitou historica mente aos primórdios do século XIX, pois, como registra José Car los Vieira de Andrade, ele chegou até o século XXI. zo É curioso notar como a separação de poderes serviu, contradi toriamente, a esse processo de imunização decisória dos órgãos do Poder Executivo. O mesmo princípio que justificara a criação do contencioso administrativo, intestino ao Executivo, será invocado para impedir que os órgãos de controle exerçam sobre os outros órgãos da Administração poderes de injunção e substituição, em princípio legítimos e até naturais entre órgãos da mesma estruturade Poder. Em outras palavras, criou-se no interior da Administra ção um contencioso que não oferecia ao administrado as mesmas garantias processuais dos tribunais judiciários, mas, estranhamen te, estava sujeito aos mesmos limites externos de atuação, como se se tratasse do próprio Poder Judiciário. Se algum sentido garantís tico norteou e inspirou o surgimento e o desenvolvimento da dog- 1 8 Vasco Manuel Dias Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Per dido, 1 998, p. 37 . 1 9 V. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vin culação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 276. 20 José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições) , 1 999, p . 50/5 1 . 1 4 mática administrativista, este foi em favor da Administração, e não dos cidadãos .2 1 Nesse contexto, as categorias básicas do direito administrativo, como a discricionariedade e sua insindicabilidade perante os órgãos contenciosos, a supremacia do interesse público e as prerrogativas jurídicas da Administração, são tributárias deste pecado original consistente no estigma da suspeita de parcialidade de um sistema normativo criado pela Administração Pública em proveito próprio, e que ainda se arroga o poder de dirimir em caráter definitivo, e em causa própria, seus litígios com os administrados. 22 Na melhor tra dição absolutista, além de propriamente administrar, os donos do poder criam o direito que lhes é aplicável e o aplicam às situações litigiosas com caráter de definitividade . Captando tal evidência, Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma1 com propriedade, que os conceitos ligados à preservação da autoridade "assomaram a tal importância estruturante que a litera tura jurídica do direito administrativo tornou-se praticamente unâ nime quanto à articulação dogmática da disciplina sobre a ideia central - magistralmente sintetizada por Umberto Allegretti - de que o interesse público é um interesse próprio da pessoa estatal, externo e contraposto aos dos cidadãos" . 23 Vale notar que a relutância dos países vinculados ao sistema de common law - seja na sua versão original inglesa, seja na sua versão híbrida norte-americana - em reconhecer autonomia didático científica ao direito administrativo e o repúdio à adoção da jurisdi ção administrativa deveram-se à tradição existente, naquelas na ções, de submissão das relações entre Administração e cidadãos às mesmas regras e aos mesmos juízes que decidiam os litígios entre particulares . Embora também lá tenham existido - e ainda exis- 2 1 Maurice Hauriou, em seu Précis Élémentaire de Droit Administratif, 1 943, p . 1 9, afirma que são as prerrogativas especiais da autoridade administrativa que funcionam como causa e medida da independência científica do direito adminis trativo. Paulo Otero, a seu turno, na obra Direito Administrativo - Relatório, 200 1 , p. 227, afirma que só por manifesta ilusão de ótica ou equívoco se poderá vislumbrar uma gênese garantística no direito administrativo - o direito admi nistrativo nasce como direito da Administração Pública e não como direito dos administrados. 22 V., neste sentido, João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Dis curso Legitimador, 1 989, p . 1 37 . 2 3 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Mutações do Direito Administrativo, 2000, p. 1 0/ l l . 1 5 tam - normas que contemplavam imunidades ao poder político (v.g. , a ideia da irresponsabilidade civil do Estado expressa na má xima the king can do no wrong, só superada em meados do século XX) , o direito administrativo anglo-saxão não se formou como uma estrutura dogmática munida de categorias a serviço do poder. 24 Cabe aqui fazer o registro deste que é o paradoxo da origem do direito administrativo nos dois grandes sistemas jurídicos do Oci dente: embora surgido em um país vinculado à tradição romano germânica, sua elaboração deu-se por construção do juiz adminis trativo - processo típico do common law; enquanto isso, nos países anglo-saxônicos, o reconhecimento da autonomia do direito admi nistrativo, já em momento avançado do século XX, ligou-se sobre tudo à legislação escrita (processo característico do sistema roma no-germânico) . Com efeito, a existência de um direito diferencia do do direito comum, consagrado por intermédio do sistema de precedentes judiciais (judge-made law) , deveria naturalmente re sultar de decisão soberana do Parlamento.25 Enquanto a tradição do direito público anglo-saxão exigia, como elemento constitutivo do próprio Estado de direito (rule of law) , que indivíduos e entes públicos fossem submetidos às mes mas leis e aos mesmos juízes ordinários - com a vedação genérica, em princípio, a tratamentos privilegiados para o Poder Público26 -, na tradição continental o direito administrativo é definido, em sua própria natureza, como uma lei essencialmente desigual, que conferia à Administração, como condição para a satisfação do inte resse geral, posição de supremacia sobre os direitos individuais . 27 24 Como se sabe, embora a prática regulatória norte-americana remonte à se gunda metade do século XIX, o direito administrativo só vem a ser reconhecido nos Estados Unidos como disciplina autônoma muito tempo depois, já no século XX. A rigor, no entanto, não há naqueles países a adoção das mesmas categorias do direito administrativo de tradição continental, sendo antes a disciplina iden tificada com o complexo normativo regulador editado por agências reguladoras independentes e agências executivas . V., sobre o tema, Breyer, Stewart, Suns tein and Spitzer, Administrative Law and Regulatory Policy - Problems, Text, and Cases, Aspen Law and Business, 2002. 25 Paul Craig, Administrative Law, 1 999, p. 32 . 26 Albert V. Dicey, An Introduction to the Study of the Law of the Constitution, original de 1 885 , 1 0ª Edição, 1 959 . 27 M. Letourneur, The Concept of Equity in French Public Law, in R. A. New man (org.) , Equity in the Worlds Legal Systems: A Comparative Study, 1 973, p . 262/263. 16 Assim se compreende a enorme fenda, denunciada por Toc queville ainda em 1 830 e elevada a mito por Albert Dicey no final do século XIX, entre as experiências administrativas européia con tinental e anglo-saxônica. Enquanto no mundo europeu continen tal pós-revolucionário, o Estado-Administração torna-se o grande protagonista da produção normativa e da estruturação da vida eco nômica e social privadas, na Inglaterra e nos Estados Unidos, ao revés, a Administração Pública permaneceu, até pelo menos o pri meiro pós-guerra, desempenhando um papel meramente executi vo, subordinada ao direito comum e sob a vigilância do Poder Judi ciário. 28 No Brasil, o modelo de administração implantado a reboque da colonização de exploração, somado ao patrimonialismo da Coroa portuguesa que se tornou nota característica da cultura política brasileira, 29 encontrou no figurino francês do direito administrativo material farto para se institucionalizar e legitimar. Como se preten de demonstrar ao longo do texto, as peculiaridades da Administra ção Pública brasileira apenas aguçaram as contradições intrínsecas que o modelo jusadministrativista europeu continental trazia já desde a sua gênese . 1 .2 . A evolução contraditória do direito administrativo: a dogmá tica administrativista no divã. A precedente revisão histórica, a respeito das origens do direito administrativo europeu continental, não importa, todavia, anuên cia à concepção marxista da história ou a admissão de alguma teoria da conspiração, arquitetada de forma deliberada pelos detentores do poder para se subtrair à esfera de controle dos cidadãos . O di reito, como os homens, vive e se define por suas próprias circuns- 28 Luca Mannori e Bernardo Sordi, Justicia e Administración, in El Estado Moderno en Europa, Maurizio Fioravanti (org.) , 2004, p. 83/84. 29 Sobre o papel do patrimonialismo na formação da cultura político-administrativa brasileira, v. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1 995 , p . 1 4 1/1 5 1 ; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, v. 2 , 1 989, especialmente o seu último capítulo, intitulado "Viagem Redonda: do patrimonialismo ao estamen to", p. 729/750. 1 7 tâncias, j amais se deixando reduzir a móveis únicos e razões uní vocas . Assim, se não é mais possível compactuar com a visão românti ca de um surgimento milagroso e pleno de boas intenções (voltadas permanentemente à proteção da cidadania e ao controle jurídico do poder) , tampouco seria lícito advogar que uma monolítica razão maquiavélica (no sentido de uma lógica de preservação do poder) esteve sempre por trás de todo o desenvolvimento do direito admi nistrativo . Mais correto é pensar a evolução histórica da disciplina como uma sucessão de impulsos contraditórios, 30 produto da ten são dialética entre a lógica da autoridade e a lógica da liberdade. Se, em sua origem, o direito administrativo se traduzia em uma normatividade marcada pelas ideias de parcialidade e desigualda de, sua evolução histórica revelou um incremento significativo da quilo que se poderia chamar de vertente garantística, caracterizada por meios e instrumentos de controle progressivo da atividade ad ministrativa pelos cidadãos.3 1 Nada obstante, como se verá a se guir, essa não foi uma tendência constante, progressiva e unidire cional, sendo antes combinada com estratégias de fuga à rigidez das formas e às restrições legais à liberdade decisória da Administra ção . Constituída pelo trabalho desses dois vetores contraditórios, a dogmática administrativista reflete esse caráter ambíguo em inú meros dos seus institutos e na fragilidade de sua estrutura teórica. Talvez o aspecto mais paradoxal dessa acidentada evolução te nha sido o que Sebastian Martín-Retortillo identificou como uma fuga do direito constitucional .32 Com efeito, embora criado sob o signo do Estado de direito, para solucionar os conflitos entre auto ridade (poder) e liberdade (direitos individuais) , o direito adminis trativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico, um pro cesso de descolamento do direito constitucional. A própria descon tinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para que o direito administrativo se nutrisse 30 Paulo Otero, Direito Administrativo - Relatório, 2001 , p. 229. 3 1 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vincula ção Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 282 . 32 Sebastian Martín-Retortillo Baquer, El Derecho Civil en la Genesis del De recho Administrativo y de sus Instituciones, 1 996, p . 2 1 5 . 1 8 de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se de certa forma alheio às sucessivas mutações constitucionais . Assim, v.g. , uma das categorias básicas do direito administrati vo - a multifária noção de interesse público - de origem pré-cons titucional, resiste em alguns países até os dias de hoje completa mente alheia à juridicização de princípios e objetivos do Estado e da coletividade, operada pela Constituição. Mesmo em nações que adotaram o modelo de constituição dirigente - como Portugal e Brasil -, a doutrina administrativista permaneceu oferecendo as mais diversas conceituações de interesse público, quase todas sem qualquer referência às prescrições de suas respectivas Leis Funda mentais . No mais das vezes, o discurso da autonomia científica do direito administrativo serviu de pretexto para liberar os adminis tradores públicos da normatividade constitucional. A mesma reflexão pode ser feita em relação à discricionarieda de administrativa. Durante muito tempo - sem que isso provo casse maior polêmica - a discricionariedade era definida como uma margem de liberdade decisória dos gestores públicos, sem qualquer remissão ou alusão aos princípios e regras constitucionais . Vale lembrar que a primeira evolução no sentido do controle judi cial dos atos (ditos) discricionários - com o surgimento de teorias como as do desvio de poder e dos motivos determinantes - partiu de elementos vinculados à lei, e não à Constituição, embora diver sos Estados europeus à época já tivessem sido constitucionalizados. Aliás, a discricionariedade administrativa representou, tam bém, um movimento contraditório do direito administrativo em relação à própria legalidade, sobretudo a partir de quando esta pas sa a ser entendida como vinculação positiva à lei. De fato, no con texto de uma teoria que pretendia, em essência, a submissão inte gral da atividade administrativa à vontade do legislador, a discricio nariedade pode ser vista como uma insubmissão ou, pelo menos, uma não-submissão. Todavia, contradição mais contundente que a mera existência dos atos discricionários é a constatação de que es tes representam a grande maioria dos atos administrativos , dada a mutiplicidade de situações que reclamam a atuação do Poder Pú blico . Outro impulso contraditório do direito administrativo é aquilo que Maria João Estorninho chamou, inspirada na doutrina alemã, 19 de uma fuga para o direito privado (Flucht in das Privatrecht) . 33 Constituído, justamente, por um conjunto de adaptações e recria ções de institutos do direito civil, o regime jurídico administrativo, desde pelo menos o advento do Estado de bem-estar, passou a fa zer um curioso caminho de volta. Se o regime administrativo se caracteriza por uma combinação de prerrogativas e restrições, a fuga para o direito privado permite que as administrações centrais e ou diretas) conservem suas prerrogativas 1 despindo-se das restri ções por meio da constituição de entidades administrativas com personalidade de direito privado. Mas não só isso. Esta privatização da atividade administrativa tem se dado por variadas formas e em diferentes setores . A emer gência do gerencialismo procura aplicar técnicas de organização e gestão empresariais privadas à Administração Pública. A ideia de consensualidade tem cada vez mais permeado as relações entre ad ministrados e Administração. A intervenção direta do Estado na economia tem sido substituída por parcerias com a iniciativa priva da, pelas quais empresas não-estatais passam a explorar serviços públicos e atividades econômicas antes sujeitas a monopólio esta tal. O Estado prestador é agora sucedido por um Estado eminente mente regulador. Assiste-se, assim, à emergência de filhotes híbridos da vetusta dicotomia entre a gestão pública e a gestão privada: a atividade de gestão pública privatizada (regime administrativo flexibilizado) e a atividade de gestão privada publicizada ou administrativizada (regime privado altamente regulado) . Essa hibridez de regimes ju rídicos, caracterizada pela interpenetração entre as esferas pública e privada, representa um dos elementos da crise de identidade do direito administrativo. 34 Por fim, resta uma alusão à problemática das transformações recentes (em países da Europa continental e no Brasil) no modelo de organização administrativa. O surgimento e a proliferação das chamadas autoridades administrativas independentes subverteu a 33 Maria João Estorninho, A Fuga para o Direito Privado. Contributo Para o Estudo daActividade de Direito Privado da Administração Pública, 1 996. Sobre o tema, v. também Giuseppe di Gaspare, Il Potere nel Diritto Pubblico, 1 992, p. 385 ; Santiago González-Varas Ibafiez, El Derecho Administrativo Privado, 1 996. 34 Eduardo Paz Ferreira, Lições de Direito da Economia, 200 1 , p . 43 . 20 ideia de unidade da Administração Pública, substituindo-a pela no ção de uma Administração policêntrica. 35 O sistema político-administrativo dominante no continente eu ropeu e no Brasil desde o século XIX concentra no governo (presi dente ou primeiro-ministro e seu gabinete) , enquanto órgão supe rior da Administração Pública, poderes de intervenção intra-admi nistrativa sobre o conjunto amplo de órgãose entidades sob sua chefia, respondendo politicamente perante o parlamento ou dire tamente ao povo, conforme o sistema de governo, pelas ações e omissões administrativas, na medida em que se encontra habilitado a dirigir, orientar, supervisionar ou controlar as respectivas estrutu ras organizativas . 36 Esse modelo, que encontra similar no constitucionalismo brasi leiro, 37 acabou erigindo a unidade administrativa em verdadeiro instrumento do princípio democrático e em fator de legitimação da Administração Pública .38 A responsabilidade política do chefe de governo junto ao povo (em sistemas presidencialistas) ou ao parla mento (em sistemas parlamentaristas) , num regime em que ele é também o chefe supremo da Administração, convolou-se em con dição necessária da controlabilidade ( accountability) social da atuação da burocracia. Pode-se mesmo dizer que este era o contra ponto democrático da chamada crise da lei e da notável expansão das margens decisórias da Administração na definição das políticas públicas . Tal sistema entra em crise com a importação, para diversos paí ses da Europa continental e para o Brasil, da figura da independent regulatory agency (agência reguladora independente) . Esse tipo de estrutura institucional só se proliferaria na Europa ocidental a par- 35 Sobre o tema, v. Capítulo VI, infra. 36 Paulo Otero, O Poder de Substituição em Direito Administrativo: Enqua dramento Dogmático-Constitucional, vol. II, p. 792 . 37 A Constituição brasileira de 1 988, em seu art. 84, II, confere ao Presidente da República, com o auxílio dos Ministros de Estado, o poder de direção superior sobre a Administração Pública federal. 38 Sobre as relações entre a unidade da Administração Pública e o princípio democrático, v. Rudolf Mõgele, Die Eínheit der Verwaltungs als Rechtsproblem, 1 987 , p. 545 apud Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sen tido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 3 1 6 . 2 1 tir dos anos setenta e oitenta do século XX, sob o influxo dos pro j etos de governança comunitária promovidos pela União Européia, com o nome de autoridade administrativa independente, enquanto ao Brasil só chegaria nos anos noventa, a reboque dos processos de privatização e reforma do Estado. As autoridades ou agências independentes quebraram o vínculo de unidade no interior da Administração Pública, eis que a sua ati vidade passou a situar-se em esfera jurídica externa à da responsa bilidade política do governo. Caracterizadas por um grau reforçado da autonomia política de seus dirigentes em relação à chefia da Administração central, as autoridades independentes rompem o modelo tradicional de recondução direta de todas as ações adminis trativas ao governo (decorrente da unidade da Administração) . Passa-se, assim, de um desenho piramidal para uma configuração policêntrica. 39 A não-submissão das autoridades independentes à linha hierár quica da chefia da Administração tem sido normalmente justifica da pela necessidade de dotar a regulação de alguns setores da eco nomia e da vida social de maior neutralidade, profissionalismo e qualificação técnica, objetivo que não se conseguiu atingir em um modelo unitário, onde a atividade administrativa acabava por tor nar-se diretamente responsiva à lógica político-eleitoral . Todavia, ao avanço da tecnocracia sobre espaços tradicionalmente ocupados pela política corresponde um risco de deslegitimação das estrutu ras estatais de poder.40 lnobstante suas possíveis justificativas teóricas e pragmáticas, fato é que as autoridades administrativas independentes repre sentam mais um elemento problemático no acidentado e contradi tório percurso de evolução do direito administrativo . Tais contradições, construídas e reproduzidas em momentos históricos distintos pelo mundo afora, convergem agora, no Brasil, para um momento de inflexão teórica que se poderia caracterizar como uma crise dos paradigmas do direito administrativo brasi leiro. 39 Francesco Caringella, Corso di Diritto Amministrativo, 200 1 , vol. 1, p . 6 1 9 e ss. 40 Sobre o tema, v. Capítulo VI, infra. 22 1 .3. Delimitando o objeto da investigação: a crise dos paradigmas do direito administrativo brasileiro. Como se pretendeu demonstrar acima, a crise dos paradigmas do direito administrativo não se constitui apenas do novo, mas exi be também, em larga medida, alguns vícios de origem. Não obstan te, as transformações por que passou o Estado moderno, desde a ascensão do Estado providência até o seu colapso, verificado nas últimas décadas do século XX, assim como a emergência do Estado democrático de direito, agravaram o descompasso entre as velhas categorias e as reais necessidades e expectativas das sociedades contemporâneas em relação à Administração Pública. Captando a evidência, assim Marçal Justen Filho sintetiza a aventada crise : 110corre que o instrumental teórico do direito administrativo se reporta ao século XIX. Assim se passa com os conceitos de Estado de Direito, princípio da legalidade, discricionariedade adminis trativa. A fundamentação filosófica do direito administrativo se relaciona com a disputa entre DUGUIT e HAURIOU, ocorrida nos primeiros decênios do século XX. A organização do aparato administrativo se modela nas concepções napoleônicas, que tradu zem uma rígida hierarquia de feição militar. (. . .) O conteúdo e as interpretações do direito administrativo permanecem vinculados e referidos a uma realidade sociopolítica que há muito deixou de existir. O instrumental do direito administrativo é, na sua essên cia, o mesmo de um século atrás. "41 Nesta toada, é possível identificar quatro paradigmas clássicos do direito administrativo que fizeram carreira no Brasil e que se encontram em xeque na atualidade, diante de transformações de correntes da nova configuração do Estado democrático de direito: 1) o dito princípio da supremacia do interesse público sobre o in teresse privado, que serviria de fundamento e fator de legitimação para todo o conjunto de privilégios de natureza material e proces sual que constituem o cerne do regime jurídico-administrativo;42 41 Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, 2005, p. 1 3 . 42 Neste sentido, v. Celso Antônio Bandeira de Melo, O Conteúdo do Regime Jurídico-Administrativo e seu Valor Metodológico, Revista de Direito Público, V�. 2, 1 967, p . 45/47. 23 II) a legalidade administrativa como vinculação positiva à lei, tra duzida numa suposta submissão total do agir administrativo à vontade previamente manifestada pelo Poder Legislativo. Tal pa radigma costuma ser sintetizado na negação formal de qualquer vontade autônoma aos órgãos administrativos, que só estariam au torizados a agir de acordo com o que a lei rigidamente prescreves se ou facultasse;43 III) a intangibilidade do mérito administrativo, consistente na in controlabilidade das escolhas discricionárias da Administração Pú blica, seja pelos órgãos do contencioso administrativo, seja pelo Poder Judiciário (em países, como o Brasil, que adotam o sistema de jurisdição una) , seja pelos cidadãos, através de mecanismos de participação direta na gestão da máquina administrativa;44 IV) a ideia de um Poder Executivo unitário, fundada em relações de subordinação hierárquica (formal ou política) entre a burocra cia e os órgãos de cúpula do governo (como os Ministérios e a Presidência da República) . Na tradição do constitucionalismo bra sileiro, a fórmula da Administração unitária é sintetizada, como no atual art. 84, inciso II, da Constituição de 1 988, na competência do Chefe do Executivo para exercer a direção superior da Admi nistração, com o auxílio dos Ministros de Estado. Como agente condutor básico da superação de tais categorias jurídicas, erige-se hodiernamente a ideia de constitucionalização do direito administrativo como alternativa ao déficit teórico apon tado nos itens anteriores,
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