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I. Introdução II. Ciência: um conhecimento infalível? III. Ciência e Filosofia: há diálogo entre elas? IV. O nascimento da ciência moderna V. Descartes e o problema do conhecimento verdadeiro VI. A concepção empirista de conhecimento VII. O projeto falsificacionista e o problema da indução VIII. O positivismo lógico e o problema da verificação IX. A alternativa de Popper ao problema da verificação X. Crises e revoluções científicas: a dinâmica da ciência de Thomas Kuhn XI. A ciência como programa de pesquisa XII. Feyerabend e o anarquismo epistemológico XIII. Realismo e instrumentalismo: teorias científicas revelam a real estrutura do mundo? XIV. Conclusão XV. Referências XVI. Atividades complementares Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico Unidade 1 Autor: Professor Paulo Tadeu da Silva 78 Módulo I — Contexto da Vida Ao interagirmos com o mundo e com nossos semelhantes, esbarramos freqüen-temente com uma série de fatos a partir dos quais geramos um conjunto de in-formações que nos possibilitam compreender, em algum nível, os mais diversos eventos e relações com que nos confrontamos. Nossos primeiros anos de vida são mar- cados pelo intenso contato com situações desconhecidas e nossa formação escolar nos fornece os elementos fundamentais para a vida em sociedade, bem como para a interação com o mundo natural. Tais informações formam um arcabouço inicial que possibilita algo bastante co- mum a todo ser humano: diante de situações já vividas, esperamos resultados ou efeitos semelhantes àqueles que outrora observamos. Em muitos casos, tais situações servem como ponto de apoio para que estejamos certos de que determinado evento ocorrerá, uma vez que ele é resultado necessário de tal ou qual causa. De fato, a criança, após algumas observações regulares, sabe perfeitamente que o fogo queima. O adolescente está absolutamente convencido de que ao aquecer uma dada quantidade de água ela ferverá. Tais previsões, tomadas como absolutamente verda- deiras ou muito prováveis, são resultados de nosso conhecimento sobre o mundo. Mais do que isso, elas são a conseqüência direta de nossa crença na relativa infalibilidade do conhecimento científico. Dificilmente estaríamos dispostos a desconfiar de um resultado laboratorial que apontasse uma alteração nos níveis de colesterol em nosso organismo. Pelo contrário, caso sejamos prudentes, isso nos levaria a adotar alguns procedimentos que viessem a regula- rizar esses níveis. Para a maioria dos homens, a ciência é tomada como um sinônimo de verdade ou, de modo mais incisivo ainda, ela insere-se no domínio próprio da certeza. Certamente nos soaria de modo muito familiar a afirmação de que a física e a química, por exemplo, são ciências exatas e, portanto, não comportam diversas interpretações possí- veis, ao passo que as artes permitiriam uma série de interpretações diferentes e, em alguns casos, incompatíveis. #M1U1 I. Introdução Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 79 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B www. Essa visão do conhecimento científico encontra-se fortemente presente no nível do senso comum e, de modo geral, não parece receber por parte do leigo qualquer tipo de questionamento ou crítica mais contundente. Contudo, uma vez imersos no universo científico propriamente dito, realmente es- taríamos tão certos de que essa avaliação é procedente? A ciência poderia ser tomada como um corpo de conhecimento infalível? Responder positivamente essas duas perguntas significa dar ganho de causa àquilo que diz o senso comum. Por outro lado, respondê-las negativamente parece colocar-nos diante de um problema muito sério: como fica a credibilidade da ciência? Em outras pa- lavras, recusar a avaliação proveniente do senso comum não significa decretar a falência do conhecimento científico? Tais conseqüências são perfeitamente contornáveis se mudarmos a perspectiva sob qual a ciência está sendo vista. Certamente não se trata de tomá-la como algo infalível, mas tampouco é o caso de retirar-lhe a credibilidade. Para muitos estudiosos, a ciência deve ser tomada como um conhecimento confiável, mas não infalível. Isso significa que nossas previsões sobre o mundo ou sobre o comporta- mento do homem (seja do ponto de vista psicológico ou social, uma vez que a psicologia e a sociologia também são ciências) podem, em alguma ocasião, se verem frustradas. Diante disso, não cabe pura e simplesmente abandonar um projeto científico de in- vestigação e explicação do mundo e do homem. É preciso aprender a ver o fracasso de nos- sas previsões como a ocasião exemplar para a melhoria de nossas teorias ou para a criação de outras que sejam mais férteis e confiáveis do que aquelas que até então defendíamos. Nessa perspectiva, a ciência não deve ser tomada como um corpo de conhecimento acabado e estável. Pelo contrário, devemos enxergá-la como um conjunto de hipóteses se- ria e rigorosamente construído e que, no entanto, pode ser bem ou mal sucedido. Por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista, é justamente isso que nos permite falar em progresso científico, o que implica a necessidade de teste e revisão de teorias. Esse pequeno esboço inicial permite indicar o problema que desejamos colocar em discussão, a saber: como o conhecimento científico foi pensado e avaliado ao longo da his- tória do pensamento filosófico? Tal problema pode certamente causar alguma estranheza. Afinal de contas, o que a filosofia, algo tão difícil de definir, tem a ver com a ciência? É possível afirmar que o filósofo, um personagem muitas vezes tão estranho no mundo atual, esteja interessado em discutir a ciência? Saiba mais sobre progresso descontínuo da ciência, visto por Bachelard (1864-1962), filósofo e poeta francês em: http://www.filosofiavirtual.pro.br/bachelard.htm #M1U1 II. Ciência: um conhecimento infalível? #M1U1 III. Ciência e Filosofia: há diálogo entre elas? 80 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico Em primeiro lugar, é preciso chamar a atenção para aquilo que, de acordo com Platão e Aristóteles, leva o homem a filosofar: o espanto ou a admiração, isto é, o senti- mento de perplexidade que temos diante dos fatos que nos rodeiam. Para Platão e Aristóteles, a perplexidade nos move a buscar explicações sobre o mundo, procurando e determinando as causas dos mais diversos fenômenos. Ora, encontramos aqui um primeiro elemento de aproximação. Com efeito, podemos afirmar que, em certa medida, é esse mesmo sentimento que leva o biólogo, por exemplo, a investigar o funcionamento dos mais diversos organismos animais. Entretanto, isso não é tudo. Ainda segundo Aristóteles, “saber é conhecer por meio da demonstração”. Isso significa que não podemos tomar como conhecimento legítimo aquilo que não se estabelece segundo um raciocínio rigoroso, fundamentado em premis- sas verdadeiras a partir das quais chegamos a uma conclusão logicamente válida. Temos aqui o segundo ponto que nos indica a confluência entre filosofia e ciência. De fato, nos dois domínios encontramos uma exigência fundamental: a necessidade da demonstra- ção. Não é à toa que até mesmo no plano mais comum da vida exigimos muitas vezes que nossos interlocutores apresentem provas daquilo que afirmam. A filosofia reserva ainda uma característica que nos conduz a um traço claramente presente na ciência: o sentido investigativo e questionador. Tanto o cientista natural quanto o filósofo não parecem estar dispostos a aceitar aquilo que se lhes apresenta sem qualquer tipo de consideração ou de questionamento: perguntamo-nos por que tal ou qual evento acontece desta ou daquela maneira. Como se vê, em ambos os casos, é possível detectar pelo menos três traços comuns: a perplexidade, o questionamento e a explicação rigorosa. Talvez, para a surpresa de um estudante leigo, a filosofia tem mais proximidade com a ciência do que se poderiaesperar. Mais do que isso, é preciso lembrar que a ciência é a filha legítima da filosofia. Os primeiros filósofos são tradicionalmente denominados pelos historiadores do pensamento ocidental como “físicos” ou “fisiólogos”. Essa denominação está relacionada com o fato de que tais pensadores, os pré-socráticos, estavam diretamente preocupados em oferecer uma explicação sobre a natureza, denominada pelos gregos de physis. Não é muito difícil notar que a palavra fisiólogo tem uma de suas raízes no conceito de physis. A outra raiz está relacionada com a palavra logos que significa algo como discur- so, razão, etc. Desse modo, o fisiólogo é o pensador que procura investigar o mundo natural construindo um discurso ou explicação racional sobre o mesmo. O parentesco entre filosofia e ciência nos coloca agora diante da questão que nos importa considerar: no contexto que desejamos, a filosofia deve ser tomada como uma área do conhe- cimento humano que procura analisar o conhecimento científico em seus mais diferentes aspectos. Levando em consideração tanto a história do pensamento ocidental quanto da ciên- cia que foi aí desenvolvida, não deveremos ficar surpresos frente ao fato de que diversos personagens dessa história estiveram preocupados em analisar, fundamentar ou mesmo problematizar o conhecimento científico. De certo modo, a própria história do pensamento ocidental confunde-se em muitos momentos com a história do pensamento científico. Antes de investigarmos alguns aspectos fundamentais desse diálogo, é preciso lembrar que a discussão aqui proposta não pretende abarcar todas as particularidades concernentes ao longo período no qual a ciência se desenvolveu. Certamente não deseja- mos traçar aqui um panorama extremamente minucioso de tudo aquilo que compõe essa história. Pelo contrário, seremos obrigados a eleger alguns poucos aspectos que, longe de esgotar o assunto, devem ser tomados como elementos que visam estimular investigações e estudos ulteriores. Saiba Mais O que atualmente consideramos ciências era antes chamado, de modo geral, de “filosofia da natureza”. Tais estudos buscavam fornecer uma explicação sobre o mundo que permitisse indicar as leis determinantes de todos os eventos naturais, incluindo o movimento dos corpos celestes, as reações dos elementos químicos e a origem dos seres vivos. Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 81 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B Saiba Mais As duas hipóteses dizem respeito à teoria heliocêntrica, defendidda pelos copernicanos e à teoria geocêntrica, defendida pelos ptolomaicos e aristotélicos. Ao falarmos da ciência moderna, freqüentemen- te associamos o seu nascimento à figura de Galileu Galilei. Físico, filósofo e matemático italiano, Galileu comparece em nossas memórias como o responsável por uma profunda transformação na visão de mundo adotada até a primeira metade do século XVII. Fervo- roso defensor do copernicanismo, Galileu protagoni- zou o rompimento com a filosofia e a ciência aristo- télica, sustentadas pela tradição, e colocou em xeque a dependência entre ciência e fé. Personagem central no debate entre copernicanos e ptolomaicos, Galileu promoveu, sob duras penas, a autonomia e a impar- cialidade científicas. Em primeiro lugar, porque defen- deu a separação entre razão e fé, quer dizer, a distinção entre os domínios religioso e científico. Em segundo lugar, porque mostrou a importância de um julgamento imparcial na avaliação de teorias científicas, o que significava, em seu contexto próprio, recusar a aceitação de uma teoria em virtude da autoridade de seu autor. No primeiro caso, a discussão deu origem a uma contenda teológica e religiosa, na qual Galileu procurou mostrar que os resultados científicos (notadamente aqueles relacio- nados com a mobilidade da Terra e a centralidade do Sol) não deveriam e nem poderiam ser corretamente avaliados segundo determinadas passagens dos textos bíblicos. Eviden- temente não se tratava de afirmar que as Sagradas Escrituras contivessem algum tipo de falsidade, mas de requisitar a correta interpretação daquilo que nelas se encontra escrito. No segundo caso, encontramos o ataque aos aristotélicos de seu tempo. O que Galileu procurou mostrar é que a ciência não pode ser refém da opinião de quem quer que seja, inclusive a de Aristóteles. Pelo contrário, a ciência é livre de tais compromissos e deve ser construída e avaliada mediante critérios específicos, neutros, imparciais e autônomos. Para Galileu, a ciência está assentada em dois pilares fundamentais: as demons- trações necessárias e a experiência. Em diversas passagens de suas obras e das cartas remetidas a filósofos, cientistas e teólogos, Galileu procura mostrar que somente esses dois instrumentos podem nos levar a uma ciência realmente genuína. A defesa desses dois critérios marca justamente o nascimento daquilo que tradicionalmente denominamos de ciência moderna. Nesse sentido, o cientista teria em cada uma de suas mãos duas ferra- mentas de grande poder que garantiriam a confiabilidade nas suas afirmações sobre a natureza. Mais do que isso, como diria Galileu, elas garantiriam a verdade de tais afirma- ções. A demonstração indica que nossas conclusões são de um modo tal e não poderiam ser de outro, ou seja, elas são, como sustentava Aristóteles, necessárias. A experiência, por sua vez, deve ser capaz de nos revelar os fatos tais como são e requerer, ainda, que aquilo que observamos seja passível de repetição. Isso significa que a experiência não pode ser resultado de um evento fortuito. Falar em experiência, ou mais precisamente em expe- rimento, significa falar em eventos que podem ser repetidos e verificados por qualquer membro da comunidade científica. Nesse sentido, não se trata, como desejava Galileu, de uma afirmação imposta pela autoridade. A ênfase de Galileu em tais requisitos (experiência e demonstrações necessárias) conduz a outro aspecto importantíssimo para a concepção de ciência que então se cons- #M1U1 IV. O nascimento da ciência moderna Galileu Galilei (1564 - 1642) 82 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico truía. Trata-se do processo de matematização da natureza. Os fenômenos naturais são tratados por meio da linguagem matemática, o que pos- sibilita mensurá-los. É essa linguagem que permitiu a Galileu, e a outros autores do período, erigir leis matemáticas que traduzam as regularidades naturais. Nesse contexto, os corpos e suas propriedades são tratados do ponto de vista mate- mático e geométrico, o que significa uma mudança de perspectiva com relação ao tratamento aristotélico. A natureza não é investigada qualitativamente, como fazia Aristóteles, mas quantitativamente. A nova metodologia proposta por Galileu está fortemente vinculada a uma nova visão da natureza e da ciência. Essa mudança de conduta inaugura uma nova fase no pensamento científico e filosófico que não admitirá mais um retorno às antigas concepções, pelo contrário, ela funda o novo terreno sobre o qual o conhecimento científico será construído. Se Galileu dá início a uma nova concepção de ciência e de metodologia científica, Descartes é um dos grandes responsáveis pelo nascimento de uma nova concepção de conhecimento. Nesse sentido, ele é uma referência importantíssima na filosofia desenvolvida durante o século XVII. Em muitas de suas obras (como o Discurso do Método, as Regras para a Direção do Espírito e as Meditações Metafísicas), o filósofo francês discute aspectos diretamente relacionados com a episte- mologia. Avesso ao ceticismo, Descartes procura defender a possibilidade de um conhecimento certo e seguro. No Discurso do Método e princi- palmente nas Regras para a Direção do Espírito en- contramos uma série de preceitos para que tal objetivo seja alcançado. As diretrizes advogadas por Descartes nos ajudam a compreender uma das característicasque apontamos anteriormente, a verdade como objetivo da ciência, e que, entretanto, será problematizada e questionada por autores posteriores ao filósofo francês. De qualquer modo, vale notar que Descartes defende a tese de que só podemos falar de conhecimento genuíno se adotarmos o preceito da certeza, ou seja, se tomarmos como conhecimento aquilo que não pode ser posto em dúvida. A fim de sustentar tudo isso, Descartes utiliza a matemática e a geometria como exemplos modelares de um conhecimento certo e seguro, o que não significa, preliminar- mente, que a certeza possa ser encontrada apenas nessas áreas. Pelo contrário, é preciso desenvolver as demais ciências tendo em vista algo parecido com aquilo que encontramos nas matemáticas. A busca por esse tipo de conhecimento tem na filosofia cartesiana um ponto de apoio que será a pedra de toque do projeto racionalista, a saber: o papel desem- penhado pela razão na correção dos dados provenientes dos sentidos. Segundo o autor, aquilo que adquirimos pelos sentidos é algumas vezes problemático. Não há, no nível estrito da apreensão sensorial, como garantir a verdade daquilo que observamos. A fim #M1U1 V. Descartes e o problema do conhecimento verdadeiro René Descartes (1596 - 1650) Curiosidade Em 1609, Galileu aperfeiçoa o telescópio, o que lhe permite uma série de descobertas (como as manchas solares e os satélites de Júpiter), as quais derrubam a distinção aristotélica entre mundo sublunar e supralunar. Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 83 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B Saiba Mais A celebre frase de Descartes “Cogito, ergo sum” (penso, logo existo) viria a ser a base do racionalismo moderno. John Locke (1635 - 1704) de corrigir os eventuais erros dos sentidos é preciso utilizar a razão. Somente ela é capaz de nos levar ao conhecimento certo e seguro. Nas Meditações Metafísicas, Descartes mostra que ainda que abandonemos tudo aqui- lo que, hipoteticamente, pode ser questionado (o mundo sensível, aquilo que apreendemos pelos sentidos e até mesmo as verdades matemáticas – estas últimas, segundo Descartes, graças à estratégia de suposição de um gênio maligno que constantemente nos engana, nos fazendo acreditar que algo é verdadeiro quando na realidade é falso), uma verdade se mantém inabalável, a saber: penso, logo existo. De fato, embora eu possa pensar pro- posições falsas, nenhum argumento poderia me convencer de que não estou pensando. O conhecimento passa a fundamentar-se, portanto, em um pilar fundamental: o sujeito. É justamente a partir desse primeiro elemento que Descartes, por meio de um longo processo reflexivo, resgata todos os outros elementos anteriormente questionados. Até mesmo a existência de Deus é estabelecida como algo inquestionável. Mais do que isso, Deus comparece na filosofia cartesiana como garantia da verdade. De fato, ao classificar as idéias em três categorias (inatas, fictícias e adventícias), o autor sustenta que apenas as idéias inatas (isto é, aquelas colocadas em nós por Deus) são absolutamente verdadeiras, sendo as fictícias sempre falsas e as adventícias (provenientes da experiência) falsas ou verdadeiras, cabendo à razão verificar quais são verdadeiras e quais são falsas. Os aspectos desenvolvidos por Descartes instauram um dos problemas que será discutido pelo empirismo. Corrente fortemente desenvolvida pela filosofia inglesa, o empirismo caracteriza-se pela defesa da tese de que todo conhecimento está fundamentado na experiência, não admitindo antes dela qualquer tipo de conhecimento ou de idéias. Locke e Hume, entre outros, são dois grandes representantes dessa corrente filosófica. De acordo com Locke, o inatismo (tendência intimamente relacionada com o ra- cionalismo) carece de fundamentação consistente. Nos Ensaios Acerca do Entendimento Humano, Locke faz uma crítica bastante severa ao inatismo, mostrando que não é possível sustentar a existência nem de princípios nem de idéias ina- tas. Para o autor, o conhecimento está inteiramen- te fundamentado na experiência e todas as nossas idéias materiais, fundamentais para a construção do conhecimento, estão baseadas nos dois modos se- gundo os quais a experiência se efetiva: a sensação e a reflexão. O primeiro modo é responsável pelas idéias relacionadas com nosso aparelho sensorial, pelo qual apreendemos as qualidades e proprieda- des dos objetos do mundo exterior. O segundo, por sua vez, diz respeito à apreensão daquilo que ocor- re em nós mesmos quando passamos a considerar o material já existente em nosso intelecto. Hume, de um modo bastante próximo de Lo- cke, também entende que a experiência tem um papel #M1U1 VI. A concepção empirista do conhecimento 84 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico David Hume (1711 - 1776) Situação 1 Situação 2 importantíssimo na construção do conhecimento. Con- tudo, diferentemente daquele, Hume não adota um posicionamento empirista puro. Encontramos nesse autor um forte apelo cético. De fato, nas Investigações Sobre o Entendimento Humano, Hume problematiza um dos mais importan- tes princípios decorrentes do empirismo: trata-se do princípio de indução. De acordo com o princípio de indução, após uma dada cadeia de observações de um certo tipo de evento, somos levados a concluir que to- dos os eventos futuros desse mesmo tipo serão análogos ao que se observou anteriormente. Desse modo, depois de observarmos, por exem- plo, várias ocorrências de cisnes brancos, concluímos que todo cisne é branco e, portanto, que os próximos cisnes a serem observados também serão brancos. Ora, qual é o problema notado por Hume? Justamente que não temos qualquer garantia de que isso venha necessariamente a ocorrer. O problema é relativamente simples de ser entendido. O conjunto de objetos obser- vados é finito, ao passo que a conclusão que inferimos indutivamente é universal, isto é, ela afirma: todo cisne é branco. Se for assim, parece razoável exigir que todos os cisnes que já existiram, que existem e que existirão tenham sido investigados, a fim de que possamos garantir que o enunciado foi devidamente verificado e, portanto, pode ser avaliado como verdadeiro ou falso, dependendo dos resultados obtidos. Contudo, como é fácil perceber, isso não pode ser realizado. Outro problema importante é, como alerta Hume, perceber que não é impossível imaginar, por exemplo, que o sol não nascerá amanhã. Nesse sentido, ao compararmos duas previsões opostas (tais como, “O sol nascerá amanhã” e “O sol não nascerá amanhã”) não estamos diante de uma situação impensável. É perfeitamente possível que qualquer uma dessas ocorrências venha a ser verificada. Diante do problema da indução e de nossa incapacidade de justificar racionalmente tal processo ou princípio, Hume estabelece uma solução bastante interessante. Para ele, a indução é resultado de nosso hábito de acreditar que os eventos futuros serão conformes aos eventos passados. Desse modo, o princípio tem seu fundamento em um hábito psico- lógico e não na razão. Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 85 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B Sir Karl Popper (1902 - 1994) Austríaco, naturalizado inglês, foi nomeado cavalheiro da Rainha Britânica Elizabeth II em 1965, de quem recebeu o título de Sir. Vimos que Hume, não obstante seu compro- misso com o empirismo, entende que o princípio de indução não tem um fundamento racional que o jus- tifique. É importante notar que esse princípio não po- deria ser justificado nem mesmo através de um apelo à própria experiência. O problema é bastante sim- ples: recorrer à experiência como justificativa para a indução significa utilizar o próprio princípio em jogo como elemento de prova. Assim sendo, é como se afirmássemos o seguinte: o princípio de indução foi bem sucedido na ocasião a, b, c, d e f. Logo, o princí- pio deindução é sempre bem sucedido. Ora, como se vê o próprio princípio é utilizado na argumentação. Desse modo, a demonstração não pode ser aceita. Em 1968, Karl Popper publica um livro intitu- lado A Lógica da Pesquisa Científica, no qual encontra- mos uma proposta alternativa ao problema de jus- tificação do conhecimento científico. Consciente do problema da indução, Popper procura fornecer uma teoria que escape aos mesmos problemas presentes no verificacionismo. Antes de apresentar alguns tra- ços gerais de sua teoria, convém explicar um pouco melhor o que se deve entender por verificacionismo. Uma das perspectivas tradicionalmente aceita por diversos estudiosos da ciência, bem como por cientistas de um modo geral, é que teorias científicas podem ser ve- rificadas de forma experimental e observacional. (Figura 1) Como vimos anteriormente, a partir de Galileu temos o estabelecimento de dois princípios fundamentais das chamadas ciências naturais: a matematização e a experimen- tação. De acordo com o segundo princípio, o conhecimento científico deve basear-se em experiências e observações que possam ser verificadas por outros membros da comunida- de científica. Desse modo, a experiência tem nesse contexto uma importância muito gran- de. Em primeiro lugar, é a partir dela que são erigidas as leis naturais que governam os fenômenos naturais. Isso significa, por outro lado, que tais fenômenos estão submetidos a uma ordem regular e é justamente por conta disso que podemos verificar os resultados obtidos em outros momentos. É fácil perceber que o princípio de indução tem aí uma grande importância. Depois de observarmos uma série de eventos de um mesmo tipo, nos sentimos autorizados a concluir que os eventos futuros serão análogos aos eventos passados. É por essa razão que estamos razoavelmente seguros de que nossas previsões serão verificadas ulteriormente. A experiência tem, portanto, uma dupla função. Em primeiro lugar, ela é responsável por um processo ascendente pelo qual estabelecemos leis e previsões científicas. Em segundo lugar, ela é o instrumento que permite a confirmação daquilo que prevemos. #M1U1 VII. O projeto falsificacionista e o problema da indução 86 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico Figura 1: o pesquisador observando e realizando um experimento. Entre os anos de 1926 e 1935, um grupo de estudiosos da ciência funda uma das grandes correntes do pensamento filosófico e científico do século XX. Trata-se do Círculo de Viena, do qual faziam parte Rudolf Carnap, Moritz Schlick, Otto Neurath, entre outros. Costumamos denominar a filosofia defendida por esse grupo de Positivismo Lógico. Popper também teve contato com esse grupo e um dos resultados de tudo isso pode ser percebido em sua análise da dinâmica da ciência. O positivismo lógico estava fortemente vinculado a uma visão de ciência diretamente tributária do empirismo. Segundo essa corrente de pensamento, a ciência comportaria apenas dois tipos de proposições cujo sentido poderia se aferido: analíticas e factuais. Do primeiro tipo fazem parte os enunciados matemáticos e lógicos. O segundo tipo é composto de enunciados factuais, isto é, fruto da observação ou da experiência. Qualquer outro tipo de enunciado (como os metafísicos) está fora do escopo da ciência. Mais do que isso, de acordo com os positivistas lógicos, tais enunciados são destituídos de sentido, portanto, não podem ser classificados como científicos. De acordo com essa visão, somente enunciados factuais e analíticos podem ser admitidos no jogo científico, uma vez que somente eles são dotados de sentido. Dessa maneira, não é difícil ver que o positivismo lógico está comprometido com a idéia de ve- rificação de nossas proposições científicas, o que significa dizer que uma teoria científica deve ser passível de ser verificada pela experiência. Voltamos desse modo ao problema da verificação. O que significa verificar um enunciado? De modo bastante simples e intuitivo, isso significa que um enunciado deve ser confirmado por meio de sua contraposição com os fatos. A proposição “amanhã choverá no litoral sul da Bahia” é um exemplo desse tipo de enunciado. De fato, essa proposição enuncia uma situação que pode ser verificada ou comprovada pela observação. Se realmente chover no litoral sul da Bahia, a proposição será verdadeira, em caso contrário ela será falsa. Defender uma postura verificacionista significa, portanto, sustentar que teorias científicas devem ser verificáveis, ou seja, elas podem ser contrapostas com os fatos, o que nos indicará se elas são verdadeiras ou falsas. Aparentemente, tal posicionamento não indicaria qualquer dificuldade. Parece muito razoável supor que as coisas ocorram justamente dessa maneira. Contudo, isso é realmente assim? Vejamos. Em primeiro lugar, é preciso levar em consideração uma das principais características de uma teoria científica. Evidentemente, não estamos falando #M1U1 VIII. O positivismo lógico e o problema da verificação Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 87 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B de uma explicação que possa dar conta de um evento singular, isto é, de algo que não se repita com alguma freqüência. Uma teoria científica é muito mais do que isso, ela procura fornecer uma explicação de um dado conjunto de fenômenos regulares. Mais do que isso, uma teoria possui um caráter claramente universal. Com efeito, não afirmamos que uma certa porção de água, quando aquecida sob condições específicas, entra em ebulição a 100ºC. Afirmamos, isso sim, que “toda” porção de água, sob aquelas condições específi- cas, entra em ebulição naquela temperatura. Uma teoria científica corresponde assim a uma explicação de cunho universal. O que Popper percebeu diz respeito justamente a essa característica peculiar. Como vimos anteriormente, ao afirmarmos que “todo cisne é branco”, comprometemo-nos com a exigência de que todos os casos sejam conformes ao que estamos afirmando e, portanto, exigimos que todas as ocorrências tenham sido efetivamente observadas. Vimos que tal tarefa não é factível. Por outro lado, existiria uma saída para o problema? Afinal de con- tas, se teorias científicas têm um caráter muito próximo desse tipo de enunciado (isto é, elas também são universais), como assegurar sua verdade diante da dificuldade de veri- ficar todos os casos em jogo? Popper estabeleceu uma solução para o problema: enuncia- dos universais não são verificáveis, contudo, eles são falseáveis (ou falsificáveis). O que significa isso? Justamente o seguinte: Não podemos verificar tais enunciados, entretanto, podemos tomá-los como enun- ciados que podem ser falseados. Para tanto, basta que encontremos uma ocorrência negativa daquilo que a proposição universal afirma. Em nosso caso, basta que en- contremos um cisne que não seja branco. O que está em questão na estratégia adotada por Popper possui uma forte relação com a questão da verdade e da confiabilidade depositada em teorias científicas. Como vimos inicialmente, muitas vezes a ciência é vista como um sinônimo de verdade e de certeza. Entretanto, as coisas não funcionam exatamente dessa maneira. Se levarmos em consideração a abordagem defendida por Popper, fica claro que a verdade não pode ser, em sentido estrito, um valor que possa ser efetivamente alcançado. #M1U1 IX. A alternativa de Popper ao problema da verificação 88 Módulo I — Contexto da Vida Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico # M1U3 Não é possível provar que um enunciado universal, cujas condições de verificação são tão amplas, é verdadeiro. A possibilidade de falsificação desse mesmo tipo de proposi- ção, entretanto, parece bastante razoável. A dificuldade surge justamente nisso: como en- tender que a tarefa do cientista consiste em falsificar teorias científicas? Isso não parece algo absurdo? Não, de modo algum. Nessa perspectiva,teorias científicas, quando não falsifica- das, são tomadas como teorias corroboradas e confiáveis. Nós as admitimos porque elas são as mais confiáveis até o momento e não porque elas são inabalavelmente verdadeiras. De acordo com Popper, embora não possamos asseverar a verdade absoluta, é pos- sível dizer que nossas teorias vão, cada vez mais, aproximando-se da verdade. Veja que a perspectiva de avaliação se modificou completamente. Teorias científicas não são en- tendidas como absolutamente verdadeiras, mas como aproximadamente verdadeiras e, por isso, razoavelmente confiáveis! Isso significa que estamos razoavelmente seguros de que seus resultados não serão negativos, ainda que a intenção seja encontrar ocorrências negativas. O que está por trás de tudo é a idéia de teste. Ao propor uma teoria científica, o cientista não se compromete apenas com a apre- sentação de uma explicação sobre um determinado campo da natureza. É muito mais do que isso. Na verdade, ele também está comprometido com a exigência de que a teoria seja testável, isto é, que ela possa ser confrontada com os fatos por meio de experimentos pas- síveis de repetição por outros membros da comunidade científica. Assim sendo, uma teo- ria científica não deve ser tomada como uma verdade estabelecida e inquestionável. Pelo contrário. Ao testarmos uma teoria, estamos na realidade verificando se ela é confiável. A idéia de teste é, como sabemos, uma das principais tarefas do cientista. Nesse sentido, a proposta popperiana não parece tão absurda assim. Ao procurarmos instâncias negativas da teoria estamos, na verdade, testando-a. Para Popper, a ciência inclui dois componentes fundamentais: conjecturas arro- jadas e testes rigorosos. O primeiro componente faz com que o cientista procure formular explicações científicas cada vez mais audazes, que procurem dar conta de um universo cada vez mais amplo e cada vez mais preciso. O segundo componente garante a credibilidade de nossas conclusões, uma vez que devemos elaborar testes cada vez mais rigorosos para as teorias que propomos. É como se os testes tivessem o objetivo de mostrar que aquilo que afirmamos re- almente funciona, é digno de crédito. O progresso científico, para falarmos de algo tão comum ao campo da ciência, consiste precisamente no fortalecimento desses dois com- ponentes. Diante disso, é possível afirmar que as teorias mais arrojadas e que resistem melhor aos testes são as melhores produzidas até então e, portanto, as mais confiáveis. Alguns anos antes da publicação da Lógica da Pesquisa Científica, de Popper, outro estudioso da ciência publicou um livro que se tornou não apenas uma das principais refe- rências para a filosofia da ciência, mas também uma proposta em torno da qual se desen- volveu um debate bastante intenso. Estamos falando de Thomas Kuhn e de seu livro A Estrutura das Revoluções Científicas, publicado inicialmente em 1962. De acordo com Kuhn, a ciência não pode ser compreendida tão-somente em virtude de seus aspectos internos ou lógicos. A pesquisa científica vai além dos requisitos preconizados, por exemplo, pelo ve- rificacionismo. A perspectiva adotada por Kuhn é bastante interessante e nos coloca dian- #M1U1 X. Crises e revoluções científicas: a dinâmica da ciência de Thomas Kuhn Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 89 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B Curiosidade Paradigma: palavra de origem grega (paráidegma) que significa modelo, exemplo. te de um posicionamento que se afasta do modelo sustentado alguns anos depois por Popper. Em linhas gerais, ela é a seguinte: em seu mo- mento de gestação, as ciências passam, por assim dizer, por um perío- do denominado por Kuhn de pré-paradigmático, no qual a comunida- de científica ainda não compartilhava de um modelo comum. É nesse período que uma série de alternativas rivais são propostas, defendidas e testadas. Ao final desse processo, um dos paradigmas em competição acaba por vencer os demais tendo em vista sua superioridade explicati- va, sua amplitude e seu poder de prever novos fenômenos. Entramos então em um novo período, denominado de ciência normal. Durante essa fase, a comunidade científica não está direta- mente interessada em propor novos paradigmas ou em elaborar tes- tes visando à falsificação do mesmo. Pelo contrário, ao compartilhar um mesmo paradigma, os cientistas estão preocupados em articular e melhorar o paradigma tendo em vista a resolução de problemas que, a princípio, parecem ser solucionáveis com os instrumentos coloca- dos à disposição pelo modelo teórico em questão. A ciência normal caracteriza-se, portanto, como uma atividade de resolução de quebra- cabeças ou resolução de problemas. Não interessa à comunidade cien- tífica qualquer novidade que venha a causar prejuízos ao paradigma, ele passa a ser encarado como uma promessa de sucesso, como uma alternativa promissora e que merece ser melhorada. Essa aparente sensação de tranqüilidade não perdurará, entre- tanto, indefinidamente. Durante o trabalho de articulação do para- digma, alguns eventos contrários acabam ocorrendo. Evidentemente, o confronto com os fatos nem sempre reserva uma resposta positiva, ou seja, nem sempre o paradigma efetivamente obtém sucesso em suas explicações e predições. É importante notar, inclusive, que o paradigma não deve ser entendido como um conjunto de elementos que explica integralmente todos os eventos naturais e nem tam- pouco é um resultado definitivo para todas as nossas perguntas acerca do funcionamen- to da natureza. Pelo contrário, como procuramos indicar anteriormente, o paradigma é uma promessa de sucesso. Nesse sentido, ele apresenta resultados iniciais significativos e configura-se como uma alternativa capaz de explicar algumas outras ocorrências. Caso contrário, se ele fosse uma resposta definitiva para todos os problemas, provavelmente não haveria sentido em buscar soluções para determinados problemas. Compartilhar um paradigma significa a crença de que certos problemas têm uma solução. Voltemos, contudo, ao problema dos casos negativos. Evidentemente, não se trata de abandonar o paradigma em vigor diante do primeiro fracasso ou do primeiro caso não explicado. Muitas vezes a comunidade científica, por mais estranho que isso possa parecer, acaba descartando essas ocorrências negativas como casos não relevantes ou cuja possível solução não pode ser fornecida pelo paradigma. Nesse sentido, durante algum tempo o paradigma é tomado como prioritário em detrimento dos problemas que ele não consegue resolver. Todavia, diante do volume e da gravidade dos casos não resolvidos, o paradigma acaba perdendo muito de sua força e de sua fertilidade. Diante dessa situação, a comunidade científica entra em um período denominado por Kuhn de crise. Diante de certas anomalias (casos negativos), os cientistas vão perdendo a esperança de que o paradigma possa resolver os problemas que se apresentam. É nesse momento que sur- gem novos paradigmas em competição, numa situação razoavelmente próxima daquela presente no período pré-paradigmático. Certamente, um desses paradigmas se mostrará mais eficiente, sobrepondo-se aos demais. Geralmente esse período dá origem àquilo que Kuhn denomina de revolução científica, uma profunda transformação na visão de mun- do adotada pela comunidade científica. Thomas Samuel Kuhn (1922 - 1996) Físico dos Estados Unidos da América cujo trabalho incidiu sobre história e filosofia da ciência, tornando-se uma personalidade importante no estudo do processo do desenvolvimento científico. 90 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico Imre Lakatos (1922 - 1974) Crises e revoluções científicas têm, portanto, um papel fundamental no desen- volvimento da ciência. Tais ocorrências ratificam a falência de um determinado projeto ou paradigma inaugurando, em contrapartida, um novo período de ciência normal. Conformeindicado anteriormente, a clara oposição entre as propostas de Popper e Kuhn deu origem a um in- tenso debate em torno das posturas protagonizadas por esses dois autores. Alguns dos resultados desse debate po- dem ser encontrados no livro A Crítica e o Desenvolvimento do Conhecimento, publicado originalmente em 1970, sob a organização de Imre Lakatos e Alan Musgrave. Esse livro corresponde, com algumas alterações e acréscimos, aos tra- balhos apresentados no Colóquio Internacional sobre a Fi- losofia da Ciência, realizado em Londres, em 1965. Nesse li- vro encontramos o texto de Lakatos intitulado O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica, no qual o autor apresenta uma proposta alternativa ao falsificacionis- mo ingênuo presente em Popper. Longe de rejeitar integralmente a proposta poppe- riana, Lakatos, consciente de algumas críticas pertinentes sugeridas por Kuhn contra a metodologia de Popper, pre- tende defender uma nova perspectiva filosófica que escape aos argumentos críticos levantados por Kuhn. Em linhas muito gerais, Lakatos procura mostrar que a ciência deve ser entendida como o desenvolvimento de programas de pes- quisa. Vejamos como isso funciona. De acordo com Lakatos, a dinâmica científica pressupõe o desenvolvimento daqui- lo que ele denomina como programas de pesquisa científica. Tais programas são consti- tuídos por um núcleo irredutível e por um cinturão de hipóteses auxiliares e condições iniciais, entre outros elementos, que visam proteger o núcleo irredutível. Para Lakatos, esse núcleo é infalsificável, ou seja, ele não é objeto de questiona- mento. O falseamento está dirigido para o cinturão de hipóteses auxiliares. Nesse senti- do, a ciência passa a ser caracterizada como um todo estruturado, cujas partes compo- nentes possuem uma função bastante específica. Contudo, como falar aqui de progresso ou avanço científico? Como introduzir nessa estrutura a idéia de teste, um elemento tão fundamental da ciência? Para que possamos entender como tais requisitos seriam atendidos pelo sistema elaborado por Lakatos, é preciso que entendamos dois conceitos básicos propostos pelo autor. O primeiro deles é a heurística negativa. Antes de esclarecermos o que o autor entende por isso, convém explicar o que significa a palavra heurística. Esse conceito está relacionado a um conjunto de regras e métodos que conduzem à descoberta, à invenção e à resolução de problemas. A heurística negativa de Lakatos tem a função de preservar o núcleo irredutível do qual falamos acima. #M1U1 XI. A ciência como programas de pesquisa Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 91 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B Curiosidade Heurística vem da palavra grega Heuriskein, que significa descobrir (e que deu origem também ao termo Eureca). De acordo com esse expediente metodológico, as suposições básicas que compõem o núcleo irredutível não devem ser rejeitadas ou modificadas. Elas correspondem àquilo que não podemos abandonar, às convicções mais elementares que não po- dem ser questionadas. No caso da astronomia copernicana, por exemplo, podemos identificar dois ele- mentos fundamentais de seu núcleo irredutível: 1) a Terra e os outros planetas orbitam em torno do Sol que se mantém imóvel; 2) a Terra, além do movimento de translação, realiza um movimento de rotação em torno de seu próprio eixo no período de vinte e quatro horas. Tais suposições, no contexto de um programa de pesquisa vinculado à astronomia copernicana, constituem aquilo que não pode ser rejeitado ou modificado. Nesse sentido, segundo a heurística negativa, tais suposições não são objeto de questionamento ou mo- dificação. Os testes devem incidir sobre o cinturão que protege o núcleo irredutível, esse sim pode ser rejeitado ou modificado. Além desse expediente, Lakatos estabelece também um outro: a heurística positiva. Esta é responsável pelo desenvolvimento do programa de pesquisa mediante o in- cremento e melhoria do núcleo irredutível por meio de suposições adicionais, tendo em vista a explicação de fenômenos já conhecidos e a previsão de eventos novos. O desenvolvimento dos programas de pesquisa pode ser progressivo ou degene- rescente. Ele será progressivo se o programa for capaz de prever ou descobrir fatos novos. Caso isso não ocorra, o programa será degenerescente, sendo posteriormente abandonado e substituído por um programa melhor. A metodologia proposta por Lakatos afasta-se razoavelmente da alternativa su- gerida por Popper e, por outro lado, configura-se como uma resposta ao esquema ela- borado por Kuhn. Ainda que Lakatos considere a idéia de refutação, é preciso perceber que o autor não direciona os testes àquilo que qualifica fundamentalmente uma linha de investigação científica. Com efeito, o núcleo irredutível é entendido como uma base da qual não é possível abrir mão, pelo menos durante certo tempo. Trata-se de uma decisão metodológica importantíssima. Entretanto, isso não significa, como podemos perceber, que a ciência seja entendida como um todo monolítico inquestionável. O cinturão protetor cumpre exatamente a fun- ção de verificar se as suposições que se faz acerca do funcionamento da natureza são de fato procedentes ou não. Por outro lado, contrariamente àquilo que Lakatos vê na propos- ta de Kuhn, as decisões epistemológicas não descambam para o irracionalismo. De acordo com Lakatos, o esquema kuhniano nos faz entender que a mudança de um paradigma para outro se dá por meio de uma operação muito parecida com a conversão religiosa. Para ele isso é inadmissível. Certamente existem boas razões para que abandone- mos uma teoria em prol de outra. Mais do que isso, tais razões são inteiramente racionais. São elas que nos levam a compartilhar um determinado programa de pesquisa científica. As três propostas metodológicas apresentadas até agora (a saber: as de Popper, Kuhn e Lakatos) procuram mostrar que o empreendimento da pesquisa científica está #M1U1 XII. Feyerabend e o anarquismo epistemológico 92 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico Paul K. Feyerabend (1924 – 1994) pautado em alguns princípios fundamentais. No caso de Popper isso se traduz no princípio básico de que a ciência deve contar com dois ingredientes básicos: conjecturas audaciosas e testes rigorosos. É precisa- mente por meio desses dois mecanismos, intimamen- te ligados com a idéia de que teorias devem ser fal- seáveis, que a ciência progride. Kuhn, por seu turno, prefere pensar a ciência de uma maneira diferente. Como vimos, para ele é preciso compreender a ciência segundo uma estrutura na qual a resolução de problemas caracteriza boa parte da prática cientí- fica, entendida como ciência normal. Esse trabalho só é interrompido em períodos de crise, que costumam determinar uma revolução científica e a proposição de um novo paradigma científico. Não obstante o distanciamento com respeito à proposta de Popper, encontramos em Kuhn um modelo supostamente aplicável a todas as ciências. Finalmente, vimos que Lakatos apresenta uma nova metodologia científica, na qual os programas de pesquisa têm um papel fundamental. O falseamento não é dire- cionado àquilo que Lakatos denomina como núcleo irredutível, mas ao cinturão protetor. As propostas de Popper e Lakatos estão declaradamente vinculadas com a determinação de uma metodologia padrão, isto é, com um conjunto de procedimentos que deveriam ser seguidos para que a ciência caminhasse adequadamente. Diferentemente desses autores (principalmente Lakatos e Popper), encontramos em Feyerabend uma proposta que visa colocar em xeque qualquer tentativa de erigir regras metodológicas definitivas e invioláveis. Em 1975, Paul Feyerabend publica uma de suas obras mais famosas, Contra o Método, na qual ele apresenta as linhas gerais de seu anarquismo epistemológico. De acordo com o autor, a ciência não pode ser compreendidasegundo os cânones simplistas das diversas metodologias científicas. Para Feyerabend a ciência, ou melhor, a prática científica não pode ser reduzida a alguns princípios gerais da lógica e da metodo- logia científica. A ciência é um empreendimento muito mais complexo e requer, como tal, uma análise mais ampla. É preciso levar em conta os mais diversos aspectos que entram em jogo quando falamos de ciência como, por exemplo, o contexto social, político e eco- nômico, o problema do financiamento da pesquisa científica, a imposição de uma deter- minada norma de educação e formação da comunidade científica, o embate de forças nas diversas esferas de poder, etc. Além disso, Feyerabend sustenta que o desenvolvimento da ciência requer, não apenas como exceção, a proposição de hipóteses que conflitem com os dados e resultados obtidos num determinado momento. Não é possível falar em progresso científico sem que se defenda a plena liberdade de se propor hipóteses que aparentemente se mostrem contrárias às teorias confirmadas. Para o autor, é possível fazer com que a ciência avance procedendo contra-in- dutivamente. Para Feyerabend apenas uma regra deve guiar o cientista: tudo vale. Um dos exemplos utilizados por Feyerabend é o caso de Galileu. Em sua perspectiva, Galileu teria agido contrariamente a tudo aquilo que até então era tomado como certo, isto é, a física aristotélica e a astronomia ptolomaica. Ao defender o copernicanismo e empreen- der suas investigações em direção a uma nova física, Galileu optou por uma hipótese que não parecia razoável e claramente oposta aos nossos sentidos comuns. Mais do que isso, ele decidiu defendê-la de um ponto de vista realista, ou seja, ela de fato representaria a Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 93 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B real estrutura do mundo. Segundo Feyerabend, esse passo foi fundamental, uma vez que colaborou fortemente para o nascimento de uma nova ciência. Tudo isso pode parecer bastante estranho diante do que vimos anteriormente. De fato, não parece razoável imaginar que a ciência deva ser tomada como uma investigação na qual toda e qualquer conjectura possa ter lugar. Entretanto, é preciso compreender que o autor tem em vista um valor que lhe parece fundamental, a liberdade. É precisamen- te nesse sentido que ele entende a atividade científica: algo que deve ser empreendido livremente, sem a necessidade de obediência cega a regras metodológicas previamente estipuladas. É por meio desse princípio que a ciência deve progredir. Os aspectos discutidos até aqui procuraram colocar em destaque diferentes pers- pectivas da metodologia científica. No início de nossa discussão, procuramos mostrar que a ciência muitas vezes é compreendida como uma investigação que pretende determinar uma explicação verdadeira sobre os fenômenos naturais. Essa questão certamente não esteve longe do horizonte das diversas metodologias que procuramos expor em linhas gerais. Entretanto, falta considerar mais especificamente duas tendências importantes quando falamos sobre o problema da verdade ou da falsidade de teorias científicas. Ao longo da história do pensamento ocidental é possível notar pelo menos duas formas de encarar o conhecimento científico: a realista e a instrumentalista. De acordo com o realismo, teorias científicas expressam a real estrutura do mundo e, portanto, ao adequar-se aos fatos tais como eles são, uma teoria pode ser dita ver- dadeira. O instrumentalismo, por outro lado, não entende que isso seja possível. Para um instrumentalista, uma teoria científica não pode explicar ou descrever a natureza tal como ela é realmente. Evidentemente, existe um nível no qual podemos falar que certos objetos existem como, por exemplo, corpos, nervos, músculos, moléculas e outras coisas do gênero. Não é possível, nem mesmo para um instrumentalista mais ortodoxo, negar a realidade daquilo que podemos observar. Entretanto, nem tudo que uma teoria pressupõe pode ser reduzi- do àquilo que pode ser facilmente observado. Um dos traços comuns de qualquer teoria #M1U1 XIII. Realismo e Instrumentalismo: teorias científicas revelam a real estrutura do mundo? 94 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico Como exemplo, podemos dizer que realismo científico é a visão de que o universo é expli- cado da forma que realmente é pelas afirmações científicas. Realistas defendem que coi- sas como elétrons e campos magnéticos realmente existem. Já para um instrumentalista, elétrons e campos magnéticos podem ou não podem existir de fato. Para estes, o método empírico é usado para fazer não mais do que mostrar que teorias são consistentes com observações. Saiba Mais consiste justamente na suposição de algumas entidades inobserváveis, por meio das quais é possível prever certos eventos. Para um realista não existe qualquer problema em supor que tanto as entidades observáveis quanto as inobserváveis existem. De fato, o realista se compromete com tudo isso. Aos seus olhos não é possível questionar, diante dos resultados obtidos, a realidade dessas entidades, nem tampouco a verdade de uma teoria quando ela obtém sucesso. Para um instrumentalista as coisas não são bem assim. Teorias científicas são encaradas como instrumentos úteis para a compreensão do mundo, enquanto as entidades inobserváveis são meras ficções, não possuem existência real. Temos aqui um problema bastante interessante e que gerou, mesmo em períodos mais recentes, discussão em torno do valor das teorias científicas. Não nos cabe aqui de- cretar quais dessas posturas é, de fato, a mais adequada. Pelo contrário, o debate em torno da verdade ou não das teorias científicas nos indica a complexidade da prática científica. Voltando à imagem exposta no início do texto: é preciso questionar e refletir muito bem acerca da identificação entre ciência e verdade. Mais do que isso, é preciso compreender, nesse mesmo contexto, que a ciência é uma prática essencialmente humana e, justamente por esse motivo, contém uma dimensão social que não pode ser suprimida. Nesse sentido, as advertências de Kuhn e Feyerabend, por exemplo, nos parecem bastante pertinentes. Nossas teorias são, acima de tudo, uma reconstrução do mundo. Desse modo, não há como eliminar os componentes humanos que inevitavelmente entram em jogo quando testamos teorias, realizamos um experimento em laboratório ou observamos algum fenô- meno a olho nu ou com algum aparato técnico. Os aspectos esboçados nesse pequeno texto não têm, como dissemos inicialmente, a pretensão de abarcar todas as particularidades do pensamento científico ocidental. Tal tarefa demandaria um trajeto muito mais longo e detalhado do que aquele que podería- mos apresentar aqui. Nosso intuito consistiu principalmente no apontamento de alguns aspectos fundamentais sobre o assunto aqui abordado, objetivando suscitar alguns ques- tionamentos quanto àquilo que classificamos como conhecimento científico. Desse modo, o mais importante de tudo isso é perceber que a ciência não pode ser compreendida como um conhecimento monolítico, acabado e inquestionável. A pesqui- sa científica, seja aquela realizada no âmbito das humanidades ou das ciências naturais, deve ser tomada como algo passível de revisão e aprimoramento. Esse é um preceito que certamente não pode ser posto de lado. Dificilmente os autores aqui discutidos estariam dispostos a negá-lo. Além disso, pensar a ciência é muito mais do que simplesmente co- nhecer as particularidades de sua história ou das diversas teorias científicas. Pensar a ciência é uma tarefa que requer uma séria reflexão sobre a própria natureza do conheci- mento. Nesse sentido, pensar o conhecimento científico é uma operação que não pode ser dissociada da filosofia. #M1U1 XIV. Conclusão Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 95 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B A) Bibliografiaprimária DESCARTES, R. Regras para a direção do espírito. Lisboa: Edições 70, 1985. DESCARTES, R. Discurso do Método. Brasília: UNB/Ática, 1989. GALILEI, G. Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico & copernicano. Trad. Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Discurso Editorial, 2001. ______.O Ensaiador. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os pensadores) ______.Ciência e fé: cartas de Galileu sobre a questão religiosa. São Paulo: Nova Stella Editorial/Rio de Janeiro: MAST, 1988. FEYERABEND, P. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977. HUME, D. Investigações sobre o entendimento humano. São Paulo: Unesp, 2003. LAKATOS, I. & MUSGRAVE; A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo: Editora Cultrix, 1979. 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Campinas: IFCH/UNICAMP, 1998. #M1U1 XV. Referências 96 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico RIVAL, M. Os grandes experimentos científicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. ROSSI, P. O nascimento da ciência moderna na Europa. Bauru: EDUSC, 2001. RUSSELL, B. História do pensamento ocidental. Rio de Janeiro: Ediouro, 2001. SIMAAN, A.; FONTAINE, J. A imagem do mundo dos babilônicos a Newton. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. C) Bibliografia secundária: Filosofia da Ciência CHALMERS, A. F. O que é ciência afinal? São Paulo: Brasiliense, 1997. DUTRA, L. H. A. Introdução à teoria da ciência. Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2003. EPSTEIN, I. Revoluções científicas. São Paulo: Ática, 1988. HEGENBERG, L. Explicações científicas: introdução à filosofia da ciência. São Paulo: E.P.U., 1973. HEMPEL, C. G. Filosofia da ciência natural. Rio de Janeiro: Zahar, 1974. MAGEE, B. As idéias de Popper. São Paulo: Cultrix, 1979. MORGENBESSER, S. Filosofia da ciência. São Paulo: Cultrix, 1979. TERRA, P. S. Pequeno manual do anarquista epistemológico. Ilhéus: Editus, 2000. Consórcio Setentrional de Ensino a Distância 97 Eixo Biologia, Sociedade e Conhecimento P BSC B 1) A proposta formulada por Thomas Kuhn é uma das alternativas sobre o desen- volvimento da ciência, amplamente discutida durante a segunda metade do século XX. Em algumas passagens de seu livro A Estrutura das revoluções científicas encontramos algu- mas passagens bastante interessantes. Vejamos algumas delas: “A ciência normal, atividade que consiste em solucionar quebra-cabeças, é um empreendimento altamente cumulativo, extremamente bem sucedido no que toca ao seu objetivo, a ampliação contínua do alcance e da precisão do conhecimento científico”(KUHN, 1991, p. 77). “A transição de um paradigma em crise para um novo, do qual pode surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo cumulativo obtido através de uma articulação do velho paradigma. É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das ge- neralizações teóricas mais elementares do paradigma, bem como muitos de seus métodos e aplicações”(KUHN, 1991, p. 116). Essas duas passagens nos colocam diante de um problema, relacionado com a idéia de conhecimento por acumulação de descobertas e teorias. Diante disso, explique por que os dois trechos não são contraditórios, isto é, por que é possível sustentar que durante a ciência normal existe um processo cumulativo, ao passo que a transição de um paradigma para outro não pode ser encarada da mesma maneira. Não se esqueça de que a solução deste problema depende também da utilização dos conceitos de anomalia, crise e revolu- ção científica. Certamente esses três elementos garantem a Kuhn afirmar aquilo que ele diz nos dois trechos acima. 2) Como sabemos, Galileu tem um papel fundamental na construção de um novo modelo de ciência, sendo um dos responsáveis pela revolução científica do século XVII. Em uma de suas mais célebres passagens, Galileu afirma o seguinte: “Parece-me também perceber em Sarsi sólida crença que, para filosofar, seja necessário apoiar-se nas opiniões de algum célebre autor, de tal forma que o nosso raciocínio, quando não concordasse com as demonstrações de outro, ti- vesse que permanecer estéril e infecundo. Talvez considere a filosofia como um livro e fantasia de um homem, como a Ilíada e Orlando Furioso, livros em que a coisa menos importante é a verdade daquilo que apresentam escrito. Sr. Sarsi, a coisa não é assim. A filosofia encontra-se escrita neste grande livro que con- tinuamente se abre perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender antes de entender a língua e conhecer os caracteres com os quais está escrito. Ele está escrito em língua matemática, os caracteres são triângulos, circunferências e outras figuras geométricas, sem cujos meios é impossível en- tender humanamente as palavras; sem eles nós vagamos perdidos dentro de um obscuro labirinto” (GALILEU, 1978, p. 119). Em outro momento dos escritos de Galileu, nas Considerações sobre a opinião copernicana, o autor afirma: XVI. Atividades complementares 98 Módulo I — Contexto da Vida # M1U1 Panorâmica da Evolução do Pensamento Científico-Filosófico “A mobilidade da Terra e a estabilidade do Sol não podem jamais ser contra a fé ou as Sagradas Escrituras se for verdadeiramente provado por filósofos, astrônomos e ma- temáticos, com experiências sensíveis, com observações cuidadosas e com demons- trações necessárias que ela é verdadeira na Natureza” (GALILEU, 1998, p. 96). Essas duas passagens nos colocam diante de dois elementos importantíssimos do método científico que caracteriza a nova ciência de Galileu. Explique quais são esses elementos e por que eles são fundamentais para a caracterização da nova ciência proposta por Galileu.
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