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Unidade Ciência, tecnologia e valores, êBLJ Ciência antiga e medieval, ese 25 A revolução cientifica: as ciências da natureza, 303 26 O método das ciências humanas, 321 Identificação das imagens da esquerda para a direita: Tales de Mileto (1866) , gravura de C. Laplante; Euclides (1474), detalhe de painel de autor desconhecido; Retrato de Ptolomeu (1475), pintura de Joos van Gent (Joos van Wassenhove); Arquimedes (século XVIII), pintura de Giuseppe Nogari; Roger Bacon (1650), gravura de autor desconhe- cido; Gutenberg em sua oficina, gravura da obra First Book of French History, de A. Aymard (1933); Carta Astrológica do Sistema de Copérnico em Atlas coelestis, publicado por Johannes Janssonius, Amsterdã (1660- -61 ); lsaac Newton (1754), gravura de autor desconhecido; Telescópio de Galileu (século XVII); Retrato de Antoine laurent de Lavoisier (século XVIII), gravura de Pierre Michel Alix com base na pintura de Jacques louis David; Gregor J. Mendel {1865). fotografia colorizada; Charles Darwin (1902); representação artística H As filosofias antigas morreram lenta e relutantemente durante a Renascença. À medida que Copérnico, Tycho e Kepler gradualmente provaram que as teorias de Aristóteles e Ptolomeu sobre o Universo estavam erradas, as pessoas perceberam que a Terra não era o centro do Universo e que ela se move ao redor do Sol. Mas as forças da razão defrontaram-se com as forças da política e do poder- desafiar os ensinamentos rigorosamente aristotélicos da Igreja católica romana custou a Giordano Bruno a vida, e a Galileu, a liberdade." BRDDY, David Eliot; BRDOY, Arnold R. As sete maiores descobertas cientificas da história. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 27. Tales de Mileto (filosofia e matemática) Século VI a.C. Início da filosofia Ptolomeu (sistema geocêntrico) Roger Bacon (óptica) Copérnico (sistema heliocêntrico) da dupla hélice de DNA; Albert Elfl' GteiR· .eA~""·------- seu 75° aniversário (1954); homem utilizando ·~------------~ laptop (2007); Sigmund Freud, fotografia colorizada sem data identificada; ovelha Dolly (clonada em 1996, foto de 2003). Antiguidade greco-romana ~-~- · Esta linha do tempo não está em escala temporal. 282 Unidade 6 • Filosofia das ciências Século 111 a.C. Escola de Alexandria Euclides (geometria) ~ iii a: ::;) '.li ~ :í Arquimedes (mecânica) Idade Média Idade Moderna Renascimento Gutenberg (imprensa) A condenação de Galileu pela Inquisição católica ocorreu em 1633. Em 1705, Newton tornou-se cavaleiro do Reino Unido, recebendo da rainha Ana o título de Sir. Festejado como o mais célebre cientista de sua época, foi enterrado com honrarias na Abadia de Westminster em 1727. Esses fatos mostram a rapidez com que a ciência moderna conquistou reconhecimento. Daí em diante, tornou-se cada vez mais importante sobretudo pelos resultados fantásticos da ciência aplicada à tecnologia. Estaria, no entanto, a ciência livre das injunções do poder, sejam elas religiosas, econômicas ou políticas? Essas questões permeiam o debate entre a ciência e a filosofia que iremos estabelecer nesta Unidade. Uma cronologia das descobertas científicas Newton (gravitação universal) Século XVII Lavoisier (química) f . ·.·· .. .ii1 ~ . p..;._ : - . l ' ~ Mendel (genética) Darwin (evolucionismo) Einstein (teoria da relatividade) Freud (psicanálise) J 'i-·r--'""• -----....... e .--------....... e.-----~~-~~~~---.e.-----~~~-~~-------.. Idade Moderna Galileu (física e astronomia) Crick!Watson (DNA -1953) Idade Contemporânea Origem da internet (década de 1970) • Século XX Clonagem do primeiro mamífero (ovelha Dolly - 1996) Filosofia das ciências· Unidade 6 283 Capítulo 23 As irmãs Cholmondeley (c. 1600-16101, pintura de autoria desconhecida. Ciência, tecnologia e valores Essa pintura inglesa do século XVII, de autor desconhecido, traz em seu canto inferior esquerdo a curiosa inscrição: "Duas irmãs da família Cholmondeley que nasceram no mesmo dia, se casaram no mesmo dia e tiveram filho no mesmo dia". Apesar da distância no tempo, a obra que retrata as irmãs gêmeas não idênticas (os olhos não são da mesma cor e há pequenas diferenças nas feições) possibilita refletir sobre diferenças ou semelhanças genéticas, remetendo a temas atuais relacionados à existência humana. Hoje, existem vários organismos geneticamente modificados, como algumas variedades vegetais resistentes às pragas ou que permitem colheitas maiores, uma linhagem de porcos (chamados de P33) que podem vir a fornecer tecidos para transplantes em humanos, cabras que produzem leite com proteína antimicrobiana e muitos outros organismos que fornecem hormônios, enzimas e outras substâncias para experiências biomédicas. Qual é o limite para experiências como essas? Quais serão as consequências evolutivas dessas manipulações? Quais são os riscos dessas experiências para a vida humana? Questões como essas impõem a necessidade de uma revisão de valores, principalmente os éticos. » 28L.J Unidade 6 • Filosofia das ciências D Que caminho devo tomar? Lewis Carroll era professor de matemática na Universidade de Oxford quando escreveu o seguinte em Alice no País da Maravilhas: "-Gato Cheshire ... quer fazer o favor de me dizer qual é o caminho que eu devo tomar? -Isso depende muito do lugar para onde você quer ir- disse o Gato. -Não me interessa muito para onde ... - disse Alice. - Não tem importância então o caminho que você tomar- disse o Gato. - ... contanto que eu chegue a algum lugar- acrescentou Alice como uma explicação. - Ah, disso pode ter certeza - disse o Gato- desde que caminhe bastante." In: DUBOS, Renê. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1972. p. 165. O trecho acima foi selecionado pelo profes- sor de medicina ambiental René Dubos a fim de comentá-lo: "A resposta do Gato tem sido frequentemente citada para exprimir a opinião de que os cientistas não sabem para onde o conhecimento está levando a humanidade e, além disso, não se importam muito. Diz-se que a ciência não pode oferecer objetivos sociais porque os seus valores são intelectuais e não éticos. [ ... ] Mas é provável que a ciência possa contribuir para formular valores e, assim, estabelecer objetivos, tornando o homem mais consciente das consequências de seus atos. A necessidade de conhecimento das consequências, no ato de tomar decisões, está implícita na observação do Gato de que Alice chegaria certamente a algum lugar se caminhasse bastante. Desde que esse algum lugar poderia revelar-se bem indesejável, é melhor fazer escolhas conscientes do lugar para onde se quer ir." DUBOS. Renê. O despertar da razão. São Paulo: Melhoramentos/Edusp, 1972. p. 165. Com base nesses textos, iniciamos este capítulo com a seguinte interpretação: a ciência não é um sa- ber neutro, desinteressado, puramente intelectual e à margem do questionamento social e político acerca dos fins de suas pesquisas. D O senso comum O senso comum é o conhecimento que ajuda a nos situarmos no cotidiano para compreendê-lo e agir sobre ele. Mais propriamente, poderíamos dizer que se trata de um conjunto de crenças, já que quase sempre recebemos esse conhecimento pela tradi- ção, de modo espontâneo e não crítico. Mas não só. O senso comum representa também o esforço para resolver problemas do dia a dia, buscando soluções muitas vezes bastante criativas. É bem verdade que, em diversas situações, a ciência precisou se posicionar contra o que parecia evidente, por exemplo, a convicção de que a Terra fosse imóvel e que o Sol girasse em torno dela. No entanto, não há como desprezar esse conhecimento tão universal que é o senso comum, nem desconsi- derar o grande volume de saberes já construídos ao longo da história humana e cuja aplicação se mostrou fecunda. De fato, antes de a física se tornar uma ciência no século XVII,diversos povos já sabiam como fazer as embarcações flutuarem, como construir palá- cios, aquedutos, sistemas de irrigação etc. Antes de nascer a biologia, os médicos já identificavam inúmeras doenças e seu tratamento. Antes do sur- gimento da química, já havia oficinas de metalurgia e tingimento. ) Distinção entre senso comum e ciência Vamos mostrar as diferenças entre o senso co- mum e a ciência, examinando a especificidade de cada um por meio de exemplos adaptados de um texto de Ernest Nagel. NAGEL, Ernest. La estructura de la ciencia. Buenos Aires: Paidós, 1978. p. 15-26. Particular/geral O conhecimento proporcionado pelo senso comum é particular. Ou seja, restringe-se a uma pequena amostra da realidade, com base na qual são feitas generalizações muitas vezes apressa- das e imprecisas. Os dados observados costumam ser selecionados de maneira pouco rigorosa. Em outras palavras, o que vale para um ou para um grupo de objetos observados é atribuído a todos os objetos. Já as leis científicas são gerais no sentido de que não valem apenas para os casos observados, e sim para todos os que a eles se assemelham. Afirmações como "o peso de qualquer objeto de- pende do campo de gravitação" ou "a cor de um objeto depende da luz que ele reflete" ou ainda "a água é uma substância composta de hidrogênio e oxigênio" são válidas para todos os corpos, todos os objetos coloridos ou qualquer porção de água, e não apenas para aqueles que foram objeto da experiência. Em outras palavras, as explicações da ciência são sistemáticas e controláveis pela expe- riência, o que permite chegar a conclusões gerais. Ciência, tecnologia e valores· Capitulo 23 285 C Mulher velha cozinhando ovos (1618), pintura de Diego Velásquez. Não é preciso efetuar uma investigação científica para cozinhar um ovo , basta a experiência proporc ionada pelo senso comum. Fragmentário/unificador O conhecimento espontâneo é fragmentário, pois não estabelece conexões em situações em que re- lações poderiam ser verificadas. Por exemplo: pelo senso comum não é possível perceber qualquer relação entre o orvalho da noite e o "suor" que apa- rece na garrafa retirada da geladeira; nem entre a combustão e a respiração, que é uma forma de com- bustão discreta relacionada à queima dos alimentos no processo digestivo para obter energia. Já o conhecimento científico é unificador, por ter a capac idade de fazer as referidas conexões, que às vezes são muito abrangentes, como ocorreu com Isaac Newton. Segundo um relato não comprovado, Newton teria intuído a lei da gravitação universal ao associar a queda de uma maçã à "queda" da Lua. Ou seja, a Lua não cai sobre a Terra porque está a uma distância em que sofre a atração da Terra, mas não o suficiente para cair sobre ela: se por acaso se aproximasse um pouco mais, haveria de cair. Essa é uma maneira simp les de explicar o caráter unificador da teoria da gravitação universal, que nos permite associar fenômenos aparentemente tão díspares como o movimento da Lua, as marés, as trajetórias dos projéteis e a subida dos líquidos nos tubos delgados. Subjetivo/objetivo O senso comum é frequentemente subjetivo, porque depende do ponto de vista individual e pes- soal, que pode ser condicionado por sentimentos ou afirmações arbitrárias. Por exemplo, às vezes é difícil reconhecer o valor profissional de uma pessoa se temos antipatia por ela. Ao observar o comportamen- to de povos com costumes diferentes dos nossos, ». 286 Unidade 6 ·Filosofia das ciências tendemos a julgá-los com base em nossos valores e considerá-los estranhos, ignorantes, engraçados ou até desagradáveis. Já o mundo construído pela ciência aspira à objetividade. Chama-se objetivo o conhecimento imparcial, que independe das preferências indivi- duais e que permite o confronto com outros pontos de vista. Suas conclusões podem ser testadas por qualquer outro membro competente da comunidade científica. Ambiguidade/rigor Para ser objetiva, a ciência dispõe de uma lingua- gem rigorosa cujos conceitos são definidos para evi- tar ambiguidades, tornando-se cada vez mais precisa à medida que utiliza a matemática para transformar qualidades em quantidades. A "matematização" da ciência adquiriu grande importância no método de Galileu. Ao estabelecer a lei da queda dos corpos, por exemplo, Galileu mediu o espaço percorrido e o tempo que um corpo leva para descer um plano inclinado. Ao final das observações, registrou a lei numa formulação matemática. É bem verdade que o mesmo não ocorre com as ciências humanas, cujo componente qualitativo não pode ser reduzido a uma quantidade, como veremos no último capítulo desta unidade. Os instrumentos de medida (balança, termôme- tro, dinamômetro, telescópio etc.) também permitem ao cientista ultrapassar a percepção imediata, im- precisa e subjetiva da realidade. Diferentemente do senso comum, as explicações científicas são formuladas em enunciados gerais, al- cançados pelo exame das diferenças e semelhanças das propriedades dos fenômenos, de modo que um número pequeno de princípios explicativos possa unificar um grande número de fatos. Voltaremos às ciências humanas no capítulo 26, "O método das ciências humanas". D O método científico O conhecimento científico é uma conquista recen- te da humanidade, datando de cerca de 400 anos. No pensamento grego, ciência e filosofia achavam-se ainda vinculadas e só vieram a se separar no século XVII, com a revolução científica iniciada por Galileu. A ciência moderna nasceu ao determinar seu ob- jeto específico de investigação e ao criar métodos confiáveis pelos quais estabelece o controle desse conhecimento. São os métodos rigorosos que pos- sibilitam demarcar um conhecimento sistemático, preciso e objetivo que permita a descoberta de re- lações universais entre os fenômenos, a previsão de acontecimentos e também a ação sobre a natureza de maneira mais segura. Desde a modernidade, as ciências se multipli- caram na busca de seu próprio caminho, ou seja, seu método. Ao delimitar um campo de pesquisa e procedimentos específicos, cada ciência tornou-se, então, uma ciência particular, por privilegiar setores distintos da realidade: a física trata do movimento dos corpos; a química, da sua transformação; a biologia, do ser vivo etc. Recentemente, a partir do século XX, constituíram-se as ciências híbridas, como a bioquímica, a biofísica, a mecatrônica, a fim de melhor resolver problemas que exigem, ao mesmo tempo, o concurso de mais de uma ciência. Voltaremos a esse assunto no próximo capítulo. D A comunidade científica Uma comunidade científica pode ser entendida como o conjunto dos indivíduos que se reconhecem e são reconhecidos como possuidores de conheci- mentos específicos na área da investigação cien- tífica. São os membros dessa comunidade que se avaliam reciprocamente a respeito dos resultados de suas pesquisas. Alguns dos diversos canais de comunicação entre os cientistas são as sociedades científicas, os congressos, as revistas especializadas e as conferências. Até pouco tempo as grandes realizações científicas eram fruto de gênios individuais. Hoje em dia, cada vez mais, o trabalho da ciência é feito em equipe. Não pre- tendemos abordar aqui as ambiguidades do conceito de comunidade científica- que pode ocultar divergên- cias de interesses e conflitos de poder-, e sim mostrar sua importância para a discussão e o estabelecimento do método científico e a produção da ciência. Julgamento de Gali/eu (1633), pintura de autor desconhecido. O quadro mostra Gal ileu Galilei sendo julgado pelo Tribunal do Santo Ofício em Roma, no inicio do século XVII. Galileu foi obrigado pela Igreja Católica a renegar a teoria heliocêntrica. Reza a lenda, porém, que ele teria murmurado, referindo-se à Terra: "E pur, si muove!" ("E, no entanto, ela se move!"). É nesse sentido que o filósofo francês Gérard Fourez comenta: "Afinal,um laboratório terá uma boa performance tanto por seu pessoal ser bem organizado e ter acesso a aparelhos precisos como por raciocinar corretamente. A fim de produzir resultados científicos, é preciso também possuir recursos, acesso às revistas, às bibliotecas, a congressos etc. t preciso também que, nas unidades de pesquisa, a comunicação, o diálogo e a crítica circulem. O método de produção da ciência passa, portanto, pelos processos sociais que permitem a constituição de equipes estáveis e eficazes; subsídios, contratos, alianças sociopolíticas, gestão de equipes etc. Mais uma vez, a ciência aparece como um processo humano, feito por humanos, para humanos e com humanos." FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdução à filosofia e à ética das ciências. São Paulo: Unesp, 1995. p. 9LJ-95. Não imagine, portanto, que essas conclusões só serão aceitas se forem consideradas indubitáveis. É preciso retirar do conceito de ciência a falsa ideia de que se trata de um conhecimento "certo" e "infalível". Há muito de construção nos modelos científicos e, às vezes, são aceitas até teorias incompatíveis entre si. Por exemplo, a teoria corpuscular e a ondulatória, ambas utilizadas para explicar aspectos diferentes do fenômeno luminoso, permaneceram válidas por muito tempo porque cada uma delas conseguia explicar fenômenos diferentes. Além disso, a ciência encontra-se em constante evolução e suas teorias, ainda que comprovadas, são consideradas, de certo modo, provisórias. Ciência, tecnologia e valores· Capitulo 23 287 Cientistas examinando plantas em estufa (2008), no Japão. Desde Arquimedes a ciência era um trabalho para inventores e gênios solitários. A ciência contemporânea, ao contrário, é realizada por várias equipes de trabalho em grandes laboratórios, financiados por empresas multinacionais, universidades e governos. D Ciência e valores Que valores são importantes para o cientista? Em primeiro lugar, podemos dizer que a ciência visa ao valor cognitivo, isto é, o cientista quer conhecer, sem se preocupar, inicialmente, com a aplicação prática do conhecimento. No entanto, veremos que o traba- lho científico envolve, além de valores cognitivos, valores éticos e políticos. ) Valores cognitivos Examinaremos inicialmente as três caracterís- ticas relativas aos valores cognitivos da ciência: a imparcialidade, a autonomia e a neutralidade. Imparcialidade A imparcialidade consiste em aceitar como cien- tíficas apenas as teorias que passaram pelo crivo de rigorosos padrões de avaliação. O método utilizado deve ser explicitado e a série de dados empíricos que sustentam a conclusão pode ser verificada por qualquer membro da comunidade científica. Só então a teoria será aceita ou rejeitada. Já ocorreram situações em que a teoria derivou de uma fraude mas que, por diversas circunstâncias, não houve condições de ser desmascarada. Um exemplo de parcialidade mal-intencionada foi a "descoberta" de um crânio e uma mandíbula em 1811, na Inglaterra, atribuídos a um ancestral hominídeo. O arqueólogo Charles Dawson simplesmente juntou um crânio humano relativamente recente à mandíbula de um símio, escureceu as peças para parecerem velhas e limou os dentes. Apenas quarenta anos depois a fraude foi descoberta por meio de novas técnicas de datação. Não se conhecem os motivos da parcia- lidade do arqueólogo e de seus colaboradores, mas certamente o interesse deles não era cognitivo, ou seja, não visava a conhecer a realidade como tal. » 288 Unidade 6 • Filosofia das ciências Autonomia A autonomia refere-se às condições de inde- pendência das investigações. Segundo se espera, as instituições científicas devem estar isentas de pressões externas para definir suas agendas volta- das para a produção de teorias imparciais e neutras. Exemplos de situações de perda de autonomia dos cientistas já ocorreram. Lembremos que Galileu Galilei precisou interromper seus estudos sobre o geocentrismo porque foi julgado e condenado pela Inquisição, o braço religioso que ainda tinha força no século XVII. Na primeira metade do século XX, na então União Soviética, Joseph Stalin apoiou o biólogo Trofim Lysenko, cuja teoria contraditava as leis de Gregor Mendel, até hoje considerado o pai da genética. Por questões ideológicas, os cientistas mendelianos foram perseguidos e presos. Em resu- mo, a censura à ciência é intolerável. Neutralidade O conhecimento científico é neutro porque, em tese, não deve atender a nenhum outro valor a não ser o cognitivo. No processo de investigação propria- mente dito, as convicções pessoais no campo da mo- ral e da política não devem interferir no andamento e nas conclusões científicas. Ou seja, a nacionalidade, a etnia, a religião, a classe social do cientista são irrelevantes para se atingir a verdade científica. A interferência desses fatores, que são extrínsecos à pesquisa, é prejudicial à ciência porque a faz perder a objetividade. ) Valores éticos e políticos Dissemos que o conhecimento científico deve ser neutro para garantir a racionalidade e a objetividade das pesquisas. No entanto, sob outros aspectos, a neutralidade científica pode tornar-se uma ilusão. Não se trata de incoerência, mas da necessidade de reconhecer que o poder da ciência e da tecnologia é ambíguo, porque pode estar a serviço do conjunto da humanidade ou apenas de uma parte dela. Por isso, a atividade do cientista e do técnico deve ser acompa- nhada por reflexões de caráter moral e político, para que sejam postos em questão os fins que orientam os meios que estão sendo utilizados. As altas cifras destinadas às pesquisas exigem o apoio financeiro de instituições públicas e pri- vadas, desejosas em subvencionar os trabalhos que mais lhes interessem e que nem sempre estão focados na saúde e no bem-estar das pessoas. É o caso, por exemplo, da "indústria da guerra", que, há muito, alimenta a corrida armamentista e exige o constante desenvolvimento da ciência e da tecnolo- gia no campo militar. ' As indevidas interferências do poder sobre a pesquisa científica vistas neste tópico foram a condenação de Galileu pela Inquisição e a proibição pelo reg ime soviético do estudo da biologia mendeliana por motivos ideológicos. Além disso, as pesquisas atuais requerem um alto investimento financeiro, O grande risco da excessiva interferência eco- nômica nas ciências pode ser ilustrado pelas con- quistas obtidas na engenharia genética, que levam grandes corporações a buscar justificativas legais para patentear, por exemplo, as descobertas rea- lizadas com a manipulação do código genético de sementes, os chamados alimentos transgênicos. São também objetos de debates acalorados as possibilidades de clonagem de seres humanos, com base no sucesso obtido com a aplicação da técnica em animais. No entanto, o temor de que cientistas se encaminhem para a clonagem humana tem des- viado - e confundido -as discussões em torno das pesquisas com células-tronco, sobretudo aquelas que não são extraídas do embrião propriamente dito, mas da medula óssea ou do cordão umbilical. As van- tagens das novas pesquisas estariam na prevenção e cura das mais diversas doenças. Em resumo, os procedimentos metodológicos da ciência devem ser neutros quando têm em vista apenas a racionalidade científica, mas não quanto aos fins que orientam suas pesquisas nem quanto aos objetivos a que se destinam suas descobertas. Estas últimas exigem inclusive discussões éticas e políticas. Orientações para o professor no livro digital .. PARA REFLETIR Baseando-se nos exemplos deste tópico, destaque quais são as interferências políticas e econômicas que orientam- ou desviam- a atividade científica. · o que dificulta a isenção para escolher as pesquisas mais urgentes para a população. Há também o debate sobre a manipulação do código genético, das células-tronco etc. D A responsabilidade social do cientista Pelo que vimos,não há como aceitar que a exigência de neutralidade da ciência se resuma à procura do "saber pelo saber". A ciência encontra-se inextricavelmente envolvida na moral e na política, e o cientista tem uma responsabilidade social da qual não pode abdicar. Essas observações nos levam a refletir sobre a formação do cientista, que não deve se restringir apenas ao aprendizado de conteúdos, metodologias e práticas de pesquisa. Mais do que isso, o futuro cientista precisa ter condições de examinar os pres- supostos de seu conhecimento e de sua atividade, de se perceber como pertencendo a uma comunidade e de identificar os valores subjacentes a sua prática. Qual é o papel da filosofia com relação à ciên- cia e suas aplicações? Seu compromisso repousa na investigação dos fins e das prioridades a que a ciência se propõe, na análise das condições em que se realizam as pesquisas e nas consequências das técnicas utilizadas. Esta foi a única ffl construção que ficou de ~- § ~ ::; i' ~ ~ pé em Hiroshima após a explosão da bomba atômica, em 19LI5. Foi mantida no mesmo estado e hoje se chama Memorial da Paz, pelo fim das armas nucleares e para que não se esqueça de atos bárbaros praticados por nações "civilizadas". Em frente, o verde da praça e Cerimônia em frente do Memorial da Paz, em Hiroshima, no Japão, em 2007, lembra as vítimas da bomba atômica lançada na cidade, em agosto de 1945. as pombas representam a esperança do renascimento após a destruição e nos fazem pensar na importância da reflexão ética sobre os fins para os quais usamos a tecnologia, um fruto ambíguo da ciência contemporânea. Ciência, tecnologia e valores· Capítulo 23 289 LEITURA COMPLEMENTAR Eficácia e limites do domínio científico "A ciência moderna ligou -se[ .. . ] à ideologia burguesa e a sua vontade de dominar o mundo e controlar o meio ambiente. Nisto ela foi perfeitamente eficaz. Foi um instrumento intelectual que permitiu à burguesia, em primeiro lugar, suplantar a aristocracia e, em segundo, dominar econômica, política, colonial e militarmente o planeta . Durante séculos sentiu-se a eficácia desse método e os seus sucessos serviram de base às ideologias do progresso. De fato, os benefícios resultantes foram enormes: foi gra- ças à produção da sociedade burguesa, à sua ciência e à tecnologia que a vida humana conheceu múltiplas melho- rias. Foram a ciência e a técnica que impediram que as pessoas ficassem completamente dependentes da ener- gia, dos aspectos aleatórios do clima, de uma fome sem- pre ameaçadora e assim por diante. A civilização burguesa produziu, para praticamente todas que se juntaram a ela, bens múltiplos, não somente para os mais ricos, mas, pelo menos em sua última fase , para todos nos países ociden- tais . Graças a ela, a maioria da população se beneficia de um bem-estar econômico que os mais ricos não poderiam sonhar há alguns séculos. Não obstante, as recentes evoluções da sociedade, os perigos da poluição, a corrida armamentista- em espe- cial as armas atômicas-, os problemas da energia, entre outros, levaram um número cada vez maior de pessoas a se questionar a respeito dessa atitude de domínio. Quando os seres humanos se constituem como senhores solitários do mundo, em exploradores da natureza e, mui- tas vezes, como calculadores em relação à própria vida, é, a longo termo, possível ainda viver? É essa atitude de domínio desejável no que se refere a todas as coisas? Em certos campos, em todo caso, ela parece ter chegado a um fracasso. [ .. . ] Hoje, em especial com o movimento ecológico, muitos se perguntam se a ciência e a tecnolo- gia acarretam sempre necessariamente a felicidade aos seres humanos. Monument o afetado pela chuva écida, na Inglate rra, 2008. O vento leva a polui ção da queima de ca rvão e petróleo po r milhares de quilômetros. Ao reagi r com o vapor de égua, a po lui ção provoca a chuva écida, que prejudica a saúde humana, a fl ora, a fauna e corrói os monumentos. Em nossa sociedade, assistiu-se a uma espécie de revolta diante da atitude técnico-científica. A civilização da ciência, civilização da precisão, da escrita é recolocada em questão, como o demonstra o desejo de muitos de reencontrar um contato mais autêntico com a natureza. O limite da gestão do mundo pelo técnico-científico se torna patente quando se considera a incapacidade do progresso em resolver os problemas sociais do mundo - e em parti- cular a sua incapacidade de suprimir as dominações huma- nas, principalmente aquelas criadas pela indústria e pela exploração do Terceiro Mundo (dois produtos da sociedade burguesa). Parece que a ciência não é de modo algum efi- caz para resolver as grandes questões éticas e sociopolí- ticas da humanidade~ Mais ainda, alguns lhe atribuem um papel no estabelecimento das desigualdades mundiais.** É por isso que, hoje, muitos, ao mesmo tempo que reco- nhecem a eficácia e a performance da ciência e da técnica, recusam-se a reduzir a elas a sua visão do mundo." FOUREZ, Gérard. A construção das ciências: introdução à fi losofia e à ética das ciências. São Paulo: Unesp, 1995. p. 163-165. ' REEVES, H. L'heure de s 'enivrer : l'univers a-t-il un sens? Paris: Seuil , 1986 . .. MORAZE, Ch. (et ai.) La science et les facteurs de l 'inégalité. Paris: Unesco, 1979. m Quais são os dois resultados do progresso, segundo a análise de Fourez? 1!1 No século XVII, o filósofo Francis Bacon antevia que a ciência nos faria "mestres e senhores" da natureza: delineava-se aí o "ideal baconiano". Como Fourez se posiciona a respeito? lEI Faça uma reflexão pessoal sobre a última frase do texto. 290 Unidade 6 ·Filosofia das ciências
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