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This periodical is indexed in the ATLA Religion Database, published by the American Theological Library Association, 250 S. Wacker Dr., 16th Flr., Chicago, IL 60606, USA, e-mail: atla@atla.com, www.atla.com. Fides Reformata também está incluída nas seguintes bases indexadoras: CLASE (www.dgbiblio.unam.mx/clase.html), Latindex (www. latindex.unam.mx), Francis (www.inist.fr/bbd.php), Ulrich’s International Periodicals Directory (www.ulrichsweb.com/ulrichsweb/) e Fuente Academica da EBSCO (www.epnet.com/thisTopic.php?marketID=1&topicID=71). Editores Gerais Daniel Santos Júnior Dario de Araujo Cardoso Editor de resenhas Filipe Costa Fontes Redator Alderi Souza de Matos Editoração Libro Comunicação Capa Rubens Lima Fides reformata – v. 1, n. 1 (1996) – São Paulo: Editora Mackenzie, 1996 – Semestral. ISSN 1517-5863 1. Teologia 2. Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. CDD 291.2 INSTITUTO PRESBITERIANO MACKENZIE Diretor-Presidente José Inácio Ramos CENTRO PRESBITERIANO DE PÓS-GRADUAÇÃO ANDREW JUMPER Diretor Mauro Fernando Meister Igreja Presbiteriana do Brasil Junta de Educação Teológica Instituto Presbiteriano Mackenzie Volume XXII · Número 2 · 2017 Edição ESpEcial 5º cEntEnário da rEforma protEStantE CONSELHO EDITORIAL Augustus Nicodemus Lopes Davi Charles Gomes Heber Carlos de Campos Heber Carlos de Campos Júnior Jedeías de Almeida Duarte João Alves dos Santos João Paulo Thomaz de Aquino Mauro Fernando Meister Valdeci da Silva Santos A revista Fides Reformata é uma publicação semestral do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Os pontos de vista expressos nesta revista refletem os juízos pessoais dos autores, não representando necessariamente a posição do Conselho Editorial. Os direitos de publicação desta revista são do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. Permite-se reprodução desde que citada a fonte e o autor. Pede-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. Se solicita canje. Si chiede lo scambio. ENDEREÇO PARA CORRESPONDÊNCIA Revista Fides Reformata Rua Maria Borba, 40/44 – Vila Buarque São Paulo – SP – 01221-040 Tel.: (11) 2114-8644 E-mail: pos.teo@mackenzie.com.br ENDEREÇO PARA PERMUTA Instituto Presbiteriano Mackenzie Rua da Consolação, 896 Prédio 2 – Biblioteca Central São Paulo – SP – 01302-907 Tel.: (11) 2114-8302 E-mail: biblio.per@mackenzie.com.br Editorial Em 31 de outubro de 2017 completam-se 500 anos do marco histórico da Reforma Protestante. O monge agostiniano Martin Luther, professor de Bíblia da Universidade de Wittenberg, afixou nas portas da igreja da cidade 95 teses que criticavam a prática da venda de indulgências por ameaçar o verdadeiro tesouro da igreja: o evangelho. Essa publicação provocou uma discussão de proporções seculares e deu ocasião à maior cisão da Igreja do ocidente na história. As repercussões do movimento iniciado por Lutero transformaram completamente a sociedade e a cultura da Europa e, nestes 500 anos, alcan- çaram todo o mundo. São incalculáveis os tesouros teológicos acumulados nesse período. A Reforma Protestante teve papel fundamental em grandes transformações eclesiásticas, políticas, científicas, educacionais, culturais, sociais, etc. Por outro lado, meio milênio é tempo suficiente para o esquecimento de verdades preciosas e o (res)surgimento de velhos e novos enganos e distorções da fé e da prática cristãs. Nem tudo são flores nesses quinhentos anos. Nesta edição especial da revista Fides Reformata, os professores do Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper reuniram-se para promover um mergulho na história e no pensamento da Reforma Protestante. No primeiro artigo – “A Reforma e os historiadores” – Alderi Souza de Matos apresenta as diferentes abordagens e avaliações de historiadores so- bre a Reforma Protestante e traz à luz os desafios envolvidos no estudo e na compreensão de movimentos históricos. Em seguida, em “O papel da música na Reforma e a formação do Saltério de Genebra”, Dario de Araujo Cardoso descreve as contribuições que Lutero e Calvino trouxeram no que diz respeito ao uso da música no culto e ao canto congregacional. Destaca como os refor- madores reconheceram e utilizaram o poder de mobilização e edificação da música para a promoção dos valores da Reforma. No terceiro artigo – “Lutero e os antinomistas: Qual é a visão evangélica da lei?” – Heber Carlos de Campos Jr. mostra que o movimento reformado não era monolítico e apresenta uma das discussões internas ao luteranismo acerca da relação do arrependimento com a lei e o evangelho. O texto mostra como Lutero, Melanchton e João Agrícola discutiram sobre a necessidade de pregar a lei para promover o arrependimento. Mostra também que a resposta antinomista à discussão da relação entre lei e evangelho, longe de ficar restrita ao contexto luterano, ressurgiu entre os ingleses e está presente no cenário evangélico contemporâneo. Vemos assim que o antinomismo é um desafio frequente a ser enfrentado pela teologia oriunda da Reforma. O artigo “O perigo a ser evitado numa reforma”, de Heber Carlos de Campos, apresenta-nos dois aspectos da teologia de Melanchton que se afastaram do pensamento de Lutero. Eles dizem respeito à participação do homem na salvação e à presença de Cristo na Ceia. O artigo mostra como esse distanciamento posteriormente causou conflitos e divisões entre os luteranos e levou Melanchton a perder o lugar de destaque que possuía nessa tradição da Reforma. A escatologia tem sido apontada como o aspecto ausente do pensamento da Reforma. Entretanto, o artigo “O pensamento escatológico de Calvino”, de Leandro Antonio de Lima, faz-nos perceber que importantes tópicos desse campo da teologia estão presentes nos escritos de Calvino. O reformador ge- nebrino escreveu sobre o Anticristo, a vida futura, a ressurreição, o milênio e o estado intermediário. O artigo trata, por fim, da percepção de Calvino sobre as limitações da linguagem humana para descrever como será o mundo vindouro, chamando nossa atenção para os cuidados necessários a essa discussão. Os estudos hermenêuticos fazem-se presentes no artigo “A hermenêutica cristotélica de João Calvino”, de João Paulo Thomaz de Aquino. Nele vemos que Calvino praticou uma interpretação que buscava demonstrar como os textos do Antigo Testamento apontavam para Cristo. Para ilustrá-la o autor apresenta afirmações de Calvino sobre a lei, os profetas e os salmos. O artigo também promove uma comparação com a abordagem de Erasmo de Roterdã, chamada de cristológica, e a de Lutero, denominada cristocêntrica. Os debates teológicos também são o tema do artigo “Calvino e o lapsaria- nismo”, de João Alves dos Santos. Os calvinistas dividiram-se em dois grandes grupos no que diz respeito à relação entre os decretos da eleição e da reprovação dos homens. Tanto supralapsarianos quanto infralapsarianos afirmam seguir o pensamento do Calvino sobre o tema. O artigo analisa a discussão e mostra que uma pesquisa nos escritos de Calvino, ainda que forneça algum apoio, não confirmará as alegações de nenhum dos grupos. O artigo em inglês dessa edição foi escrito por Elias Medeiros. “The re- formers and missions: Warneck, Latourette, Neill, Kane, Winter, and Tucker’s arguments – part 2” é a continuação do artigo publicado por Medeiros na edi- ção de 2013-1 de nossa revista. Seu objetivo é contestar, com base em obras primárias, a tese de alguns historiadores de que os reformadores não tinham preocupação com missões estrangeiras. A seção de resenhas continua o espírito celebrativo da edição e também se dedica a obras que fazem referência à Reforma. Nesta edição trazemos avaliações dos livros Calvino e a Vida Cristã, O Legado Missional de Calvino, O Pensamento da Reforma e Cuidado com o Alemão. Dario de Araujo Cardoso apresenta-nos Calvino e a Vida cristã, do norte- -americano Michael Horton. Através de uma rica exposição, a obra buscamostrar que a teologia de Calvino não provém de um intelectualismo árido, mas está calcada num sólido e frutífero conceito de piedade. Filipe Costa Fontes escreveu a resenha de O Legado Missional de Calvino, do inglês Michael Haykin e do estadunidense C. Jeffrey Robinson. A obra busca mostrar a presença do conceito de missões no pensamento e nas ações de Calvino. Apresenta também como o tema foi abordado pelos herdeiros da tradição calvinista. Na resenha de O Pensamento da Reforma, do norte- -irlandês Alister McGrath, Filipe Fontes convida-nos a uma leitura abrangente, didática e instrutiva da história e do pensamento da Reforma em seu caráter eminentemente religioso. Na resenha de Cuidado com o Alemão, do português Tiago Cavaco, o convite de Tarcízio José de Freitas Carvalho é para conhecer mais profunda- mente o impacto do pensamento de Lutero sobre sua época e sobre a cultura ocidental posterior. Em face do atual contexto de imediatismo existencial que despreza o passado e reduz o futuro à projeção de interesses pessoais, esta edição de Fides Reformata permitirá ao leitor um vislumbre da grandeza e da abrangência dos eventos e do pensamento da Reforma e o desafiará a refletir com mais profun- didade sobre como as ações e movimentos do presente refletem o passado e qual o potencial de seus efeitos para o futuro. É um prazer apresentar a edição especial de Fides Reformata dedicada à celebração dos 500 anos da Reforma Protestante. Esperamos que ela seja de grande contribuição espiritual e acadêmica para todos os que a receberem. Sejam todos bem-vindos. Dr. Dario de Araujo Cardoso Editor Sumário Artigos a rEforma E oS hiStoriadorES Alderi Souza de Matos .................................................................................................................. 11 o papEl da múSica na rEforma E a formação do Saltério de Genebra Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 23 lutEro E oS antinomiStaS: Qual é a viSão Evangélica da lEi? Heber Carlos de Campos Júnior .................................................................................................. 43 o pErigo a SEr Evitado numa rEforma Heber Carlos de Campos .............................................................................................................. 67 o pEnSamEnto EScatológico dE calvino Leandro Lima ................................................................................................................................ 85 a hErmEnêutica criStotélica dE João calvino João Paulo Thomaz de Aquino ..................................................................................................... 99 calvino E o lapSarianiSmo: uma avaliação dE como calvino podE SEr lido à luz da diScuSSão Supra E infralapSariana João Alves dos Santos ................................................................................................................... 117 thE rEformErS and miSSionS: WarnEck, latourEttE, nEill, kanE, WintEr, and tuckEr’S argumEntS – part 2 Elias Medeiros .............................................................................................................................. 139 resenhAs calvino E a vida criStã (michaEl horton) Dario de Araujo Cardoso.............................................................................................................. 163 o lEgado miSSional dE calvino (m. a. g. haykin E c. J. robinSon) Filipe Costa Fontes ....................................................................................................................... 169 o pEnSamEnto da rEforma (aliStEr mcgrath) Filipe Costa Fontes ....................................................................................................................... 175 cuidado com o alEmão – trêS dEntadaS QuE martinho lutEro dá à noSSa época (tiago cavaco) Tarcizio Carvalho .......................................................................................................................... 179 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 11 * Doutor em Teologia (Th.D.) pela Escola de Teologia da Universidade de Boston, professor de teologia histórica no CPAJ, historiador da Igreja Presbiteriana do Brasil. a rEforma E oS hiStoriadorES Alderi Souza de Matos* RESUMO A Reforma Protestante, movimento que completa o seu 5º centenário, tem sido objeto de intenso escrutínio por parte dos estudiosos. Esse interesse se deve à relevância do fenômeno e suas vastas consequências para o mundo moderno. Ao mesmo tempo, trata-se de um tema altamente controvertido, no qual variam grandemente as perspectivas e interpretações. Inicialmente, este artigo faz algumas considerações historiográficas gerais, passando em seguida a abordar alguns tópicos que têm sido objeto de divergências e reconsiderações nas últimas décadas. São eles o caráter múltiplo da Reforma do século 16, suas fontes intelectuais, sua motivação prioritária e suas consequências. Por últi- mo, são feitas algumas considerações sobre o legado duradouro desse evento histórico iniciado há 500 anos. PALAVRAS-CHAVE Reforma Protestante; 500 anos da Reforma; Historiografia; Historiadores; Interpretações da Reforma. INTRODUÇÃO Como é natural, o transcurso do 5º centenário da Reforma Protestante tem suscitado um grande número de reflexões de natureza bíblica, teológica, litúrgica e pastoral. Embora essas perspectivas sejam altamente relevantes, as comemorações, por sua própria natureza, remetem em primeiro lugar ao aspecto histórico. É acima de tudo um evento ou conjunto de eventos – o início do movimento protestante – que está sendo lembrado. Ao mesmo tempo, o estudo ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 12 do protestantismo emergente como fenômeno histórico levanta uma série de questões teóricas e metodológicas que precisam ser consideradas. Desde o seu início, a Reforma tem sido objeto de diferentes interpreta- ções e avaliações, dependendo da perspectiva do estudioso. Por muito tempo, as abordagens foram fortemente condicionadas por preocupações polêmicas e apologéticas de protestantes e católicos, ou mesmo dos diferentes grupos evangélicos. A partir do século 18, com o desenvolvimento da história em bases científicas, surgiu um tratamento mais objetivo e menos partidário do tema. Porém, dada a imensa complexidade da Reforma em suas múltiplas di- mensões – religiosa, teológica, política, social – multiplicaram-se grandemente as interpretações de suas origens, natureza e significado. Este artigo considera inicialmente alguns aspectos historiográficos gerais para então se concentrar nas maneiras pelas quais a Reforma tem sido avaliada por diferentes historiadores recentes, religiosos e seculares, progressistas e conservadores. Vale lembrar que, ao lado das inevitáveis diferenças de pers- pectiva, as extensas pesquisas das últimas décadas também têm resultado em alguns consensos importantes e valiosos no que diz respeito a muitos aspectos da Reforma. No final, são feitas algumas considerações sobre a relevância atual da obra dos reformadores. 1. QUESTÕES HISTORIOGRÁFICAS James Bradley e Richard Muller observam que “antes de meados do século 18, o estudo da história da igreja era acrítico; ela era quase invariavel- mente escrita desde uma perspectiva confessional, sendo qualquer coisa menos desinteressada”.1 Dois exemplos clássicos são encontrados no próprio século 16. Um deles são as famosas Centúrias de Magdeburgo (1559-1574), escritas por um grupo de estudiosos liderados por Matias Flacius Illyricus. Essa história da igreja produzida sob o ponto de vista luterano procurou demonstrar que o luteranismo era uma afirmação do que havia de melhor na antiga tradição cristã. Em resposta, o erudito católico César Barônio publicou seus igualmente volumosos Anais Eclesiásticos (1588-1607), argumentando em favor da conti- nuidade entre o catolicismo do século 16 e os primeirosséculos da era cristã.2 Em meados do século 18, na esteira do Iluminismo e em certa medida do Pietismo, duas mudanças básicas de perspectiva foram essenciais para o surgimento da historiografia crítica: maior preocupação científica com a aná- lise de documentos originais e liberdade para interpretar as fontes de maneira mais isenta e objetiva. Surgiu assim uma importante linhagem de historiadores em moldes científicos, todos eles alemães, a começar de Johann Lorenz von 1 BRADLEY, James E.; MULLER, Richard A. Church history: An introduction to research, reference works, and methods. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1995, p. 11. Minha tradução. 2 GONZÁLEZ, Justo L. The changing shape of church history. Saint Louis, MO: Chalice Press, 2002, p. 133-136. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 13 Mosheim (1694-1755), considerado “o pai da história da igreja”. Vieram a seguir, sob a influência do movimento romântico, Gottfried Herder (1744-1803), August Neander (1789-1850) e Friedrich Tholuck (1799-1877). Nos Estados Unidos, um personagem muito influente foi Philip Schaff (1819-1893), consi- derado o pai da história da igreja americana. Todos eles se preocuparam com a objetividade no estudo histórico, com dados factuais e com a dedução de leis gerais de desenvolvimento histórico.3 Ao longo da primeira metade do século 20 ocorreu uma oscilação nes- se último tópico, alguns historiadores questionando e outros defendendo a importância da busca de significado na história da igreja e a possibilidade de uma visão objetiva do passado. As décadas mais recentes, posteriores a 1950, testemunharam vários desdobramentos historiográficos importantes, como o surgimento do interesse pela participação histórica das mulheres e de grupos minoritários; a chamada “nova história”, com seu apelo às ciências sociais; a ênfase na micro-história, com sua concentração em tópicos extremamente delimitados, e o enfoque mais colaborativo e interdisciplinar. Bradley e Muller defendem que o alvo do historiador deve ser a reintegração das partes analisadas separadamente em um todo maior, de âmbito mais geral.4 Uma questão permanentemente debatida tem a ver com a objetividade no estudo da história. Nos séculos 19 e 20 esse interesse se tornou o principal crité- rio de avaliação nas ciências históricas, conforme exemplificado por estudiosos como Leopold von Ranke e Adolf von Harnack. Dizia-se que “a principal tarefa da história era apresentar os eventos como eles aconteceram e até mesmo lê-los com tamanha objetividade que o historiador os entendia melhor do que aqueles que os vivenciaram”.5 Todavia, o que se constatou é que nenhum historiador é totalmente isento, mas transfere para o seu trabalho suas preferências, pressu- posições e compromissos filosóficos. Para muitos estudiosos, essa ânsia pela objetividade é na verdade algo indesejável. O pesquisador mexicano Carlos Rojas considera o mito da objetividade e da neutralidade um “pecado capital” dos historiadores não críticos.6 Um simpatizante do pensamento marxista, ele acredita que é impossível conceber-se uma história na qual o estudioso não se envolva de algum modo, mantendo total desinteresse e indiferença.7 Essas considerações têm evidente relevância para os estudos históricos sobre a Reforma Protestante. Essa história só poderá ser entendida adequa- damente mediante o estudo criterioso das fontes documentais primárias e 3 BRADLEY e MULLER, Church history, p. 13-20. 4 Ibid., p. 25. 5 GONZÁLEZ, The changing shape, p. 139. Minha tradução. 6 ROJAS, Carlos Antonio Aguirre. Antimanual do mau historiador. Ou como se fazer uma boa história crítica? Londrina, PR: Eduel, 2007, p. 29. 7 Ibid., p. 30. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 14 secundárias. Essa história precisará deter-se nos aspectos pontuais, tais como personagens e eventos, e ao mesmo tempo relacioná-los com o quadro mais amplo, o contexto religioso-político-social da Europa quinhentista. Essa história deve buscar a objetividade e a serenidade na análise dos dados, sem deixar de lado a simpatia pelo assunto, o envolvimento pessoal com os temas sob estudo. Para os cristãos que creem na ação providencial de Deus, ela também inclui a busca de significados maiores, muitas vezes não inteiramente óbvios, que trazem lições para a contemporaneidade. 2. ABORDAGENS DOS HISTORIADORES São muitos os estudiosos que se têm debruçado sobre o estudo histó- rico da Reforma, quer como pesquisadores da história da igreja em geral, quer como especialistas sobre os próprios fenômenos do século 16. Entre os primeiros, são mais conhecidos nos círculos protestantes indivíduos como Williston Walker, Kenneth S. Latourette, Owen Chadwick, Earle E. Cairns e Howard Clark Kee; entre os últimos, Thomas M. Lindsay, John T. McNeill, James Hastings Nichols, Roland Bainton, Harold J. Grimm e muitos outros.8 Todavia, o objetivo deste artigo é considerar as abordagens e interpretações sobre a Reforma fornecidas por uma geração mais recente de historiadores de diferentes persuasões. Trata-se de uma lista seletiva e exemplificativa, visto ser impossível considerar todos os autores que têm se dedicado ao tema. O objetivo é fornecer um panorama dos principais interesses e enfoques que os estudiosos da Reforma têm demonstrado na atualidade. 2.1 Pluralidade de reformas Até algum tempo atrás, falava-se sempre em “Reforma do século 16”, no singular, como se ela fosse um movimento monolítico e uniforme. Além disso, o termo era aplicado quase que exclusivamente às igrejas protestantes, à exclusão da Igreja Católica Romana. Hoje é lugar comum na historiografia falar-se nas “reformas” ocorridas naquele período. Isso pode ser percebido, por exemplo, em textos do luterano Carter Lindberg, professor emérito de história da igreja na Escola de Teologia de Universidade de Boston, como o conjunto de ensaios “A Idade Média tardia e as reformas do século 16”9 e o importante livro As Reformas na Europa.10 8 A mais antiga história da Reforma publicada continuamente no Brasil até o presente é História da Reforma do Décimo Sexto Século, do pastor protestante suíço Jean-Henri Merle D’Aubigné (1794-1872). O primeiro a traduzir essa obra para o português foi o escritor Júlio Ribeiro. 9 Parte III de: KEE, Howard Clark et al. Christianity: A social and cultural history. Nova York: Macmillan; Toronto: Collier Macmillan, 1991. 10 LINDBERG, Carter. As reformas na Europa. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2001. Outra ocorrência do conceito pode ser encontrada em: DOWLEY, Tim (Org.). História do cristianismo: Guia ilustrado. Venda Nova, Portugal: Bertrand, 1995, p. 410. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 15 Essa ênfase significou uma valorização de dois grupos em particular – os anabatistas e os católicos romanos. Por muito tempo, a chamada “reforma ma- gisterial”, ou seja, o luteranismo, a reforma suíça e o anglicanismo, recebeu todas as atenções. Trata-se dos grupos protestantes originais que receberam forte apoio e envolvimento dos magistrados, as autoridades civis. A “reforma radical”, representada principalmente pelos anabatistas, era o “primo pobre” do século 16, ocupando um lugar periférico nos estudos sobre a Reforma Pro- testante. Hoje, esse movimento recebe grande atenção dos pesquisadores, que reconhecem sua importância, originalidade e contribuições. Quanto à Igreja Romana, tradicionalmente se falava apenas em “Con- trarreforma”, algo que incluía a Inquisição, a ação dos jesuítas e as guerras religiosas. Sem deixar de reconhecer esse fenômeno de grandes consequências, a maior parte dos autores atuais argumenta que também houve uma verdadeira “Reforma Católica”, certamente diferente do que ocorreu no âmbito do protes- tantismo, porém ainda assim um conjunto de esforços que revelaram genuíno interesse em corrigir antigos males e aperfeiçoar o arcabouço doutrinário dessa igreja. A principal expressão dessa reforma católica foi o Concílio de Trento (1545-1563). 2.2As origens da Reforma Tradicionalmente, as fontes do movimento protestante e do pensamento dos reformadores sempre foram associadas com a Bíblia e com o período pa- trístico, notadamente o pensamento amadurecido do grande bispo e teólogo Agostinho de Hipona. Era como se os reformadores do século 16 tivessem se reportado somente ao cristianismo antigo, não tendo recebido nenhuma influência do seu próprio tempo ou dos séculos imediatamente anteriores. Hoje se reconhece que as origens da Reforma também devem ser buscadas no escolasticismo do final da Idade Média e no humanismo renascentista. Um dos autores que trabalham essa questão é o historiador e teólogo irlandês Alister McGrath, em seus livros Origens Intelectuais da Reforma e O Pensamento da Reforma.11 Apesar de sua imagem negativa, o escolasticismo foi um importante esforço no sentido de justificar racionalmente as crenças cristãs por meio da reflexão filosófica, e apresentá-las de modo sistemático, formando um sistema intelectual abrangente e integrado. Foi, assim, um modo particular de articu- lar e estruturar a teologia. A chamada escolástica teve duas fases, a primeira dominada pelo “realismo” (c.1200-c.1350) e a segunda pelo “nominalismo” (c.1350-c.1500), posições opostas no que diz respeito à existência concreta dos conceitos universais. O escolasticismo do tipo realista teve duas manifestações, 11 MCGRATH, Alister E. Origens intelectuais da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2007; O pensamento da Reforma. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 16 o tomismo (de Tomás de Aquino) e o scotismo (de Duns Scotus), os quais não exerceram maior influência sobre a Reforma. A vertente nominalista também se dividiu em duas alas, a via moderna e a schola augustiniana moderna, sen- do a primeira de tendência pelagiana e a segunda alinhada com a teologia de Agostinho e sua ênfase na plena soberania de Deus na salvação. Esta última teve um impacto considerável no pensamento de Lutero. Quanto ao humanismo, McGrath observa: “Dos muitos afluentes inte- lectuais e culturais que contribuíram para o fluxo da Reforma, provavelmente o mais importante foi o humanismo renascentista”.12 Os humanistas, ou seja, os intelectuais do Renascimento, eram indivíduos religiosos e se interessavam pela renovação da igreja. Seu famoso lema Ad fontes – “de volta às origens” – dirigiu suas atenções não somente para os textos da antiguidade clássica de um modo geral, mas para uma obra em particular, a Bíblia, vista como o instrumento para dinamizar e revitalizar o cristianismo da época. Quem mais insistiu nisso foi o holandês Erasmo de Roterdã, o “príncipe dos humanistas”, em seu livro Enchiridion militis christiani (“Manual do soldado cristão”), no qual exaltou o papel dos leigos e seu direito de amplo acesso à Escritura. Ele também foi responsável por uma edição do Novo Testamento em grego e latim (1516), que causou profundo impacto na época, em parte pelo fato de apontar alguns erros de tradução na Vulgata de Jerônimo. McGrath argumenta que a influência do humanismo foi muito maior na Reforma suíça do que na alemã.13 Alguns autores, como Pierre Chaunu e Steven Ozment, colocam as reformas do século 16 num contexto mais amplo de reformas que vinham ocorrendo desde o século 13.14 2.3 A motivação primária Uma questão constantemente discutida com relação à Reforma diz respeito à sua natureza primordial. Historiadores com viés marxista tendem a ignorar ou minimizar o aspecto religioso, não somente no que diz respeito à Reforma, mas a qualquer outro fenômeno histórico. Para eles, indo contra tantas evidên- cias factuais, a religiosidade é uma questão subalterna, decorrente de outros fatores de maior relevância histórica. Carlos Rojas, ao defender a importância de uma história total, afirma que “é igualmente relevante estudar o cultural, o social, o econômico, ou o político, o psicológico, o geográfico, etc.”,15 deixando, caracteristicamente, de mencionar o elemento religioso. 12 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 54. 13 Ibid., p. 73-75. 14 CHAUNU, Pierre. O tempo das reformas (1250-1550). 2 vols. Lisboa: Edições 70, 1993 (1975). OZMENT, Steven. The Age of Reform 1250-1550: An intellectual and religious history of late medieval and Reformation Europe. New Haven, CT: Yale University Press, 1980. 15 ROJAS, Antimanual do mau historiador, p. 95. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 17 Todavia, existem aqueles que, mesmo reconhecendo a preponderância do fator religioso na Reforma, nutrem uma desconfiança em relação ao mesmo. Daí a advertência do ilustre historiador e teólogo holandês Heiko Oberman, que lecionou nas universidades de Harvard, Tübingen e Arizona. Ele argumentou que os estudiosos da Reforma devem resistir a algumas tendências modernas. Uma delas é a atitude daqueles que, movidos por in- tenções ecumênicas, atribuem a divisão da cristandade ocidental a disputas dogmáticas vistas como “equívocos”. Oberman observa que qualquer apro- ximação ecumênica feita dessa maneira só poderá ocorrer “se a doutrina da justificação, central para a Reforma, for truncada para se encaixar nos pronunciamentos do Concílio de Trento ou reformulada em termos de ser a precursora da ‘autorrealização’ psicológica”. Ele conclui: “Em qualquer caso, o preço é exorbitante: a própria doutrina da justificação”.16 Esse é, por exemplo, um dos problemas com a chamada “nova perspectiva sobre Pau- lo”, que considera inadequado o entendimento luterano e calvinista clássico acerca da justificação pela fé somente. De modo menos otimista, o autor Euan Cameron avalia que a Reforma foi a primeira ideologia de massa dos tempos modernos. Todavia, ele reconhece o primado do elemento religioso e doutrinário ao afirmar: A qualidade singular da Reforma Protestante consiste no fato de que ela tomou uma única ideia essencial; apresentou essa ideia a todos e incentivou a discus- são pública; então deduziu dessa ideia o restante das mudanças no ensino e no culto; finalmente, desmontou todo o tecido da igreja institucional e construiu novamente a partir da estaca zero, incluindo somente o que era consistente com a mensagem religiosa básica, e exigido por ela.17 Muitos historiadores contemporâneos negam que a Reforma tenha resultado de uma suposta corrupção católica. O historiador Patrick Collin- son, professor emérito de história moderna na Universidade de Cambridge, observa: “Explicações da Reforma em termos de decadência, irreligião e corrupção são as mais tradicionais e ainda infestam manuais medíocres”.18 Diarmaid MacCulloch, professor de história da igreja na Universidade de Oxford, acrescenta: 16 OBERMAN, Heiko A. The Reformation: roots and ramifications. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1994, p. xii. Minha tradução. 17 CAMERON, Euan. The European reformation. New York: Oxford University Press, 1991, p. 422. Minha tradução. 18 COLLINSON, Patrick. The late medieval church and its reformation: 1400-1600. In: MCMAN- NERS, John (Org.). The Oxford Illustrated History of Christianity. Oxford: Oxford University Press, 1992, p. 246. Minha tradução. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 18 Uma conclusão a ser tirada do acúmulo das pesquisas recentes sobre a Igreja Latina antes da convulsão é que ela não era tão corrupta e ineficaz como os protestantes tendem a retratá-la, e que ela em geral satisfazia as necessidades espirituais das pessoas do final do período medieval.19 Ao mesmo tempo, esses autores reconhecem o tremendo apelo popular que as ideias religiosas da Reforma exerceram no século 16. Falando sobre o extraordinário crescimento do protestantismo na França, Collinson observa que em 1560 mais da metade da nobreza era protestante e com ela grande parte da nação. Esse fenômeno resultou de milhares de decisões pessoais de abraçar o evangelho, tão pessoais como a constatação da esposa de um comer- ciante de Lião “de que ela encontrava mais satisfação espiritualao ler a sua Bíblia e ao ouvir pregadores calvinistas do que nas ministrações do sacerdote a quem devia confessar”.20 Collinson observa que na França, na Inglaterra e na Holanda, centenas de pessoas comuns, de ambos os sexos, se dispuseram a ser queimadas vivas por suas novas convicções protestantes, e conclui que a Reforma “foi feita na sociedade, e não imposta sobre ela”.21 2.4 As consequências da Reforma A questão dos efeitos da Reforma ou da sua influência sobre a sociedade e a cultura nos séculos posteriores, o chamado mundo moderno, é outro tema altamente debatido nos estudos históricos. As opiniões acerca do assunto abran- gem um espectro de grande amplitude, desde aqueles que, de modo ufanista, atributem ao movimento protestante um conjunto estupendo de legados para o mundo ocidental, até os que questionam ou relativizam tais contribuições. Um exemplo dessa última atitude é o livro Reforma: o Cristianismo e o Mun- do 1500-2000, de Felipe Fernández-Armesto e Derek Wilson, autores que se identificam respectivamente como “um católico romano, com tentações tridentinas às quais resiste nostalgicamente” e um “evangélico protestante, com tendências carismáticas cultivadas parcimoniosamente”.22 Esses autores opinam que as mudanças comumente atribuídas à Reforma parecem menos convincentes com o passar do tempo e que “é difícil resistir à impressão de que um preconceito favorável ao protestantismo influenciou a forma pela qual alguns efeitos de grande alcance foram atribuídos a ele”.23 19 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xx. Minha tradução. 20 COLLINSON, The late medieval church and its reformation, p. 245. Minha tradução. 21 Ibid. Minha tradução. 22 FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; WILSON, Derek. Reforma: o cristianismo e o mundo 1500-2000. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 12. 23 Ibid., p. 372, 376. Ao mesmo tempo, o livro procura transmitir uma visão quase benigna da Inquisição (p. 384). FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 19 Poder-se-ia argumentar que a recíproca é inteiramente verdadeira: o pre- conceito contra o protestantismo também pode contribuir para minimizar ou relativizar as consequências muitas vezes atribuídas ao movimento. Entre os efeitos questionados por esses dois autores estão o individualismo, a ascensão do capitalismo, o declínio da magia, a revolução científica, o sonho america- no e as liberdades civis. Tudo isso é intrigante diante do fato de que uma das propostas do livro é conclamar católicos e protestantes a se unirem na luta contra o secularismo.24 Outro autor que não tem simpatias pelas contribuições do protestantismo é o historiador galês Christopher Dawson (1889-1970), educado como angli- cano e convertido ao catolicismo. O título de um de seus livros, A Divisão da Cristandade, expressa fielmente a sua posição. Para ele, a Reforma, acima de qualquer outra consideração, provocou a ruptura da unidade cristã e os efeitos foram catastróficos. Diz ele: Ao longo de três séculos, o abismo entre o mundo católico e o protestante per- sistiu e cresceu cada vez mais com o passar do tempo. E foi esse cisma cultural e político, bem como religioso e eclesiástico, que, em última análise, foi o responsável pela secularização da cultura ocidental.25 Uma atitude semelhante é demonstrada por Diarmaid MacCulloch, que, embora não seja um protestante praticante, diz reter uma cordial simpatia pelo anglicanismo no que ele tem de melhor. Para ele, no século 16 a “sociedade ocidental, previamente unificada pela liderança simbólica do papa e pela posse de uma cultura latina comum, foi dilacerada por profundos desentendimentos sobre como os seres humanos devem exercer o poder de Deus no mundo, discussões até mesmo sobre o que significava ser humano”.26 Uma das obras mais influentes sobre os primórdios da Reforma foi pu- blicada em 1928 pelo historiador francês Lucien Febvre (1878-1956), um dos fundadores da Escola dos Annales e precursor da chamada Nova História. Sua magistral biografia de Lutero, calcada em vasta pesquisa documental, contempla em especial os anos de 1517 a 1525 da vida desse “profeta inspirado”. O autor chega a conclusões sombrias: para ele, o reformador alemão fracassou e seu destino foi trágico. Em sua avaliação, quando Lutero, no final da vida, “lançava 24 Nos anos 60, no contexto do Concílio Vaticano II, autores católicos publicaram avaliações mais positivas da Reforma. Por exemplo: DANIEL-ROPS, Henri. A igreja da Renascença e da Reforma. São Paulo: Quadrante, 1996 (1961); DOLAN, John P. History of the Reformation: a conciliatory assessment of opposite views. Nova York: Desclee, 1965. 25 DAWSON, Christopher. A divisão da cristandade: da Reforma Protestante à era do Iluminismo. São Paulo: É Realizações, 2014, p. 194. 26 MACCULLOCH, Diarmaid. The Reformation. Nova York: Penguin, 2004, p. xix. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 20 o olhar em volta de si, via no solo mais ruínas que construções”.27 Ele sacudiu o jugo do papa, mas colocou em seu lugar o jugo ainda mais opressor do Estado. 3. O LEGADO DA REFORMA Como se pode observar, o juízo dos historiadores seculares, católicos e até mesmo de muitos protestantes sobre a Reforma Protestante pode ser bastante severo. No entanto, alguns estudiosos procuram destacar diversos legados construtivos, como é o caso de Alister McGrath. Falando sobre o impacto da Reforma na história, ele arrola os seguintes fatores: uma atitude positiva em relação ao mundo, a ética protestante do trabalho, sua influência sobre o ca- pitalismo, as mudanças políticas, sua conexão com o surgimento das ciências naturais.28 No final do seu livro sobre as reformas na Europa, Carter Lindberg afirma que “os legados das Reformas afetaram cada aspecto da vida e do pen- samento modernos”.29 Ele menciona, entre outras, as seguintes áreas que foram atingidas: política, cultura, mulheres, tolerância, economia, educação, ciência, literatura e artes. O historiador Patrick Collinson observa: “É inevitável que uma coisa tão ampla como a Reforma tenha sido considerada causa de muitas coisas... é possível considerá-la causa de quase tudo o que quisermos”.30 É preciso lembrar que, sendo a Reforma acima de tudo um movimento de natureza religiosa e doutrinária, o seu maior legado se deu nessa área. O eminente historiador Owen Chadwick, falecido em 2015, observou: “Depois de Lutero, não era possível, seja aos protestantes ou aos católicos, imitar algumas das velhas maneiras de negligenciar a graça e a soberania de Deus. Na medida em que o Protesto consistiu no brado de Lutero de que a salvação não era por meio do ritual... o Protesto foi triunfante”.31 Mais concretamente, Lutero insistiu no fato de que o ser humano só pode ser salvo pela graça de Deus, e não por qualquer mérito, virtude ou esforço pessoal. Somente pela fé, ela mesma também uma dádiva divina, podemos nos apropriar do que Cristo fez por nós. Collinson observa: “A doutrina de Lutero de que o homem é re- dimido exclusivamente por meio da fé libertava o homem da moralidade, mas também para a moralidade”. E conclui: “Aí se encontra a diferença essencial entre o que se tornaria o Protestantismo e o Catolicismo, tal como este foi reconstituído no Concílio de Trento”.32 27 FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. Porto Codex, Portugal: Edições Asa, 1994, p. 264. 28 MCGRATH, O pensamento da Reforma, p. 286-300. 29 LINDGERG, As reformas na Europa, p. 423. 30 COLLINSON, Patrick. A Reforma. Rio de Janeiro: Objetiva, 2006, p. 229-230. 31 CHADWICK, Owen. The Reformation. The Pelican History of the Church. Londres: Penguin, 1988, p. 444. 32 COLLINSON, A Reforma, p. 75. Minha tradução. FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 11-22 21 O historiador norte-americano Mark Noll, depois de reconhecer deficiên- cias na Reforma e na personalidade de Lutero, argumenta que a concepção do reformador acerca de Deus deixou marcas profundas na história cristã. Ele se refere especificamenteà chamada “teologia da cruz”, já presente nas teses 92-95 de 1517.33 Para Lutero, encontrar a Deus era encontrar a cruz. “O cristianismo torna-se uma realidade nas vidas humanas quando homens e mulheres participam da morte de Cristo ao experimentarem a destruição de suas próprias pretensões quando estão coram Deo (na própria presença de Deus)”.34 O reformador contrastou essa atitude com a “teologia da glória”, que leva os seres humanos a confiarem em si mesmos, na sua própria percepção acerca de Deus e do mundo. Aquele que deseja encontrar a Deus tem de olhar para o Calvário, onde Deus se revelou plenamente. Nas palavras de Noll: “A cruz mostra o Criador, o Deus majestoso e todo-poderoso sofrendo – e sofrendo por nós. Lutero até mesmo podia dizer que a cruz nos mostra o terrível mistério de Deus experimentando a morte por nós”.35 CONCLUSÃO Os exemplos arrolados neste artigo mostram o quanto os compromissos prévios dos historiadores afetam a maneira como interpretam a história da Reforma. Assim como alguns deles, principalmente secularistas e católicos romanos, tendem a relativizar a importância desse movimento, os evangélicos (no sentido original da palavra) se sentem no dever de apontar os elementos apreciáveis e construtivos dessa história. Eles não se recusam a admitir que a Reforma teve suas falhas. O protestantismo gerou uma grande cisão no mundo cristão e muitas vezes atribuiu importância excessiva aos governantes civis, praticou ações intolerantes, envolveu-se em guerras, não soube manter a sua própria unidade interna. Assim, os 500 anos, longe de serem uma ocasião para celebrações ufanistas, devem ser um convite para a reflexão, para a reafirmação de princípios, para a gratidão a Deus pela longa caminhada desse movimento, que, apesar dos percalços, têm produzido frutos extraordinários na vida da igreja e do mundo. Fazendo uma avaliação final da Reforma e suas vicissitudes, MacCulloch fala pelos seus contemporâneos secularizados do início do século 21 ao declarar: “Nós não temos o direito de adotar uma atitude de superioridade intelectual ou emocional, especialmente à luz das atrocidades que a Europa do século 20 33 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do cristianismo. Trad. Alderi S. Matos. São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 170-173. 34 Ibid., p. 174. 35 Ibid., p. 176. Ver também: MCGRATH, Alister E. Lutero e a teologia da cruz: a ruptura teológica de Martinho Lutero. São Paulo: Cultura Cristã, 2014. ALDERI SOUZA DE MATOS, A REFORMA E OS HISTORIADORES 22 produziu por causa de sua fé em ideologias mais novas, seculares”.36 A reforma do século 16 não deve ser julgada pelos excessos de alguns de seus personagens e movimentos, em grande medida próprios de sua época, mas pela relevância das ideias e perspectivas da vida que ela promoveu, principalmente acerca do relacionamento das pessoas com Deus, e também em muitas outras áreas da experiência humana sobre a terra. Nestes 500 anos, pode-se dizer que o seu legado é profundo, rico e duradouro. ABSTRACT The Protestant Reformation, a movement that commemorates its fifth centennial, has been the object of intense investigation by many scholars. This interest on the topic is due to the relevance of the Reformation and its vast consequences for the modern world. At the same time, it is a highly controversial subject, with a wide variety of perspectives and interpretations. Initially, this article makes some general historiographical considerations about the Reformation. Then it adresses several aspects that have given occasion to disagreements and reappraisals in the last decades. They are the multiple character of the Reformation, its intellectual sources, its primary motivations, and its consequences. Finally, the author makes some considerations about the lasting legacy of the Reformation. KEYWORDS Protestant Reformation; 500th anniversary of the Reformation; Historio- graphy; Historians; Interpretations of the Reformation. 36 MACCULLOCH, The Reformation, p. 683. 23 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 o papEl da múSica na rEforma E a formação do Saltério de Genebra Dario de Araujo Cardoso* RESUMO Destacamos no presente artigo a importância que teve para os refor- madores a discussão sobre o uso da música na liturgia. Mostramos que tanto para Lutero quanto para Calvino o poder de mobilização emocional da música deveria ser utilizado para conduzir os crentes à adoração de Deus. Calvino destacou-se por defender que esse poder deveria estar a serviço da edificação e do ensino e incentivou a produção de cânticos de fácil assimilação, cujas letras conduzissem à meditação em Deus e em suas obras. O cântico de salmos e outros textos bíblicos metrificados e adaptados ao contexto cristão mostrou-se o meio mais apropriado para isso e resultou na produção da obra que ficou conhecida como o Saltério de Genebra. PALAVRAS-CHAVE Reforma; Liturgia; Música; Lutero; Calvino; Cântico de Salmos. INTRODUÇÃO A liturgia é um dos aspectos primordiais de uma religião. Ela é o elemento que dá forma e expressão às crenças de determinado grupo. Antes mesmo do discurso é a liturgia o primeiro aspecto a observar quando da aproximação a determinada crença. Durkheim demonstrou que as crenças e os ritos são os * Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Huma- nas da Universidade de São Paulo, Mestre em Teologia e Exegese pelo CPAJ, Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor assistente de Teologia Pastoral no CPAJ. Coordenador e professor do Departamento de Teologia Exegética do Seminário Presbiteriano Rev. José Manoel da Conceição. Membro da equipe pastoral da Igreja Presbiteriana do Centenário, em São Paulo. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 24 aspectos fundamentais a serem abordados no estudo das religiões.1 Assim, o estudo da Reforma deve tratar com atenção os aspectos litúrgicos envolvidos em sua concepção e desenvolvimento. Nas palavras de Witvliet, Alguns dos mais dramáticos e reveladores desenvolvimentos no período foram litúrgicos. Nós não podemos entender completamente as dimensões religiosas deste (ou de qualquer outro) período sem compreender as variações e mudanças nos modos pelos quais os fiéis prestavam culto a Deus.2 McKee observa que, além da teologia e da política eclesiástica, a Reforma trouxe grandes mudanças na liturgia. Nesse campo, continua ela, Calvino e Genebra devem receber especial atenção “porque aquele padrão é usualmente reconhecido como o mais significativo para a teologia e liturgia reformada posterior”.3 Noll relata que a hinologia foi uma marca tão importante da Re- forma que personagens importantes da Igreja Católica pensaram em proibir o uso da música na missa. Ele afirma: A enxurrada de hinos protestantes que inundou a Europa juntamente com as primeiras crises da Reforma criou dificuldades incomuns para a Igreja Católica Romana. O canto congregacional estava associado ao protestantismo de maneira tão profunda e os protestantes foram tão eficazes na utilização dos hinos que alguns personagens importantes da Igreja Católica por breve tempo consideraram a proibição da música nas missas.4 Dessa forma, a consideração dos aspectos litúrgicos não dever ser vista apenas como subsidiária, mas como elemento essencial para a compreensão e análise da Reforma. Em particular, o estudo das questões relacionadas ao papel da música na liturgia e dos instrumentos preparados para este fim servirá de grande proveito para o desenvolvimento desse campo de pesquisa. Neste artigo descrevemos o pensamento de Lutero e Calvino sobre o uso da música na liturgia. Em seguida focalizamos os desdobramentos dos princípios de Calvino na proposição e confecção do Saltério de Genebra. A exposição é feita sob o referencial teórico semiológico de Nattiez, que propõe que a música remete a seu ambiente filosófico, ideológicoe religioso, entre 1 DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 457. 2 MAAG, K.; WITVLIET, J. D. Worship in Medieval and Early Modern Europe: Change and continuity in religious pratice. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2004, p. 1. 3 MCKEE, E. A. Reformed Worship in Sixteenth Century. In: VISCHER, L. (Org.). Christian Worship in Reformed Churches Past and Present. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2003, p. 3. 4 NOLL, Mark A. Momentos decisivos na história do Cristianismo. São Paulo: Cultura Cristã, 2000, p. 206. 25 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 outros, de modo que seu estudo procura distinguir três tipos de temporalidade: “o tempo da obra (seu desenrolar no tempo), o tempo dos processos que a ori- ginaram e das estratégias perceptivas que ela coloca em movimento, e o tempo da história”.5 Lidaremos especialmente com a segunda forma de temporalidade. 1. LUTERO E O USO DA MÚSICA NA REFORMA 1.1 A importância da música como instrumento litúrgico Antes da Reforma, o povo podia ouvir a música sacra, mas não podia participar dos cânticos. Silva descreve assim esse contexto: O canto litúrgico medieval era marcado por sua origem monástica, um canto “clerical”, elaborado e estabelecido para ser entoado por “profissionais” da religião, que dispunham de tempo e conhecimentos musicais para um apri- moramento e uma exaustiva complexidade, chegando a ponto de surgir uma rivalidade entre os diferentes mosteiros na execução destes requisitos, uma forma deturpada dos levitas bíblicos. A celebração da missa era o lugar da apresentação do desenvolvimento de suas técnicas e aprimoramento de sua arte. O povo parti- cipava passivamente, assistindo a um espetáculo musical em que não entendia o porquê da música, nem o que se cantava, porque não compreendia a letra cujos arranjos altifônicos sufocavam a compreensão.6 Coube a Lutero o importante papel de quebrar esse paradigma e restaurar o cântico congregacional na língua do povo.7 Raynor, buscando destacar a importância de Lutero para a história da música, escreve que “sua dedicação total à música teve influência em tudo o que fizesse, não apenas na sua liturgia alemã, mas também na sua educação alemã, e a sua vida foi quase tão importante para o futuro da música como o foi para o futuro da religião”.8 Lutero tinha a música em mais alta conta. Para ele, a música era o mais precioso dos tesouros celestes. Por meio dela são dominados os pensamentos e sentidos, o coração e o espírito. Ela consola o aflito e abranda o arrogante. Portanto, [escreveu Lutero] não foi sem razão que os padres da Igreja, e os profetas, sempre quiseram intimamente juntas a Música e a Igreja; e, por isso, 5 NATTIEZ, J. J. Music and Discourse: Toward a Semiology of Music. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1990, p. 31. 6 SILVA, Jouberto Heringer da. A música na liturgia de Calvino em Genebra. Fides Reformata VII-2 (2002): 85-104, p. 93. 7 SANTOS, G. Do Salmo 5 ao “Atos 2” – Uma panorâmica sobre salmos e hinos na música evangélica no Brasil. Ex Corde, 2006, p. 2. Disponível em: http://www.hinologia.org/do-salmo-5-ao- -atos-2-uma-panoramica-sobre-salmos-e-hinos-na-musica-evangelica-no-brasil-gilson-santos/. Acesso em: 28 ago. 2017. 8 RAYNOR, H. História social da música: Da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1972, p. 129. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 26 temos tantos hinos e salmos. É mediante esse precioso dom, atribuído apenas à humanidade, que todo homem lembra seu dever de sempre louvar e glorificar a Deus.9 O reformador alemão entendeu que era impossível substituir o enorme reservatório de devoção pessoal encontrado na celebração da missa, nos ges- tos rituais e na música. Não obstante, viu a necessidade de inserir todas essas coisas num novo contexto doutrinário e por isso “dava ênfase à doutrina com estrutura tradicional da missa, que mantinha quase toda a estrutura musical”.10 Reynor faz o seguinte registro sobre a liturgia de Lutero: “Muita música na missa”, escreveu Lutero no Vermahnung zum Sakrament, “é excelente, pois exprime agradecimento e é muito apreciada. Em partes como o Gloria in excelsis, o Credo, o Prefácio, o Sanctus e Benedictus e o Agnus Dei há tão só agradecimento e louvor, e por essa razão as mantemos na missa. De toda a música na missa, o Agnus Dei é o que mais autenticamente corresponde ao sacramento, porque louva a Cristo, que carregou nossos pecados; em simples palavras ele aumenta a nossa reverência pela Paixão de Cristo”.11 Assim, Lutero deu grande atenção à estrutura musical. Por isso, chamou Johann Walther, músico experimentado que chegou a ser Kappellmeister do eleitor da Saxônia, para realizar minuciosa organização musical da música luterana.12 Além do aproveitamento de vários elementos musicais na liturgia, Lutero mostrou-se um profícuo compositor de hinos e corais. Costa registra que ele compôs 36 hinos e várias melodias.13 A mais conhecida de suas composições é uma paráfrase do Salmo 46, Ein feste Burg ist unser Gott (“Castelo Forte”), que se tornou o hino do protestantismo por toda parte. Esse modo de tratar os salmos para o cântico destacou-se na produção de Lutero, pois outro impor- tante hino de sua autoria é uma paráfrase do Salmo 130, Aus tiefer Not (“Em profunda aflição”). Vemos que Lutero tinha na liturgia um instrumento de instrução e forta- lecimento doutrinário e que foi pródigo no emprego da liturgia como elemento propagador da doutrina e da fé. Vemos também que ele tinha no canto um dos principais elementos da liturgia. O valor que Lutero dava à música era tão 9 Ibid. 10 Ibid., p. 130. 11 Ibid., p. 132. 12 Ibid., p. 130. 13 COSTA, Hermisten M. P. da. Princípios bíblicos de adoração cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2009, p. 185. 27 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 grande que afirmou dogmaticamente que um professor deveria saber cantar e que alguém que não tivesse estudado e praticado música não deveria ser admitido ao ministério. Assim, “nas escolas religiosas a música era entusias- ticamente ensinada não só como valiosa disciplina intelectual, mas também como dever religioso e prazer social”.14 Não obstante, é preciso observar que o modo pelo qual Lutero valorizava a música levou os luteranos, principalmente nos grandes centros, a preferir a qualidade musical à fidelidade doutrinária. Raynor observa que num centro musical como a Thomaskirche em Leipzig, ou a Michaeliskirche em Lüneburg e a Kreuzkirche em Dresden, a qualidade musical mais que a crença doutrinária ou fidelidade sectárias governavam a escolha de música, em razão do modo pelo qual Lutero, desde o início da revolta, considerara a qualidade musical um elemento importante na sua liturgia.15 É interessante que Lutero, diferentemente de Calvino, não nutria simpa- tia pelo canto congregacional uníssono, mas preferia o canto coral acompanhado pela congregação. No entanto, por causa de sua preocupação doutrinária, via o canto congregacional como um proveitoso exercício devocional. Assim permitia e até mesmo incitava o canto congregacional “apenas para que a congregação fizesse uma declaração de fé como uma compreensão completa do que estava cantando”.16 Por isso, prefaciando o livro coral publicado por Rhau e Foster em 1538, Lutero escreveu: Quando a música natural é aperfeiçoada e polida pela arte, começa-se então a perceber a grande e perfeita sabedoria de Deus em sua maravilhosa obra musical, quando uma voz assume uma única parte, e em torno dela cantam três, quatro ou cinco outras vozes, saltando, rodando, enfeitando maravilhosamente a parte original, como uma dança celeste.17 Vê-se que em Lutero a música é um instrumento primordialmente de impressão, só então de expressão. A música, entendida como um dom divino, teria em si mesma a capacidade de enlevo e aperfeiçoamento espiritual. A preocupação com o que será cantado é limitada, emboranão deixasse de zelar por aquilo que contribua para a propagação da mensagem da Reforma. 14 RAYNOR, História social da música, p. 135. 15 Ibid., p. 30. 16 Ibid., p. 132-133. 17 Ibid., p. 133. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 28 1.2 Divergências entre os reformadores sobre a presença e o papel da música na liturgia No entanto, ainda que os protestantes concordassem que deveria haver uma absoluta conexão entre a fé e a liturgia da Reforma, havia reformadores que tinham postura bastante divergente da de Lutero. Segundo White, em 1529, o encontro de líderes protestantes em Marburg demonstrou que eles não podiam concordar em todos os assuntos de culto e que seu desejo de total acordo não era possível, ainda que fosse possível ter unanimidade em um ou outro item. Eles logo descobriram que, embora todos viessem de uma única tradição cristã, tinham dois espíritos diferentes – que Lutero apontou com cândida observação, provavelmente a Martin Bucer: “Você tem um espírito diferente do meu”. Lu- tero representava a velho ensino e piedade. Zuínglio, Bucer, Oecolampadius representavam o novo ensino e o novo tipo de piedade.18 Entre essas divergências estava o uso da música na liturgia. Zuínglio, por exemplo, demonstrou “profunda suspeita com o que chamava de ‘seduti- vo’ poder da música, banindo da Igreja todo tipo de música”.19 Martin Bucer (1491-1551), em Estrasburgo, seguiu padrão comedido, mas não tão radical. Descrevendo o culto, ele relata: “Após a remissão de pecados para aqueles que creem, toda a congregação canta pequenos salmos ou hinos de louvor...”.20 Desde 1525, os salmos eram cantados pelos exilados alemães e franceses em Estrasburgo.21 Esse padrão proposto por Bucer foi de grande importância para o ensino e a prática litúrgica proposta por Calvino. Guilherme Farel (1489-1565), pregador responsável pela permanência de Calvino em Genebra, também manifestou simpatia pelo canto congregacional, particularmente dos salmos. Na controvérsia no Convento de Rive (1535), ele declarou: “Não é mau que todos os fiéis, ao se reunirem, cantem juntos, com o coração e também com a boca, salmos, em sua língua, que todos entendem, louvores a Deus”.22 Discordando de Zuínglio, Calvino, além dos perigos e seduções, via na música um poderoso instrumento de auxílio à edificação e ao zelo espiritual. No Prefácio ao Saltério de Genebra ele escreveu: “E na verdade nós sabe- 18 WHITE, J. F. Protestant Worship: Traditions in Transition. Louisville: Westminster/John Knox, 1989, p. 58. 19 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 86. 20 Apud BARD, T. (Org.). Liturgies of the Western Church. Philadelphia: Fortress, 1980, p. 87. 21 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 91. 22 AUGUSTIN, C.; VAN STAM, F. P. (Orgs.). Ioannis Calvini. Epistolae, vol. 1 (1530–set. 1538). Genebra: Librairie Droz, 2005, p. 158; D’AUBIGNÉ, J. H. M. History of the reformation in Europe in the time of Calvin. Vol. 5, p. 310. Londres: Longmans, Green, and Co., 1869, p. 310ss. 29 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 mos, por experiência, que cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”.23 Isso implica o esforço em insistir que a música fosse utilizada na liturgia com esse sublime fim: “É preciso haver canções não somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.24 Por isso, a música deveria ter foco no que se cantava, ser simples e apropriada para ser cantada sem treinamento, e em uníssono.25 2. CALVINO E OS PRINCÍPIOS QUE LEVARAM À PRODUÇÃO DO SALTÉRIO DE GENEBRA 2.1 Os princípios que devem orientar a música na liturgia segundo Calvino A tradição litúrgica de Calvino formou-se a partir daquela praticada por Bucer em Estrasburgo, mas seguiu seu próprio e marcante caminho, tendo na promoção do cântico de Salmos sua característica mais marcante. White descreve: Diferente da tradição luterana, onde o cântico de hinos era encorajado, ou da Reforma de Zurique, onde nenhum cântico era permitido, Calvino fez com que os salmos fossem colocados em métrica francesa por Clément Marot (1497-1544) e outros. Ele encorajou compositores como Claude Goudimel (c. 1510-1572) e Louis Bourgeois (1510-1561) a produzir músicas.26 A tradução e a metrificação de salmos para o cântico não eram algo iné- dito. Como foi dito, Farel tinha preferência por elas no cântico congregacional e Bucer já havia promovido essa prática em Estrasburgo. Em seu primeiro período em Genebra (1536-1538), Calvino havia proposto o uso do cântico de salmos, provavelmente em prosa, na liturgia. “Nós desejamos”, escreveu Calvino, “que os salmos sejam cantados na igreja de acordo com o antigo uso e testemunho de S. Paulo”.27 Foi em Estrasburgo que a prática do cântico de salmos conquistou o co- ração de Calvino e se tornou um elemento de seu projeto ministerial. Halsema observa que, ao chegar a Estrasburgo, muito agradou Calvino o fato de que 23 CALVINO. J. Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, 1543, p. 3. Disponível em: http:// www.monergismo.com/textos/jcalvino/prefacio_salterio_genebra_calvino.htm. Acesso em: 5 ago. 2008. 24 Ibid., p. 5. 25 SILVA, Música na liturgia de Calvino, p. 88. 26 WHITE, Protestant Worship, p. 66. 27 MCNEILL, John T. The History and Character of Calvinism. Oxford: Oxford University Press, 1967, p. 139 DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 30 os refugiados franceses já cantassem salmos em francês havia dez anos e que cantavam com entusiasmo, dando gosto de ouvi-los.28 Costa registra que Calvino foi influenciado de certa maneira pela adoração dirigida por Martin Bucer em Estrasburgo, durante o período em que lá permaneceu (1538-1541), pastoreando os franceses banidos que desejavam cultivar sua fé em liberdade. Algo que chamava a atenção de Calvino era o entusiasmo com que os franceses ali exilados cantavam salmos quando se dirigiam ao culto.29 Ainda assim, pode-se considerar Calvino como o grande incentivador dessa prática e o principal promotor do processo que culminou na publicação do Saltério de Genebra. Santos afirma que “ele desejava que os salmos vol- tassem a ser cantados nos cultos, como hinos, tal como o livro dos Salmos, os quais haviam sido compostos em poesia hebraica e eram cantados no segundo templo de Jerusalém”.30 Por isso, em 1539, publicou, em Estrasburgo, um saltério francês intitu- lado Aulcuns Psaulmes et Cantiques mys em chant. Esse saltério continha 18 salmos metrificados, cinco da lavratura de Calvino e os demais retirados da edição de Clement Marot para a corte francesa. Esse saltério foi a gênese do Saltério de Genebra. A importância que Calvino deu a essa prática pode ser vista no prefácio à edição do Saltério publicada em 1543, agora com a participação direta de Marot. Calvino inicia o prefácio defendendo que o culto deve ser útil para todo o povo. Esse princípio da utilidade do culto para a edificação parece ser o princípio fundamental da proposta litúrgica de Calvino. Ele diz: Pois nosso Senhor não instituiu a ordem que devemos obedecer quando nos reunimos em Seu Nome, somente para entreter o mundo quando este olha e observa, antes, ele deseja que o culto seja útil para todo o seu povo; como São Paulo testemunhou, ordenando que tudo que for feito na Igreja seja direcionado à edificação comum de todos; isto ao servo não teria ordenado, não fosse esta a intenção do Mestre. Mas isto não pode ser feito, a menos que sejamos instruídos a usar a inteligência em tudo que foi ordenado para o nosso proveito. 31 Costa afirma que para Calvino a preocupação teológica deveria “ater-se à edificação da igreja”. Mais à frente ressalta que “para Calvino, a doutrina estava relacionada à nossa vida; é para ser crida, vivida e ensinada. [...] não 28 VAN HALSEMA, Thea B.João Calvino era assim. São Paulo: Vida Evangélica, 1968, p. 100. 29 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161. 30 SANTOS, Do Salmo 5 ao “Atos 2”, p. 2. 31 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1. 31 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 estava teorizando ou simplesmente fazendo uma abstração”32. Nas palavras de Calvino, O evangelho não é uma doutrina de língua, senão de vida. Não pode assimilar- -se somente por meio da razão e da memória, senão que chega a compreender-se de forma total quando ele possui toda alma, e penetra no mais íntimo recesso do coração. [...] os cristãos deveriam detestar àqueles que têm o evangelho em seus lábios, porém não em seus corações.33 Portanto, a doutrina só pode ser sã quando ensinada com o intuito de beneficiar e que se mostre proveitosa a seus ouvintes.34 Por causa desse princípio de utilidade, Calvino considerava uma grande tolice praticar orações e cerimônias que as pessoas não pudessem entender. Sua defesa dessa questão é bem clara: Portanto, se realmente queremos honrar as santas ordenanças de nosso Senhor que usamos na Igreja, a primeira coisa que devemos é saber o que elas contêm e o que elas significam e querem dizer e para que fim foram instituídas, para que o uso delas seja útil e salutar e consequentemente corretamente administrados.35 No tratado que escreveu em 1544, onde expôs diante do imperador Carlos V as razões que justificavam a Reforma, Calvino descreveu o modo de oração que estava sendo implantado nas igrejas O método pelo qual, em nossas igrejas, todos oram em comum na língua popular, e homens e mulheres indiscriminadamente cantam os salmos, nossos adversários podem ridicularizar se quiserem, aprouve ao Espírito Santo trazer testemunho a nós do céu, enquanto ele repudia os sons confusos e sem significado que são pronunciadas em outro lugar.36 Seguindo esse princípio, ele defende que há três elementos ordenados para o culto: a pregação da Palavra, as orações públicas e solenes e a adminis- tração dos sacramentos.37 A partir desses três elementos, Calvino considera o cântico como uma forma de oração. “Quanto às orações públicas, há dois tipos. Aquelas somente com palavras, e outras cantadas”.38 Por isso, a música no 32 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 226, 229. 33 Apud Ibid., p. 230. 34 CALVINO, J. Pastorais. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 163. 35 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 1. 36 CALVIN, John. The Necessity of Reforming the Church. Dallas, TX: The Protestant Heritage Press, 1995, p. 57. 37 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 2. 38 Ibid. p. 3. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 32 culto deve ser objeto de especial cuidado e consideração. Calvino registra que “cantar tem grande força, vigor de mover e inflamar os corações dos homens para envolvê-los em adoração a Deus com mais veemência e ardente zelo”.39 Por isso, Calvino requer que as músicas tenham peso e majestade, rejei- tando aquelas que sejam frívolas ou triviais, que haja diferença marcante entre a música de entretenimento e o que é cantado na igreja e que ela seja usada com moderação de modo que sirva a coisas honesta e não dê lugar à dissolução ou se torne instrumento de lascívia ou impureza. Isso não quer dizer que Calvino queria que a música ficasse restrita aos cultos. Ao contrário, seu intuito era que ela, como de fato aconteceu, fosse cantada nos campos e nos lares como o que ocorria na igreja cristã por volta do quarto século.40 Sua preocupação era precaver-se de futilidades e alegrias tolas e viciosas e conduzir a igreja à alegria espiritual recomendada nas Escrituras. “É preciso haver canções não somente honestas, mas também santas, que como aguilhões nos incitem a orar e a louvar a Deus e a meditar nas suas obras para amar, honrar e glorificá-lo”.41 O cântico de salmos é, dessa forma, o corolário do princípio da utilidade do culto para a edificação. Ainda que haja outros cânticos apropriados, ne- nhum deles pode superar os salmos em virtude de que estes foram dados por inspiração do Espírito Santo. Calvino escreve: “Portanto, quando procuramos diligentemente, aqui e ali, não iremos encontrar cânticos melhores, por mais apropriados que sejam os seus propósitos, do que os Salmos de Davi, que o Espírito Santo falou e preparou através dele”.42 Em confirmação disso, cita Agostinho, que viu no cântico de salmos o modo de usufruir da música sem pecado, que dizia que “ninguém é capaz de cantar algo digno de Deus, exceto aquilo que recebemos dele”; e Crisóstomo, ardoroso defensor do cântico de salmos, que entendia que essa prática nos faz associados à companhia dos anjos.43 2.2 O impacto do Livro de Salmos em Calvino O impacto que o Livro de Salmos causou na vida de Calvino está bem documentado. Como foi dito acima, em Estrasburgo, Calvino ficou muito impressionado com “o entusiasmo com que os exilados franceses cantavam salmos quando se dirigiam ao culto”.44 Não que cantar salmos fosse uma ideia nova para Calvino. Em sua primeira estada em Genebra, propusera o cântico de 39 Ibid. 40 CARDOSO, Dario A. O cântico de Salmos na Igreja Cristã até a Reforma. Ciências da Re- ligião – História e Sociedade, v. 9, n. 2 (2011): 26-51, p. 35ss. 41 CALVINO, Prefácio de Calvino para o Saltério de Genebra, p. 3-5. 42 Ibid., p. 5. 43 Ibid. 44 COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 161. 33 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 salmos que seria ensinado por um coro de crianças à congregação. No entanto, essa ideia se tornou um propósito em Estrasburgo. “Quando Calvino retornou a Genebra, adaptou muitos elementos da liturgia de Bucer, tornando-se o rito de Genebra (1542) a base para a adoração das igrejas calvinistas em toda a Europa – Suíça, França, Alemanha, Holanda e Escócia”.45 Esse padrão litúrgico tinha o cântico de salmos como um de seus principais elementos. Na dedicatória de Calvino ao Comentário de Salmos, ele faz impressionan- tes menções ao valor desse livro. Essa dedicatória foi endereçada aos leitores piedosos e sinceros. Ao explicar as razões de sua relutância em empreender uma série de pregações no livro de Salmos, Calvino reconheceu sua limitação em expor a riqueza de seu conteúdo. As riquezas variadas e esplêndidas que compõem este tesouro não são algo fácil de se expressar em palavras; tanto é verdade que estou bem consciente de que, seja como melhor me expresse, estarei longe de revelar todas a excelência do tema.46 Além da excelência, Calvino reconhecia a absoluta abrangência do livro acerca das emoções e necessidades humanas. É bem conhecida a alcunha atribuída por Calvino a esse livro: “Uma Anatomia de Todas as Partes da Alma”, pois não há sequer uma emoção da qual alguém porventura tenha participado que não esteja aí representada como num espelho. Ou, melhor, o Espírito Santo, aqui, extirpa da vida todas as tristezas, as dores, os temores, as dúvidas, as expectativas, as preocupações, as perplexidades, enfim, todas as emoções perturbadas com que a mente humana se agita47. Dessa forma também ficam expostas nossas debilidades e os vícios a que estamos sujeitos, e o nosso “coração é trazido à claridade e purgado da mais perniciosa das infecções – a hipocrisia!”. Mais adiante, ele diz que “tudo quanto nos serve de encorajamento, ao nos pormos a buscar a Deus em oração, nos é ensinado nesse livro”.48 O valor dos salmos para a promoção de uma genuína e fervorosa oração também é registrado nessa dedicatória. Diferentemente das outras partes das Escrituras em que são registrados os mandamentos de Deus aos homens, aqui os profetas “são descritos falando com Deus e pondo a descoberto todos os seus mais íntimos pensamentos e afeições”, e demonstram 45 Ibid., p. 290. 46 CALVINO, Pastorais, p. 26. 47 CALVINO, J. O livro dos Salmos. vol. 1. São José dos Campos, SP: Editora Fiel, 2009, p. 27. 48 Ibid., p.27. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 34 ... como invocar a Deus é um dos principais meios de garantir nossa segurança, e como a melhor e mais inerrante regra para guiar-nos nesse exercício não pode ser encontrada em outra parte senão nos Salmos, segue-se que em proporção à proficiência que uma pessoa haja alcançado em compreendê-los, terá também alcançado o conhecimento da mais importante parte da doutrina celestial.49 Através dos salmos aprendemos a colocar diante de Deus aquelas fraque- zas que tememos confessar diante dos homens e “não há outro livro em que somos mais perfeitamente instruídos na correta maneira de louvar a Deus, ou em que somos mais poderosamente estimulados à realização desse sacro exer- cício”. Neles também somos estimulados a uma vida cristã que seja plena “de santidade, de piedade e de justiça, todavia eles principalmente nos ensinarão e nos exercitarão para podermos levar a cruz”.50 A menção da cruz nesse trecho deixa bem claro que a piedade promovida pelos salmos não pode ser denominada veterotestamentária, no sentido de ser pré-cristã, mas bíblica e cristã no melhor sentido dos termos. Dessa forma, não há para Calvino a necessidade de cristianizar os salmos, como mais tarde propôs Charles Wesley. Portanto, não é por acaso que seja nessa dedicatória que encontramos as mais claras declarações de Calvino quanto à sua conversão. A partir dessa visão de Calvino, o jovem pastor norte-irlandês Angus Stewart faz a seguinte observação sobre a atualidade: Se isso é verdade, devemos confessar o quanto precisamos dos Salmos! Po- demos tê-los em excesso, se a oração cristã (que o Catecismo de Heidelberg, Dia do Senhor 45, chama de “a parte principal da gratidão, que Deus requer de nós”) é tão forte ou fraca quanto a nossa compreensão sincera dos Salmos? O raciocínio de Calvino aqui deveria nos estimular a ler, cantar e meditar nos Salmos. Está o Reformador de Genebra aqui identificando o problema com a oração em nosso país? A ignorância dos Salmos e a popularidade dos hinos modernos não-inspirados?51 2.3 Elementos distintivos do cântico de salmos proposto por Calvino Ao unir-se à longa tradição da igreja de cantar de salmos, Calvino, seguin- do a prática dos reformadores, traz inovações importantes. A mais evidente é o uso da língua vernácula. Esse princípio protestante não se limitou às traduções da Bíblia. Assim como Lutero, que introduziu o alemão na prática litúrgica, 49 Ibid. 50 Ibid., p. 29. 51 STEWART, A. João Calvino sobre a Excelência dos Salmos, 2007, p. 4. Disponível em: <http:// www.cprf.co.uk/languages/portuguese_calvinonpsalms.htm> Acesso em: 16 dez. 2010. 35 FIDES REFORMATA XXII, Nº 2 (2017): 23-41 Calvino queria que seus irmãos cantassem em francês. No prefácio do Saltério de Genebra ele diz: “Por isso, é um grande descaramento por parte daqueles que introduziram a língua latina na igreja, onde geralmente não é entendida. E não há nem sutileza nem casuísmo que possa desculpá-los, porque essa prática é perversa e desagrada a Deus”.52 Por conta disso, não mais era apropriado que os salmos continuassem a ser cantados em latim como se fazia nas missas romanas. Outro elemento distintivo da tradução e cântico de salmos foi o uso da metrificação, e não do cântico dos salmos em prosa. Pode-se depreender que essa técnica foi adotada com vistas a facilitar a memorização. Segundo Calvino, o maior proveito do uso dos salmos não pode ocorrer se eles não estiverem impressos em nossa memória. “Após a inteligência, deve seguir o coração e a afeição, uma coisa impossível de acontecer exceto se tivermos o hino impresso em nossa memória, a fim de nunca cessarmos de cantar”.53 De fato, os registros pessoais dos calvinistas demonstram que a memorização dos salmos foi um importante elemento de apoio nas mais diversas situações. 2.4 O cântico de salmos não era propriamente exclusivo Deve-se observar que, conquanto Calvino manifeste preferência pelo cân- tico de salmos, não parece ter defendido que isso se fizesse exclusivamente. Na edição de 1545 das Formas de Oração na Igreja Francesa ele assim descreve a ordem litúrgica do culto: “Começamos com a confissão de pecados. (...) Continuamos com salmos, hinos e louvor, a leitura do evangelho, a confissão de nossa fé (ou seja, o Credo Apostólico), e as santas oblações e oferendas...”.54 É importante notar, então, que desde a primeira e em todas as suas edições o Saltério de Genebra não foi composto unicamente pelos salmos bíblicos. Ha- via versões metrificadas de “cânticos bíblicos, da Oração do Senhor, do Credo dos Apóstolos, dos Dez Mandamentos, e paráfrases de passagens familiares do Novo Testamento”.55 Além de vários salmos, Calvino traduziu o Cântico de Simeão, conhecido com Nunc dimittis, e os Dez Mandamentos para o francês e compôs um hino. Segundo Cabaniss “essa tradição aponta para uma antiga percepção de que os salmos são quase, mas não totalmente, suficientes para a adoração cristã”.56 No decorrer da história da formação e da propagação do saltério, pode- -se registrar, além dos 150 salmos metrificados, onze metrificações de outros 52 CALVINO, Prefácio, p. 3. 53 Ibid., p. 5. 54 Apud COSTA, Princípios bíblicos de adoração cristã, p. 295. 55 CABANISS, A. The Background of Metrical Psalmody. Calvin Theological Journal, v. 20, n. 2 (1985): 191-206, p. 203. 56 Ibid. DARIO DE ARAUJO CARDOSO, O PAPEL DA MÚSICA NA REFORMA E A FORMAÇÃO... 36 textos canônicos e cinco de hinos não canônicos. Os outros hinos canônicos eram o Decálogo, o Cântico de Ana, o Primeiro Cântico do Servo, o Cântico de Jonas, o Cântico de Maria, o Cântico de Zacarias, duas versões do Cântico de Simeão, Romanos 8, o Hino filipense e o Hino colossense. Os extrabíblicos são o Cântico dos Três Jovens (presente na LXX e na Vulgata),57 o Credo, o Te Deum, a Pergunta e a Resposta nº 1 do Catecismo de Heidelberg e Um Hino para o Pentecoste.58 McNeill registra que Calvino também escreveu poemas. Não afirma se eles eram cantados, mas diz que, na edição de Genebra em 1545, foi incluído o melhor poema de Calvino, “Je Te salue, mon certain Redempteur”, uma declaração de fé fervorosa e pessoal.59 Entretanto, essa prática foi abandonada por Calvino, preferindo a proposta de metrificação do texto bíblico. Sobre o uso do texto bíblico como fonte da liturgia protestante, Raynor faz uma inte- ressante observação Para os luteranos, como para os reformadores mais radicais, a autoridade em religião estava na Bíblia, a Palavra de Deus, mais que na tradição viva da Igreja. Tudo o que se dissesse na Igreja era retirado de textos bíblicos, e quase em grau igual preces como o Kyrie e textos instrutivos como os do Credo tinham de ser ouvidos e compreendidos; as palavras não deviam ser apenas matérias-primas da música para dar uma estrutura e se destinarem a certa coisa autonomamente musical, como foi o caso da maioria das obras de mestres do Renascimento. Caso fossem musicadas, era dever do compositor cuidar para que fossem transmiti- das com toda clareza. Essa atitude para com a música não era, evidentemente, especificamente protestante; era apenas uma revivescência numa nova situação das objeções católicas tradicionais à música religiosa por demais complicada e assinala um ponto no qual se encerrava um ciclo e os protestantes extremados viram-se utilizando os mesmos argumentos que os conservadores extremados na Igreja Católica.60 Por reformadores mais radicais e protestantes extremados deve-se enten- der os calvinistas. Percebe-se aqui a ligação com as discussões que envolveram a salmódia desde o 4º século. A observação mostra-se verdadeira uma vez que o próprio Calvino citou várias vezes Agostinho e uma vez Crisóstomo no Prefácio do Saltério de Genebra. 57 Essa porção do livro de Daniel foi posteriormente considerada apócrifa, ou seja, não canônica, pelas igrejas protestantes. 58 KOYZIS, D. T. The Genevan Psalter, 2010. Disponível em: http://genevanpsalter.redeemer.ca/.
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