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RESUMO DO LIVRO: UMA TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO Gustavo Binenbomj É professor adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Professor Emérito da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e de cursos de pós graduação da Fundação Getúlio Vargas. É Doutor e Mestre em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Master of Laws (LL.M) pela Faculdade de direito da Universidade de Yale, EUA. RESUMO O intuito desse resumo é trazer as opiniões e os ensinamentos do autor sobre a disciplina do Direito Administrativo. O autor coloca de uma maneira emblemática e pessoal observações, debates e seu ponto de vista diversos paradigmas do direito público, Gustavo Binenbojm descreve diversos institutos jurídicos, bem como sua mutação através dos anos. O autor contesta a experiência jurídica contemporânea, demonstrando o pecado original da gênese do direito administrativo e a dogmática a serviço dos donos do poder. Questiona, como afirmado pela geração anterior de administrativistas, o valor do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. O livro trata de outras questões teóricas: da legalidade administrativa, da dicotomia vinculação x discricionariedade e da superação da Administração unitária. Nele são retratados a importância dos direitos fundamentais no exercício da função administrativa e a democracia como elementos estruturantes do estado democrático de direito. O fio condutor da obra é o fenômeno da constitucionalização do direito, a centralidade dos direitos fundamentais e a democracia, servindo como premissas teóricas para as mudanças de paradigmas propostas. PALAVRAS CHAVE: Direto Empresarial. Fundamentais. Constitucionalização. INTRODUÇÃO A bela obra de Binenbomj, busca um entendimento e uma o rompimento com diversos paradigmas sedimentados na dogmática jurídica, que são por diversas vezes costumeiros para os alunos da graduação de cursos de Direito por todo o país. O autor desconstrói diversos valores preservados como absolutos pelos administrativistas, se tornando um marco para os amantes do Direito Administrativo. CAPÍTULO I – A CRISE DOS PARADIGMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO Narra a história oficial que o direito administrativo nasceu da subordinação do poder à lei e da correlativa definição de uma pauta de direitos individuais que passavam a vincular a Administração Pública. Essa noção garantística do direito administrativo, que se teria formado a partir do momento em que o poder aceita submeter-se ao direito e, por via reflexa, aos direitos dos cidadãos alimentou o mito de uma origem milagrosa e a elaboração de categorias jurídicas exorbitantes do direito comum, cuja justificativa teórica seria a de melhor atender à consecução do interesse público. A invocação do princípio da separação de poderes foi um simples pretexto, mera figura de retórica, visando a atingir o objetivo de alargar a esfera de liberdade decisória da Administração, tornando-a imune a qualquer controle judicial. A instituição de tal modelo, e a sua surpreendente identidade com a estrutura de poder das monarquias absolutistas, revela o quanto o direito administrativo, em seu nascedouro, era alheio a qualquer propósito garantístico. O velho dogma absolutista da verticalidade das relações entre o soberano e seus súditos serviria parajustificar, sob o manto da supremacia do interesse público sobre os interesses dos particulares, a quebra de isonomia. E curioso notar como a separação de poderes serviu, contraditoriamente, a esse processo de imunização decisória dos órgãos do Poder Executivo. O mesmo princípio que justificara a criação do contencioso administrativo, intestino ao Executivo, será invocado para impedir que os órgãos de controle exerçam sobre os outros órgãos da Administração poderes de injunção e substituição, em princípio legítimos e até naturais entre órgãos da mesma estrutura de Poder. Nesse contexto, as categorias básicas do direito administrativo, como a discricionariedade e sua insindicabilidade perante os órgãos contenciosos, a supremacia do interesse público e as prerrogativasjurídicas da Administração, são tributárias deste pecado original consistente no estigma da suspeita de parcialidade de um sistema normativo criado pela Administração Pública em proveito próprio, e que ainda se arroga o poder de dirimir em caráter definitivo, e em causa própria, seus litígios com os administrados. Na melhor tradição absolutista, além de propriamente administrar, os donos do poder criam o direito que lhes é aplicável e o aplicam às situações litigiosas com caráter de definitividade. Captando tal evidência, Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma, com propriedade, que os conceitos ligados à preservação da autoridade "assomaram a tal importância estruturante que a literaturajurídica do direito administrativo tornou-se praticamente unânime quanto à articulação dogmática da disciplina sobre a ideia central - magistralmente sintetizada por Umberto Allegretti - de que o interesse público é um interesse próprio da pessoa estatal, externo e contraposto aos dos cidadãos". Vale notar que a relutância dos países vinculados ao sistema de common law- seja na sua versão original inglesa, seja na sua versão híbrida norte-americana - em reconhecer autonomia didático científica ao direito administrativo e o repúdio à adoção da jurisdição administrativa deveram-se à tradição existente, naquelas nações, de submissão das relações entre Administração e cidadãos às mesmas regras e aos mesmos juízes que decidiam os litígios entre particulares. Assim se compreende a enorme fenda, denunciada por Toc-queville ainda em 1830 e elevada a mito por AibertDicey no final do século XIX entre as experiencias administrativas europeia continental e anglo-saxônica. Enquanto no mundo europeu continental, pós revolucionário, o Estado-Administração torna-se ogrande protagonista da produção normativa e da estruturação da vida econômica e social privadas, na Inglaterra e nos Estados Unidos, aorevés, a Administração Pública permaneceu, até pelo menos o primeiro pós-guerra desempenhando um papel meramente executivo subordinada ao direito comum e sob a vigilância do Poder Judiciário. No Brasil, o modelo de administração implantado a reboque dacolonização de exploração, somado ao patrimonialismo da coroa portuguesa que se tornou nota característica da cultura política brasileira, encontrou no figurino francês do direito administrativomaterial farto para se institucionalizar e legitimar. Como se pretendedemonstrar ao longo do texto, as peculiaridades da Administração Pública brasileira apenas aguçaram as contradições intrínseca que o modelo jus administrativista europeu continental trazia jádesde a sua gênese. A precedente revisão histórica, a respeito das origens do direito administrativo europeu continental, não importa, todavia, anuência à concepção marxista da história ou a admissão de alguma teoria da conspiração, arquitetada de forma deliberada pelos detentores do poder para se subtrair à esfera de controle dos cidadãos. Assim, se não é mais possível compactuar com a visão romântica de um surgimento milagroso e pleno de boas intenções (voltadas permanentemente à proteção da cidadania e ao controle jurídico do poder), tampouco seria lícito advogar que uma monolítica razão maquiavélica (no sentido de uma lógica de preservação do poder) esteve sempre por trás de todo o desenvolvimento do direito administrativo. Mais correto é pensar a evolução histórica da disciplina como uma sucessão de impulsos contraditórios, produto da tensão dialética entre a lógica da autoridade e a lógica da liberdade. Talvez o aspecto mais paradoxal dessa acidentada evolução tenha sido o que Sebastian Martín Retortilloidentificou como uma fuga do direito constitucional. Com efeito, embora criado sob o signo do Estado de direito, para solucionar os conflitos entre autoridade (poder) e liberdade (direitos individuais), o direito administrativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico, um processo de descolamento do direito constitucional. A própria descontinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para que o direito administrativo se nutrisse de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se de certa forma alheio às sucessivas mutações constitucionais. A mesma reflexão pode ser feita em relação à discricionariedade administrativa. Durante muito tempo - sem que isso provocasse maior polêmica - a discricionariedade era definida como uma margem de liberdade decisória dos gestores públicos, sem qualquer remissão ou alusão aos princípios e regras constitucionais. Vale lembrar que a primeira evolução no sentido do controle judicial dos atos (ditos) discricionários -com o surgimento de teorias como as do desvio de poder e dos motivos determinantes – partiu de elementos vinculados à lei, e não à Constituição, embora diversos Estados europeus à época já tivessem sido constitucionalizá-los. O sistema político-administrativo dominante no continente europeu e no Brasil desde o século XIX concentra no governo (presidente ou primeiro-ministro e seu gabinete), enquanto órgão superiorda Administração Pública, poderes de intervenção intra- administrativa sobre o conjunto amplo de órgãos e entidades sob sua chefia, respondendo politicamente perante o parlamento ou diretamente ao povo, conforme o sistema de governo, pelas ações e omissões administrativas, na medida em que se encontra habilitado a dirigir, orientar, supervisionar ou controlar as respectivas estruturas organizacionais. Comose pretendeu demonstrar acima, a crise dos paradigmasdo direito administrativo não se constitui apenas do novo, mas exibetambém, em larga medida, alguns vícios de origem. Na tarefa de desconstrução dos velhos paradigmas e proposição de novos, a tessitura constitucional assume papel condutor determinante, funcionando como diretriz normativa legitimadora das novas categorias. A premissa básica a ser assumida é a de que as feições jurídicas da Administração Pública- e, a fortiori, a disciplina instrumental, estrutural e finalística da sua atuação estão alicerçadas na própria estrutura da Constituição, entendida em sua dimensão material de estatuto básico do sistema de direitos fundamentais e da democracia. Cumpre, entretanto, antes da apresentação da alvitrada mudança dos paradigmas do direito administrativo brasileiro- e para evitar discussões meramente semânticas- esclarecer em que sentido a palavra paradigma será empregada ao longo do texto. A chamada Reforma do Estado, implementada no Brasil a partir de meados da última década do século passado, deixou como legado institucional para o país urna miríade de novas autoridades administrativasdotadas de elevado grau de autonomia em relação ao Poder Executivo, denominadas, à moda anglo-saxônica, agências reguladoras independentes. Tais estruturas, assumindo embora a surrada roupagem autárquica, foram erigidas sobre um conjunto de mecanismos institucionais de garantia que lhes confere papel e posição inéditos na história da Administração Pública brasileira. Na lógica do Plano Diretor de Reforma do Estado (PORE), de 1995, as agências independentes seriam instrumentos essenciais para dissolver os anéis burocráticos dos Ministérios e subtrair a regulação de setores estratégicos da economia do âmbito das escolhas políticas do Presidente da República. De um ponto de vista pragmático, essa pretensa despolitização tinha por objetivo criar um ambiente regulatório não diretamente responsivo à lógica político-eleitoral, mas pautado por uma gestão profissional, técnica e imparcial. Como se sabe, o modelo regulatório brasileiro foi adotado no bojo de um amplo de processo de privatizações e desestatizações, para o qual a chamada reforma do Estado se constituía em requisitoessencial. É que a atração do setor privado, notadamente o capital internacional, para o investimento nas atividades econômicas de interesse coletivo e serviços públicos objeto do programa de privatizações e desestatizações estava condicionada à garantia de estabilidade e previsibilidade das regras do jogo nas relações dos investidores com o Poder Público. Na verdade, mais do que um requisito, o chamado compromisso regulatório (regulatory commitment) era, na prática, uma exigência do mercado para a captação de investimentos. Em países cuja história recente foi marcada por movimentos nacionalistas autoritários (de esquerda e de direita), o risco de expropriação e de ruptura dos contratos é sempre um fantasma que assusta ou espanta os investidores estrangeiros. Assim, a implantação de um modelo que subtraísse o marco regulatório do processo político-eleitoral se erigiuem verdadeira tour de force da reforma do Estado. Daí a ideia dablindagem institucional de um modelo que resistisse até umavitória da esquerda em eleição futura. Para tanto, foi importada para o Brasil a figura da independente regulatory agency, existente nos Estados Unidos desde as últimasdécadas do século XIX (1887) e que atingiria seu apogeu durante o New Deal. Tal figura institucional só se proliferaria na Europaocidental a partir das décadas de setenta e oitenta do século XX, sob o influxo transformador dos projetos de governança comunitáriatransnacional promovidos pela União Européia, com o nome deautoridade administrativa independente. As autoridades independentes quebram o vínculo de unidadeno interior da Administração Pública, eis que a sua atividade passoua situar-se em esfera jurídica externa à da responsabilidade políticado governo. Caracterizadas por um grau reforçado da autonomiapolítica de seus dirigentes em relação à chefia da administraçãocentral, as autoridades independentes rompem o modelo tradicionalde recondução direta de todas as ações administrativas aogoverno (decorrente da unidade da Administração). Passa-se, assim, de um desenho piramidal para uma configuração policêntrica. Na verdade, a regulação independente enseja inúmeras e relevantes questões nos campos do direito e da política, como a revisãodos fundamentos legitimadores do poder, a redefinição do esquemaclássico de articulação entre os poderes do Estado, o avanço datecnocracia sobre a dialética política e a progressiva submissão dodireito às exigências da economia. CAPÍTULO II – DIREITOS FUNDAMENTAIS E DEMOCRACIA COMO FUNDAMENTOS ESTRUTURANTES DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO. O NEOCONSTITUCIONALISMO E A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO ADMINISTRATIVO As ideias de direitos fundamentais e democracia representam asduas maiores conquistas da moralidade política em todos os tempos. Não à toa, representando a expressão jurídico-política de valores basilaresda civilização ocidental, como liberdade, igualdade e segurança, direitos fundamentais e democracia apresentam-se, simultaneamente, como fundamentos de legitimidade e elementos estruturantesdo Estado democrático de direito. Assim, toda a discussão sobreo que é, para que serve e qual a origem da autoridade do Estado e dodireito convergem, na atualidade, para as relações entre a teoria dos direitosfundamentais e a teoria democrática. A democracia, o seu turno, consiste em um projeto moral deautogoverno coletivo, que pressupõe cidadãos que sejam não apenasos destinatários, mas também os autores das normas gerais deconduta e das estruturas jurídico-políticas do Estado. Em um certosentido, a democracia representa a projeção política da autonomiapública e privada dos cidadãos, alicerçada em um conjunto básicode direitos fundamentais. Aprópria regra da maioria só é moralmentejustificável em um contexto no qual os membros da comunidadesão capacitados como agentes morais emancipados e tratadoscom igual respeito e consideração. Seu fundamento axiológicoé o valor igualdade, transubstanciado juridicamente no princípio daisonomia, do qual se origina o próprio princípio da maioria comotécnica de deliberação coletiva. As relações entre direitos do homem e democracia são explicadasde modo convergente pela filosofia política e pela teoria constitucionalcontemporâneas. Os direitos e liberdades fundamentais têm, segundo Rawls, caráterinalienável e um status especial em relação aos demais valorespolíticos. Tais liberdades devem ser ajustadas de modo a formarum sistema coerente; a prioridade de tal sistema implica, na prática,que uma liberdade fundamental só pode ser limitada ou negadaem favor de uma outra ou de outras liberdades fundamentais nunca por motivos de bem-estar geral ou de valores perfeccionistasNa melhor tradição liberal e kantiana, os direitos fundamentaissão associados ao valor liberdade no sentido de autodeterminaçãodo indivíduo, imune de qualquer constrição estatal (liberdade negativa). O fato de que os cidadãos têm o direito de adotar urna concepçãoindividual acerca do bem não significa, entretanto, que nãosejam capazes de endossar urna concepção política de justiça. Colocandoem prática o "uso público da razão", os membros de urnasociedade liberal tornam-se capazes de compartilhar determinadosvalores políticos básicos, implícitos na cultura política democrática, em relação aos quais não há divergência possível. Daí tais valoresserem inscritos na Constituição, situando-se acima das disputaspolíticas baseadas no princípio majoritário. Assim, a Constituição e seu sistema de direitos fundamentaisincorporam princípios morais, com os quais a legislação infraconstitucionale as decisões judiciais devem ser compatíveis. Daí advogar Dworkin uma leitura moral da Constituição, "que coloque amoralidade política no coração do direito constitucional." Talconcepção pressupõe que o aplicador do Direito assuma uma posturaativa e construtiva, caracterizada pelo esforço de interpretar osistema de princípios como um todo coerente e harmônico dotadode integridade. Deste modo, uma democracia só pode ser verdadeiramente considerada o governo segundo a vontade do povo se os cidadãossão tratados como agentes morais autônomos, tratados com igualrespeito e consideração. As "condições democráticas" são, assim, os direitos fundamentais, reconhecidos pela comunidade políticasob a forma de princípios, sem os quais não há cidadania em sentidopleno, nem verdadeiro processo político deliberativo. Os direitosfundamentais são, portanto, uma exigência democrática antesque uma limitação à democracia. Em suma: o ideal democrático deautogoverno (governo pelo povo) é satisfeito quando o princípio damaioria é respeitado; nada obstante, o princípio majoritário nãoassegura o governo pelo povo senão quando todos os membros dacomunidade são concebidos e igualmente respeitados como agentesmorais independentes. Uma outra importante vertente jus filosófica de fundamentação dos direitos fundamentais e da democracia, também na linhapós-positivista, é fundada na teoria do discurso e no procedimentalismo ético. Apostando embora na razão prática e no caráter intersubjetivoe dialógico da racionalidade, esta linha de pensamentoquetem em Jürgen Habermas o seu mais eloqüente e profícuo formulador - descrê na possibilidade de consensos morais materiaisacerca de qual deve ser o conteúdo justo do direito. Numa organização didática - e não cronológica-, os direitossurgem grupados da seguinte forma: (l) direitos fundamentaisque resultam da configuração politicamente autônoma do direitoà maior medida possível de iguais liberdades subjetivas deação; esses direitos exigem como correlatos necessários; (2) direitosfundamentais que resultam da configuração politicamente autônomado status de um membro numa associação voluntária deparceiros do direito; (3) direitos fundamentais que resultam imediatamenteda possibilidade de postulação judicial de direitos e daconfiguração politicamente autônoma da proteção jurídica individual. Por fim, surge uma quinta categoria de direitos, que proporcionamas condições materiais para o exercício dos direitos anteriores: (5) direitos fundamentais a condições de vida garantidas social,técnica e ecologicamente, na medida em que isso for necessáriopara um aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitosmencionados de (l) até (4). A Constituição é o instrumento por meio do qual os sistemasdemocrático e de direitos fundamentais se institucionalizam noâmbito do Estado. O processo por meio do qual tais sistemas espraiamseus efeitos conformadores por toda a ordem jurídico- política, condicionando e influenciando os seus diversos institutos eestruturas, tem sido chamado de constitucionalização do direito ou neoconstitucionalismo. Nos países adeptos do sistema jurídico romano-germânico, estaconcepção correspondeu ao período do chamado "legicentrismo", que tinha como pressuposto político-filosófico a visão rousseauniana da lei como encarnação da vontade geral do povo, aliada a umaleitura ortodoxa do princípio da separação de poderes, inspiradaem Montesquieu, pela qual o juiz nada mais seria do que "a boca que pronuncia as palavras da lei." Nessa época, as leis eram aindaescassas, e o centro do ordenamento jurídico não era ocupadopela Constituição, mas pelo Código Civil- considerado verdadeiraConstituição das relações privadas. Paralelamente a esse fenômeno, a jurisdição constitucional foiseampliando e fortalecendo em todo o mundo ao longo do século XX, sobretudo após a traumática experiência do nazi-fascismo. Abarbárie perpetrada pelas potências do Eixo com o beneplácito do legislador revelou, com eloqüência, a imperiosa necessidade de fixaçãode limites jurídicos para a ação de todos os poderes públicos, inclusive os parlamentos. E a expansão da jurisdição constitucionalpermitiu que se fosse consolidando uma ideia que hoje parece atodos absolutamente trivial: a de que Constituição, apesar das suascaracterísticas singulares, é, antes de tudo, norma jurídica, dotadade eficácia e aplicabilidade direta. O reconhecimento da força normativada Constituição representou seguramente uma verdadeira evolução copernicana na ciência jurídica moderna, com profundasimplicações em todos os ramos do direito. Mas esse panorama não ficaria completo se não incluísse outrofenômeno igualmente relevante: a expansão das tarefas das Constituiçõescontemporâneas. No passado, as constituições limitavam-sea tratar, geralmente de forma sintética, da estrutura básica do Estado e da consagração de direitos individuais e políticos. Já noconstitucionalismo contemporâneo, que se edifica a partir do adventodo Estado Social, e que tem como marcos iniciais as Constituições do México, de 1917, e de Weimar, de 1919, as leisfundamentais passam a imiscuir-se em novas áreas, não só instituindo direitos de caráter prestacional, que reclamam atuações positivasdos poderes públicos e não mais meras abstenções, comotambém disciplinando assuntos sobre os quais elas antes silenciavam,como ordem econômica, relações familiares, cultura, etc. No Brasil, esse processo de constitucionalização do direito intensifica-se a partir da promulgação da Carta de 1988. Isto porque, apesar da existência de mecanismos de jurisdição constitucional no país desde a primeira Constituição republicana de 1891, vicejava antes entre nós, de forma mais ou menos velada, a percepção deque as constituições "não eram para valer"; de que não passavam de retórica pomposa; e, por motivos que não se teria como exploraraqui, a realidade empírica permanecia quase completamente à margem da incidência das ordensconstitucionais, que, num cortejo penoso, se sucediam no tempo. Naquele contexto inglório, diantede constituições francamente inefetivas, que figuravam quaisadornos da ordem jurídica, mantidas como que para emprestar umsuposto verniz de legitimidade ao Estado, não fazia muito sentidofalar em constitucionalização do direito. Mas a Carta de 1988 pretendeu romper com este ciclo. Fruto de um movimento de democratização do país, a Constituição de1988 inaugurou uma nova fase do constitucionalismo brasileiropautada pela preocupação com os direitos humanos e com a efetivação das promessas do texto magno. Pode-se hoje dizer que, pelaprimeira vez na nossa história, a Constituição está se incorporando de fato ao dia-a-dia dos tribunais, sendo invocada com grande freqüência pelas partes e aplicada diretamente pelos juízes de todas asinstâncias na resolução de litígios públicos ou privados. Em quepese o persistente déficit de efetividade constitucional em certasquestões - sobretudo as correlacionadas à promoção da justiçasocial - é fato que a Constituição passou a ser encarada, tambémpor aqui, como autêntica norma. E, neste sentido, cada vez mais adoutrina e a jurisprudência, nas diversas áreas do direito, têm encontrado, nos valores e princípios constitucionais - e a Carta de1988 é generosíssima ao proclamá-los o norte para o equacionamentode problemas e solução de controvérsias jurídicas, das mais prosaicas às mais complexas. Portanto, trata-se também de uma técnica de preservação do próprio ordenamento, utilizada para evitar a exclusão desnecessáriade atos normativos que a ele já se incorporaram. Como princípio hermenêutico, a interpretação conforme à Constituição pode e deve ser empregada não só por todos os órgãosdo Poder Judiciário, na prestação da jurisdição, como também pelasdemais autoridades públicas, sempre que lhes incumbir a tarefade aplicar normas jurídicas. Isto porque, não apenas o Judiciário, mas também todos os demais órgãos do Estado encontram-se vinculadosnegativa e positivamente à Constituição, cabendo-lhesnão só o dever de abster-se de violá-la, mas também a obrigação de, na medida das respectivas possibilidades e competências, implementarseus comandos e concretizar seus valores. A passagem da Constituição para o centro do ordenamento jurídicorepresenta a grande força motriz da mudança de paradigmasdo direito administrativo na atualidade. A supremacia da Lei Maior propicia a impregnação da atividade administrativa pelos princípiose regras naquela previstos, ensejando uma releitura dos institutos eestruturas da disciplina pela ótica constitucional. Cumpre anotar que o tratamento constitucional de aspectos da Administração Pública foi inaugurado com as Cartas italiana e alemã, tendo sido substancialmente ampliado nas Constituições espanholae portuguesa. A Constituição brasileira de 1988 discorre longamente sobre a administração Pública, descendo a minúcias que exibem uma feição corporativa muito mais nítida que qualquer preocupação garantística. A despeito disso, trouxe alguns avanços, como a enunciação expressa de princípios setoriais do direito administrativo, que na sua redação original eram os da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. A Emenda Constitucional n° 19/98 (apelidada de Emenda da Reforma Administrativa) acrescentou ao elenco o princípio da eficiência. A propósito a tensão entre a eficiência e legitimidade democrática é uma das questões centrais da Administração Pública na atualidade. A constitucionalização do direito administrativo convola a legalidadeem juridicidade administrativa. A lei deixa de ser o fundamentoúnico e último da atuação da Administração Pública para setornar apenas um dos princípios do sistema de juridicidade instituídopela Constituição. Por derradeiro, cabe fazer referência ao influxo do princípiodemocrático sobre a conformação tanto das estruturas como daprópria atividade administrativa. Como se adiantou, embora reconhecendo-se a preeminência dos direitos fundamentais no elencode objetivos da Administração Pública, a eles não se limitam astarefas administrativas. Com efeito, a lei democrática, produzida em observância aoslindes constitucionais, opera de forma complementar ao sistemade direitos fundamentais, concretizando, ampliando ou restringindotais direitos, seja em prol de outros direitos fundamentais, sejaem proveito de interesses difusos da comunidade. A Administração Pública, por intermédio de seus órgãos, entidades ou delegatários, cumpre tanto a realização dos direitos fundamentais (por meio deabstenções, restrições ou prestações positivas), como a consecuçãode objetivos de viés coletivo (decorrentes diretamente da Constituiçãoou estabelecidos validamente pelo legislador democrático). Um dos traços marcantes dessa tendência à democratização é ofenômeno que se convencionou chamar de processualização da atividade administrativa. Tal termo é designativo da preocupaçãocrescente com a disciplina e democratização dos procedimentosformativos da vontade administrativa, e não apenas do ato administrativofinal. Busca-se, assim, (i) respeitar os direitos dos interessadosao contraditório e à ampla defesa; (ii) incrementar o nível de informação da administração acerca das repercussões fáticas ejurídicas de uma medida que se alvitra implementar, sob a óticados administrados, antes da sua implementação; (iii) alcançar um grau mais elevado de consensualidade e legitimação das decisões da Administração Pública. CAPÍTULO III – DO PRINCÍPIO DA SUPREMACIA DO INTERESSE PÚBLICO AO DEVER DE PROPORCIONALIDADE As relações entre o indivíduo e a sociedade têm sido objeto de ancestral disputa no curso da história do pensamento político. A afirmação da existência de um princípio jurídico que preconize a prevalência dos interesses gerais da coletividade sobre os interesses particulares de seus membros reflete uma opção por uma das teorias morais construídas ao longo da história sobre quem é o homem e qual o seu lugar na ordenação da vida social. Segundo Daniel Sarmento, do ponto de vista da teoria moral, a prevalência a priori dos interesses coletivos sobre os interesses individuais poderia ser justificada a partir de duas perspectivas distintas, que, no entanto, exibem alguns traços comuns: o organicismo e o utilitarismo. Em sentido diametralmente oposto, a supremacia incondicionada dos interesses privados dos membros de uma comunidade política sobre aqueles da coletividade, considerada em seu conjunto, estaria fundada no individualismo, de cariz marcadamente liberal. A seguir serão expostas, de forma sucinta, as bases teóricas do organicismo e do utilitarismo, em ordem a demonstrar a sua incompatibilidade com o sistema constitucional brasileiro e a consequente inconsistência jurídica do princípio da supremacia do interesse público sobre os interesses particulares. O pensamento organicista funda-se na ideia de que o indivíduo é, essencialmente, uma parte do todo social e de que o bem de cada um só se realiza quando assegurado o bem comum. Assim, tanto no organicismo antigo (v.g. , Aristóteles) como no moderno (v.g. , Hegel), a associação transindividual - e os interesses do grupo social - goza de supremacia sobre os interesses de suas partes, isto é, os indivíduos. Para Hegel, por exemplo, "os indivíduos têm no Estado o seu mais elevado ser," daí decorrendo a superioridade intrínseca do bem comum (assegurado pelo Estado) sobre as liberdades individuais. Como é trivialmente reconhecido, o organicismo hegeliano representou a matriz teórica dos grandes sistemas políticos totalitários que varreram o mundo no século XX: o nazi-fascismo e o comunismo. A ideia da felicidade como um projeto essencialmente coletivo e o descaso com a autonomia (pública e privada) da pessoa humana pavimentaram o caminho liberticidadas ditaduras de direita e de esquerda, que elevaram o Estado à condição de finalidade última e suprema da vida dos cidadãos. CAPÍTULO IV A CRISE DA LEI: DA LEGALIDADE COMO VINCULAÇÃO POSITIVA À LEI AO PRINCÍPIO DA JURIDICIDADE ADMINISTRATIVA A crise da lei é hoje um fenômeno quase tão universal quanto a própria proclamação do princípio da legalidade como o grande instrumento regulativo da vida social nas democracias constitucionais contemporâneas. Ao ângulo estrutural, a crise da lei confunde-se com a crise da representação e, mais especificamente, com a crise de legitimidade dos parlamentos. Ao ângulo funcional, a crise da lei é a própria crise da ideia de legalidade como parâmetro de conduta exigível de particulares e do próprio Estado. Hoje não mais se crê na lei como expressão da vontade geral, nem mais se a tem como principal padrão de comportamento reitor da vida pública ou privada. Se a promessa de racionalização do mundo, aspiração mais alentada da modernidade, jamais chegou a realizar-se completamente, no plano da organização das sociedades políticas, essa promessa foi frustrada, em larga medida, pelo fracasso da lei formal como projeto jurídico-político. Tal crise é perceptível em todos os países, sendo, todavia, mais evidente em Estados ligados à tradição jurídica romano-germânica, nos quais à lei escrita - produto da vontade manifestada por representantes eleitos pelo povo - sempre se reservou o papel de protagonista da criação do direito. Não há disciplina jurídica sobre a qual o fenômeno da crise da lei não haja espraiado seus efeitos. Inobstante, cuidar-se-á aqui, com especial ênfase e de modo específico, das repercussões da crise da lei sobre o princípio da vinculação administrativa à legalidade, entendido classicamente como uma vinculação positiva à lei, bem como de suas transformações sob a égide do Estado democrático de direito. É um truísmo afirmar-se que a lei formal, 239 no seu sentido liberal clássico, está em crise. A assertiva é especialmente recorrente na literatura do direito público contemporâneo. A obviedade da afirmação, contudo, não torna prescindível a compreensão de suas razões. É entendendo o que se passou com a lei, classicamente concebida como a manifestação, por excelência, da vontade geral do povo (indispensável, portanto, para legitimar a atuação da Administração Pública), que será possível constatar a necessidade de um novo paradigma legitimador do direito administrativo e identificar o seu conteúdo. CAPÍTULO V DA DICOTOMIA ATO VINCULADO VERSUS ATO DISCRICIONÁRIO À TEORIA DOS GRAUS DE VINCULAÇÃO À JURIDICIDADE A discricionariedade administrativa como espaço de livre decisão externo ao direito. A palavra discricionariedade tem sua origem no antigo Estado europeu dos séculos XVI a XVIII, quando expressava a soberania decisória do monarca absoluto (voluntas regis suprema lex). Naquela época, do chamado Estado de polícia, em que o governo se confundia integralmente com a Administração Pública, a sinonímia entre discricionariedade e arbitrariedade era total.437 Com efeito, se a vontade do soberano era a lei suprema, não fazia sentido cogitar de qualquer limite externo a ela. Por atavismo histórico, ainda nos dias de hoje encontra-se o adjetivo "discricionário" empregado como sinônimo de arbitrário ou caprichoso, 438 ou para significar uma decisão de cunho puramente subjetivo ou político, liberta de parâmetros jurídicos de controle.439 Somente a partir do século XIX, com o advento da noção de Estado de direito, é que a ideia da imposição de limites jurídicos às atividades dos órgãos estatais adquiriu consistência teórica e experimentou gradativa difusão. Governo, parlamento e Administração passam, então, a gozar de identidade e lugar próprios na organização estatal. Ali principia o longo e acidentado percurso da tentativa de captura do poder pela juridicidade. Como registrado por Andreas Krell, o desafio do jovem Estado de direito foi justamente conciliar a tradicional liberdade decisória do Poder Executivo com a observância do princípio da legalidade. "Nesse processo, a discricionariedade administrativa começou a ser considerada um 'corpo estranho' dentro do Estado de direito, um resquício da arbitrariedade monárquica, que deveria, por qualquer meio, ser eliminada. CAPÍTULO VI DO EXECUTIVO UNITARIO A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA POLICÊNTRICA A emergência das autoridades administrativas independentes: do Executivo unitário à Administração policêntrica. O sistema político-administrativo dominante no continente europeu, desde o século XIX, sempre concentrou no governo (isto é, na figura do primeiro-ministro ou do presidente, e seu respectivo gabinete ou ministério, conforme o sistema de governo adotado), enquanto órgão superior da Administração Pública, amplos poderes de intervenção intra-administrativa sobre todo o conjunto de órgãos e entidades públicas. A lógica de tal regime era baseada na responsabilidade política dos governantes, frente ao parlamento ou diretamente ao povo, pelas ações e omissões administrativas, na medida em que se encontravam habilitados a dirigir, orientar, supervisionar ou controlar as respectivas estruturas da burocracia estatal. Esse modelo, que encontra similar no constitucionalismo brasileiro, acabou erigindo a unidade administrativa em verdadeiro instrumento do princípio democrático e em fator de legitimação da Administração Pública. 518 A responsabilidade política do chefe de governo junto ao povo (em sistemas presidencialistas) ou ao parlamento (em sistemas parlamentaristas), num regime em que ele é também o chefe supremo da Administração, convolou-se em condição necessária da controlabilidade (accountability) social da atuação da burocracia. Pode-se mesmo dizer que esse era o contraponto democrático da chamada crise da lei e da notável expansão das margens decisórias da Administração na definição das políticas públicas. Pode-se dizer, assim, que este era um modelo piramidal de Administração Pública, figurando o governo do topo da pirâmide, de onde os agentes eleitos exerceriam controle político sobre as diferentes estruturas administrativas. Tal modelo entra em crise com a importação, para diversos países da Europa continental e para o Brasil, da figura da independent regulatory agency (agência reguladora independente). Se, até bem pouco tempo, a institucionalização de autoridades administrativas com acentuado grau de autonomia em relação ao Poder Executivo Central revelava-se fenômeno restrito e peculiar à estrutura organizacional do Reino Unido e dos Estados Unidos da América, fato é que, desde a década de 70 do século passado, o fenômeno adquiriu tom universal, espraiando-se, com maior ou menor vigor, por diferentes países. Com efeito, esse tipo de estrutura institucional só se proliferaria na Europa ocidental sob o influxo dos projetos de governança comunitária promovidos pela União Européia, com o nome de autoridade administrativa independente, enquanto só chegaria ao Brasil nos anos noventa, a reboque dos processos de privatização e reforma do Estado. CAPÍTULO VII SÍNTESE CONCLUSIVA A ideia de uma origem liberal e garantística do direito administrativo, forjada a partir de uma milagrosa submissão da burocracia estatal à lei e aos direitos individuais, não passa de um mito. Passados dois séculos da sua gênese, é possível constatar que a construção teórica do direito administrativo não se deveu nem ao advento do Estado de direito, nem à afirmação história do princípio da separação dos poderes. Com efeito, havendo sido produto da elaboração jurisprudencial do Conselho de Estado francês, as categorias básicas da disciplina não surgiram da sujeição da Administração à vontade heterônoma da lei, mas antes de uma auto vinculação do Poder Executivo à sua própria vontade. Por outro lado, a adoção da jurisdiçãoadministrativa, paralela e infensa à jurisdição comum, rendeu ensejo à imunização do Poder Executivo frente aos controles dos demais Poderes e, principalmente, do controle do cidadão. O modelo administrativo francês, no qual a burocracia legisla para si e julga a si mesma, não pode ser considerado fruto, mas a própria antítese da ideia de separação de poderes. Nesse contexto, é correto afirmar que a dogmática administrativista se estruturou a partir de premissas teóricas comprometidas com a preservação do princípio da autoridade, e não com a promoção das conquistas liberais e democráticas. O direito administrativo, nascido da superação histórica do Antigo Regime, serviu como instrumento retórico para a preservação daquela mesma lógica de poder. CONCLUSÃO A obra busca romper com diversos paradigmas sedimentados na dogmática jurídica, que são entoados como mantras para os alunos da graduação nos cursos jurídicos nacionais. O autor desconstrói diversos valores preservados como absolutos pelos administrativistas. A obra significa um marco na afirmação do pós-positivismo no campo jurídico, em especial no direito público. Logo no início, o autor desconstrói a própria gênese do direito administrativo, cultivada por muito tempo, como “fruto de um milagre” nas palavras de Prosper Weil (1977, p. 7). De maneira percuciente, afirma que a origem desse ramo do direito fora fruto mais da auto vinculação do próprio Poder Executivo, através da jurisprudência do Conselho de Estado francês, do que limitações heterônomas apregoadas pela separação dos poderes. Com efeito, fica construído um modelo em que a burocracia legisla para si e julga para si mesma. Nesse ponto, fica evidente que a dogmática administrativista se estruturou a partir de premissas teóricas comprometidas com os interesses dos donos do poder, não se curvando às conquistas liberais, padecendo por um pecado original. Assim, a teoria administrativista fundou-se com base na preservação do princípio da autoridade ainda vigente no antigo regime. As premissas teóricas de Gustavo Binenbojm na obra são os direitos fundamentais, a democracia, o neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito. Para o autor, os direitos fundamentais e a democracia representam os fundamentos do Estado Democrático de Direito, legitimando-o e estruturando-o, o que inegavelmente impacta no exercício da função administrativa. Por outro lado, o neoconstitucionalismo e a constitucionalização do direito representam a pedra de toque da moderna feição do direito administrativo. Quanto ao primeiro, o livro aponta como seu marco filosófico o pós-positivismo, e seu marco teórico, a expansão da força normativa da constituição e da jurisdição constitucional, bem como a nova dogmática de interpretação constitucional. Quanto ao segundo, a Constituição não apenas fica relegada como suporte de validade para as demais normas, mas também penetra por todo o tecido jurídico, promovendo a reinterpretação de diversos institutos legais. Gustavo Binenbojm não é pioneiro na desconstrução de tal princípio (o próprio autor dá crédito ao florescimento do debate no Brasil para Humberto Ávila), mas suas ideias sobre a questão possuem forte substrato teórico e novas linhas argumentativas. O ponto nodal de sua crítica refere-se ao fato de que a supremacia do interesse coletivo sobre o particular possui incompatibilidade com o sistema constitucional dos direitos fundamentais. Aqui, a perspicácia da obra mostra-se evidente, visto que o autor declara que uma norma que preconiza a supremacia a priori de um valor, princípio ou direito sobre outros de maneira absoluta não pode ser qualificada como princípio. Pelo contrário, um princípio, por definição, é norma aberta, cujo sentido deve ser ponderado de acordo com as circunstâncias do caso em concreto através das técnicas de interpretação jurídica. Fica claro que a prevalência apriorística e descontextualizada de um princípio sobre outro constitui uma contradição em termos. Fora esta crítica estrutural, o texto foca na inter-relação entre os interesses coletivos e individuais, demonstrando o autor que a promoção dos primeiros importa necessariamente na observância dos direitos de cada um dos cidadãos. De maneira feliz, Gustavo Binenbojm aponta que a relação entre eles não é dicotômica, mas, sim, de mútua influência. A preservação, na maior medida do possível, dos direitos individuais constitui porção do próprio interesse público. Outrossim, deixa evidente que o conceito de interesse público só ganha concretude a partir da disposição constitucional dos direitos fundamentais em um sistema que contempla e pressupõe restrições ao seu em prol de outros direitos, bem como de metas e aspirações coletivas de caráter metaindividual, igualmente contempladas na Constituição. Fugindo de fórmulas prontas, o livro deixa nas mãos do intérprete e aplicador do direito a função de delimitar o conteúdo do interesse público, a ser delineado pelo processo racional ponderativo através do postulado da proporcionalidade. Neste particular, arejando o debate jurídico, Gustavo Binenbojm segue a linha teórica de Humberto Ávila (2008, p. 30-35), que reconhece a proporcionalidade não como um princípio, mas, sim, um postulado normativo, vale dizer: uma norma jurídica de segundo grau. Veja-se que a tese não nega, de forma alguma, o conceito de interesse público, mas tão somente a existência de um princípio da supremacia do interesse público sobre o privado, visto que a ponderação deve ser feita no caso em concreto de qual interesse deve prevalecer; ponderação a ser feita pelo magistrado, pelo legislador ou pelo administrador, seguindo o roteiro hermenêutico estabelecido pela dogmática jurídica. Assim, fica clara a importância da construção de pilares sólidos na construção de técnicas predefinidas para a solução desse choque, sob pena do conceito de interesse público ficar ao alvedrio de arbitrariedades do intérprete. Como constatado logo no início da obra, o “pecado original” do direito administrativo pode ser notado na feição da própria discricionariedade administrativa, tendo como nascente o espaço decisório real absoluto do Ancien Régime, apartado do escrutínio jurídico. Gustavo, oxigenando o debate, afirma que, com a constitucionalização do direito, não há mais espaço para áreas decisórias da Administração descobertas pelo controle judicial. O livro deixa claro que não há mais espaço para a binária distinção entre ato administrativo vinculado e discricionário, mas para a teoria de graus de vinculação à juridicidade. Gustavo aponta que sindicabilidade do Judiciário de decisões administrativas pode pautar-se em standards, como, por exemplo, naqueles campos em que, por sua alta complexidade técnica e dinâmica específica, faleçam parâmetros objetivos para uma atuação segura do Poder Judiciário; em tais hipóteses, a intensidade do controle deverá ser tendencialmente menor. A expertise da burocracia será decisiva na profundidade do controle jurisdicional. Por fim, dedica espaço à transformação organizacional da Administração Pública, com a ruptura da tradição piramidal do Poder Executivo para uma organização policêntrica, em que as Agências Reguladoras representam seu maior expoente. O autor, após apresentar o conteúdo desses novos departamentos estatais – especialmente com a sua autonomia –, demonstra que os mecanismos assecuratórios de independência das agências geram três focos de tensão: primeiro, em face do princípio da legalidade (adoção de diversos atos administrativos normativos que muitas das vezes podem invadir o terreno da lei formal); segundo, em face do princípio da separação de poderes (fragilidade de mecanismos políticos de controle das agências); terceiro, em face do regime democrático (ausência de responsividade de seus membros). Arremata,esclarecendo que a autonomia das agências não é um fim em si mesmo, mas apenas uma estratégia de organização do Estado em prol da afirmação dos valores constitucionais. Ainda que incidentalmente na obra, a participação dos administrados na formação de políticas públicas merecia uma análise mais detida, visto que se trata de tema de relevância capital para o desenho institucional do Estado pós-moderno. Espera-se que, em edições posteriores do livro, tal debate seja nele incluído, especialmente sobre o problema do risco da captura e de novos mecanismos de participação do cidadão. De maneira muito criativa, Gustavo Binenbojm, logo no primeiro capítulo, afirma que, diante da evolução contraditória do direito administrativo, sua dogmática deve ser colocada no divã. A feliz figura de linguagem consegue resumir bem a proposta de Uma Teoria do Direito Administrativo em erigir novos paradigmas para a disciplina dotados não apenas de maior consistência teórica, mas comprometidos com o sistema democrático e a promoção dos direitos fundamentais. REFERÊNCIAS BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 2. ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
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