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Capitulo As origens da filosofia Para os povos antigos, o mito era um componente importante da cultura, permeando todos os segmentos sociais e suas instituições. Para os gregos da Antiguidade, as divindades eram personificações de elementos da natureza, das virtudes e dos defeitos da humanidade. Os deuses gregos, habitantes do monte Olimpo, eram imortais, embora tivessem comportamentos semelhantes aos dos homens. Às vezes benevolentes, também agiam por inveja ou vingança. Atena é a deusa grega da sabedoria e da justiça, entre outras virtudes que lhe eram atribuídas. A coruja, sua ave predileta, com frequência a acompanha nas representações de sua figura. Mais conhecida como a coruja de Minerva - nome latino da deusa Atena -, a coruja tornou-se o símbolo da filosofia, por ser Atena a deusa da razão. A coruja, por sua vez, dá margens a inúmeras interpretações. Ela é uma ave noturna sempre alerta, com visão aguda capaz de enxergar no escuro, além de girar quase completamente a cabeça, o que lhe permite olhar para todos os lados. Segundo o filósofo alemão Friedrich Hegel, a coruj a alça voa no inicio do entardecer, tal como a filosofia, que inicia a sua reflexão após o trabalho do dia, ou seja, a reflexão filosófica tem por base a realidade vivida. Minerva (Atena), reprodução fe ita no sécul o XVIII de uma estátua romana do século I. 22 Unidade 1· Descobrindo a filosofia .; ~ ~ I ~ ~ ~ o 10 oi ~ . ~ a. o .2' ~ s ~ ~ ~ <f g ~ i ü ~ ~ :::l ~ w "' :::l ::; .;, w ~ a: w J: g :s <1: o"' ~~ (!);}'; Zffi ::;> ~~ gº CDü o~ ~<I: 't58 D A consciência mítica O mito é a forma mais remota de crença, um meio do indivíduo se relacionar com o sobrenatural. De modo geral, o mito está impregnado do desejo humano de afugentar a insegurança, os temores e a angústia diante do desconhecido, do perigo e da morte. Para tanto, os relatos míticos se sustentam pela crença em forças superiores (cuja existência não precisa ser comprovada), que protegem ou ameaçam, recompensam ou castigam. Os mitos gregos eram transmitidos por poetas ambulantes chamados aedos e rapsodos , que os recitavam de cor em praça pública. Nem sempre é possível identificar a autoria desses poemas, por resultarem de produção coletiva e anônima. Homero e Hesíodo foram dois representantes significativos que marcaram a história grega. Atribuem-se a Ho- mero, um desses poetas, dois poemas épicos, as epopeias I/íada e Odisseia. Na vida dos gregos, as epopeias desempenharam um papel pedagógico significativo. Narravam epi- sódios da história grega- o período das Idades do Bronze e do Ferro- e transmitiam os valores culturais mediante o relato das realizações dos deuses e dos antepassados. Po r expressarem uma concepção de vida, desde cedo as crianças decoravam passagens desses poemas. Hesíodo é outro poeta que teria vivido por volta do final do século VIII e princípios do VII a.C. Na sua obra Teogonia , relata as origens do mundo e dos deu- ses, em que as forças emergentes da natureza vão se transformando nas próprias divindades. Por isso a teogonia é também uma cosmogonia, na medida em que narra como todas as coisas surgiram do Caos para compo r a ordem do Cosmo. Teogonia. Do grego théos, "deus", e gónos, "origem". Cosmogonia. Do grego kósmos, "mundo", "ordem", "beleza", e gónos. Caos. Para os gregos, o vazio in icial. No início de sua Teogonia , Hesíodo relata como, a partir das divindades primordiais Caos, Gaia (ou Geia, a Terra) e Eros, surgiram as outras divinda- des. Inicialmente, Gaia deu origem a Urano (o Céu), com o qual se uniu, gerando muitas outras divinda- des, dentre as quais Cronos (Tempo), que toma o po- der do pai e, por sua vez, é destronado pelo filho Zeus. D A filosofia nasceu no Ocidente O pensamento filosófico surgiu na Grécia, entre o século VII e o VI a.C., mais propriamente nas colônias gregas, com Tales de Mileto, Pitágoras de Sarnas e Heráclito de Éfeso. Embora reconheçamos a impor- tância de sábios que viveram no mesmo período no Oriente, suas doutrinas ainda não eram propriamente filosóficas. Em que aqueles sábios se distinguem dos pensadores gregos? Os sábios que viveram no Oriente no século VI a.C. foram: Confúcio e Lao-Tsé na China, Sidarta Gautama Buda na Índia e Zaratustra na Pérsia [atual Irã). A diferença está no fato de que os sábios orientais não se aprofundaram em questões abstratas, mas criaram doutrinas que facilitavam as boas condu- tas para o convívio harmônico. Em outras palavras, tratava-se de uma sabedoria vinculada a aspectos práticos do comportamento humano e não propria- mente teóricos e argumentativos. Além disso, muitas vezes esse saber não se desprendia do componente mítico-religioso. Em contraposição, os primeiros filósofos gregos, mesmo quando sofriam influências religiosas, pro- blematizavam a realidade: buscavam explicitar o princípio constituinte das coisas. Perguntavam, por exemplo: Qual é o ser de todas as coisas? Quando as coisas mudam, existe algo que permanece idên- tico? O que é o movimento? Que tipos de mudança existem? As respostas dadas a essas questões sustentavam-se pela razão (/ógos). Lógos é teoria que precisa ser fundamentada com argumentos. Por isso, costuma-se considerar a Grécia o berço da filosofia. É interessante observar que a primazia concedida pelos gregos ao racional ocorreu igualmente com a geometria. Por exemplo, os egípcios e também os hindus e chineses de épocas mais recuadas sabiam identificar diversas propriedades geométricas que eram aplicadas em conhecimentos empíricos- ba- seados na experiência - para realizar construções muitas vezes grandiosas. No entanto, foram os filósofos gregos Tales e Pitágoras que ampliaram e deram um sentido diferente ao conhecimento da geometria, não apenas por interesse prático, e sim para elaborar demonstrações racionais e abstratas. Lógos. Conceito com várias acepções: palavra; linguagem; razã o; di scurso; norma ou regra; aquilo que é fundamental. Termos derivados: diálogo, dialét ica, lógica. As origens da f ilosofia · Capítulo 2 23 {C D Uma nova ordem humana Alguns autores chamaram de "milagre grego" a passagem da mentalidade mítica para o pensamento crítico racional e filosófico, dando destaque para o caráter repentino e único desse processo. Outros estudiosos, porém, criticam essa visão simplista e afirmam que a filosofia na Grécia não foi fruto de um salto, do "milagre" realizado por um povo privilegiado, mas é a culminação do processo gestado ao longo do tempo. No período arcaico (século VIII ao VI a.C.), a Gré- cia sofreu transformações muito específicas nas relações sociais e políticas, proporcionando a lenta passagem do mito para a reflexão mais racionalizada. A nova visão do mundo e do indivíduo que então se esboçava resultou de inúmeros fatores, que ve- remos a seguir. a) A redescoberta da escrita Na Grécia, a escrita já existira no período mi- cênico, mas desapareceu no século XII a.C., para ressurgir apenas entre os séculos IX e VIII a.C., por influência dos fenícios. A escrita fixa a palavra para além de quem a proferiu, o que exige maior rigor e cla- reza, e estimula o pensamento crítico. Desse modo, a escrita traz a possibilidade maior de abstração, de uma reflexão aprimorada. b) A moeda Com o desenvolvimento do comércio marítimo, o mundo grego se expandiu com a colonização da Magna Grécia (atual sul da Itália e Sicília) e da Jônia (hoje litoral da Turquia). A moeda veio facilitar os negócios e impulsionar o comércio, enriquecendo os comerciantes, o que acelerou a substituição de valores aristocráticos por valores da nova classe em ascensão. Além desse efeito político de democratização de um valor, a moeda sobrepunha aos símbolos sagra- dos o caráter racional de sua concepção: a moeda é uma convenção humana, noção abstrata de valor que estabe- lece a medida comum entre valores diferentes.Moeda em prata da cidade de Atenas (c. 440 a.C.l. A esquerda, perfil da deusa Palas Atena. A direita, a coruja, que simboliza a deusa Atena. 2Q Unidade 1· Descobrindo a fi losofia c) A lei escrita Legisladores como Drácon, Sólon e Clístenes si- nalizaram uma nova era, porque, até então, a justiça dependia da interpretação da vontade divina ou da arbitrariedade dos reis. Com a lei escrita, a norma se tornava comum a todos e sujeita à discussão e à modificação. Assim afirma Jean-Pierre Vernant, helenista e pensador francês: Os que compõem a cidade, por mais diferentes que sejam por sua origem, sua classe, sua função, aparecem de uma certa maneira "semelhantes" uns aos outros. Esta semelhança cria a unidade da pólis. [ ... ] O vínculo do homem com o homem vai tomar assim, no esquema da cidade, a forma de uma relação recíproca, reversível, substituindo as relações hierárquicas de submissão e de domínio. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 2. ed. Rio de Janeiro/Sao Paulo: Difel, 1977. p. 42. d) O cidadão da pólis O nascimento da pólis, por volta dos séculos VIII e VII a.C., foi um acontecimento decisivo. A sua originalidade está no fato de ter como centro a á gora (praça pública), espaço onde eram debatidos os problemas de interesse comum. Elaborava-se desse modo o novo ideal de justiça, pelo qual todo cidadão tinha direito ao poder. A noção de justiça assumia caráter polftico, e não apenas moral, ou seja, não di- zia respeito apenas ao indivíduo e aos interesses da tradição familiar, mas à sua atuação na comunidade. Assim ficava garantida a ·s na · - a igualdade perante a lei -, do mesmo modo que a 's.e a ·a, a igualdade do direito da palavra na assembleia. De fato, a pólis se fez pela autonomia da palavra, não mais a palavra mágica dos mitos, palavra dada pelos deuses e, portanto, comum a todos, mas a palavra humana do conflito, da discussão, da argumentação. Expressar-se por meio do debate fez nascer a polltica, que permite ao indivíduo tecer seu destino na praça pública. Da instauração da ordem humana surgiu o cidadão da pólis, figura inexistente no mundo da comunidade tribal e das aristocracias rurais. U ETIMOLOGIA Isonomia. Do grego ísos, "igual", e nómos, "lei". !segaria. Do grego ísos e agoreúein, "discursar em público". Assembleia. Em grego se diz agorá, local de reunião para decidir assuntos comuns. Designa também a praça principal das pólis onde se instalava o mercado. e) A consolidação da democracia O apogeu da democracia ateniense ocorreu no século V a.C., quando Péricles governava. Os cidadãos livres, fossem ricos, fossem pobres, tinham acesso à assembleia. Tratava-se da democracia direta, em que não eram escolhidos representantes, mas cada cidadão participava ele mesmo das decisões de interesse comum. É bom ressaltar, porém, que a maior parte da população se achava excluída do processo político, tais como os escravos, as mulheres e os estrangei- ros (metecos), mesmo que estes fossem prósperos comerciantes. Apesar disso, o que vale enfatizar é a mutação do ideal político e uma concepção inovadora de poder, a democracia. ~ PARA SABER MAIS É difícil fazer o cálculo demográfico de Atenas, mas no decorrer do século V a.C. a população variou entre 250 mil e meio milhão de habitantes, dos quais a maioria era constituída por escravos. Excluídos os estrangeiros, as mulheres e as crian- ças, restavam apenas entre lO a 14% de cidadãos propriamente ditos capacitados para participar das discussões na ágora e decidir por todos. Vernant analisa a importância da política na Grécia antiga: É no plano político que a razão, na Grécia, primeiramente se exprimiu, constituiu-se e formou-se. A experiência social pode tornar-se entre os gregos o objeto de uma reflexão positiva, porque se prestava, na cidade, a um debate público de argumentos. O declínio do mito data do dia em que os primeiros sábios puseram em discussão a ordem humana, procuraram defini-la em si mesma, traduzi-la em fórmulas acessíveis à sua inteligência, aplicar-lhe a norma do número e da medida. Assim se destacou e se definiu um pensamento propriamente político, exterior à religião, com seu vocabulário, seus conceitos, seus princípios, suas vistas teóricas. [ ... ] A razão grega é a que de maneira positiva, refletida, metódica, permite agir sobre os homens, não transformar a natureza. Dentro de seus limites como em suas inovações, é filha da cidade. VERNANT, Jean-Pierre. As origens do pensamento grego. 2. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Difel.l977. p. 95. i Cl9 PARA REFLETIR Alguns estudiosos explicaram o surgimento da filosofia na Grécia como um "mi lagre" realizado por um povo privilegiado: como podemos contradizer essa afirmação? D Os primeiros filósofos: os pré-socráticos A filosofia grega antiga corresponde a um longo pe- ríodo que começou por volta do final do século VII a.C. e se estendeu até o século III d.C. Os primeiros filó- sofos foram chamados de pré-socráticos devido a uma classificação posterior da filosofia antiga que tinha como referência a figura de Sócrates, representante do pensamento clássico, e que antecedeu e influen- ciou dois grandes filósofos: Platão e Aristóteles. Grande parte das obras dos primeiros filósofos foi perdida, restando-nos apenas fragmentos e comentários feitos pelos filósofos posteriores, ou seja, pela doxografia. O centro de suas investiga- ções era a natureza, por isso são conhecidos como naturalistas, ou filósofos da physis, termo grego para "mundo físico", "natureza". Sabemos também que geralmente escreviam em prosa, abandonando a forma poética característica das epopeias, dos relatos míticos. Qual foi a novidade desses primeiros filósofos? Até então as explicações sobre a origem e a ordem do mundo tinham por base os mitos transmiti- dos por Homero e Hesíodo, que constituíam as teogonias e as cosmogonias (origem no tempo). Agora, em vez de explicar a ordem cósmica pela interferência divina, os filósofos buscavam respos- tas por si mesmos, por meio da razão. Portanto, as questões tornam-se cosmológicas: o sufixo lógos denota o predomínio da razão, da explicação argumentativa. ~ PARA SABER MAIS Períodos da filosofia grega Pré-socrático (século VII e VI a.C.J. Os primeiros filósofos ocupavam-se com questões cosmológi- cas, iniciando a separação entre a filosofia e o pen- samento mítico. Período clássico (século V e IV a.C.J. Ampliação dos temas e maior sistematização do pensamento. Foi a época dos sofistas, de Sócrates, Platão e Aristóteles. Pós-socrático (século III a.C. e li d.C.) Durante o helenismo, preponderou o interesse pela física e pela ética. Surgiram as correntes filosóficas do estoicismo, do hedonismo e do ceticismo. Doxografia. Do grego dóxa, "opinião", e gráphein, "escre- ver". Chama-se doxografia à compilação de doutrinas de pensadores. Pode-se conhecer um filósofo não só pelas suas obras, mas também pelo testemunho de pensadores do seu tempo ou posteriores. Se observarmos as transformações sociais, econômicas e culturais ocorridas no período arcaico, podemos entender que houve uma lenta transformação da mentalidade grega que deu oportunidade para a reflexão crítica, a problematização e, portanto, para a filosofia. Se quiser, o aluno pode citar quais foram essas transformações (a escrita, a moeda etc.). As origens da filosofia • Capitulo 2 25 A filosofia na Grécia Antiga o , Filósofos da Grécia Antiga Perlodo pré-socrâlico "- • Periodo clássico Perlodo helenislico Demócrito Protágoras MAP NEGRO Empédocles I eereia MAGNA GRÉCIA eAgrigenlo Leucipo Aristóteles r I I Epicuro Abdera 1 Pitágoras Plrro es1: çtlta •li_ l JÓNIA ,.. Heráclito Clazomena / Éflda • • • • Éfeso Anaxágoras Platáo Sócrates Ale,nas S~o~s e Mileto ·• ' • \odes u Tales Panécio Anaximandro Anaximenes Posid6nio Zenáo e Citio N 1Observe no mapa os principais filósofos gregos que correspondem ao período pré-socrático. Identifique em que região (Jônia ou Magna Grécia) e em que cidade eles se estabeleceram. Em seguida, observe que os filósofos do perlodo clássico (Sócrates, Platão) viviam em Atenas. Embora Aristóteles tenha nascido em Estagira, cidade da Macedônia, foi em Atenas que fundou sua escola. Localize também os filósofos do helenismo. que se deslocaram da Grécia continental e se espalharam pelas ilhas. Fonte: ABRÃO, Bernadete Siqueira (et ai.J. Enciclopédia do Estudante. História da filosofia: da Antiguidade aos pensadores do século XXI. São Paulo: Moderna, 2008. p. 17. v. XII. ) O princípio de todas as coisas O que intriga os primeiros filósofos é principal- mente o movimento, conceito que em grego tem um sentido bem amplo, podendo significar mudança de lugar, aumento e diminuição, qualquer alteração ou um movimento substancial, quando alguma coisa é gerada ou se deteriora. Então se perguntam: o que faz com que, apesar de toda mudança, haja algo na reali- dade que sempre permanece o mesmo? Assim, sob a multiplicidade das coisas eles buscam a identidade. Ou seja, procuram um princípio original e racional (em grego, arkhé). O termo princípio pode ser entendido como origem, mas também como fundamento. Observe como a filosofia nasce de um pro- blema, uma indagação nova, que procura ir além do já sabido. Por isso, existe uma ruptura entre mito e filosofia, porque o mito é uma narrativa cujo conteúdo não se questiona, enquanto a filosofia problematiza e, portanto, convida à discussão. A filosofia rejeita explicações baseadas no sobrenatu- ral. Mais ainda: a filosofia busca a coerência interna e a definição rigorosa dos conceitos, e organiza-se em dou- trina, surgindo, portanto, como pensamento abstrato. Vejamos alguns desses primeiros filósofos que, por poderem pensar de modo autônomo, divergiram entre si. ) Os filósofos jônios: tudo é um Os primeiros pré-socráticos, como Tales, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito, todos na- turais da Jônia, são conhecidos como monistas, ) 26 Unidade 1- Descobrindo a filosofia porque identificam apenas um elemento constitutivo de todas as coisas. Tales: o princípio é a água Tales de Mileto (c. 620-546 a.C.), de origem fenícia, viveu em Mileto, na Jônia. É considerado o primeiro filósofo e um dos "sete sábios da Grécia". Como ma- temático, transformou o saber empírico da geometria prática dos egípcios em conhecimento científico. Talvez por ter viajado muito e conhecido as cheias do Rio Nilo, intuiu que a água deveria ser o princípio de tudo, por estar ligada à vida, à germinação, mas também à decomposição e à putrefação. Por con- siderar a água um "deus inteligente", concluiu que "todas as coisas estão cheias de deuses". É atribufda a Tales de Mileto a demonstração do teorema de geometria: dois triângulos são con- gruentes quando as medidas de dois ângulos e do lado compreendido entre eles são exatamente as mesmas em ambos os triângulos. Teria ainda calcu- lado a altura de uma pirâmide comparando a som- bra dela com a sombra de uma estaca de madeira e, como astrônomo, teria previsto um eclipse solar. Anaximandro: o princípio é o indeterminado Anaximandro (c . 610-547 a.C.) representa um avanço em relação a Tales, porque não recorre a um princípio material como a água, e sim ao ápeiron, termo grego que significa "indeterminado", "ilimitado" e que daria origem a todos os seres materiais. Desse modo, não se trata de algo que possamos conhecer pelos sentidos, mas pelo pensamento. Para explicar a mudança, Anaximandro recorre à luta dos contrários. Como surge o mundo? Por um movimento circular turbilhonante que irrompe em diversos pontos do ápeiron. Nesse movimento, separam-se do ilimitado- -indeterminado as duas primeiras determinações ou qualidades: o quente e o frio, dando origem ao fogo e ao ar; em seguida, separam-se o seco e o úmido, dando origem à terra e à água. Essas determinações combinam-se ao lutar entre si e os seres vão sendo formados como resultado dessa luta, quando um dos contrários domina os outros. O devir é esse movimento ininterrupto da luta entre os contrários e terminará quando forem todos reabsorvidos no ápeiron. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: das pré-socrát icos a Aristóteles. São Paulo: Brasi liense, 1994. p. 52. v. 1. Anaximenes: o princípio é o ar Para Anaxímenes (c. 588- 528 a.C.), o princípio é o ar, que pela rarefação e condensação faz nascer e transformar todas as coisas. Para ele, porém, o ar é mais do que o aspecto físico de um elemento, porque o termo grego que corresponde ao ar é pneüma, que também significa respiração, sopro de vida, espírito: "Como nossa alma, que é ar, nos governa e sustém, assim também o sopro e o ar abraçam todo o cosmo". Heráclito: tudo flui Heráclito (535-'-175 a.C.) nasceu em Éfeso, na Jônia, e também procurou compreender a multiplicidade do real. Ao contrário de seus contemporâneos - como Parmênides -, Heráclito não rejeitava as contradições e queria apreender a realidade na sua mudança, no seu devir. Todas as coisas mudam sem cessar, e o que temos diante de nós em dado momento é diferente do que foi há pouco e do que será depois: "Nunca nos ba- nhamos duas vezes no mesmo rio", pois na segunda vez não somos os mesmos, e também as águas mudaram. Para Heráclito, o ser é o múltiplo, não apenas no sentido de que há uma multiplicidade de coisas, mas por estar constituído de oposições internas. O que mantém o fluxo do movimento não é o simples aparecer de novos seres, mas a luta dos contrários, pois "a guerra é pai de todos, rei de todos". É da luta que nasce a harmonia, como síntese dos contrários. Para ele, o dinamismo de todas as coisas pode ser explicado pelo fogo primordial, expressão visível da ins- tabilidade, símbolo da eterna agitação do devir: "o fogo eterno e vivo, que ora se acende e ora se apaga". Assim diz Marilena Chaui: Não se trata do fogo (ou do quente ou do calor) que percebemos em nossa experiência. O fogo-quente- -calor de nossa experiência é uma das qualidades determinadas e múltiplas do mundo, juntamente com o frio, o seco, o úmido. O fogo primordial- que Heráclito também chama de lógos- é aquilo que, por sua própria natureza e força interna, se transforma em todas as outras e é nelas transformado sem cessar. CHAUI, Marilena. Introdução à história da filosofia: dos pré- -socráticos a Aristóteles. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 68-69. v. l. t i' ...... ~::: Objeto educacional digital ,.,, _ Orientações para o = professor no livro digital Pitágoras ) Os pitagóricos: o número é a harmonia Pitágoras (século VI a.C.) nasceu na Ilha de Sa- mos, na costa da Jônia, e posteriormente deslocou- -se para Crotona, na Magna Grécia. Quase nada se sabe sobre Pitágoras nem de suas obras. É certo que existiu uma Escola Pitagórica de cunho filosó- fico-religioso que mantinha a doutrina restrita aos adeptos. Atribui-se a ele o uso primeiro da palavra filosofia. Por não se considerar sábio- sophós, em grego-. dizia-se apenas amigo (phí/os) da sabedoria. Como matemático, Pitágoras considerava o núme- ro o princípio de tudo, desde que se entenda número como a harmonia ou a proporção. Ou seja, o número representa uma estrutura racional. Outra característica interessante do pitago- rismo está na influência que mais tarde exercerá sobre Platão. Trata-se de uma sensível mudança na religiosidade grega, até então centrada na tradição homérica e no culto dos deuses do Olimpo. Já os pi- tagóricos herdaram o orfismo, religião vinda da Trá c ia e baseada nos mistérios órficos e no culto a Dioniso. A diferença se fez na passagem para um culto vol- tado para a interioridade, de crença na imortalidade da alma, na transmigração das almas, na superio- ridade da alma sobre o corpo, o que exige ascese e purificação. Desse modo, a Escola Pitagóricanão trata apenas dos aspectos físicos dos princípios do cosmo, mas constrói uma filosofia que visa orientar um determinado modo de vida. Drfismo. Movimento religioso da Gréc ia antiga que pode t er influenciado alguns pré-socráticos e Platão. Ascese. Termo com diversos signif icados. No contexto, exerclcio de uma vida austera, pelo controle das paixOes, visando à perfe ição moral e, em alguns casos, rel igiosa. As origens da filosofia ·Capitulo 2 27 I Os eleatas: o principio é o ser Parmênides e Zenão foram os filósofos que atua- ram na cidade de Eleia, sul da Magna Grécia, e eram conhecidos como eleatas. A principal característica da escola era admitir a imobilidade do ser. Alguns estudiosos atribuíram a Xenófanes (c. 570-475 a.C.) a fundação da Escola Eleática. Nascido na Jônia, Xenófanes viveu exilado na Magna Grécia como um sábio errante, um aedo, que recitava suas obras em vários lugares. Era conhecido pelas críticas à religião pública (de Homero e Hesíodo) e às convenções, o que o caracteriza também como um cético. Parmênides: as coisas são Parmênides (c. 530-460 a.C.) influenciou de modo decisivo o pensamento ocidental. Sua impor- tância decorre da guinada na busca do princípio de todas as coisas: para ele, as coisas são entes, o ser. A partir desse pressuposto, Parmênides criticou a filosofia heraclitiana. Ao "tudo flui" de Heráclito, con- trapôs a imobilidade do ser: é absurdo e impensável afirmar que uma coisa pode ser e não ser ao mes- mo tempo. O ser é único, imutável, infinito e imóvel. À contradição opõe o princípio segundo o qual "o ser é" e o "não ser não é". Não há como negar, entretanto, a existência do movimento no mundo, pois as coisas nascem e mor- rem, mudam de lugar e se expõem em infinita multi- plicidade. Segundo Parmênides, porém, o movimento existe apenas no mundo sensível, e a percepção pelos sentidos é ilusória, porque baseada na opinião, e, por isso mesmo, não é confiável. Só o mundo inteliglvel é verdadeiro. Uma das consequências da teoria de Parmênides é a identidade entre o ser e o pensar: ao pensarmos, pensamos algo que é, e não conseguimos pensar algo que não é. Desse modo, os eleatas abrem caminho para a ontologia (estudo do ser), que será objeto dos filósofos do período clássico. Zenão de Eleia: Aquiles e a tartaruga Zenão de Eleia (século V a.C.) foi o principal discípulo de Parmênides e ficou conhecido pelos exemplos que ilustram o cerne da teoria parmenídia: "pensamos algo que é, e não conseguimos pensar algo que não é". Recorre, então, a uma aporía, ter- mo grego que significa "dificu ldade insolúvel". Se Aquiles, o mais veloz dos homens, apostasse corri- da com uma tartaruga, o mais lento dos animais, e permitisse que ela saísse na frente, jamais poderia alcançá-la. Explicando: para percorrer um espaço ~) 28 Unidade 1 • Descobrindo a filosofia de A a B, Aquiles deveria alcançar o ponto médio M, mas para chegar a ele, teria de passar por M1, que é a metade de M, ou seja, metade da metade, e assim sucessivamente. Por consequência, Aquiles percorreria uma distância cada vez menor e nunca alcançaria a tartaruga. Evidentemente, isso não quer dizer que Parmêni- des e Zenão negassem o movimento, mesmo porque é óbvio que Aquiles venceria a tartaruga. Eles ressal- tam que o movimento é percebido pelos sentidos, e estes não nos conduzem à verdade, ao contrário, nos colocam diante de aporias, dificuldades insolúveis. Só a razão nos leva à verdade. I Os pluralistas: há mais que um princípio O princípio não é único, como diziam os monistas, mas há múltiplos princípios. Os principais represen- tantes dessa tendência são Empédocles, Anaxágoras e os atomistas Leucipo e Demócrito. Empédocles: os quatro elementos Empédocles (c. 490-432 a.C.) nasceu em Agrigen- to, cidade da atual Sicília, Magna Grécia. Segundo sua teoria, tudo que existe deriva de quatro elementos: terra, água, ar e fogo. Essa mistura que ele chama de "raízes" é movida por uma força interna do amor e do ódio: enquanto o amor une, o ódio separa, num ciclo de repetição eterno. Em um de seus fragmentos, podemos ler: Ainda outra coisa te direi. Não há nascimento para nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte funesta, mas somente composição e dissociação dos elementos compostos: nascimento não é mais do que um nome usado pelos homens. BORHEIM, Gerd. Os filósofos pré-socróticos. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977. p. 69. ~ PARA SABER MAIS A teoria dos quatro elementos perdurou por muito tempo. Apenas no século XVIII Lavoisier provou que aquela teoria cléssica era falsa, ao realizar em laboratório a decomposição da égua e estabelecer o método cientifico da qufmica. Como se vê, Empédocles discorda de Parmênides, para quem o ser é imóvel, e também critica a crença de que apenas podemos conhecer pelo pensamento, desprezando os sentidos. Anaxágoras: as sementes e o Naus Anaxágoras (499-428 a.C.), nascido em Cla- zômena, mudou-se para Atenas, onde foi mestre de Péricles. Sustentava que o princípio não é úni- co, nem quatro, como dizia Empédocles, mas as coisas são formadas por minúsculas partículas, as "sementes" (homeomerias ou spérmata). Es- sas sementes foram ordenadas por um princípio inteligente, uma Inteligência cósmica (nous, em grego). Por motivos controversos, talvez por ter sido o primeiro a recorrer a um espírito superior que ordena o cosmo e por se recusar a prestar culto aos deuses gregos, foi preso e expulso da cidade, precisando abandonar a escola que fundara em Atenas. Aristóteles afirma que Anaxágoras se des- tacou entre todos os pré-socráticos como o primeiro a apresentar a concepção de uma inteligência ordenadora, "em comparação dos que anteriormente afirmaram coisas vãs". Demócrito: os átomos Leucipo (século V a.C.) foi o fundador da Escola de Abdera, e Demócrito (c. 460-370 a.C.), seu principal seguidor. Mas é possível identificar em Leucipo a pre- dominância de preocupações cosmológicas, enquan- to Demócrito desenvolveu também questões éticas, tema que iria adquirir grande importância durante o período socrático. Por isso, pode ser considerado um filósofo de transição. Leucipo e Demócrito representam a corrente dos atomistas, por considerarem o elemento primordial constituído por átomos, partículas indivisíveis, não criadas, indestrutíveis e imutáveis. De tão minús- culos, não são percebidos pelos sentidos, mas pela inteligência. Os átomos são dotados naturalmente de movimento e, para fundamentar essa hipótese, desenvolvem a teoria da existência do vazio. Depen- dendo dos diferentes modos de se agregarem, as coi- sas são geradas e se corrompem em uma alternância sem fim. A explicação de tudo depende, portanto dos átomos, do vazio e do movimento. Não existe uma causa inteligente que organize o mundo, que resulte do encontro mecânico, "ao sabor do acaso". Com essa teoria, os atomistas tentavam superar a contradição entre Heráclito e Parmênides. Afirma- vam que os átomos não têm qualidades sensíveis (sabor, odor, quente, frio, cor), mas apenas proprie- dades geométricas (grandeza e formal. Por isso, a nossa percepção das qualidades sensíveis é objeto apenas de opinião (dáxa), enquanto o conhecimento verdadeiro é dado pelos átomos. Assim afirma De- mócrito: "É opinião o frio e opinião o calor; verdade os átomos e o vazio". Heráclito e Demócrito (século XV), pintura de Do nato Bramante baseada no afresco do Palácio de Panigarola em Milão. A imagem representa uma velha história sobre Heráclito e Demócrito, segundo a qual a primeiro era a "filósofo que chora" e a outro a "filósofo que ri ". Certamente, para destacar seus diferentes temperamentos: Heráclito era reservado e de poucas palavras, enquanto Demócrito gostava de gozar a vida. D Avaliação do periodo dos pré-socráticos Os pré-socráticos deram o primeiro impulso à atividade do filosofar: buscaram a unidade na mul- tiplicidade, examinaram a relação entreo ser e o pensar, desenvolveram a dialética, a arte da discus- são, deram os primeiros passos para uma lógica e estimularam a argumentação. Observe como as discussões dos filósofos pré-socráticos foram assumindo nível maior de elabo- ração e rigor, se comparadas às primeiras reflexões da filosofia nascente. Vale lembrar que os últimos filósofos pré-socráticos já adentravam o século V a.C. Anaxágoras foi mestre de Péricles e, pelos diálogos de Platão, sabemos que Sócrates, quando jovem, teria encontrado Parmênides. Além disso, a filosofia pré-socrática continuou sendo importante na época clássica. Por exemplo, as teorias de Platão e Aristóteles enfrentaram o desafio de superar a oposição entre o pensamento de Heráclito e o de Parmênides, entre movimento e imobilidade, entre os sentidos e a razão. As origens da filosofia • Capitulo 2 29 LEITURA COMPLEMENTAR As conotações essenciais da filosofia antiga A filosofia como "amor de sabedoria" N Conforme a tradição, o criador do termo 'filosofia' foi Pitágoras, o que, embora não sendo historicamente seguro, é no entanto verossímil. O termo certamente foi cunhado por um espírito religioso, que pressupunha ser possível só aos deuses uma 'sofia' ('sabedoria'), ou seja, a posse certa e total do verdadeiro, enquanto reservava ao homem ape- nas uma tendência à sofia, uma contínua aproximação do verdadeiro, um amor ao saber nunca totalmente saciado- de onde, justamente, o nome 'filosofia', ou seja, 'amor pela sabedoria'. Todavia, o que entendiam os gregos por essa amada e buscada 'sabedoria'? Desde seu nascimento, a filosofia apresentou três conotações, referentes: a) ao seu conteúdo; b) ao seu método; c) ao seu objetivo. O conteúdo da filosofia No que se refere ao conteúdo, a filosofia quer explicar a totalidade das coisas, ou seja, toda a realidade, sem exclu- são de partes ou momentos dela. A filosofia, portanto, se distingue das ciências particulares, que assim se chamam exatamente porque se limitam a explicar partes ou seto- res da realidade, grupos de coisas ou de fenômenos. E a pergunta daquele que foi e é considerado como o primeiro dos filósofos - 'Qual é o princípio de todas as coisas?' - mostra a perfeita consciência desse ponto. E, como vere- mos, alcança-se a totalidade da realidade e do ser precisa- mente descobrindo a natureza do primeiro 'princípio', isto é, o primeiro 'porquê' das coisas. O método da filosofia No que se refere ao método, a filosofia procura ser 'explicação puramente racional daquela totalidade' que tem por objeto. O que vale em filosofia é o argu- mento da razão, a motivação lógica, o lógos. Não basta à filosofia constatar, determinar dados de fato ou reunir experiências: ela deve ir além do fato e além das experiências, para encontrar a causa ou as causas apenas com a razão. É justamente este o caráter que confere "cientificidade" à filosofia . Pode-se dizer que tal cará- ter é comum também às outras ciências, que, enquanto tais, nunca são mera constatação empírica, mas são sem- pre pesquisa de causas e de razões. A diferença, porém, está no fato de que, enquanto as ciências particulares são pesquisa racional de realidades e setores particula- res, a filosofia, conforme dissemos, é pesquisa racional de toda a realidade {do princípio ou dos princípios de toda a realidade) . [ .. . ] O escopo da filosofia O escopo ou fim da filosofia está no puro desejo de conhecer e contemplar a verdade. Em suma, a filosofia grega é desinteressado amor pela verdade. Conforme escreve Aristóteles, os homens, ao filosofar, 'buscaram o conhecer a fim de saber e não para conseguir alguma utilidade prática '. Com efeito, a filosofia nasceu apenas depois que os homens resolveram os problemas fundamentais da subsistência e se libertaram das necessi- dades materiais mais urgentes. E Aristóteles conclui : 'Portanto, é evidente que nós não buscamos a filosofia por nenhuma vantagem a ela estra- nha. Ao contrário, é evidente que, como consideramos livre aquele que é fim para si mesmo, sem estar submetido a outros, da mesma forma, entre todas as outras ciências, só a esta consideramos livre, pois só ela é fim a si mesma '. É fim a si mesma porque tem por objetivo a verdade, procurada, contemplada e desfrutada como tal. Compreendemos, portanto, a afirmação de Aristóteles: 'Todas as outras ciências serão mais necessárias do que esta, mas nenhuma será superior'." REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia.Filosof ia pagã ant iga. 3. ed. São Paulo: Paulus, 2007. p. 11-12. v. 1. .. Explique qual é a diferença entre filosofia e ciência, do ponto de vista do conteúdo. 11 O que significa a frase de Aristóteles ao dizer que a filosofia tem um fim em si mesma? 30 Unidade 1· Descobrindo a filosofi a
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